SUMÁRIO
I Um quadro de subcontratação mantém separadas as duas relações contratuais – o contrato principal e o subcontrato –, no que respeita à correspectividade das partes, à relatividade das obrigações assumidas, aos pagamentos entre elas; pelo que, especificamente, as comissões pagas no contrato principal não são as comissões pagas no subcontrato.
II A conexão territorial do subcontrato não condiciona ou determina a conexão territorial do contrato principal, nem vice-versa.
III O pressuposto de territorialidade de incidência do Imposto do Selo tem de ser analisado separadamente para as comissões pagas no contrato principal, por um lado, e para as comissões pagas no subcontrato, por outro.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A..., sociedade de direito espanhol, com o NIF português ... (doravante, “Requerente”), apresentou, no dia 24 de Fevereiro de 2025, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa por ela apresentada (que recebeu o n.º ...2024...), relativa às autoliquidações de Imposto do Selo (“IS”) referentes aos períodos de Janeiro de 2022 a Março de 2023, correspondentes a comissões de mediação de seguros por si pagas, em Espanha, à sociedade espanhola B..., S.A. (doravante “B...”), no montante total de € 182.658,43, tendo por objecto mediato a anulação das referidas liquidações, peticionando a restituição do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 8 de Maio de 2025; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
7. Por Despacho de 8 de Maio de 2025, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
8. A AT apresentou a sua Resposta em 11 de Junho de 2025, juntamente com o processo administrativo.
9. Por Despacho de 17 de Junho de 2025, foi dispensada a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.
10. A Requerente apresentou alegações em 30 de Junho de 2025, e a Requerida apresentou alegações em 16 de Julho de 2025.
11. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objecto do processo.
12. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.
13. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
14. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
15. O processo não enferma de nulidades.
II – Matéria de Facto
II. A. Factos provados
Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
1. A Requerente é uma sociedade com sede em Espanha, onde exerce atividade como seguradora do Ramo "não Vida", operando em Portugal sob o regime da livre prestação de serviços, estando para o efeito devidamente inscrita junto da ASF - Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, com o registo n.º ... .
2. Em Janeiro de 2024, a Requerente absorveu por fusão a sociedade espanhola C..., Sociedade Unipersonal (doravante “C...").
3. Em resultado, a actividade da C... foi integrada na da Requerente, na esfera da qual se consolidaram as operações de ambas as entidades, sendo por isso a Requerente a sucessora legal da C... em todos os direitos e obrigações desta.
4. A C... oferecia aos seus clientes seguros de extensão de garantia para equipamentos de informática, cobrindo o risco de avaria após o término da garantia legal do fabricante.
5. A C... mantinha um contrato de mediação de seguros com a sociedade comercial espanhola B..., S.A. (doravante "B...") (cfr. Cl. 2.ª contrato de mediação de Dezembro de 2020, Doc. n.º 2 junto com o PPA).
6. A B... é uma sociedade com sede em Espanha, que exerce actividade em Portugal ao abrigo do regime da livre prestação de serviços, estando para o efeito devidamente registada junto da ASF sob o n.º..., não possuindo em Portugal qualquer filial, representação ou estabelecimento permanente através do qual conduza a sua actividade em território português.
7. A B... comprometeu-se a facilitar a colocação dos produtos de seguro da C... no mercado português, cobrando como contrapartida uma comissão correspondente a uma percentagem dos prémios líquidos de seguro angariados através da mediação (cfr. Cl. 6.ª contrato de mediação de Dezembro de 2020, Doc. n.º 2 junto com o PPA).
8. Por sua vez, a B... subcontratou a mediação de seguros com uma entidade portuguesa, a D.. Unipessoal Lda. (doravante "D..."), colocando produtos de seguro da C... nas lojas da D... (cfr. Doc. n.º 3 junto com o PPA).
