Sumário: As normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho, que criou o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário contido no seu Anexo VI, são inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
I.1
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Em 21 de abril de 2025 a contribuinte A...– SUCURSAL EM PORTUGAL, representação permanente de sociedade comercial anónima italiana, com número de identificação fiscal e de pessoa coletiva ... e morada na Rua ..., n.º..., ...-..., Lisboa, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação do árbitro singular pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do referido diploma.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 29 de abril de 2025.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n. º1, do RJAT, o signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
4. O tribunal arbitral foi constituído em 07.07.2025 e no mesmo dia proferiu um despacho a ordenar a notificação da Requerida para apresentar a sua resposta.
5. A AT apresentou a sua resposta em 25 de setembro de 2025.
6. O Tribunal proferiu em 26.09.2025 um despacho a ordenar a notificação da Requerente para responder às exceções deduzidas pela Requerida.
7. A Requerente respondeu às exceções deduzidas pela AT em 07.10.2025
8. Por despacho datado de 09.10.2025 foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e foi decidido que o processo prosseguisse com alegações finais escritas.
9. A Requerente apresentou as suas alegações em 16.10.2025.
10. A Requerida apresentou as suas alegações em 21.10.2025.
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Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare ilegal e a anule o ato de rejeição liminar do procedimento de revisão oficiosa n.º ...2024..., e em consequência anule os atos de autoliquidações do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (ASSB) identificadas com o n.º ... (2020) e n.º ... (2021), das quais resultou o pagamento dos montantes de 18.939,34 euros e 24.842,26 euros, respetivamente, perfazendo o montante total de 43.781,60 euros, bem como, a restituição desta quantia acrescida de juros indemnizatórios e a condenação da AT nas custas processuais.
I.2. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
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A Requerente entende que o facto de o pedido de revisão oficiosa ter sido rejeitado liminarmente com fundamento em intempestividade não afasta, no caso concreto, a competência material do tribunal arbitral, pois que ainda assim tal ato administrativo comportou apreciação da legalidade dos atos de liquidação subjacentes.
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A «rejeição liminar» do pedido de revisão oficiosa que antecedeu os presentes autos redunda numa decisão que carece em absoluto de base e forma legal e cujo objeto é juridicamente impossível, traduzindo-se, nessa medida, num ato nulo, nos termos do artigo 161.º, n.os 1 e 2, alíneas c) e g), do CPA.
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Ainda que tal entendimento seja propugnado pela AT, para efeitos de determinação da tempestividade do pedido de revisão dos atos tributários de autoliquidação do ASSB em crise, deverá atender-se ao prazo previsto na 2ª parte do n.º 1 do artigo 78.º, da LGT, nos termos do qual “a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou pode ser efetuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”.
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Tendo em conta que os atos de autoliquidação dos montantes do ASSB referentes aos períodos de tributação de 2020 e 2021, i.e., as declarações Modelo 57, foram eletronicamente submetidos pela Requerente a 11 de dezembro de 2020 e 9 de dezembro de 2021, à data da apresentação da revisão oficiosa ainda se encontrava em curso o prazo de quatro anos.
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O erro imputável aos serviços se reporta não só ao lapso, ao erro material ou ao erro de facto, como, também, ao erro de direito, sendo essa imputabilidade independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na emissão da liquidação afetada pelo erro – cf. Acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 1007/11, de 14 de março de 2012.
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Relativamente ao erro imputável aos serviços, é jurisprudencialmente pacífico o entendimento segundo o qual, existindo um erro de direito numa liquidação, e não decorrendo o mesmo de qualquer informação ou declaração do contribuinte, tal erro é imputável aos serviços.
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Em nada a Requerente, na sua qualidade de sujeito passivo do ASSB, contribuiu, com a sua atuação, para os vícios imputáveis às referidas autoliquidações, porquanto a Requerente tem, de forma ativa, pugnado sempre, desde 2020, pelo cumprimento dos deveres de liquidação e pagamento destes montantes em conformidade com o Regime do ASSB e, em particular, com as instruções de preenchimento da declaração Modelo 57, aprovadas pela Portaria n.º 191/2020, de 10 de agosto
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Em consequência, conclui-se pela admissibilidade de revisão dos atos tributários sub judice por iniciativa da Requerente no prazo de quatro anos, tendo o pedido de revisão oficiosa na origem dos presentes autos sido apresentado tempestivamente, à luz do artigo 78.º, n.º 1, parte final, da LGT.
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A decisão de «rejeição liminar» do pedido de revisão oficiosa do ato tributário que antecedeu os presentes autos é também ilegal e anulável, ex vi artigo 163.º, do CPA, por violação do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, na medida em que estão reunidos os pressupostos de admissibilidade do pedido de revisão oficiosa com fundamento em injustiça grave e notória.
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O ato decisório sub judice padece de vício de forma, na medida em que a sua fundamentação se apresenta manifestamente insuficiente e, consequentemente, obscura, em clara violação dos artigos 268.º, n.º 3, da CRP, e 77.º, da LGT, sendo como tal ilegal e anulável em conformidade com o artigo 163.º, do CPA.
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A qualificação do ASSB enquanto imposto resulta, claramente, do seu regime legal, estando a natureza de imposto patente no recorte normativo da sua incidência subjetiva, de diversas componentes da sua incidência objetiva e, bem assim, da sua administração ou gestão, que visa especificamente a satisfação de necessidades públicas próprias e goza de regulamentação própria.
