SUMÁRIO:
I. As declarações dos sujeitos passivos apresentadas fora do prazo legal não beneficiam, nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT, da presunção de verdade e boa-fé, sendo livremente valoradas;
II. A entrega extemporânea da declaração não tem como efeito necessário a anulação da liquidação oficiosa feita ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, sendo para tal necessário que o sujeito, em sede de reclamação ou impugnação, demonstre a inexistência do facto tributário ou a sua errada quantificação;
III. Nos casos em que os registos contabilísticos não estejam devidamente organizados e/ou revelem erros e/ou incorreções, fica largamente comprometida a sua idoneidade para, de per se, servirem de suficiente âncora documental aos elementos declarados;
IV. Quando os “elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha” (designadamente através do E-fatura) revelarem a inatividade de uma empresa ou um acentuado declínio da sua atividade, recorrer à “totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada” para apurar a liquidação do IRC correspondente a esse período é inadequado e violador do sentido que se pode atribuir à incorporação na alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC, pela Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho, daquilo que era a sua subalínea 1).
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A..., com o número de identificação fiscal ... e domicílio em ..., n.º ..., ...-... Santo Tirso (“Requerente”), na qualidade de responsável subsidiário da sociedade comercial B..., LDA., com o número de identificação fiscal ... (“devedora originária”), veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária” ou “RJAT”), em conjugação com o disposto no artigo 99.º e na alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à pronúncia sobre a legalidade da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa por si apresentada contra as liquidações de IRC com os n.os 2020..., 2020 ... e 2022..., referentes aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, respetivamente, bem como a liquidação de juros compensatórios, no valor global de € 751.010,19.
O Requerente invoca, em abono da sua pretensão:
a) Errónea quantificação do ato tributário, ao abrigo do artigo 99.º, n.º 1, alínea a) do CPPT;
b) A violação do princípio do inquisitório e da verdade material; e
c) A violação do princípio da capacidade contributiva e do rendimento real.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
O pedido de constituição foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, tendo seguido a sua normal tramitação.
O Tribunal foi constituído no dia 09 de janeiro de 2025.
A Requerida apresentou resposta no dia 12 de fevereiro de 2025, na qual sustentou a manutenção dos atos impugnados, defendendo-se por impugnação dos factos alegados pelo Requerente, nomeadamente a respeito das justificações do atraso na entrega das declarações Modelo 22 e dos prejuízos fiscais nos exercícios de 2019 e 2020, afirmando ainda ter cumprido todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária do Requerente, não tendo esta última facultado documentos idóneos de provar a incorreção da liquidação oficiosa. A Requerida encetou ainda uma análise da prova documental disponibilizada pela Requerente (essencialmente documentos contabilísticos), concluindo que a omissão probatória que justificou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa se mantém na presente ação arbitral, incumprindo o Requerente o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, tal como determina o artigo 74.º, n.º 1, da LGT e o artigo 342.º do Código Civil.
A reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT foi realizada no dia 11 de abril de 2025, tendo aí sido inquiridas as testemunhas arroladas pelo Requerente e fixado o prazo para a apresentação de alegações escritas pelas Partes. Na mesma ocasião, o Tribunal ouviu a Requerida sobre a admissibilidade da junção de elementos adicionais de prova pelo Requerente nesta fase do processo.
Por despacho de 11 de abril de 2025 e ao abrigo do artigo 19.º do RJAT, o Tribunal admitiu a produção adicional de prova, alargando-se o prazo para alegações escritas em 10 dias, contados a partir do primeiro dia útil posterior à junção dos documentos pelo Requerente.
O Requerente e a Requerida apresentaram alegações escritas.
Em 7 de Julho de 2025 a Requerente juntou aos autos a decisão proferida no processo n.º 1173/2024-T, que tinha por objeto a discussão da legalidade de liquidações oficiosas de IVA, referentes ao exercício de 2019 da sociedade “B...” (cujas dívidas também tinham revertido para o Requerente), sendo nesse mesmo dia prorrogado o prazo de decisão para se consensualizar esta.
No dia 22 de agosto a AT apresentou pronúncia sobre a junção aos autos da referida decisão arbitral.
Em 26 de agosto o Tribunal voltou a prorrogar o prazo de decisão ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAT).
O PPA apresentado em 31 de outubro de 2024 é tempestivo, porquanto apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar de 07 de agosto de 2024 (dia seguinte à data em que o Requerente se considerou notificado do ato de indeferimento da reclamação graciosa contestada), nos termos do artigo 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT e do artigo 279.º do Código Civil.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Não há nulidades ou outra matéria de exceção a conhecer, passando-se à análise do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos, que se julgam provados:
A. O Requerente é gerente da sociedade B..., LDA.,
B. A devedora originária está enquadrada no regime geral de tributação em sede de IRC, tendo iniciado a sua atividade em 25.01.2005, sob o Código de Atividade Económica (CAE) 74401, que veio a ser alterado em 28.03.2016, passando o objeto da sociedade a consistir em “OUTRA IMPRESSÃO”, a que corresponde o CAE principal 18120, e “FABRICAÇÃO DE EMBALAGENS DE PLÁSTICO”, a que corresponde o CAE secundário 022220.
C. A devedora originária não apresentou, dentro do prazo legal, as declarações Modelo 22 relativas aos exercícios de 2018, 2019 e 2020.
D. Assim, a devedora originária foi notificada para apresentar as declarações Modelo 22 em falta, mediante o Aviso n.º ..., emitido em 23.10.2019, referente a 2018; bem como o Aviso n.º ..., emitido em 07.11.2020, referente a 2019; e o Aviso n.º..., emitido em 17.11.2021, referente a 2020.
E. Decorridos os prazos indicados nos Avisos e não tendo a Sociedade submetido as declarações periódicas de rendimentos Modelo 22 em falta, a AT emitiu a liquidação oficiosa n.º 2020 ... referente ao exercício de 2018, em 09.12.2020; a liquidação oficiosa n.º 2020 ... referente ao exercício de 2019, em 23.12.2020 e a liquidação oficiosa n.º 2022 ... referente ao exercício de 2020, em 22.01.2022, na qual foi apurada matéria coletável total no valor de € 751.010,19, nos termos do previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC.
F. Relativamente ao exercício de 2018, a liquidação oficiosa emitida pela Requerida teve por base o artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do CIRC com recurso aos elementos disponíveis no sistema E-Fatura (i.e., faturas e notas de crédito).
G. A determinação da matéria coletável dos anos 2019 e 2020 pela Requerida teve por base os valores considerados para 2018, reportando-se à totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada, nos termos do artigo 90.º, n.º 1, alínea b), subalínea 2) do CIRC.