9. Os riscos cobertos situam-se em Portugal.
10. Esquematicamente, as relações estabelecidas foram estas:

11. A C... procedeu à liquidação de IS por referência às comissões pagas à B..., conforme as declarações mensais de IS (cfr. Docs. n.os 4 a 18 juntos com o PPA).
|
Período de Tributação
|
Declaração Mensal de IS
|
Montante
|
|
2022/01
|
94754
|
11.223,89
|
|
2022/02
|
102812
|
11.310,44
|
|
2022/03
|
111019
|
12.767,40
|
|
2022/04
|
120359
|
15.054,08
|
|
2022/05
|
130301
|
13.031,82
|
|
2022/06
|
139867
|
11.190,67
|
|
2022/07
|
149235
|
11.150,76
|
|
2022/08
|
155516
|
11.890,13
|
|
2022/09
|
165885
|
11.189,56
|
|
2022/10
|
175961
|
11.456,99
|
|
2022/11
|
180107
|
11.676,39
|
|
2022/12
|
188164
|
8.311,76
|
|
2023/01
|
201197
|
11.805,95
|
|
2023/02
|
210206
|
14.562,40
|
|
2023/03
|
217796
|
16.036,19
|
|
|
Total:
|
182.658,43
|
12. Não se conformando com a tributação em sede de IS que incidiu sobre as comissões pagas pela C... à B..., a Requerente apresentou, em 20 de Fevereiro de 2024, reclamação graciosa das correspondentes liquidações, alegando a ausência do pressuposto da territorialidade (cfr. Doc. n.º 19 junto com o PPA).
13. A 16 de Outubro de 2024, a Requerente foi notificada do projecto de indeferimento da reclamação graciosa, exercendo o seu direito de audição prévia a 18 de Outubro de 2024 (cfr. Docs. n.os 20 e 21 juntos com o PPA).
14. A 25 de Novembro de 2024 a Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa, essencialmente com a seguinte fundamentação:
“Ora no caso concreto, e tal como acima referido, muito embora a entidade B... e a ora RECLAMANTE sejam entidades não residentes, estas celebraram um contrato de mediação de seguros e a entidade B..., no âmbito da sua atividade, subcontratou a referida mediação de seguros na D..., ou seja, numa entidade residente em Portugal, a qual atua em nome e por conta da B..., no que diz respeito à mediação de seguros, e exercendo a B... a sua atividade em território nacional, não diretamente, mas no âmbito de uma estrutura de submediação.
Realça-se assim, e tal como já referido, que não só os atos materiais de distribuição de seguros se localizam em território nacional efetuados pela D..., como submediador, como também os beneficiários desses seguros/tomadores dos seguros (clientes) residem em território nacional, existindo assim o elemento de conexão da territorialidade”
15. A 24 de Fevereiro de 2025, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.
II. B. Matéria não-provada
Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.
II. C. Fundamentação da matéria de facto
1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos e nos documentos juntos ao PPA.
2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
5. Além do que precede, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
III. Sobre o Mérito da Causa
III. A. Posição da Requerente
1. A Requerente começa por sustentar que as comissões pagas por ela à B... não estão sujeitas a IS.
2. Lembra o quadro legal pertinente em Portugal, o Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e Resseguros (“RJDS”), aprovado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro, com as suas definições de Distribuição de Seguros, de Distribuidor de Seguros, de Mediador de Seguros, de Mediador de Seguros a Título Acessório e de Remuneração, no art. 4.º desse RJDS.