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Resulta inequívoco e manifesto o dever que impende sobre AT de desaplicar, nos termos do princípio da legalidade ao qual está adstrita (cf. artigo 266.º da CRP) normas que contendam com princípios estruturais consagrados na nossa lei fundamental.
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A técnica legislativa, ao tentar, habilidosa e artificialmente, ligar o ASSB à CSB, viola o procedimento legislativo e o princípio da legalidade fiscal que resulta da conjugação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da CRP.
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Apesar do ASSB ter sido criado por lei formal, não é igualmente percetível qual a manifestação de capacidade contributiva das entidades bancárias que se visa atingir com este tributo, violando-se, assim, o disposto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP.
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A Requerente entende ainda existir, e invoca, a inconstitucionalidade do ASSB, em relação à autoliquidação do ASSB plasmada na declaração Modelo 57 n.º..., respeitante ao período de tributação de 2020, por violação do princípio da não retroatividade da lei fiscal constante do artigo 103.º, n.º 3, da CRP.
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Pese embora o regime do ASSB tenha entrado em vigor apenas no segundo semestre de 2020, o mesmo prevê a tributação dos saldos do passivo dos meses compreendidos entre janeiro e junho de 2020, ou seja, do primeiro semestre.
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A Requerente entende que os artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Regime do ASSB, violam os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, na vertente de proibição do arbítrio, ao impor sobre o setor bancário mais um imposto, desta vez afeto ao FEFSS, sem que seja possível descortinar qualquer conexão com a capacidade contributiva dos sujeitos passivos na sua base de incidência objetiva.
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É entendimento da Requerente que o ASSB viola o princípio da igualdade, na vertente de proibição do arbítrio, pelo facto de o ASSB introduzir, injustificadamente, uma discriminação entre o setor bancário e os demais setores de atividade económica, além de violar o princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária, porquanto este tributo não incide sobre indicadores de revelação da mesma, como sejam o rendimento, o consumo ou o património.
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Entende ainda a Requerente que o ASSB viola o direito orçamental, uma vez que o seu regime não respeita as regras da não consignação das receitas públicas como constam, respetivamente, do artigo 16.º da LEO, lei de valor reforçado, em cumprimento, de resto, com o disposto nos artigos 105.º e 106.º da CRP.
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Ora, por força do artigo 16.º, n.º 1, da LEO, inserido no capítulo relativo aos princípios orçamentais, “não pode afetar-se o produto de quaisquer receitas à cobertura de determinadas despesas”, estabelecendo-se assim a regra que dá corpo ao princípio geral da não consignação de receitas orçamentais.
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Contudo, contrariando o princípio da não consignação de receitas, e em violação da LEO, vai o artigo 9.º do regime do ASSB, ao estabelecer que “a receita do adicional de solidariedade sobre o setor bancário constitui receita geral do Estado, sendo integralmente consignado ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social”.
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O ASSB promove uma tributação mais agravada dos sujeitos passivos em função da sua forma jurídica, o que consubstancia uma restrição à liberdade de estabelecimento, inadmissível à luz dos artigos 49.º e 54.º do TFUE – violando, por conseguinte, o princípio do primado do Direito da UE, consagrado no n.º 4 do artigo 8.º da CRP.
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O TJUE considerou objetivamente comparável a situação de uma instituição de crédito não residente que exerce atividade através de uma filial, ou de uma sucursal, à luz dos objetivos do ASSB, de “apoiar financeiramente o sistema de segurança social e restaurar o equilíbrio entre a carga fiscal suportada por esse setor”
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Na medida da procedência do presente pedido de pronúncia arbitral, para além do direito ao reembolso do montante de imposto indevidamente suportado, a Requerente terá ainda direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.
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Em consequência, peticiona-se a esse Douto Tribunal Arbitral, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c) e 100.º, n.º 1, da LGT, e artigo 61.º, n.º 5, do CPPT, para além do reembolso do montante indevidamente suportado, a satisfação do direito da Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios, computados sobre esse montante, desde o dia 3 de dezembro de 2025 até à emissão da respetiva nota de crédito, tudo com as demais consequências legais.
I.3 Na Resposta a AT, invocou, o seguinte:
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Quer o pedido de pronúncia arbitral, quer consequentemente o Tribunal Arbitral são, respetivamente, inidóneos e incompetentes quanto à pretensa ilegalidade da decisão de indeferimento liminar do Pedido de Revisão Oficiosa.
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O indeferimento liminar do PRO constitui um ato administrativo em matéria tributária (porquanto tal decisão não apreciou ou discutiu a legalidade de um ato de liquidação), e não um ato tributário.
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Nessa medida, somente a Ação Administrativa constitui o meio processual adequado para impugnar a decisão de rejeição liminar sub judice, conforme decorre do artigo 97.º/1-p) do CPPT.
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Deste modo, a impropriedade do meio processual consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 577.º e 278.º/1 ambos do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT.
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A competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias elencadas no artigo 2.º/1 do RJAT,
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À luz daquele artigo resulta claramente que se encontra fora da jurisdição da arbitragem tributária a apreciação de quaisquer questões referentes à apreciação da legalidade de atos em matéria tributário, sob pena de violação da lei.
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A incompetência material do Tribunal Arbitral para a apreciar o indeferimento liminar do PRO consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto no artigo 576.º/1 e 2 e no artigo 577.º-a) do CPC ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT.