H. A devedora originária foi notificada das liquidações oficiosas de IRC e respetivos juros compensatórios, referentes aos períodos de tributação de 2018, 2019 e 2020 em 03.01.2021, 18.01.2021, e 04.02.2022, respetivamente, não tendo apresentado reclamação graciosa, nem exercido outro meio de defesa administrativo ou judicial contra as liquidações oficiosas.
I. Perante o não pagamento dos valores apurados nas liquidações oficiosas relativas aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, foram instaurados os processos de execução fiscal n.º ...2021..., n.º ...2021... e n.º ...2022..., respetivamente, todos apensos ao processo principal n.º ...2018... .
J. No dia 09.11.2022, o Requerente foi notificado da reversão do processo de execução fiscal contra si, na qualidade de responsável subsidiário, por inexistência ou insuficiência de bens da devedora originária, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, da LGT, e citado para proceder ao pagamento da quantia exequenda de € 903.306,28, respeitante a diversas prestações tributárias em falta, entre as quais, as liquidações oficiosas de IRC respeitantes aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, incluindo juros compensatórios.
K. Nos dias 06.02.2023, 11.11.2023 e 29.01.2024, a devedora originária submeteu as declarações Modelo 22 em falta relativamente aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, respetivamente, tendo estas ficado na situação de “Não liquidável”, em virtude de terem sido submetidas após findo o prazo previsto no artigo 120.º do CIRC para a entrega das mesmas.
L. No dia 15.02.2023 o Requerente apresentou reclamação graciosa, à qual foi atribuída o n.º ...2023..., em que peticionou, entre outros, a anulação das liquidações oficiosas de IRC referentes aos exercícios de 2018 a 2021.
M. No dia 09.11.2023, perante a falta de quaisquer elementos contabilísticos juntos à reclamação graciosa, a Requerida notificou o Requerente para, no prazo de 10 dias, juntar a documentação relevante para os exercícios em causa, nomeadamente atas de aprovação de contas, balancetes, anexo ao balanço e à demonstração de resultados, cópia do processo de documentação fiscal e extratos de contas específicas.
N. Em resposta a esse pedido, o Requerente remeteu os seguintes documentos, todos relativos apenas ao exercício de 2019: balancete; balanço sem o respetivo anexo; extrato da conta #24.
O. No dia 15.01.2024 o Requerente foi notificado para exercer o direito de audição prévia, relativamente ao projeto de decisão da reclamação graciosa, em que se propôs, no que respeita ao IRC, (i) a rejeição do pedido relativo ao exercício de 2021 por ilegitimidade ativa do Requerente, por não ter existido reversão fiscal da respetiva dívida, bem como (ii) o indeferimento dos pedidos relativos à anulação das liquidações oficiosas de IRC de 2018 a 2020, por insuficiência da prova apresentada pelo reclamante e a consequente impossibilidade de comprovação do lucro tributável/prejuízo fiscal apurado e respetivos ajustamentos indicados no quadro 07 das declarações Modelo 22 entregues tardiamente.
P. Por requerimento de 30.01.2024 o Requerente solicitou a prorrogação do prazo para audição prévia, para efeitos de recolher toda a documentação solicitada, tendo a Requerida concedido tal prorrogação por 10 dias.
Q. No dia 09.02.2024, o Requerente juntou ao procedimento administrativo, através de audição prévia, os seguintes documentos: cópia de ata de aprovação de contas referente aos anos de 2018 a 2020; balancetes analíticos referentes aos anos de 2018 a 2020; demonstração de resultados referente aos anos de 2018 a 2020, sem o respetivo anexo; balanço referente aos anos de 2019 e 2020, sem o respetivo anexo; e o extrato da conta #24 referente ao exercício de 2019.
R. Conforme resulta do procedimento administrativo remetido pela Requerida, entre abril e junho de 2024, a Requerida solicitou informações ao ora Requerente por diversas vezes, a respeito da documentação remetida, tendo os respetivos esclarecimentos sido prestados essencialmente através do reencaminhamento de respostas fornecidas pelo Contabilista Certificado C... (responsável pela contabilidade da devedora originária em 2018), bem como pelo Contabilista Certificado D... (responsável pela contabilidade da devedora originária entre 2019 e 2020).
S.
No dia 06.08.2024, o Requerente foi notificado do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, do qual se destaca a fundamentação respeitante ao indeferimento do pedido de anulação das liquidações oficiosas de IRC:






T. Após a análise da prova oferecida pelo ora Requerente, a AT concluiu pela improcedência da reclamação graciosa, pois “verifica-se que o Reclamante, ora Revertido, não carreou para os autos dados relevantes e fidedignos, afigurando-se ser de manter as liquidações de IRC […]”, tendo, por isso, ficado prejudicada a apreciação do direito a juros indemnizatórios.
Mais se provou que,
U. Entre 2007 e 2018, a contabilidade da devedora originária estava a cargo de um gabinete de contabilidade sito em Vila do Conde e, especificamente no exercício de 2018, ficou esta a cargo do Dr. C..., Contabilista Certificado.
V. Em dezembro de 2018 foi levada a cabo uma apreensão judicial da qual resultou a apreensão de toda a documentação contabilística referente à devedora originária e que se encontrava no gabinete de contabilidade sito em Vila do Conde, relativa aos exercícios de 2016, 2017 e 2018.
W. A 12 de dezembro de 2018 foi levada a cabo uma apreensão judicial às instalações comerciais da devedora originária, em Santo Tirso, no âmbito da qual foram apreendidos cartões de crédito, documentos de identificação, listagens de clientes e caixas de cartão contendo vários documentos, entre os quais “documentos bancários” e “transações comerciais”.
X. Após as apreensões judicias de dezembro de 2018, a devedora originária continuou a dispor de diversos documentos contabilísticos referentes ao exercício de 2018, que se encontravam nas suas instalações comerciais e não foram objeto de apreensão.
Y. Nenhuma documentação contabilística relativa ao exercício de 2019 e 2020 foi objeto de apreensão judicial no âmbito do processo de inquérito n.º .../16...T9STS.
Z. Em 2019 e 2020, a sociedade devedora originária deixou de apresentar qualquer faturação.
AA. Não existiam relações especiais entre a devedora originária e as empresas “G... o, Unipessoal, LDA” (com o NIPC...), E..., SA” (com o NIPC...) e “F..., SA” (com o NIPC...), durante os exercícios de 2018, 2019 e 2020, como decorre das Certidões Permanentes das referidas empresas.