3. E reconhece que, nos termos do artigo 1.º, 1 e 2 do CIS, a comissão devida no âmbito da actividade de mediação de seguros está, em princípio, sujeita a IS, já que o IS incide sobre todos os actos e factos previstos na Tabela Geral do IS (“TGIS”), sendo que na verba 22.2 da TGIS é especificamente prevista a tributação das comissões cobradas pela actividade de mediação, à taxa de 2% sobre o valor líquido do próprio IS:
|
Verba
|
Taxa
|
|
22
|
Seguros:
|
—
|
|
22.1
|
Apólices de seguros - sobre a soma do prémio do seguro, do custo da apólice e de quaisquer outras importâncias que constituam receita das empresas seguradoras, cobradas juntamente com esse prémio ou em documento separado:
|
—
|
|
22.1.1
|
Seguros do ramo «Caução»……………………………………………………………………
|
3%
|
|
22.1.2
|
Seguros dos ramos «Acidentes», «Doenças» e «Crédito» e das modalidades de seguro «Agrícola e pecuário»………………………………………
|
5%
|
|
22.1.3
|
Seguros do ramo «Mercadorias transportadas»……………………………………
|
5%
|
|
22.1.4
|
Seguros de «Embarcações» e de «Aeronaves»………………………………………
|
5%
|
|
22.1.5
|
Seguros de quaisquer outros ramos………………………………………………………
|
9%
|
|
22.2
|
Comissões cobradas pela actividade de mediação - sobre o respetivo valor líquido de imposto do selo ………………………………………………………………………………………
|
2%
|
|
|
|
|
|
4. Mas lembra que, para que se apurar se as comissões estão sujeitas a IS, é necessário que a situação relevante tenha ocorrido em Portugal, dado o pressuposto da territorialidade do imposto, já que, nos termos do art. 4.º, 1 do CIS
“Sem prejuízo das disposições do presente Código e da Tabela Geral em sentido diferente, o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1.º ocorridos em território nacional”
5. Uma norma definidora da incidência objectiva que se coaduna com o art. 13.º, 1, da LGT, que estabelece que:
“Sem prejuízo de convenções internacionais de que Portugal seja parte e salvo disposição legal em sentido contrário, as normas tributárias aplicam-se aos factos que ocorram no território nacional”.
6. Sublinha que, nos termos do art. 4.º, 2, d) do CIS, a extensão da territorialidade da incidência do IS faz com que os seguros se considerem localizados em Portugal sempre que o risco coberto ocorra em território português – mas que o mesmo não sucede quanto às comissões cobradas por mediadores situados noutros Estados Membros, ainda que actuem em Portugal através de prestações de serviços.
7. E que o que está em causa nos presentes autos são comissões de mediação cobradas em Espanha, que são receitas de mediadoras, relativamente às quais inexiste qualquer norma de extensão da territorialidade – e não o IS que incide sobre os seguros, que são receitas de seguradoras.
8. Esclarecendo que o exercício da mediação de seguros em regime de livre prestação de serviços consiste na operação através da qual um mediador de seguros, registado num determinado Estado Membro da União Europeia, exerce a actividade de distribuição de seguros noutro Estado Membro, a partir do seu Estado Membro de origem.
9. E que essa seria a situação das relações da C... com a B..., assentes num contrato celebrado em Espanha, entre duas entidades espanholas, sendo também em Espanha que ocorre a cobrança e pagamento das comissões em causa – pelo que o contrato de mediação celebrado entre ambas as entidades, que regula o pagamento da comissão, não é apresentado em Portugal, inexistindo qualquer exigência legal ou regulatória que obrigue à sua apresentação em território português, o que torna inaplicável a norma de extensão da territorialidade do art. 4.º, 2, d) do CIS.
10. Mais a mais porque a omissão de referência, na verba 22.1 da TGIS, às comissões pagas por mediação é tida pela Requerente como omissão intencional, além de estar abrangida pela regra do art. 11.º, 4 da LGT, que veda a integração analógica de lacunas verificadas em normas tributárias abrangidas pela reserva de lei da Assembleia da República.
11. Sendo, portanto, que uma tal extensão da incidência constituiria uma violação do principio da legalidade tributária, constitucionalmente tutelado.
12. E insiste que a extensão a puros actos materiais de distribuição de seguros em território nacional seria uma distorção do conceito de mediação como actividade e objecto contratual – desde logo porque o IS não incide sobre todos e quaisquer factos ocorridos no estrangeiro que apresentem pontos de contacto com o território nacional, mas apenas sobre aqueles, à luz das regras de territorialidade consagradas no art. 4.º do CIS, se considerem legalmente ocorridos em território nacional: novamente, incidindo apenas sobre a “cobrança dos prémios” associada à actividade seguradora, não sobre a “actividade de mediação” a montante daquela.
