SUMÁRIO
1. A presunção de indeferimento tácito é uma garantia que a lei consagra em prol dos contribuintes, que dela podem fazer uso, caso assim o entendam.
2. Da não impugnação do indeferimento tácito não advêm consequências negativas para o interessado; designadamente, a sua não impugnação no prazo legal não tem como corolário a caducidade do direito de vir a impugnar o acto expresso de indeferimento quando ele, tardiamente, venha a ser praticado.
3. A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a Organismos de Investimento Colectivos constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado-Membro, ao mesmo tempo que permite aos Organismos de Investimento Colectivos equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível com o direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Ricardo Marques Candeias e António Alberto Franco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., organismo de investimento colectivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português ..., com sede em ..., ... Frankfurt am Main, Alemanha (“Requerente”), apresentou, em 03-03-2025, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”).
2. O Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade dos actos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos aos anos de 2022 e 2023, bem como do despacho de indeferimento da reclamação graciosa previamente apresentada pelo Requerente, no valor global de 69.940,00 €.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida em 05-03-2025.
4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, os quais comunicaram a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
5. Em 22-04-2025 as partes foram notificadas da designação dos árbitros, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 14-05-2025.
7. Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou resposta em 17-06-2025, tendo-se defendido por excepção e por impugnação e pugnado pela sua absolvição da instância e do pedido.
8. Em 23-06-2025, foi proferido despacho no qual se concedia ao Requerente o prazo de 10 dias para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
9. Em 08-07-2025, o Requerente apresentou requerimento no qual respondeu à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
10. Por despacho de 08-07-2025 foi dispensada a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e notificadas as partes para, querendo, apresentaram alegações escritas no prazo de 15 dias.
11. A Requerente apresentou as suas alegações escritas em 25-07-2025.
12. Com o pedido de pronúncia arbitral manifesta o Requerente a sua inconformidade com os actos de retenção de IRC em causa, sustentando, em suma, que:
a. É, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Colectivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária, sendo um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país;
b. Detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal;
c. Na qualidade de accionista da sociedade B... SGPS, S.A., residente em Portugal, recebeu, nos anos de 2022 e 2023, dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos, os quais foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, prevista no artigo 87.º, do Código do IRC;
d. Conforme já foi confirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) em acórdão proferido em dia 17 de Março de 2022, no processo n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), Portugal ao sujeitar, à data dos factos tributários em análise, a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a um OIC estabelecido num Estado-Membro da União Europeia (“UE”) – in casu a Alemanha – simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OIC estabelecidos e domiciliados em Portugal viola, de forma frontal, o artigo 63.º, do Tratado para o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).
13. A Requerida apresentou resposta, nos seguintes termos:
a. Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), a impugnação contenciosa de actos administrativos anuláveis deve ser intentada no prazo de três meses;
b. Atenta a circunstância de a reclamação graciosa não ter sido decidida no decurso do prazo legal para a decisão da mesma (120 dias), o facto que ocorreu em primeiro lugar foi indubitavelmente, o indeferimento tácito da reclamação graciosa, pelo que efeitos de impugnação contenciosa, o prazo findou em 12-10-2024;
c. A caducidade do direito de requerer a constituição do tribunal arbitral é uma excepção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e determina a absolvição da instância da Requerida, ao abrigo dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2 e 577.º, todos do Código de Processo Civil (“CPC”), e 89.º, n.º 4, alínea k), do CPTA, aplicáveis ex vi o artigo 29.º, n.º 1, do RJAT;
d. Quanto à desconformidade do regime previsto no artigo 22.º, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) com o Direito da União Europeia, através do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, procedeu-se à reforma do regime de tributação dos OIC, alterando, com interesse para o caso em apreço, a redacção do artigo 22.º, do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, conforme resulta do n.º 1 do artigo 22.º do EBF e da Circular n.º 6/2015;