Factos não provados
a. Que a entrega das declarações Modelo 22 referentes a 2018, 2019 e 2020 não foi possível em razão da apreensão judicial de “toda a documentação contabilística e financeira da devedora originária, nomeadamente pastas relativas à contabilidade, documentos e computadores”, incluindo o seu dossier fiscal, que fosse essencial para a entrega das declarações periódicas de rendimentos.
b. Que a devedora originária não tinha acesso a quaisquer documentos de suporte à contabilidade, tais como cópias de faturas, em resultado da apreensão judicial às suas instalações comerciais.
c. Que a devedora originária atravessou uma primeira quebra nas suas vendas no ano de 2017, por força de um dos seus principais clientes ter deixado de fazer grandes encomendas de panfletos, nem que as diligências de investigação realizadas no âmbito do processo de inquérito n.º .../16...T9STS causaram uma “grande quebra nos rendimentos” da devedora originária a partir de 2018.
d. Que a matéria coletável relativa ao exercício de 2018 corresponde a € 8.379,91 e que o IRC devido nesse período corresponde ao valor de € 2.435,85.
e. Que o Requerente teve prejuízos fiscais no exercício de 2019, no montante de € 92.932,56.
f. Que o Requerente teve prejuízos fiscais no exercício de 2020, no montante de € 4.258,99.
Fundamentação da fixação da matéria de facto
Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.
No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos e na prova testemunhal.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo sujeito passivo, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do artigo 29.º do RJAT, e consignar se a considera provada ou não provada, conforme o n.º 2 do artigo 123.º do CPPT.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme o artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o princípio da livre apreciação.
As Testemunhas C... e D..., contabilistas certificados que elaboraram a contabilidade da devedora originária entre 2018 e 2020, não revelaram profundo conhecimento da atividade e, consequentemente, dos pormenores da situação tributária da devedora originária nos períodos em que atuaram como contabilistas certificados, antes tendo ficado demonstrado que os intervenientes não tinham conhecimento direto de factos necessários à execução dos respetivos lançamentos contabilísticos, além de não terem acesso a toda a documentação de suporte relevante para validar a correção da contabilidade e, em especial, a efetiva verificação de todos os pressupostos de que depende o preenchimento das declarações Modelo 22.
O depoimento das Testemunhas revelou fragilidades patentes na prova documental junta pelo Requerente aos Autos, tendo ficado por comprovar a correspondência de várias realidades, constantes nos balancetes e demonstrações de resultados apresentados, com a realidade material.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Testemunhas C... e D..., a propósito das divergências apontadas pela Requerida na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
Não se provou que o lucro tributável e imposto devido pelo sujeito passivo correspondessem aos valores invocados. Desde logo, por inexistência de qualquer documento de suporte desses montantes. Mais, importa notar que, dos esclarecimentos prestados pelas Testemunhas, e atento o seu grau de proximidade com a matéria em causa, na qualidade de contabilistas certificados, ficou seriamente posta em causa a existência de tais documentos de suporte, dado que os mesmos não eram sempre facultados aos contabilistas certificados.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
1. Questões decidendas
O Requerente sustenta a ilegalidade dos atos impugnados nos seguintes fundamentos: excesso de quantificação da matéria coletável, violação do princípio do inquisitório e violação do princípio da capacidade contributiva e do rendimento real.
Por seu turno, a Requerida pugna pela manutenção da liquidação, rejeitando que esta padeça de qualquer vício, acrescentando ainda que o Requerente “não apresentou quaisquer documentos de suporte dos seus registos contabilísticos (nomeadamente de cópias das faturas de custos suportados e dos proveitos obtidos), sendo esta prova documental a que se entende essencial no âmbito do procedimento em questão”.
Vejamos.
1.1. O Requerente sustenta o pedido de anulação da liquidação em diferentes vícios.
Quando tal ocorre, o disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, determina que o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o seu prudente critério, uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos e não exista uma relação de subsidiariedade entre os vícios invocados. Deste modo, o Tribunal entende que deverá conhecer em primeiro lugar dos vícios substanciais, enquanto forma de tutela mais estável e eficaz dos interesses do Requerente.
1.2. Da errónea quantificação do ato tributário, ao abrigo do artigo 99.º, alínea a) do CPPT
Nos termos do artigo 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT, as declarações do sujeito passivo apresentadas fora do prazo legal não gozam da presunção de verdade e boa-fé contida no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, sendo antes livremente valoradas, conforme confirmado pelos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 03.02.2021, processo n.º 0416/09.7BECBR, e de 04.05.2016, processo n.º 0415/15, e no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13.10.2022, processo n.º 1968/12.0 BELRS.
Daqui resulta que a entrega extemporânea da declaração Modelo 22 (que não goza da presunção de veracidade do n.º 1 do artigo 75.º da LGT) não tem como efeito necessário a anulação da liquidação oficiosa, sendo imprescindível que o sujeito passivo ofereça prova, em sede de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou impugnação judicial (leia-se, também, processo arbitral), de que a referida liquidação sofre do vício de excesso na quantificação do rendimento, não sendo suficiente ao sujeito passivo invocar uma violação do princípio da tributação das empresas fundamentalmente pelo rendimento real (cf., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de fevereiro de 2021, processo n.º 0416/09.7BECBR).
Isto significa que as Declarações Modelo 22 de IRC apresentadas pelo Requerente fora de prazo (em 06.02.2023, 11.11.2023 e 29.01.2024), com referência aos exercícios de 2018, 2019 e 2020, não gozam da presunção de verdade e boa-fé contida no n.º 1 do artigo 75.º da LGT, ainda que o apuramento do lucro/matéria coletável subjacente às mesmas possa refletir a real situação contributiva da devedora originária.
O atraso na entrega das Declarações Modelo 22 de IRC não se deve, contudo, à apreensão judicial conduzida ao gabinete de contabilidade sito em Vila do Conde em dezembro de 2018. Pelo contrário, foi feita prova testemunhal de que a devedora originária dispunha de cópias da documentação contabilística referente ao exercício de 2018, que se encontravam nas suas instalações comerciais, pelo que, ainda que se admita que tal acervo documental pudesse estar incompleto, a referida apreensão não era passível de impossibilitar a devedora originária de cumprir as suas obrigações fiscais, porquanto sempre poderia solicitar ao Ministério Público cópia dos documentos contabilísticos necessários ao preenchimento das declarações que optou por não apresentar atempadamente, nem após a notificação para submeter as declarações em falta.
Ora, uma vez apresentadas tais declarações, ainda que tardiamente, a prova de que os valores nelas inscritos correspondem à real situação tributária da devedora originária sempre caberia ao Requerente, à luz do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, que deverá demonstrar que o valor das liquidações oficiosas de IRC contestadas se encontra efetivamente incorreto. Isto porque, tal como alegado pela Requerida, estamos perante uma liquidação oficiosa emitida pela AT em cumprimento do poder-dever consagrado no então artigo 90.º, n.º 1, alínea b), subalínea 1), do CIRC, na versão em vigor à data da emissão das liquidações oficiosas, com fundamento na não entrega da Declaração Modelo 22 no respetivo prazo legal, pelo que recai sobre o sujeito passivo o ónus de provar que os rendimentos assumidos pela AT não correspondem à realidade.