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Estão excluídas da jurisdição do CAAD as pretensões relativas à ilegalidade de autoliquidações que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa [artigo 2/1-a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de março].
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Ainda que, teoricamente, se entendesse que o PROAT se subsume no conceito de “reclamação graciosa” plasmado no artigo 131.º/1 do CPPT, certo é que o primeiro foi deduzido a 2024-12-03, ou seja, numa data em que há muito se havia esgotado o prazo de 2 anos contados a partir da autoliquidação aqui em crise (submetidas respetivamente em 2020-12-11 e 2021-12-09).
1.4 A Requerente respondeu da seguinte forma às exceções
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No caso concreto, a decisão de «rejeição liminar» do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente fundamentou-se na alegada inexistência de erro imputável aos serviços e injustiça grave ou notória e não singelamente na ultrapassagem dos prazos para a apresentação do pedido de revisão oficiosa com tais fundamentos, previstos no artigo 78.º, n.º 1, segunda parte e n.º 4, da LGT, o que implicou necessária e logicamente a apreciação da legalidade dos atos de autoliquidação do ASSB controvertidos.
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Motivo pelo qual deverá ser admitida a impugnação contenciosa de tal ato junto desse Douto Tribunal Arbitral, nos termos dos artigos 97.º, n.º 1, alínea d), do CPPT e 2.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante, “RJAT”), por se tratar do meio processual adequado e o tribunal arbitral ser competente para apreciar o mérito do pedido.
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Contrariamente ao alegado pela Requerida, estamos precisamente perante um caso reconduzível ao n.º 3 do artigo 131.º do CPPT, pois (i) está exclusivamente em causa matéria de Direito e (ii) a autoliquidação do ASSB foi efetuada com base em orientações genéricas emitidas pela administração tributária.
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Em todo o caso, ainda que esse Douto Tribunal Arbitral não concorde a aplicabilidade do disposto no artigo 131.º, n.º 3, do CPPT à situação em causa, sempre se dirá que as autoliquidações do ASSB em crise são, ainda assim, impugnáveis, na medida em que o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente preenche as exigências de reclamação necessária prévia ínsitas ao n.º 1 do artigo 131.º, do CPPT.
II. SANEAMENTO
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março e encontram-se legalmente representadas.
O processo é o próprio.
Impõe-se apreciar a idoneidade do meio processual, a competência material do Tribunal e a impugnabilidade das autoliquidações, o que se fará infra
III. – MATÉRIA DE FACTO
III.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
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A Requerente é uma sucursal em Portugal de uma instituição de crédito com sede em Itália, o B... S.P.A.
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A Requerente dedica-se, exclusivamente, à atividade de factoring, com e sem recurso, à aquisição, gestão e cessão de portfólios de créditos, no setor farmacêutico, e à prática de outros atos relacionados ou necessários à prossecução dessa atividade.
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A Requerente procedeu à autoliquidação do ASSB referente aos períodos de tributação de 2020 e 2021, mediante a submissão, nos dias 11 de dezembro de 2020 e 9 de dezembro de 2021, das respetivas declarações Modelo 57, referentes a estes períodos de tributação, tendo apurado montantes do ASSB a pagar de 18.939,34 euros e 24.842,26 euros, respetivamente, ascendendo o montante total de ASSB desses anos a 43.781,60 euros.
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A Requerente procedeu ao pagamento efetivo dos montantes do ASSB dos períodos de tributação de 2020 e 2021, nos dias 14 de dezembro de 2020 e 14 de dezembro de 2021, respetivamente.
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No preenchimento das declarações Modelo 57 referentes aos períodos de tributação de 2020 e 2021, a Requerente seguiu o estabelecido pelo artigo 18.º do Orçamento Suplementar para 2020, bem como nas instruções de preenchimento constantes da Portaria n.º 191/2020, de 10 de agosto, que aprovou o método oficial do ASSB – em concreto, a declaração Modelo 57.
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A Requerente apresentou, a 3 de dezembro de 2024, um pedido de revisão oficiosa, no âmbito da qual peticionou a anulação das liquidações em crise, bem como o reembolso do ASSB suportado indevidamente, no valor total de €43.781,60 euros
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A AT emitiu a decisão final (processo n.º...2024...) de «rejeição liminar» do pedido de revisão oficiosa, tendo a notificação da mesma ocorrido no dia 23 de janeiro de 2025.
III.2. Factos não provados
Não existem factos essenciais não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação da competência material do Tribunal foram considerados provados.
III.3. Motivação da matéria de facto
Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.
Os factos que constam dos números 1 a 7 são dados como assentes pela análise do processo administrativo, dos documentos 1 a 13 juntos pelo Requerente e pela posição assumida pelas partes.
IV. Do Direito
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Idoneidade do meio processual
Liminarmente impõe-se realçar que a revisão dos atos tributários prevista no art. 78º, n. º1 da LGT consubstancia um verdadeiro dever da AT, decorrente da Lei. Não se trata de uma faculdade que está ao dispor da AT e que a mesma possa decidir se deve, ou não, atender. Na verdade, verificados os pressupostos, a Lei impõe que a AT proceda à revisão dos atos.
Trata-se de uma figura que emana dos princípios que enformam o ordenamento jurídico tributário, designadamente os da Legalidade, Justiça, Imparcialidade e o do respeito pelas garantias dos contribuintes.