13. No caso, a conexão com o território português não corresponde à mediação de seguros contratada entre a C... e a B..., é apenas um resultado dessa relação contratual e nasce da subcontratação celebrada entre a B... e a D..., sendo os actos materiais de distribuição e mediação que ocorrem em território nacional desenvolvidos apenas pela D..., e dentro deste último quadro subcontratual.
14. Logo, conclui a Requerente, o IS liquidado e que se referiu às comissões cobradas à C... pela B... foi-o indevidamente, a actos sem conexão territorial com Portugal – sendo que as únicas comissões que podem ter tido tal conexão são as que terão sido pagas na relação entre a B... e a D..., relação à qual é alheia a Requerente.
15. Pelo que as autoliquidações de IS enfermariam de vício de violação de lei, por ausência de incidência territorial do imposto, o que determinaria, nos termos do art. 163.º do CPA, a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, e, bem assim, a anulação parcial das autoliquidações, restituindo-se o imposto indevidamente pago, ao abrigo do artigo 100.º da LGT, acrescido de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da AT, nos termos do art. 43.º, 1, da LGT.
16. Em alegações, a Requerente reitera a argumentação apresentada no pedido de pronúncia arbitral, insistindo que, conquanto a verba 22.2 da TGIS preveja expressamente a tributação das comissões cobradas pela actividade de mediação de seguros, à taxa de 2% sobre o respectivo valor líquido de IS, no entanto é imprescindível que o facto tributário ocorra em território português, atenta a territorialidade do imposto.
17. E que isso não se verifica quanto às comissões cobradas pela B... à C..., pois elas resultam de um contrato de mediação celebrado em Espanha, entre duas entidades espanholas, sendo igualmente em Espanha que ocorre a cobrança e o pagamento dessas comissões entre elas – pelo que não se encontra preenchido o requisito previsto no art. 4.º, 2, a) do CIS.
18. E invoca o art. 11.º da LGT, que impõe que as normas fiscais sejam interpretadas restritivamente, não podendo o intérprete alargar o âmbito de incidência do imposto para além do que resulta da letra da lei.
19. Além disso, enfatiza que toda a actividade material de mediação foi desenvolvida em Portugal por uma entidade portuguesa: a D... . E que tais actos da D... não podem ser imputados à B..., visto que a D... pode desenvolver, por si mesma, a actividade de “mediador de seguros a título acessório”, tal como definido no artigo 4.º, alínea d), do Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e de Resseguros, aprovado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro. Para isso, face ao disposto no artigo 2.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e de Resseguros, a D... não carece de registo junto da ASF - AUTORIDADE DE SUPERVISÃO DE SEGUROS E FUNDOS DE PENSÕES.
20. Assinalando que a argumentação de que a D... não estaria registada mas necessitaria de está-lo é superveniente, ou “a posteriori”, não se encontrando na fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa ora impugnada, e por isso, como argumentação inovadora, não deve ser admitida e não deve ser considerada – por violar os arts. 77.º, 1 e 2 da LGT e 268.º, 3 da CRP.
III. B. Posição da Requerida
21. A Requerida começa por analisar o Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e de Resseguros, Lei n.º 7/2019, de 6 de Janeiro (“RJDSR”).
22. Para logo sustentar que, não obstante não ter tido acesso ao contrato celebrado entre a B... e a D..., atendendo aos CAEs da actividade da D..., é de concluir que esta nunca poderia ser classificada como correctora de seguros na acepção do art. 9.º, 1, b) do RJDSR, mas sim, no máximo, mera agente de seguros, a agir em Portugal em nome e por conta da B... .