E, em princípio, admite-se que esta prova seja feita por recurso à apresentação dos elementos contabilísticos do sujeito passivo, devidamente organizados. A este propósito, acompanham-se de perto as considerações tecidas no processo arbitral n.º 6/2023-T:
“A existência de elementos contabilísticos que permitam controlar os elementos declarados constitui condição necessária para que os dados declarados sejam merecedores de análise administrativa já que, sem o conhecimento desses elementos, sempre ficaria comprometida ab initio a possibilidade de reconstrução da matéria tributável e o exercício do inquisitório por parte da administração, por carência de objeto. Com a comunicação dos elementos contabilísticos relevantes para a determinação do imposto fica preenchido, com suporte substantivo, o vazio declarativo que deu causa à liquidação oficiosa, colmatando-se a ausência de informação impeditiva da comprovação dos elementos declarados. Nesta ótica, compreende-se o juízo deixado nos arestos do TCA Sul, de 25 de junho de 2019 e de 11 de março de 2021 (processos n.os 506/14.4BEBJA e 255/10.2BELRS, respetivamente), segundo o qual o juízo presuntivo, que cessa face à entrega tardia da declaração quanto aos dados daí constantes, não se estende, ipso facto, à contabilidade organizada nos termos da lei. Aceita-se este entendimento porquanto os elementos contabilísticos que permitam retratar a realidade fiscalmente relevante não perdem a sua aptidão funcional em função do momento em que é apresentada a declaração, constituindo sempre instrumentos válidos para o fim relativamente ao qual se encontram preordenados. E, para tal efeito, os elementos contabilísticos e de relato financeiro congruentemente organizados, são também condição suficiente para darem por satisfeita a obrigação declarativa “subsequente”, no caso forçosamente acompanhada por aqueles, ditando que a administração não possa abster-se de considerar os elementos declarados e de realizar nesse contexto as diligências necessárias para confirmar ou infirmar os valores declarados, na presença “de elementos da contabilidade que põem em causa o acerto dos pressupostos de facto do ato questionado” (acórdão do TCA Sul de 15 de dezembro de 2021, processo n.º 2399/15.5 BELSB).” (sublinhado nosso).
Assim, apesar de a Declaração Modelo 22 entregue após o prazo legal não beneficiar da presunção de veracidade, não bastando para justificar a anulação da liquidação oficiosa emitida pela AT, tal não afeta a validade da contabilidade elaborada pelo sujeito passivo, podendo tais elementos servir como fundamento da incorreção da liquidação oficiosa em causa. Contudo, tal como dispõe o artigo 75.º, n.º 1, da LGT, apenas gozam dessa credibilidade “os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”…
E, por esse motivo, “nos casos em que os registos contabilísticos não possam considerar-se imaculados – convocando a adjetivação mobilizada pelo STA no citado acórdão de 5 de dezembro de 2018 – por não se encontrarem devidamente organizados e/ou revelarem erros e/ou incorreções, fica largamente comprometida a sua idoneidade para, de per se, servirem de suficiente âncora documental aos elementos declarados. Nestas situações, deixando de existir a mediação da contabilidade, a comprovação dos elementos declarados não prescinde da consideração dos documentos que suportam os movimentos evidenciados contabilisticamente.”[1]
Revertendo ao presente caso, e como já ficou assente, cabe a quem invoca o interesse – neste caso, o Requerente – o ónus da prova do excesso da quantificação da matéria tributável que imputa a cada exercício, o que implica a prova dos factos constantes das respetivas declarações.
In casu, o Requerente não efetuou esse esforço probatório.
Em concreto, o Requerente não forneceu todos os elementos contabilísticos necessários para a boa compreensão dos ajustamentos e valores inseridos nas declarações Modelo 22 entregues tardiamente, de que são exemplo os balanços e demonstrações de resultados facultados, nos quais foi omitido o respetivo anexo, impossibilitando a boa compreensão dos mesmos e, consequentemente, da matéria coletável que a devedora originária imputou a cada exercício.
De resto, não ficou igualmente provado nos presentes Autos que os valores inscritos nas declarações submetidas tardiamente pelo Requerente correspondessem à real situação tributária da devedora originária. Contrariamente, resultou de toda a prova produzida que os elementos contabilísticos apresentados (ainda que incompletos) continham incongruências e notórios desvios às regras contabilísticas em vigor, que justificaram que o Tribunal não os considerasse idóneos para o cumprimento do ónus da prova que impendia sobre o Requerente. Vejamos:
i) Das divergências no Quadro 07
Num primeiro momento, o Requerente vem esclarecer duas incongruências constantes da Declaração Modelo 22 relativa ao exercício de 2018 (no valor de € 434,12 e € 845,44, respetivamente) e apontadas pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa. A primeira, que alega dever-se a um lapso do contabilista certificado da devedora originária, que lançou em duplicado uma multa fiscal, cujo estorno foi posteriormente registado mas não considerado pela AT, na medida em que tal movimentação não era visível no balancete final de 2018. A este respeito, o Requerente invoca que “Para um correto apuramento dos registos das contas sob escrutínio, a AT deveria ter procedido a analise do Balancete antes de apuramento de resultados (ou balancete de verificação), em que são consideradas as contas patrimoniais e de resultado, sendo evidenciadas todas as movimentações das contas no ano de 2018”. Para demonstrar o lançamento em duplicado e subsequente estorno, o Requerente apresentou os extratos das contas relevantes, onde constam, efetivamente, as movimentações em causa, sem que tenha, ainda assim, apresentado documentação de suporte ao referido lançamento, i.e., a multa em causa.
Em segundo lugar, o Requerente justifica uma divergência a nível dos gastos com o pessoal como tratando-se do “ajustamento dos valores estimados do mês de férias e do subsídio de férias, referentes a dois funcionários que deixaram de trabalhar para a empresa […] resultando assim num crédito nas contas 6321 e 6322 (por contrapartida da conta 272221), no valor de € 422,72 em cada conta, em conformidade com mapa de Acerto de Duodécimos Férias/Subsídio de Férias de 2018 a pagar em 2019”, tendo junto ao processo o referido mapa, bem como os extratos das contas 6321, 6322, 6323 e 6324, que se mostraram de acordo com a justificação invocada. Porém, também neste ponto, o Requerente não apresentou documentação de suporte, designadamente prova da rescisão dos contratos de trabalho dos referidos funcionários. Acresce o próprio contabilista certificado que lançou os registos contabilísticos em causa, não teve acesso a tal documentação, conforme foi testemunho do próprio, em sede de audiência de testemunhas.
ii) Das imparidades resultantes de dívidas a receber de clientes
Nos termos do artigo 28.º-A do CIRC, “Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade, quando contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores: a) As relacionadas com créditos resultantes da atividade normal, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento de obrigação, que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”. Esclarece, depois, o artigo 28.º-B do CIRC, que se consideram créditos de cobrança duvidosa, aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que por sua vez apenas se verificará numa das situações tipificadas nas alíneas do n.º 1, do artigo 28.º-B do CIRC. Decorre, portanto, do atual regime previsto no CIRC, que as perdas por imparidade com dívidas a receber de clientes, registadas pelo sujeito passivo na sua contabilidade, apenas são fiscalmente aceites se verificados os requisitos cumulativos previstos nos artigos 28.º-A e 28.º-B do CIRC.