No sentido do ora propugnado será, porventura, relevante a leitura atenta da obra “A revisão do Acto tributário”, Paulo Marques, Cadernos IDEFF, n.º 19, editora Almedina, 2015:
Páginas 19 a 24
“(…) A importância da revisão do acto tributário radica essencialmente no poder-dever da autoridade tributária e aduaneira assegurar a legalidade ou mesmo restaurar e efectivar a ordem jurídica tributária violada (art.º 100.º, da LGT), enquanto manifestação da prossecução do interesse público (art.º 55.º da LGT) mesmo sem a intervenção dos Tribunais e mesmo, se for caso disso, o pedido expresso do contribuinte (art.º 78.º, n.º 1, 2.ª parte da LGT). Daqui decorre que o exercício pelo próprio fisco do controle a posteriori do procedimento de liquidação de imposto, em observância dos artºs 55.º e 78.º da LGT, como iremos analisar mais adiante, impõe-se como uma obrigação e um poder-dever, uma vez que o acto tributário (liquidação) quando ilegal (inválido) não deve ser recepcionado pela ordem jurídica tributária. Pelo que, diferentemente do contribuinte, o qual dispõe apenas da faculdade de reclamar graciosamente ou de solicitar a revisão, o fisco tem o dever de fazer o seu mea culpa e de proceder à consequente reposição da legalidade mediante a revisão do acto tributário.
Podemos então falar, com propriedade, na existência de um direito potestativo titulado pelo contribuinte, o qual, pelo menos nos casos em que a liquidação inicial é desfavorável ao contribuinte e o imposto foi liquidado indevidamente, tem o direito a exigir da administração tributária e anulação parcial ou total do acto tributário (revisão de liquidação que seja ilegal), bem como a restituição subsequente do tributo ilegalmente cobrado uma vez que apenas deve ser pago o tributo previsto na lei (artigo 103.º, n.º 3 da Constituição).
Por outro lado, existe a obrigatoriedade da própria administração ter de praticar todos os actos que sejam da sua competência (princípio da oficialidade), independentemente de impulso do sujeito passivo ou de qualquer ordem superior. (…)”
Página 77
“(…) O dever de a administração concretizar a revisão de actos tributários, a favor do contribuinte, quando detectar e reconhecer (mea culpa) uma ilegalidade pela iniciativa do próprio fisco (controle da legalidade do acto tributário) ou pela iniciativa do próprio contribuinte, existe em relação a todos os tributos, uma vez que os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade, que a administração tem de observar na globalidade da sua actividade (art.º 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT) «impõem que sejam oficiosamente corrigidos todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei».”
A revisão oficiosa dos atos tributários constitui assim um poder-dever e não uma faculdade da administração tributária, em face do dever de reconstituição da legalidade (art.º 100.º, da LGT) uma vez detetada e reconhecida a ilegalidade imputável aos serviços.
Os princípios da legalidade, da justiça, da imparcialidade, da boa fé e do inquisitório (artigos 55.º e 58.º da LGT) impõem a revogação dos atos ilegais pelo fisco.
A revisão do ato tributário «por iniciativa da administração tributária» pode efectuar-se «a pedido do contribuinte» como resulta do art. 78.º, n.º 7 da LGT e 86º, n.º 4, alínea a) do CPPT, bem como dos princípios da legalidade, justiça, igualdade e imparcialidade - art. 266º, nº 2 da CRP.
Assim, caso se subsuma a presente situação nesta norma (art. 78º, n. º1 da LGT), a AT deve corrigir esta injustiça.
Para o efeito, tendo em conta o alegado pela Requerente importa apurar se ocorreu um erro imputável aos serviços (78.º, n.º 1 da LGT) que possa justificar a revisão do ato tributário no prazo de quatro anos. “O erro imputável aos serviços não é um qualquer erro, mas um erro relevante (prejuízo efetivo) que tenha conduzido ao errado apuramento da situação tributária do contribuinte (essencialidade) e que tenha causado um prejuízo efetivo e suficientemente grave que justifique a expulsão do ato tributário em causa.” In obra atrás citada, página 235
No caso em apreço, a incidência subjetiva e o apuramento da base de incidência objetiva da ASSB, ocorre por erro imputável aos serviços, uma vez que a declaração foi preenchida em conformidade com as instruções de preenchimento constantes da Portaria n.º 191/2020, de 10 de agosto, que aprovou o método oficial do ASSB.
Assim, mesmo que o contribuinte entendesse que não era devida ou pretendesse declarar tais valores de forma distinta, tal como entende, não conseguia. Assim, afigura-se que há um erro imputável aos serviços.
Existindo uma obrigação genérica de a Administração Tributária atuar em plena conformidade com a lei, legalmente preceituada, desde logo, no artigo 266. °, nº2, da CRP e bem assim no artigo 55. ° da LGT, qualquer ilegalidade não resultante de uma atuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração.
Existindo um erro de facto e de direito numa autoliquidação, decorrendo essa errada aplicação da lei da interpretação da Lei efetuada pela AT, o erro em questão considera-se imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a Administração Tributária atuar em plena conformidade com a lei.
As autoliquidações de ASSB impugnadas são de 2020 e 2021 e o pedido de revisão do ato tributário foi apresentado em 3 de dezembro de 2024. Uma vez que o art. 78º, n. º1 da LGT prevê que pedido de revisão pode ser apresentado no prazo de quatro anos após a liquidação, concluímos que o pedido de revisão do ato tributário foi apresentado tempestivamente.