e. Com a nova redacção, o legislador estabeleceu que, para esses sujeitos passivos de IRC, (i) não são considerados, na determinação do lucro tributável, os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares, conforme resulta do n.º 3 do referido artigo 22.º do EBF, (ii) estão isentos das derramas municipal e estadual (n.º 6) e, (iii) estabeleceu ainda uma dispensa da obrigação de efectuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos (artigo 22.º, n.º 10, do EBF);
f. Tal regime não é aplicável ao Requerente – que alega ser pessoa colectiva constituída de acordo com a legislação da Alemanha por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do artigo 22.º do EBF, conforme entendimento sancionado superiormente;
g. Não se verifica a comprovação de que o Requerente é um OIC, pelo que a argumentação apresentada pelo Requerente se revela insubsistente, impondo-se a sua rejeição liminar e a manutenção da posição da Requerida, sob pena de se validar um mecanismo susceptível de originar reembolsos indevidos à margem do quadro normativo aplicável;
h. Sendo o Requerente um OIC e um sujeito passivo não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável, deverá o peticionado ser julgado improcedente, pelo que se impugnam todos os factos alegados pelo Requerente, por não corresponderem à verdade ou por deles não se poder retirar o efeito jurídico almejado pelo Requerente;
i. O Requerente não logrou fazer a prova dos factos por si alegados e, nessa medida, fica prejudicada a subsunção dos factos efectivamente demonstrados aos referidos princípios e normas jurídicas do Direito da UE;
j. A situação dos residentes e dos não residentes não é, por regra, comparável e que a discriminação só acontece quando estamos perante a aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou de uma mesma regra a situações distintas;
k. Deste modo, tem o TJUE entendido que o facto de determinado Estado-Membro não conceder a não residentes certos benefícios fiscais que concede a residentes, apenas pode ser discriminativo, na medida em que residentes e não residentes não se encontram numa situação comparável;
l. No caso em apreço, as alegadas diferenças de tratamento encontram-se plenamente justificadas dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português;
m. No presente caso, não parece estarmos em presença de situações objectivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º, do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente;
n. O intérprete só pode vincular-se às decisões do TJUE, quando delas resultem orientações claras, precisas e inequívocas e que tenham resultado da apreciação da conformidade com o TFUE de realidades factuais e normativas idênticas, o que não sucede com as realidades subjacentes aos acórdãos relativos a processos que envolvem fundos de investimento;
o. A Requerida encontra-se subordinada ao princípio da legalidade, pelo que não poderia aplicar de forma directa e automática as decisões do TJUE proferidas sobre casos concretos que não relevam do direito nacional, para mais não estando em causa situações materialmente idênticas, e em que a aplicação correcta do direito comunitário não se revela tão evidente (acto claro) que não deixe margem para qualquer dúvida razoável quanto ao modo como deve ser resolvida a questão suscitada.
II. SANEAMENTO
14. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar a excepção enunciada pela Requerida na sua Resposta.
§ Excepção - caducidade do direito de acção
15. A Requerida veio invocar a excepção de caducidade do direito de acção, alegando para o efeito que o prazo de impugnação contenciosa findou em 12-10-2024, atenta a circunstância de o pedido arbitral ter sido apresentado para além do prazo de três meses previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do CPTA, após a formação do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente.
16. Avança-se, desde já, que tal posição é, salvo o devido respeito, absolutamente destituída de fundamento.
17. Conforme resulta da matéria de facto tida por assente, a decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa foi notificada ao Requerente através de correio registado simples expedido no dia 28-11-2024.
18. Estando em causa uma notificação a mandatários, é aplicável o disposto nos artigos 38.º, n.º 3, e 40.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, presumindo-se que a mesma é efectuada no 3.º dia posterior ao do registo ou no primeiro dia útil seguinte a esse quando o não seja (artigo 39.º, n.º 1, do mesmo diploma), normas aqui aplicáveis ex vi alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
19. Resulta da aplicação de tais normas que o Requerente se presume notificado no dia 02-12-2024, uma vez que o 3.º dia posterior ao registo foi um domingo.