Adotando a sistematização constante no processo arbitral n.º 203/2022-T, de 5.12.2022, “pode afirmar-se que os requisitos legais para o registo fiscal de imparidades de créditos são, de forma cumulativa, os seguintes: i) As imparidades contabilísticas devem ser “contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores” (cfr. artigo 28.º-A, n.º 1 do CIRC); ii) Devem estar “relacionadas com créditos resultantes da atividade normal da empresa, incluindo os juros pelo atraso no cumprimento das obrigações” (cfr. artigo 28.º-A, n.º 1, al. a), do CIRC); iii) Devem ser consideradas de “cobrança duvidosa e sejam evidenciados, como tal, na contabilidade” (art. 28.º-A, n.º 1, al. a), do CIRC), o que se verificará quando estejam em mora há mais de seis meses (cfr. artigo 28.º-B, n.º 1, al. c) e n.º 2, do CIRC)); iv) Existam “provas objetivas de imparidade” e v) Foram efetuadas “diligências para o seu recebimento” (cfr. artigo 28.º-B, n.º 1, al. c), do CIRC); Deve, por isso, ser analisado se cada um destes requisitos encontra-se verificado no caso sub judice”.
Ora, no caso sub judice, não se pode considerar que tenha sido feita a demonstração da verificação de nenhum dos requisitos legais de que depende a aceitação fiscal das perdas por imparidade registadas pela devedora originária como respeitando a dívidas a receber de clientes, no valor de €130.597,83.
Na verdade, toda a informação fornecida pelo Requerente a este respeito foi a seguinte:
“Cumpre agora demonstrar em sede arbitral que as perdas por imparidades resultantes de dívidas de clientes foram corretamente consideradas como gastos fiscalmente dedutíveis pela Sociedade, na medida em que os créditos se tornaram incobráveis.
Tal é comprovado pelas faturas emitidas pela Sociedade, com indicação do valor dos créditos a receber e identificação dos respetivos clientes, bem como das diligências de cobrança e respetivas ações judiciais que foram interpostas para recuperação do crédito em mora (que se protestam juntar como Doc. 19).
Adicionalmente, apresenta-se também cópia do extrato da conta 217, que evidencia na contabilidade os créditos como sendo considerados de cobrança duvidosa […]
Pelo que, em face do exposto e da documentação junta, deverá considerar-se corretamente inscrito o valor de € 130.597,83, respeitante a dívidas a receber de clientes, como gastos fiscalmente dedutíveis, para efeitos de apuramento da matéria tributável do exercício de 2018.”
Porém, não só a informação fornecida pelo Requerente foi ab initio manifestamente insuficiente para permitir ao Tribunal aferir da verificação dos pressupostos de que a lei faz depender a aceitação fiscal dos gastos em causa, como não foram entregues documentos idóneos ao cumprimento do ónus da prova que sobre o Requerente recaía. Em concreto, o Requerente juntou ao presente processo:
a) Um documento intitulado “listagem de processos pendentes”, datado de 9 de maio de 2017, que aparenta tratar-se de uma lista elaborada pelo advogado da devedora originária, com base em eventuais registos internos do mesmo (nomeadamente, injunções e contactos com vista à recuperação dos créditos), mas cuja fonte ou autor não foram esclarecidos pelo Requerente. Atendendo às dezenas de entidades que constam na referida lista, muitas delas com um valor de dívida associado de € 0,00, e ao facto de o valor total da listagem ultrapassar largamente o valor em discussão in casu, não é possível ao Tribunal isolar as entidades cujas dívidas terão sido consideradas nas perdas por imparidade em causa. É ainda impossível a verificação da existência ou origem dos documentos com base nos quais tal listagem foi elaborada, além do facto de a data que consta do documento indicar que a mesma não está atualizada à data de 31.12.2018, momento este que seria relevante para apurar a correção do registo das referidas perdas por imparidade em relação ao exercício de 2018.
b) Cópia de requerimentos de injunção, que apenas totalizam € 39.030,51, quando o valor cuja aceitação o Requerente reclama ascende a € 130.597,83… Numa tentativa de cruzar as informações constantes em ambos os documentos, o Tribunal constatou ainda que alguns dos requerimentos de injunção apresentados correspondiam a entidades que, ou não constavam na “listagem de processos pendentes”, ou, constando, não tinham valor de dívida pendente associado na referida listagem.
Resta concluir que a prova aduzida aos Autos pelo Requerente não permitiu demonstrar o preenchimento de nenhuma das situações de risco de incobrabilidade, previstas no artigo 28.º-B do CIRC.
Cumpre ainda referir que o extrato da conta 217 e a Declaração Modelo 30, também juntas aos Autos pelo Requerente, não logram suprir a falta de prova verificada. Por um lado, tais documentos não são documentos idóneos de comprovar o preenchimento das situações factuais previstas no artigo 28.º-B do CIRC. Por outro lado, a credibilidade de tais registos, na medida da sua correspondência com a realidade, ficou seriamente posta em causa pelo testemunho do Dr. C..., que afirmou não ter recebido documentos comprovativos de tentativas de cobrança dos créditos, ainda que os tivesse solicitado, precisamente para efeitos de confirmação da dedutibilidade de eventuais perdas por imparidade registadas.
iii) Inventários
Em sede de procedimento administrativo, a Requerida solicitou detalhes sobre o valor de € 1.523.521,96 registado na demonstração de resultados relativa ao exercício de 2018 como custo das mercadorias vendidas e matérias consumidas, em especial tendo em atenção que tal valor cobria a totalidade das mercadorias adquiridas naquele exercício. Em resposta a tal solicitação, o contabilista certificado da devedora originária informou que “consta da contabilidade e da IES 1.523.521,96 € e a empresa não comunicou a existência de stocks finais, pelo que a totalidade deste valor foi considerado custo das mercadorias vendidas.”
Perante a clara insuficiência da justificação apresentada, que não esclarece o destino de tais mercadorias, nem a inexistência de stocks finais, a AT concluiu que “além de não ter sido dada uma justificação válida a mesma não foi documentalmente provada”.
Em sede de PPA, veio o Requerente elaborar que todos os produtos que comprava de outros fornecedores eram subsequentemente revendidos e a Sociedade não tinha produção própria das matérias-primas que comercializava, pelo que todas as compras realizadas foram consideradas como gastos do exercício.