23. Acrescentando que, dados os CAEs da actividade da D... e a ausência de registo desta junto da ASF, não se pode sequer sustentar que ela seja mediadora ou agente de seguros, pelo que se impõe a conclusão de que a D... age em nome e por conta da B... no âmbito da actividade de mediação de seguros que esta última exerce em Portugal – significando isso que se criou uma relação de mandato entre ambas as entidades, e que os actos praticados pela D... na sua condição de mandatária se repercutem directamente na esfera jurídica do mandante, a B... .
24. Lembra que as seguradoras, como o é a Requerente, são sujeitos passivos de IS relativamente às comissões pagas a mediadores, de acordo com os arts. 1.º, 1, 2º, 1, e), 3º, 3, o), 23.º e 41º, todos do CIS.
25. Sustenta que o direito à comissão depende da efectiva celebração do contrato de seguro como resultado da intervenção do mediador, sendo caracterizado como um contrato que tem subjacente uma obrigação de resultado.
26. E que as comissões de mediação são remunerações atribuídas aos mediadores pelo exercício das funções de mediação, o que implica que a obrigação de pagar a comissão está ligada ao exercício efectivo dessas funções.
27. Para concluir que existe um elemento de conexão entre a Mediadora, a Requerente, e o território nacional, para efeitos de sujeição a IS, nos termos do art. 4.º, 1 do CIS – já que em condições normais a actividade seria directamente exercida pela B... em Portugal, tendo apenas esta optado por subcontratar a D... para o exercício das suas funções de mediação, agindo esta última por conta e em nome da primeira.
28. Enumerando elementos que, no seu entender, reforçam as suas conclusões:
a) A obrigação nasce em território nacional;
b) A B... encontra-se registada em Portugal para a actividade de mediação de seguros;
c) A D... não se encontra registada em Portugal para a actividade de mediação de seguros;
d) Os seguros vendidos apenas cobrem riscos verificados em território nacional;
e) A execução de todos os actos materiais provenientes da mediação – por conta e em representação – localizam-se em Portugal;
f) A D... não pode prestar, por si mesma, serviços de mediação de seguros, por não se encontrar registada junto da ASF, pelo que qualquer montante recebido pela B... nunca poderia estar sujeito a IS ao abrigo de qualquer verba da TGIS.
29. Sustentando que só assim, na análise da situação em causa, a substância prevalecerá sobre a forma.
30. Quanto a juros indemnizatórios, entende a Requerida que eles não são devidos por não ter ocorrido, na liquidação do tributo, erro imputável aos serviços.
31. Em alegações, a Requerida limita-se a reiterar a sua posição, já veiculada na sua resposta.
IV. Fundamentação da decisão
IV. 1. Objecto. A necessidade de distinção entre contrato principal e subcontrato
A questão a decidir no presente processo respeita à incidência de IS sobre as comissões pagas pela C... (de que a Requerente é sucessora) à B..., em execução do contrato de mediação celebrado entre ambas as entidades.
Essas comissões foram pagas pela C... à B... em contrapartida da colocação, por esta, dos produtos de seguro oferecidos por aquela.
Tratou-se de colocar esses produtos em Portugal; e, para esse efeito, a B... celebrou um outro contrato com a D..., com as suas próprias contrapartidas entre estas duas entidades – um subcontrato, visto que se tratava de colocar, nas lojas da D..., produtos da C... .
Tratando-se de uma situação de subcontratação, é verdade que o subcontrato (B.../ D...) está na dependência do contrato principal (C.../B...), no sentido preciso de que o objecto do subcontrato só existe se for cumprido o contrato principal.
Mas também é verdade que a subcontratação mantém separadas as duas relações contratuais, no que respeita à correspectividade das partes, à relatividade das obrigações assumidas, aos pagamentos entre elas: especificamente, as comissões pagas no contrato principal (C.../B...) não são as comissões pagas no subcontrato (B.../D...); a C... não paga comissões à D..., paga-as somente à B...; e esta não pode furtar-se a pagar comissões à D... alegando que não recebeu as que lhe seriam devidas no contrato principal, nem pode exonerar-se delas tentando convocar o respectivo pagamento pela C..., que não é parte no subcontrato.