20. Tendo o pedido arbitral sido apresentado no dia 03-03-2025, está cumprido o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, para a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral, prazo esse que terminou precisamente nesse dia, em conformidade com a alínea e) do artigo 279.º do Código Civil, ex vi do n.º 2 do artigo 3.º-A do RJAT (terminado o prazo a um domingo, o mesmo transfere-se para o primeiro dia útil seguinte).
21. Defende, todavia, a Requerida que tal prazo não se aplica ao caso em apreço uma vez que o mesmo se deverá contar a partir da formação de indeferimento tácito pela inacção da AT, verificado anteriormente.
22. Dizemos mais uma vez, sem qualquer razão.
23. É que, ao contrário do que alega, a presunção de indeferimento tácito é uma garantia que a lei consagra em prol dos contribuintes, que dela podem fazer uso, caso assim o entendam.
24. Como se diz na Lei Geral Tributária, Anotada e comentada, de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, 4.ª edição, pág. 483: “tratando-se de uma faculdade de acesso à via contenciosa, da não impugnação do indeferimento tácito não advêm consequências negativas para o interessado, designadamente a não impugnação no prazo legal não tem como corolário a caducidade do direito de vir a impugnar o acto expresso de indeferimento quando ele, tardiamente, venha a ser praticado, não se formando, por isso, o chamado caso decidido ou resolvido, isto é, a preclusão do direito de impugnação com fundamento em vícios geradores de anulabilidade. Por ter como objectivo permitir ao interessado reagir contra a inércia indevida da Administração, o indeferimento tácito deixa de ser relevante quando tal inércia deixar de existir por ser proferido, mesmo para além do prazo legal, um acto expresso de decisão da pretensão apresentada à administração tributária, pois este abre aos interessados a possibilidade de impugnação contenciosa”.
25. Veja-se, a título meramente exemplificativo, no mesmo sentido, na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 02-10-2013, proferido no processo n.º 043/13.
26. Improcede, desse modo, a excepção invocada pela Requerida.
27. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
28. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
29. O processo não enferma de nulidades.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 Fundamentação da matéria de facto
30. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
31. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
32. Os factos dados como provados e não provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, designadamente a prova documental junta aos autos pelo Requerente, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
33. Não se deram como provadas nem como não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.
§2 Factos provados
34. Consideram-se, atendendo às posições assumidas pelas partes e à prova documental junta aos autos, provados, com relevo para apreciação e decisão da causa, os seguintes factos:
a. O Requerente é um OIC constituído ao abrigo da lei alemã e residente para efeitos fiscais na Alemanha;
b. O Requerente é, para efeitos fiscais em Portugal, um sujeito passivo de IRC não residente e sem qualquer estabelecimento estável no país;
c. Nos anos de 2022 e 2023, o Requerente era detentor de participações sociais na B... SGPS, S.A., sociedade residente em Portugal;
d. Nos anos de 2022 e 2023, o Requerente, na qualidade de accionista da B... SGPS, S.A. recebeu dividendos desta sociedade que ascenderam ao montante total de 279.260,00 €;
e. Tais dividendos foram sujeitos a tributação em Portugal, através de retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, prevista no artigo 87.º do Código do IRC, a qual ascendeu ao montante global de 69.940,00 €;
f. Os valores retidos foram entregues ao Estado através das guias de pagamento n.º ... e ..., referentes ao ano de 2022, e ... e ..., referentes ao ano de 2023;
g. O Requerente apresentou, em 11-06-2024, reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos referidos actos de retenção na fonte de IRC a qual foi tramitada sob o n.º ...2024...;
h. Esta reclamação graciosa mereceu despacho de indeferimento, proferido em 18-11-2024, pelo Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de Lisboa da Requerida, ao abrigo de subdelegação de competências, nos seguintes termos:
“16. Através do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro (2), procedeu-se à reforma do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC), alterando, com interesse para o caso em apreço, a redação do art.º 22.º do EBF (3), aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (4), conforme resulta do n.º 1 do art.º 22.º do EBF, e Circular n.º 6/2015.