Cumpre clarificar, em primeiro lugar, que a discussão no âmbito deste ponto não está na obrigatoriedade de uma sociedade dispor de inventários tout court. Discute-se outrossim se, no caso concreto, estamos perante uma situação em que tal registo respeita os termos ditados pelas normas contabilísticas que regulam a contabilização dos inventários. Será, por isso, à luz da justificação para a inexistência de inventários que se poderá determinar se, de facto, a devedora originária estava em condições de não precisar de registar quaisquer existências de inventários.
In casu, a devedora originária levou a gastos a totalidade do valor de mercadorias adquiridas. Este tratamento contabilístico, que resultou na consideração da totalidade do valor de aquisição das mercadorias como elemento negativo (gasto) do lucro tributável, implica, portanto, que não houve uma única mercadoria que não tenha sido vendida até ao final de 2018. E que tal tenha acontecido num contexto operacional que, de acordo com o próprio Requerente, se pautou pela quebra no volume de negócio e perda de confiança dos agentes de mercado na devedora originária, em resultado do processo de inquérito de que foi alvo nesse ano.
Ainda que tal fosse, teoricamente, possível, o Requerente não ofereceu uma explicação compreensiva das questões operacionais que pudessem conduzir a tal resultado. Na verdade, o Requerente nem ao menos juntou aos presentes Autos o Anexo à demonstração de resultados de 2018, onde deveria constar o detalhe dos referidos € 1.523.521,96 levados a custos. Isto é, não basta alegar que “tudo o que comprou foi de imediato revendido”, sem o provar ou demonstrar. Também por isso, não é possível ao Tribunal sindicar a afirmação do Requerente, de que “o valor inscrito respeitante a Vendas de Mercadorias e Produtos […] de € 1.565.218,11 […] tem correspondência e engloba o referido montante gasto com a aquisição das mercadorias, de € 1.523.521,96” nem quais as realidades incluídas em “Vendas de Mercadorias e Produtos” que ultrapassam o montante levado a gastos, pois tal análise carece do Anexo à demonstração de resultados, sendo insuficiente o documento submetido pelo Requerente.
Por regra, a realização de inventários é uma obrigação contabilística com vista à sua correta representação no balanço no final do ano, sendo manifestamente incorreto que resulte da sua não realização que todas as mercadorias compradas foram vendidas no próprio exercício – continua a ser necessário apresentar documentação de suporte que valide que, efetivamente, todos os produtos adquiridos foram vendidos. Acresce que, tendo em conta que a demonstração de resultados do exercício de 2018 disponibilizada pelo Requerente não inclui o respetivo anexo, o Tribunal não tem, também por aí, forma de confirmar o alegado pelo Requerente.
De facto, as justificações avançadas pelo Requerente não têm adesão aos padrões de organização e controlo da contabilidade, nem refletem a correta aplicação dos normativos contabilísticos em vigor.
Motivo pelo qual também a decisão da AT em sede de indeferimento da reclamação graciosa não merece qualquer censura.
iv) Divergências das compras
Quanto às alegadas divergências entre os registos contabilísticos da devedora originária e os dados constantes no E-fatura, no exercício de 2018, haverá que notar novamente uma falta de apresentação de documentação de suporta que pudesse provar as alegações do Requerente.
A título de exemplo, o Requerente alega que parte do valor das aquisições realizadas neste exercício (€ 487.000,00) foram registadas, por lapso, numa rúbrica errada, pois respeitavam a ativos (máquinas) adquiridas para a própria sociedade, que não se destinavam a revenda, motivo pelo qual vieram a corrigir o registo contabilístico posteriormente, o que originou diferenças para com os registos da AT. Novamente, o Requerente deveria ter juntado os documentos que comprovam a natureza destas aquisições, nomeadamente faturas discriminassem os bens adquiridos. Além disso, o investimento de € 487.000,00 em máquinas para uso da própria sociedade – portanto, na sua atividade económica – num contexto de alegada quebra de negócio, e que vem mesmo a culminar na inatividade da sociedade a partir de 2019, mostra-se desconexo e com pouca plausibilidade face aquilo que é a redução de atividade invocada.
E isto é assim ainda que, na fundamentação da liquidação referente a esse ano, a AT tenha invocado, a título corroborativo (“bem como”), “a existência de relações especiais entre as sociedades envolvidas” (B..., E..., F... e G...). Uma vez que as liquidações têm de ser sustentadas pela sua fundamentação concomitante, a ser este o seu fundamento principal (que não foi), verificar-se-ia a invalidade da liquidação, por falta de fundamentação, uma vez que os elementos juntos pelo Requerente mostraram que o Requerente só entrou para o Conselho de Administração da F... em 2019 (Doc. 25 do PPA); na G... só foi gerente em parte de 2019-2020 (Doc. 26 do PPA); e na E... nem nunca fez parte dos órgãos sociais (Doc. 24 do PPA), não sendo invocadas outras conexões entre as empresas. Contudo, não tendo sido esse o fundamento principal da liquidação controvertida, a improcedência deste argumento não implica a invalidade da liquidação.
Ante todo o exposto, não pode senão concluir-se que existem incongruências patentes na argumentação apresentada pelo Requerente, que não são suportadas por meios de prova adequados e completos que permitissem justificar tais diferenças.
Resultou ainda da prova produzida que os contabilistas certificados responsáveis pela organização da contabilidade da devedora originária entre 2018 e 2020 não tinham conhecimento direto dos factos que embasavam os lançamentos contabilísticos efetuados, limitando-se a seguir as instruções dos gerentes da devedora originária, sem qualquer tipo de verificação de que estes correspondiam à verdade, o que por vezes se consubstanciava em registos contrários às normas contabilísticas em vigor e sem qualquer suporte documental (i.e. faturas, contratos, injunções, etc.). A título de exemplo e a acrescer a tudo quanto se disse supra, veja-se que, nos anos de 2019 e 2020 não foram registadas quaisquer amortizações ou depreciações sobre os ativos da sociedade devedora originária (nomeadamente máquinas), ao contrário do que preveem as normas contabilísticas aplicáveis. Questionado sobre isso em sede de audição de testemunhas, o contabilista certificado que desempenhou funções em 2019 e 2020, referiu expressamente “porque era para manter de acordo com a Modelo 22 anterior […] se não há compras, não há vendas, não há movimentos, era só para acrescentar ainda mais custos […] era estar a acrescentar mais custos para quê? A empresa não tinha proveitos.”