Acresce que, sendo certo que a AT indefere o pedido de revisão por entender que não estão verificados os condicionalismos impostos pelo artigo 78.º da LGT, não é menos verdade que não deixa de existir uma reapreciação da liquidação em causa, como se retira da seguinte afirmação vertida na decisão
“17. Estes serviços não reconhecem nenhum erro de facto nem de direito quanto à matéria em crise.
[…]
19. Sendo forçoso concluir que não se encontram preenchidos os pressupostos legalmente previstos no n.º 1 do artigo 78.º da LGT para a revisão do ato tributário, porquanto: […]
(ii) não existe erro imputável aos serviços uma vez que a administração tributária nota em estrita conformidade com o legalmente previsto no regime postado para o ASSB, não podendo subsumir-se este conceito à invocação de vícios de conformidade legal, constitucional ou do direito europeu, o que afasta a revisão oficiosa no prazo previsto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT. […]
23. Por outro lado, não identifica se qualquer erro imputável aos serviços nas liquidações de ASSB aqui sindicadas, nos termos já destacados, para a Requerente se socorrer do prazo de quatro anos a que se refere a 2ª parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT. […]
31. Nessa senda, face ao acima descrito julga-se, desde logo, que não se mostra preenchido o primeiro pressuposto de «injustiça grave ou notória». […]
33. Estes serviços notam na estrita observância ao regime legal fixado quanto ao ASSB.
34. A Requerente não coloca em crise questões do âmbito de atuação destes serviços, mas sim vícios ao próprio tributo e às normas que compõe o seu regime, que apenas podem ser sindicados pelos órgãos judiciários.
35. Assim, face à atuação destes serviços conforme o exarado no regime aprovado para o ASSB, e na estrita correspondência às competências adstritas, nunca se poderá inferir por uma «injustiça grave ou notória».”
Portanto, a Requerida não se limitou a apreciar apenas a questão prévia da eventual não admissão do pedido de revisão do ato tributário. Assim, é de concluir que no presente caso, a Requerente ao atacar contenciosamente a decisão de revisão pela via do pedido de pronúncia arbitral utilizou o meio processual adequado. (Ac. do STA de 14 de maio de 2015, no processo n.º 01958/13).
Aqui chegados, uma que se conclui que o pedido de revisão apresentado em 03.12.2024 foi tempestivo resta analisar se o direito para apresentar o pedido de constituição tribunal arbitral caducou como alega a Requerida.
Nos termos do art. 10º, n. º1, al. a) do RJAT, o pedido de constituição do tribunal arbitral tem de ser apresentado no prazo de 90 após a notificação de indeferimento do pedido de revisão.
A decisão de indeferimento o pedido de revisão foi notificada à Requerente em 23.01.2025. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 21.04.2025.
Porquanto, concluímos que o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado tempestivamente.
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Incompetência material do Tribunal
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é definida, em primeira linha, pelo artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, que estabelece o seguinte:
“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;”
Importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de atos de indeferimento de pedidos de revisão do ato tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD, pelo art. 2.º do RJAT.
Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes atos. No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado diretamente um ato de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de atos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um ato de segundo grau, que confirme um ato de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos atos aí indicados é efetuada através da declaração de ilegalidade de atos de segundo grau, que são o objeto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. A referência que na alínea a), do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 1 do art. 102.º do CPPT, o qual na al. d) prevê a impugnação de atos de indeferimento tácito, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos atos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT é obtida na sequência da declaração da ilegalidade de atos de segundo grau. Mais, a mesma al. a) do n.º1 do art. 10º permite a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral até 90 dias após o termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico, sendo por isso também de admitir a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral até 90 dias após o termo do prazo legal de decisão do pedido de revisão.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um ato de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o ato de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do ato tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir.[1]
Segundo entendimento firmado pelo STA, no Acórdão de 7 de Agosto de 2009, proferido no processo nº 0306/09, a entidade que praticou o ato tributário de liquidação, "ao deixar de se pronunciar sobre a pretensão, indeferiu-a, ou seja, não reconheceu, no acto de liquidação em causa, as ilegalidades que a requerente lhe imputava".
No caso em apreço o ato sindicado são duas autoliquidações de ASSB referentes a 2020 e 2021. A causa de pedir é a suposta ilegalidade dessas liquidações. Em data prévia a contribuinte apresentou um pedido de revisão (art. 78º da LGT). O pedido de revisão comportou a apreciação da legalidade do ato primário por que dela consta tal como referido atrás.
O pedido de revisão foi indeferido expressamente.
Porquanto, por esta via não existe qualquer impedimento que obstaculize a apreciação do pedido, sendo o Tribunal competente (art. 2º, n.º1, al. a) do RJAT).
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Impugnabilidade da autoliquidação de ASSB
A Requerida alega a inimpugnabilidade dos atos sindicados (autoliquidação de ASSB) por não ter sido precedida de uma reclamação graciosa, invocando o art. 131º, n.º1 do CPPT.
O art. 131º, n.º1 do CPPT prevê o seguinte:
“Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.”