17. Com a nova redação, o legislador estabeleceu que, para esses sujeitos passivos de IRC, (i) não são considerados, na determinação do lucro tributável, os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos art.ºs 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, conforme resulta do n.º 3 do referido art.º 22.º do EBF, (ii) estão isentos das derramas municipal e estadual (n.º 6) e, (iii) estabeleceu ainda uma dispensa da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos (art.º 22.º n.º 10 do EBF).
18. Tal regime não é aplicável à reclamante - pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação da Alemanha, por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do art.º 22.º do EBF, conforme entendimento sancionado superiormente. Vejamos,
19. Efetivamente, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) pronunciou-se sobre tal exclusão, através do acórdão proferido no processo n.º C – 545/19 de 17 de março de 2022, do qual resulta que «O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção».
20. De notar que, o legislador prevê no n.º 10 do art.º 22.º do EBF uma dispensa (e não uma isenção) da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos OIC constituídos e que operem de acordo com a legislação nacional (n.º 1).
21. Todavia, não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.
22. Evidenciando-se que, a interpretação do direito europeu constante das decisões jurisprudenciais é vinculativa para os órgãos jurisdicionais, mas não afastam a vigência legal das normas consideradas pelo TJUE como contrárias ao direito europeu.
23. E, no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
24. Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-Membros da EU e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
25. Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC´s não residentes e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
26. Ora, no caso em apreço, conforme informado, a reclamante é não residente fiscal e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF.
27. Pelo exposto, é de indeferir o pedido quanto aos períodos RF/IRC de 2022 e RF/IRC de 2023.
28. Cumpre ainda referir que por não se verificarem in casu os pressupostos do n.º 1 e da alínea c) do n.º 3, ambos do artigo 43.º da LGT, fica prejudicada a apreciação do direito a juros indemnizatórios”;
i. O despacho de indeferimento da reclamação graciosa foi notificado ao Requerente por correio registado simples expedido em 28-11-2024;
j. O presente pedido arbitral deu entrada em 03-03-2025.
§3 - Factos não provados
35. Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
36. Constitui objecto mediato do presente pedido arbitral, a apreciação da legalidade dos actos de retenção na fonte de IRC incidentes sobre o pagamento de dividendos realizados pela B... SGPS, S.A. ao Requerente nos anos de 2022 e 2023, bem como sobre a decisão de indeferimento expressa da reclamação graciosa apresentada relativamente aos mesmos.
§1 Retenções na fonte – OIC não residentes
37. Alega o Requerente a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º, do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º, do EBF, estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado-Membro da UE.
38. Nos termos do artigo 22.º, do EBF, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de Janeiro, estabelecia-se uma exclusão para efeitos de determinação do lucro tributável em sede de IRC dos dividendos de fonte portuguesa obtidos por OIC que estivessem constituídos e operassem de acordo com a legislação nacional, isto é, que fossem residentes, determinando se ainda a sua isenção de derrama municipal e de derrama estadual.
39. Em virtude destas isenções, a tributação dos OIC residentes era “deslocada” para a sujeição às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º, do Código do IRC e, bem assim, para a esfera do Imposto do Selo, no âmbito do qual se determinava a aplicação de uma taxa de 0,0025%, por cada trimestre, sobre o valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos e uma taxa de 0,0125% sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável podia incluir dividendos distribuídos.
40. Esta questão foi objecto de pronúncia pelo TJUE, em 17 de Março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica à dos presentes autos, suscitada por um tribunal arbitral, no mesmo enquadramento legislativo.
41. A decisão aí proferida é clara no sentido de confirmar que o regime português de tributação de dividendos distribuídos a OIC’s não residentes procede a um tratamento desfavorável face aos dividendos pagos aos OIC's residentes, porque estes estão isentos de tributação, o que é incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º, do TFUE.
42. Com efeito, diz-se em tal acórdão do TJUE o seguinte:
“37. No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado-Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38. Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39. Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C-480/16, EU:C:2018:480, n.ºs 44, 45 e jurisprudência referida)”.