No mesmo sentido, quando questionado sobre o facto de não ter sido registada qualquer imparidade sobre as contas de clientes a receber, ainda que se verificasse, através da análise dos balancetes de 2018 e 2019, que a sociedade devedora originária não tinha recebido os valores em dívida após o decurso de um período superior a 12 meses, limitou-se a esclarecer que “não foram lançadas imparidades porque a empresa já tinha custos, gastos suficientes”, apesar de, de acordo com as normas contabilísticas em vigor, tal situação dever ser acompanhada do registo de imparidades.
Sendo a prova testemunhal valorada livremente pelo tribunal, nos termos do artigo 396.º do Código Civil, e atendendo ao facto de os contabilistas certificados não terem demonstrado conhecimento de fundo sobre os factos que deram origem aos lançamentos contabilísticos sob discussão, o Tribunal considerou que os testemunhos oferecidos não lograram provar os factos invocados pelo Requerente para justificar as incongruências na contabilidade da devedora originária, apontadas pela AT. Caberia, por isso, ao Requerente apresentar prova documental bastante que permitisse sustentar os factos invocados. Contudo, e especialmente no que respeita ao exercício de 2018, o Requerente não apresentou documentos de suporte à contabilidade que pudessem colmatar esta falta de prova, pelo que subsistem dúvidas quanto à materialidade dos valores inscritos nas declarações Modelo 22 em causa.
A este respeito, subscreve-se o quanto se afirmou no processo arbitral n.º 152/2022-T, de 17 de julho de 2022, sobre o facto de que “O acolhimento da posição da Requerente constituiria um indesejável incentivo a uma prática contabilística pouco exigente, incompatível com as funções da AT de garantia da legalidade, igualdade e justiça tributária e com o princípio, subjacente ao artigo 74.º da LGT, de que não basta afirmar contabilisticamente, há que estar preparado para provar documentalmente. É necessário que, quando solicitado, a Requerente comprove o que alega, cabendo-lhe que cabe justificar documentalmente os seus registos contabilísticos, sem que a esta exigência probatória possa ser adscrita qualquer intenção sancionatória”. Nestes termos e atendendo ao regime consagrado no artigo 342.º e seguintes do Código Civil, as dúvidas que subsistam devem resolver-se contra a parte a quem o facto aproveita, i.e. o Requerente.
Improcede, portanto, o pedido do Requerente na parte que se refere à liquidação oficiosa de IRC de 2018, com as devidas consequências legais.
Não obstante, e ainda que a Requerida tenha atuado nos termos da lei quando efetuou as liquidações oficiosas de 2019 e 2020 com base na matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontrava determinada (in casu, 2018), não se pode ignorar o facto de que estamos perante liquidações assentes num rendimento presumido, justificadas pela ausência de elementos declarados pelo sujeito passivo no prazo legal, mas que podem ser postas em causa pela entrega posterior desses (ou outros) elementos, em prol do princípio da tributação de acordo com o rendimento real, pelo que deverão tais liquidações ser adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito para salvaguardar o interesse público, constitucional e legalmente protegido, de arrecadação da receita fiscal e prevenção da erosão da base tributária.
A este respeito, recorde-se que, segundo o ora Requerente, a devedora originária registou prejuízo fiscal em 2019 e 2020, pois “praticamente deixou de ter atividade e não teve quaisquer rendimentos e lucros.”. Sem prejuízo das considerações tecidas supra a propósito da inidoneidade da contabilidade mantida pelo Requerente, sempre se dirá que, aquando da análise da reclamação graciosa, a própria Requerida verificou a inexistência de faturação declarada no E-fatura nestes anos e, na sua Resposta, veio afirmar que “Consultadas as declarações periódicas de IVA (DPs), verificou-se que o valor total das operações declarado é concordante com o total acima referido registado no E-Fatura para os três períodos em análise.”
Sem prejuízo de se concordar com a Requerida, quando refere que “os rendimentos obtidos pelas sociedades não se restringem aos valores declarados no E-fatura, pois, reversões de perdas por imparidades, variações nos inventários, subsídios à exploração, mais valias com a alienação de ativos fixos tangíveis (viaturas, p.e) a pessoas singulares, recuperação de dívidas de clientes, ganhos por aumento do justo valor, diferenças de câmbio favoráveis, são meros exemplos de rendimentos que não se encontram declarados no E-fatura. Ou seja, o simples facto de não existir faturação declarada no E-fatura, não é sinónimo de não obtenção de rendimentos, sujeitos a tributação em sede de IRC.”, parece resultar das decisões emitidas pela Requerida no procedimento administrativo que esta não deu devida relevância às declarações periódicas de IVA de que dispunha e que punham em causa, pelo menos em parte, a quantificação das liquidações oficiosas em causa. Acresce que não foi apresentada qualquer justificação, por parte da AT, para se afastar do facto de que os elementos de que dispunha evidenciarem que a empresa deixou de ter faturação nos anos de 2019 e 2020. Atento o impacto de tal fator na quantificação da matéria coletável destes exercícios, e não tendo sido refletido nas liquidações oficiosas em causa, resta concluir que estas enfermam de excesso de liquidação, que poderia ter sido corrigido pela AT em sede de reclamação graciosa, para que tais liquidações passassem a refletir a situação tributária da sociedade (neste caso, a sua aparente inatividade).
Nestes termos, impõe-se a anulação das liquidações oficiosas referentes aos exercícios de 2019 e 2020, emitidas pela AT nos termos do artigo 90.º, n.º 1, alínea b) do CIRC, com fundamento em excesso de quantificação da matéria coletável.
1.3. Da violação do princípio da capacidade contributiva e do rendimento real
Na sua petição, o Requerente invoca – cf. artigos 176.º a 184.º do PPA –, a ilegalidade das liquidações oficiosas de IRC impugnadas por violação (i) do princípio da capacidade contributiva, (ii) do critério da tributação segundo o rendimento real, consagrados nos artigos 103.º a 104.º, da CRP.
Resulta que o Requerente suporta a invocada inconstitucionalidade na explanação de uma argumentação que revela a sua discordância com as liquidações de IRC que, na sua perspetiva, “não têm qualquer correspondência com a realidade da Sociedade devedora originária”, em especial nos anos de 2019 e 2020, relativamente aos quais alega que “a actividade da Sociedade foi praticamente inexistente”.
Assim, tais normas constitucionais são invocadas, mas não se apresentam razões que, efetivamente, as coloquem como parâmetros com demonstração de uma norma jurídica violada, assentando – mais uma vez – a discordância do Requerente na errónea quantificação dos rendimentos que entende estarem subjacentes ao montante de imposto apurado naquelas liquidações.
Improcede, pois, por não demonstrada, a invocada inconstitucionalidade.