O legislador utiliza o conceito de erro na declaração igualmente no art. 45º, n.º2 da LGT. Aqui a jurisprudência tem entendido que o erro evidenciado na declaração, significa “que se trate de erro que é detectável mediante simples análise dessa declaração, por um mero exame da coerência dos seus elementos, sem recurso a qualquer outra documentação externa”. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo:00671/15.3BEPRT, de 08-02-2018
É o que nos dizem também vários Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente o proferido no âmbito do Processo n.º 0991/15, de 24-05-2016:
II - O critério legal para a redução para três anos do prazo de caducidade não é o da desnecessidade de recurso a fiscalização externa, antes o de se tratar de “erro evidenciado na declaração do sujeito passivo”, o que pressupõe que se trate de erro “que é detectável mediante simples análise dessa declaração”, de erro “que a Administração tributária possa detectar por um mero exame da coerência dos seus elementos, sem recurso a qualquer outra documentação externa, mesmo quando esta esteja em poder da administração tributária, e obtida por inspecção interna ou externa ou por meios de qualquer outra natureza”, pois que “Só quando o erro resultar exclusivamente do exame da declaração e seus anexos se justifica o previsto encurtamento do prazo de caducidade, porque o próprio contribuinte pôs de imediato à disposição da Administração Tributária os meios necessários a uma atempada detecção do erro”.
Não existem assim quaisquer razões para interpretar de forma diferente o conceito que se encontra previsto no art.º 131.º, n.º 1 do CPPT, com o conceito constante do art.º 45.º, n.º 2 da LGT.
No caso em apreço, o erro em causa consiste na desconformidade constitucional dos artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do Regime do ASSB. Ora, este erro não é detetável pela simples análise da declaração.
Mais, o conceito de erro na declaração de rendimentos, previsto no artigo 131.º, n.º 1 do CPPT, refere-se à incorreção ou falha cometida pelo contribuinte ao declarar os seus rendimentos e outras informações fiscais. Essa incorreção pode ocorrer de diversas formas, como omissões, erros de cálculo ou a inclusão de dados incorretos. No caso em apreço, não se trata de um erro da contribuinte, mas sim, de uma atuação da Requerida que, através nas instruções de preenchimento constantes da declaração Modelo 57, indicam a incidência objetiva e subjetiva da ASSB, conforme a Requerente declarou. O que se discute são erros de direito imputáveis à atuação da Requerida e não um erro da contribuinte na sua declaração de rendimentos.
Deste modo, não se tratando de um erro da contribuinte, não se subsume o caso sub judice ao previsto no art. 131º, n.º1 do CPPT.
Acresce que, a obrigatoriedade de impugnação administrativa prévia tem como objetivo desonerar os serviços da justiça, otimizando o acesso ao direito, com a apreciação de ações em que não há um verdadeiro litígio entre a Administração Tributária e o contribuinte, por aquela ainda não ter assumido qualquer posição sobre a sua pretensão.
No caso em apreço, face à posição processual da Requerida, vertida no seu articulado, verificamos que o dissenso com as contribuintes persiste. Porquanto, exigir que a contribuinte previamente apresente uma reclamação graciosa é inútil e constitui uma limitação do acesso ao direito e aos tribunais (art. 20º, n.º1 da CRP).
Deste modo, por não se tratar de um erro na declaração, nem de um erro da contribuinte não tem, aqui, aplicação o disposto no art. 131º, n.º1 do CPPT.
Mais, a exigência legal de uma impugnação administrativa necessária tem em vista obter, por via de um procedimento de segundo grau, a reapreciação da legalidade do ato impugnado, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado suscitar um litígio judicial.
Ora, a lei permite que o sujeito passivo, por sua iniciativa, possa solicitar a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou dentro do prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 78.º, n.º 1, da LGT).
O pedido de revisão oficiosa constitui igualmente um procedimento de segundo grau, que tem o mesmo efeito jurídico da reclamação necessária a que se refere o artigo 131.º do CPPT, na medida em que permite o reconhecimento pela Administração da existência de ilegalidade na prática do ato tributário, em momento prévio à via judicial.
É verdade que o artigo 131.º do CPPT faz referência à reclamação graciosa e não à revisão oficiosa dos atos tributários. Não obstante, deve ser entendido como abrangendo, além da reclamação, a via da revisão dos atos tributários aberta pelo artigo 78.º da LGT, pois a finalidade visada pela norma é a de garantir que as autoliquidações sejam objeto de uma pronúncia prévia por parte da AT, por forma a racionalizar o recurso à via judicial, que só se justifica se existir uma posição divergente, um verdadeiro “litígio”. Por isso, concede-se à AT a oportunidade (e o direito) de se pronunciar sobre o erro nas autoliquidações, efetuadas pelos contribuintes, e de fundamentar a sua decisão antes de ser confrontada com um processo judicial ou arbitral.
Efetivamente, a doutrina e a jurisprudência tributária reconhecem o pedido de revisão do ato tributário como um meio impugnatório administrativo com um prazo mais alargado que os restantes, alternativo e perfeitamente equiparável à reclamação graciosa necessária.
De acordo com Carla Castelo Trindade:
“(…) as reclamações graciosas necessárias, previstas nos artigos 131.º a 133.º do CPPT, justificam-se pela necessidade de uma filtragem administrativa, prévia à via judicial, por estarem em causa actos que não são da autoria da Administração Tributária, mas do próprio sujeito passivo e nos quais esta não teve, ainda, qualquer intervenção. Nesse sentido, o pedido de revisão oficiosa serve o propósito dessa filtragem administrativa, porque aí a Administração já terá possibilidade de se pronunciar sobre o acto de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta. Excluir a jurisdição arbitral apenas porque o meio utilizado não foi efectivamente uma reclamação graciosa seria violar o princípio da tutela jurisdicional efectiva, tal como consagrado no artigo 20.º da CRP.