43. Seguindo-se esta orientação veiculada pelo TJUE, refere-se no acórdão arbitral, proferido em 26-04-2022, no âmbito do processo n.º 382/2021-T, o seguinte:
“os Estados-Membros podem estabelecer distinções entre sujeitos passivos que se encontrem numa situação idêntica desde que isso não implique, segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3 do TFUE, uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais. De acordo com o acórdão Allianz GI-Fonds AEVN, proferido pelo TJUE no âmbito do processo n.º C 545/19, em 17 de Março de 2022, a diferença de tratamento fiscal apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objectivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão, de 10 de Fevereiro de 2011, proferido no âmbito dos processos n.º C-436/08 e n.º C-437/08). Ora, tal como resulta da jurisprudência do TJUE aplicável aos presentes autos, não se verifica que existam razões imperiosas de interesse geral que admitam o tratamento discriminatório prejudicial acima descrito ao OICVM não residentes em face dos OICVM residentes que se encontram em situações objectivamente comparáveis”.
44. Ora, tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da EU tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da UE consagrado no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE, versando sobre diferentes aspectos do tema em questão.
45. Entendimento que foi, pelos mesmos motivos, objecto de acórdão uniformizador de jurisprudência pelo STA, através do acórdão n.º 093/19, de 28-09-2023, no qual se determinou o seguinte:
“O artigo 63.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia”.
46. Aqui chegados, e sem necessidade de mais considerações, deve este tribunal arbitral observar o que resulta daquelas decisões jurisprudenciais supra citadas, sob evocação do desiderato uniformizador decorrente do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil.
47. Deste modo, julga-se procedente o vício de violação do Direito da União Europeia invocado pelo Requerente pelo que deve proceder a sua pretensão no sentido de serem declarados ilegais e anulados os actos de retenção na fonte de IRC impugnados e, por conseguinte, a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa oportunamente apresentada pela Requerente.
§2 Restituição das quantias indevidamente pagas e juros indemnizatórios
48. Em virtude da procedência do pedido de pronúncia arbitral, impõe-se à Requerida que haja lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago pelo Requerente, no montante de 69.940,00 €, em conformidade com o disposto no dos artigos 24.º, do RJAT, e 100.º, da LGT, aplicável ex vi alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
49. Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende o Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
50. Ora, o direito a juros indemnizatórios, vem consagrado no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
51. O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, quando estipula que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
52. Mas, para que a Requerida possa ser condenada no pagamento de juros indemnizatórios, necessário é que, como se referiu, o mesmo resulte de erro imputável aos serviços.
53. Erro que se considera verificado.
54. Com efeito e observando-se o que diz o STA, no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29-06-2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: “em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T”.
55. Tratando-se de jurisprudência uniformizada – a que este Tribunal Arbitral adere com base no disposto no artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil –, conclui-se serem devidos ao Requerente juros indemnizatórios, a partir da data da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, até à data do processamento da respectiva nota de crédito, por força do disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 100.º, da LGT, e no artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.
56. Os juros indemnizatórios deverão ser contados, durante o período temporal acima enunciado, com base no valor de 69.940,00 €, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
V. DECISÃO
57. Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a. Julgar improcedente a excepção de caducidade do direito de acção arguida pela Requerida;
b. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, declarar a ilegalidade e a anulação dos actos de retenção na fonte contestados no presente processo, referentes aos anos de 2022 e 2023, e, também, em consequência, declarar a ilegalidade e a anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra aqueles actos;
c. Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de 69.940,00 €, e condenar a Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios calculados à taxa legal supletiva, a partir da data de indeferimento da reclamação graciosa, sobre a importância a reembolsar, até à data da emissão da correspondente nota de crédito;
d. Condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
58. Fixa-se o valor do processo em 69.940,00 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII. CUSTAS
59. Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.448,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 28 de Outubro de 2025
Os Árbitros
Prof. Dra. Carla Castelo Trindade
(Presidente)
Dr. Ricardo Marques Candeias
(Vogal)
António A. Franco
(Relator)