Ou seja, C... e D... não têm relação directa neste quadro de subcontratação, pelo que:
¾ O fluxo de bens e serviços é intermediado pela B..., que assume exclusivamente perante a C..., num contrato, a obrigação de colocação de produtos da seguradora junto de terceiro, e assume exclusivamente perante a D..., numa outra relação contratual, a entrega de produtos de terceiro.
¾ O fluxo de pagamentos gerado se mantém estritamente separado nas duas relações contratuais envolvidas (seja o pagamento dos produtos, seja o pagamento das comissões).
Ora, o IS autoliquidado, e ora impugnado, referia-se às comissões pagas no contrato principal, não às pagas no subcontrato.
E, à data dos factos, o contrato principal decorria em território espanhol, entre duas empresas espanholas – por muito que o contrato referisse actos de execução, ou coberturas de riscos, localizados em Portugal, ou envolvesse a referência a empresas terceiras igualmente situadas em Portugal.
Se não perdermos de vista que o que está em causa é exclusivamente a tributação de comissões, não restam dúvidas de que as comissões eram devidas em Espanha, e foram lá cobradas e pagas.
Isso torna secundária, inclusivamente, porque não-decisiva, a indagação sobre a natureza da relação entre B... e D... no seio do subcontrato: porque do que se trata é, apenas, da tributação em Portugal das comissões pagas – em Espanha – no seio do contrato principal.
Assim, mesmo que não surgisse o problema da fundamentação superveniente, ou “a posteriori”, que veio a suscitar o problema da incapacidade da D... para colocar em seu nome produtos de seguro, fazendo nascer o problema da natureza desse subcontrato (se é ou não um mandato, com a implicação de que seria a B... a actuar directamente em Portugal), mas reconhecendo que se trata de fundamentação “a posteriori”, logo, não-atendível[1] – mesmo assim teríamos de reconhecer que esse problema se situa a jusante daquele que nos ocupa, e não retroage sobre ele, no sentido de que as vicissitudes do subcontrato não são oponíveis à C... pela sua (única) contraparte no contrato principal, a B... .
Quando a Requerida refere que a obrigação nasce em território nacional, é ao subcontrato que se refere, e é no seio do subcontrato que podem suscitar-se problemas de legitimidade ou de representação entre as partes dessa outra relação; e é exclusivamente no subcontrato que se suscitam problemas de localização em Portugal – das contrapartidas contratuais, dos riscos cobertos, da prática de actos materiais.
Nada disso afecta directamente o contrato principal – que é aquele no qual foram pagas as comissões cuja tributação está em causa no presente processo. Ao contrário do que alega a Requerida, não há aqui outra “substância” a que devamos atender, pretensamente oculta por detrás das “formas” contratuais que as partes livremente escolheram.
Há que concluir, pois, que o IS autoliquidado se referiu às comissões cobradas à C... pela B..., pelo que o foi indevidamente, a actos sem conexão territorial com Portugal – sendo que as únicas comissões que podem ter tido tal conexão são as que terão sido pagas na relação entre a B... e a D..., relação à qual é alheia a Requerente.
Há assim, nas autoliquidações impugnadas, um vício de violação de lei, por ausência do pressuposto de incidência territorial do imposto, a determinar, nos termos do art. 163.º do CPA, tanto a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa como a anulação parcial das autoliquidações, restituindo-se o imposto indevidamente pago, ao abrigo do artigo 100.º da LGT.
IV. 2. O direito aos juros indemnizatórios
A Requerente peticiona o pagamento de juros indemnizatórios, relativamente ao montante indevidamente liquidado.