1.4. Da violação do princípio do inquisitório e da verdade material
Por fim, o Requerente considera que “ofereceu toda a documentação contabilística legalmente exigida que permitia, sem margem para dúvidas, demonstrar que o apuramento de imposto nas liquidações oficiosas de IRC, na ordem das centenas de milhares de euros, não têm de todo correspondência com a realidade. Documentação que, na perspetiva do Requerente, não foi devidamente analisada pela AT, ou até foi mesmo completamente ignorada”, motivo pelo qual sustenta a violação do princípio do inquisitório e do dever de descoberta da verdade material, consagrados no artigo 58.º da LGT.
O Supremo Tribunal Administrativo é consistente quanto ao dever de a AT considerar a informação fornecida pelo sujeito passivo no âmbito do procedimento administrativo encetado quando a declaração Modelo 22 não é entregue atempadamente:
“Nos casos em que o sujeito passivo não apresenta a declaração de rendimentos, a AT tem o poder-dever de promover a liquidação oficiosa provisória do imposto à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS, para evitar que dessa falta (independentemente das sanções aplicáveis pela violação dos deveres acessórios declarativos a que possa dar lugar) resulte uma vantagem futura para o sujeito passivo inadimplente. Porém, é dever da AT inteirar-se, por via do exercício dos seus poderes inspetivos, da real situação económica do sujeito passivo, sobretudo quando este apresenta, mesmo que através de reclamação graciosa, elementos comprovativos da sua concreta situação tributária” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13.07.2022, processo n.º 0499/11.0BELRS).
A este propósito, e na sequência do referido a propósito da errónea quantificação dos atos tributários, entende o presente Coletivo que, também para efeitos da apreciação da eventual violação do princípio do inquisitório e da verdade material, se devem distinguir duas situações, merecedoras de tratamento diferenciado:
¾ O exercício de 2018 da empresa B..., devedora originária, parece ter decorrido ainda dentro do que é a normalidade da atividade económica de uma empresa; nesses termos, recorrer ao índice previsto na subalínea 2) da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC (“A totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;”) parece inteiramente adequado, dependendo apenas da diligência dos contribuintes a correção dos resultados assim apurados. Conforme resulta da matéria de facto dada como assente e da exposição feita supra, apesar das várias oportunidades que lhe foram conferidas para o efeito, o Requerente não logrou juntar ao processo todos os documentos oportunamente solicitados pela AT, ficando a faltar vários elementos essenciais à compreensão dos registos contabilísticos mantidos, não se vislumbrando a violação do princípio do inquisitório e verdade material quanto à liquidação oficiosa correspondente.
¾ Os exercícios de 2019 e 2020, pelo contrário, parecem ter correspondido ao processo de desativação da empresa, bem evidente na inexistência de bens que a execução fiscal instaurada em 2022 constatou. Nesse sentido, aliás, a própria AT reconheceu, na sua resposta ao PPA, que “Relativamente ao ano de 2020 é inexistente qualquer informação” sobre gastos com pessoal (sendo irrisórios os valores de 2019), e que os valores de compras comunicadas pelos fornecedores no E-fatura foram de € 111.456,96 em 2019 e € 54.156,01 em 2020. Acresce que a AT reconheceu, na sua Resposta, que
“. Em 2019, verifica-se a inexistência de faturação declarada no E-fatura. Tal informação é coincidente com o inscrito no balancete enviado, e inscrito na IES submetida pela sociedade;
. Em 2020, verifica-se a inexistência de faturação declarada no E-fatura. Tal informação é coincidente com o inscrito no balancete enviado, e inscrito na IES submetida pela sociedade.”.
Ora, os valores de IRC que a AT liquidou – justamente porque atendeu à “totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;” – foram de € 249.772,53 para 2019 e € 250.172,04 para 2020, claramente desfasados dos elementos de que a AT dispunha, mesmo sem obter a cooperação da empresa (que apresentava valores substancialmente inferiores aos do E-fatura nos seus registos contabilísticos: € 78.150, 49 para 2019, e € 4.258,99 para 2020).
O que a atual norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC determina é que a AT atenda à “matéria coletável apurada com base nos elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado”, uma vez que passou a incorporar o que, antes da alteração introduzida pela Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho, estava então na subalínea 1) dessa alínea. Salvo melhor entendimento, essa incorporação não pretendeu transformar a subalínea 2) dessa alínea (o cálculo por referência à “totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;”) na regra a aplicar por defeito – e, em qualquer caso, não poderia nunca ser assim aplicada para períodos de tributação anteriores a 2022 (de acordo com a alínea a) do n.º 2 do artigo 329.º da mesma lei).
Quando uma empresa mostra indícios de inatividade, os elementos de que a Autoridade Tributária e Aduaneira disponha (designadamente os que constam do E-fatura) devem certamente afastar-se dos da totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada, de modo que recorrer a esta para fixar os valores em dívida é – exceto se esse valor já corresponder a um ano de inatividade – completamente desproporcionado e seguramente violador do princípio do inquisitório e da verdade material. A AT estava obrigada – até pela própria norma que invocou – a fazer melhor do que limitar-se a reproduzir indefinidamente a liquidação do último ano de atividade normal da empresa.
Consequentemente, haverá que concluir que as liquidações oficiosas de IRC referentes aos períodos de tributação de 2019 e 2020 são ilegais por violação do princípio do inquisitório e da verdade material.
IV.1. Aplicação uniforme do Direito
Na fundamentação da decisão, e em obediência ao princípio geral consagrado no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, atendemos às decisões arbitrais proferidas nos Processos n.os 1173/2024-T, de 04.07.2025; 731/2024-T, de 15.04.2025; 377/2024-T, de 03.01.2025, 762/2024-T, de 06.11.2024, 5/2023-T, de 13.11.2023, 6/2023-T, de 13.11.2023 e 307/2022-T, de 11.07.2023, todos do CAAD.
V. DECISÃO
Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, na parte que se refere à anulação da liquidação oficiosa n.º 2020... referente ao exercício de 2018, no valor de € 251.065,62, absolvendo-se a Requerida nesta parte do pedido;
b) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar a ilegalidade das liquidações oficiosas n.os 2020 ... e 2022 ..., referentes aos exercícios de 2019 e 2020, no valor conjunto de € 499.944,57, e bem assim a ilegalidade, nesta parte, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa;
c) Condenar o Requerente e a Requerida nas custas do processo, proporcionalmente ao seu decaimento, sendo o Requerente condenado ao pagamento do valor correspondente a 33% das custas do processo, e a Requerida condenada ao valor remanescente (67%).
VI. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 751.010,19 (setecentos e cinquenta e um mil e dez euros e dezanove cêntimos).
VII. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 11.016,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, sendo o valor a cargo do Requerente € 3.682,69 (33%) e o valor a cargo da Requerida € 7.333,31 (67%).
Notifique-se.
29 de outubro de 2025
Os Árbitros,
Victor Calvete (Presidente)
Alexandra Marques
Rodrigo Rabeca Domingues (Relator)
[1] Decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 6/2023-T, de 13.11.2023.