E esta admissibilidade vale, por maioria de razão, tanto para o pedido de revisão oficiosa apresentado fora do prazo previsto para a reclamação graciosa necessária (que é de 2 anos nos termos daqueles artigos do CPPT), como para o pedido que é realizado quando ainda era possível a apresentação de reclamação graciosa.” (cf. “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado” Coimbra, 2016, Almedina, páginas 96 e 97).
Do mesmo modo, tem-se pronunciado o Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente no acórdão de 12.07.2006, proferido no processo n.º 042/06, ou, mais recentemente, no acórdão de 09.11.2022, no âmbito do processo n.º 087/22.5BEAVR. Neste último aresto, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo que “O meio procedimental de revisão do acto tributário não pode ser considerado como um meio excepcional para reagir contra as consequências de um acto de liquidação, mas sim como um meio alternativo dos meios impugnatórios administrativos e contenciosos (quando for usado em momento em que aqueles ainda podem ser utilizados) ou complementar deles (quando já estiverem esgotados os prazos para utilização dos meios impugnatórios do acto de liquidação)”.
Também o Tribunal Central Administrativo Sul se pronunciou sobre a mesma questão no sentido da admissibilidade do recurso à arbitragem tributária quando se reaja ao indeferimento do pedido de revisão oficiosa, entre outros, no acórdão de 26.05.2022, no âmbito do processo n.º 96/17.6BCLSB, nos seguintes termos:
“O que cumpre aqui aferir é se estão ou não abrangidas, na competência material dos tribunais arbitrais tributários, as situações de reação a indeferimento de pedido de revisão de autoliquidação, em relação à qual não foi apresentada reclamação graciosa. Adiantemos, desde já, que a resposta é afirmativa, como, aliás, tem vindo a ser decidido por este TCAS – v. os acórdãos de 11.03.2021 (Processo: 7608/14.5BCLSB), de 13.12.2019 (Processo: 111/18.6BCLSB), de 11.07.2019 (Processo: 147/17.4BCLSB), de 25.06.2019 (Processo: 44/18.6BCLSB) e de 27.04.2017 (Processo: 08599/15). Desde logo, o art.º 2.º do RJAT não exclui casos como o dos autos, devendo considerar-se que são abrangidas as situações em que a liquidação seja o objeto imediato ou mediato da impugnação arbitral. Portanto, por esta via, não há que restringir o alcance desta norma de competência. Por outro lado, a exclusão constante da al. a) do seu art.º 2.º da Portaria de vinculação não tem o alcance que lhe é dado pela Impugnante, porquanto visa salvaguardar as situações em que o legislador consagrou a reclamação administrativa necessária prévia – sendo certo que a nossa jurisprudência admite a possibilidade de se formularem pedidos de revisão de autoliquidações, ao abrigo do art.º 78.º da LGT, ainda que não tenha sido apresentada reclamação graciosa (cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.05.2012 (Processo: 0140/13)(…)”
Assim, como referido na decisão arbitral proferida no processo n.º 608/2024-T, que se acompanha, não se alcança que deva ser outro o propósito da norma de remissão da Portaria de Vinculação que indica expressamente as pretensões “que não tenham sido precedid(a)s de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”, ou seja, referindo-se com clareza a um procedimento administrativo prévio e não, em exclusivo, à reclamação graciosa. Por outro lado, seria incoerente e antissistemático que os artigos 131.º a 133.º do CPPT revestissem distintos significados consoante estivessem a ser aplicados nos Tribunais Administrativos e Fiscais e nos Tribunais Arbitrais.
No caso em análise, o que se constata é que a Requerente impugna atos de autoliquidação realizados em 11.12.2020 e 09.12.2021 e apresentou o pedido de revisão oficiosa em 03.12.2024, portanto, para além do prazo de dois anos de que dispunha para interpor a reclamação graciosa relativamente aos atos de autoliquidação. Contudo, foi cumprido o prazo de 4 anos permitido pelo n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Neste contexto, a exceção suscitada pela Requerida é totalmente improcedente
Face ao exposto, em conclusão, o Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
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Inconstitucionalidade - artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho
A questão de saber se o regime jurídico do ASSB é ou não inconstitucional por violação do princípio da igualdade, na dimensão da proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária, já foi objeto de vários Acórdãos e Decisões Sumárias do Tribunal Constitucional, que é uniforme no sentido da inconstitucionalidade do ASSB (e também no sentido da sua desconformidade com o direito da União Europeia).
Depois de três acórdãos em sentido idêntico, em três casos concretos diferentes, seguiu-se, observados os pressupostos e tramitação do art. 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional e dos arts. 281.º, 3 e 282.º da CRP, uma decisão, o Acórdão n.º 478/2025, que, em 3 de Junho de 2025, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos arts. 1.º, 2, 2.º e 3.º, 1, a), da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de Julho.
No que diz respeito à Justiça Constitucional, a expressão “força obrigatória geral” consta do n.º 1 do artigo 282.º da CRP e sinaliza três tipos de efeitos:
A) A nulidade da norma inconstitucional ou ilegal que supõe, não só, a sua expulsão da ordem jurídica, mas também a eliminação de todos os efeitos passados que tenha produzido, em regra, desde a sua origem ou desde a ocorrência do vício, com preservação do caso julgado e das situações previstas no n.º 4 do artigo 282.º da CRP, ou seja, quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2;
B) A força de caso julgado, que impossibilita que a declaração de invalidade possa vir a ser recorrida ou reapreciada no mesmo processo ou em outros processos com igual objeto;
C) A eficácia “frente a todos” que se traduz na necessidade de acatamento da decisão por todas as autoridades públicas (legislador, administração e tribunais) e por todos os cidadãos.
O presente tribunal fica vinculado a essa decisão, como efeito direto da sua força obrigatória geral (art. 80.º, 1 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a contrario), e, portanto, deve limitar-se a tirar consequências da decisão a que se chegou no referido Acórdão n.º 478/2025:
“Em face do exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, alínea a), do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da proibição do arbítrio, enquanto exigência de igualdade tributária, decorrente do artigo 13.º, e do princípio da capacidade contributiva, ínsito nos artigos 13.º e 103.º, n.º 1, parte final, todos da Constituição da República Portuguesa.”
Devendo o tribunal abster-se de desenvolver fundamentação própria, cingir-se-á somente a retirar os corolários que, da decisão obrigatória, decorrem para o caso concreto.
Não sem notar, ainda, que a força obrigatória geral também implica, para a própria AT, o dever de anular os atos praticados com fundamento nas normas declaradas inconstitucionais.
Procedendo o pedido de pronúncia arbitral por inconstitucionalidade dos atos impugnados, fica prejudicada, por ser inútil, a apreciação das restantes questões colocadas submetidas à apreciação deste Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
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Juros indemnizatórios
Por fim, falta analisar o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
A Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente pago (€43.781,60), acrescido de juros indemnizatórios.
Como consequência da anulação da autoliquidação há lugar a reembolso da quantia indevidamente paga.
O n.º 1 do artigo 43.º da LGT reconhece o direito como quando se determinar em processo de reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços.
O pedido de revisão do ato tributário é equiparável a reclamação graciosa quando é apresentado dentro do prazo da reclamação administrativa, que se refere no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06.
Como também se refere no mesmo acórdão, «nos casos de revisão oficiosa da liquidação (quando não é feita a pedido do contribuinte, no prazo da reclamação administrativa, situação que é equiparável à de reclamação graciosa) (...) apenas há direito a juros indemnizatórios nos termos do art. 43.º, n.º 3, da LGT».
No caso em apreço, a norma à face da qual tem de ser aferida a existência de direito a juros indemnizatórios é a alínea c) deste n.º 3 do artigo 43.º da LGT, que estabelece que eles são devidos «quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».
Cintado o Ac. do STA de 26.06.2024, proc. n.º 06/24.4 BALSB:
“Constitui jurisprudência reiterada, uniforme e pacífica do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste STA que, sendo anulada liquidação de imposto na sequência de pedido de revisão oficiosa da liquidação deduzido para além dos prazos de reclamação graciosa ou impugnação judicial, aos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária aplica-se a norma especial prevista na alínea c) do n.º 3 do preceito legal, ou seja, estes são apenas devidos a contar, não da data do pagamento do imposto, antes tendo como termo inicial um ano após o pedido de revisão.
A razão de assim ser reside na circunstância de não dever distinguir-se, para efeitos de aplicação da alínea c) do n.º 3 do art. 43.º da LGT, as situações em que é deduzido o pedido de revisão e a administração revê o acto mais de um ano após a dedução desse pedido, daquelas em que a administração não revê o acto mas este vem a ser anulado judicialmente após mais de um ano a contar desse pedido.
Como se consignou nos Acórdãos do Pleno deste STA de 24 de abril último (processos nºs 104/23.1BALSB e 120/23.3BALSB), reiterando jurisprudência anterior, «Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. artº.78, nº.1, da L.G.T.) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, al.c), da L.G.T., mais não relevando o facto de a A. Fiscal o ter decidido, embora indeferindo, em período inferior a um ano».”
Como decorre da matéria de facto fixada, o pedido de revisão foi apresentado em 03.12.2024, pelo que apenas a partir de 03.12.2025 haverá direito a direito a juros indemnizatórios, mesmo tendo a decisão sobre o pedido de revisão oficiosa sido notificada à Requerente em data prévia (23.01.2025), antes de se ter completado um ano sobre a sua apresentação.
Deste modo, na presente data, anterior a 03.12.2025, a Requerente não tem direito a juros indemnizatórios e, por isso, julga-se improcedente a condenação da Requerida no respetivo pagamento.
V) DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar improcedentes as exceções suscitadas pela AT;
b) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de rejeição liminar do procedimento de revisão oficiosa n.º ...2024..., e em consequência anular os atos de autoliquidações do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (ASSB) identificadas com o n.º ... (2020) e n.º ... (2021), das quais resultou o pagamento dos montantes de 18.939,34 euros e 24.842,26 euros, respetivamente, perfazendo o montante total de 43.781,60 euros;
c) Condenar a Requerida na devolução do imposto indevidamente pago, por força da anulação;
d) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios e absolver a AT deste pedido;
e) Condenar a Requerida nas custas do processo face ao decaimento.
Fixa-se o valor do processo em €43.781,60 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força da alínea a)do n. º1 do artigo 29.º do RJAT e do n. º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €2.142,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Notificação ao Ministério Público: Nos termos do disposto no art. 17.º, 3 do RJAT, notifique-se o representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo Sul, para efeito do recurso previsto no art. 72.º, 3 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
Lisboa, 24 de outubro de 2025
O Árbitro
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(André Festas da Silva)
[1] Neste sentido Cf. Jorge Lopes de Sousa, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 3ª Ed., 2017, pág. 132 e Carla Castelo Trindade, RJAT Anotado, Almedina, 2016, pág. 72