Dispõe o art. 24.º, b) do RJAT que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT) que estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
É hoje consensual que os tribunais arbitrais abarcam nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, até porque o processo arbitral foi desenhado como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária. Por sua vez, o processo de impugnação admite a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, como resulta do teor do art. 43.º, 1 da LGT, em que se dispõe que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, e do art. 61.º, 4 do CPPT, que estabelece que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
Igualmente o art. 24.º, 5 do RJAT, ao estabelecer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser interpretado e aplicado como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Uma vez verificado o erro, e ordenada judicialmente a sua anulação, é manifesto que, para além da devolução dos montantes ilegalmente liquidados, a Requerente tem direito a que lhe sejam pagos os juros vencidos sobre esses valores, até integral restituição.
Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da AT que se traduz num “erro imputável aos serviços”, para efeitos da aplicação art. 43º da LGT. Isto porque, de acordo com a jurisprudência do STA:
¾ “em geral, pode afirmar-se que o erro imputável aos serviços, que operaram a liquidação, entendidos estes num sentido global, fica demonstrado quando procederem a reclamação graciosa ou impugnação dessa mesma liquidação” – acórdãos de 31/10/2001, Proc. n.º 26167, e de 24/04/2002, Proc. n.º 117/02;
¾ “Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art. 43.º da LGT, havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. [§] Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado” – acórdão de 07/11/2001, Proc. n.º 26404;
¾ “os juros indemnizatórios previstos no art. 43.º da LGT são devidos sempre que possa afirmar-se, como no caso sub judicibus, que ocorreu erro imputável aos serviços demonstrado, desde logo e sem necessidade de mais, pela procedência de reclamação graciosa ou impugnação judicial da correspondente liquidação” – acórdãos de 28/11/2001, Proc. n.º 26223, e de 16/01/2002, Proc. n.º 26508.
À luz desta jurisprudência, não sendo os erros que afectam as retenções na fonte imputáveis à Requerente, eles são imputáveis à Requerida. O facto de se tratar de actos de autoliquidação, não praticados directamente pela AT, não afasta essa imputabilidade, pois a ilegalidade, quando não é baseada em informações erradas do próprio contribuinte, não lhe é imputável, mas sim aos serviços.
Atendendo ao estabelecido no art. 61.º, 5 do CPPT, tais juros são calculados à taxa legal, e contados até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos.
IV. 3. Questões prejudicadas
Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria, por isso, inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.
V. Decisão
Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade dos actos tributários de liquidação ora sindicados, por erro nos pressupostos de direito, e declarando a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosaapresentada contra tais actos tributários;
b) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição parcial da quantia relativa a essas liquidações;
c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, contados desde a data das liquidações indevidas e até à data do processamento da respectiva nota de crédito, em que são incluídos;
d) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do processo.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 182.658,43 (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e cinquenta e oito euros e quarenta e três cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Custas no montante de € 3.672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euros) a cargo da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).
Lisboa, 27 de Outubro de 2025
Os Árbitros
Fernando Araújo
Ricardo Marques Candeias
José Sampaio e Nora
[1] Quanto à fundamentação sucessiva, dita “a posteriori”, ou seja, a fundamentação não-contemporânea dos actos impugnados e aditada supervenientemente, ou quanto à possibilidade de suprimento, pelo Tribunal, de lacunas da fundamentação contemporânea (via materialmente equivalente à primeira), é dominante, na jurisprudência, o entendimento de que ela não é admissível – nem sequer quanto a fundamentos que, existindo objectivamente no momento da prática dos actos impugnados, não constem da motivação expressa desses actos –; isto com o argumento básico de que, numa impugnação judicial ou arbitral em contencioso de mera legalidade (como aquele que está previsto nos arts. 99.º e seguintes do CPPT), o tribunal está cingido à formulação de um juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constem dessa fundamentação, quer estas sejam por ele escolhidas, quer sejam superveniente invocadas por uma parte no litígio (Acórdãos do STA de 26/3/2014, Proc. n.º 01674/13, de 23/4/2014, Proc. n.º 01690/13, de 22/3/2018, Proc. n.º 0208/17, de 11/12/2019, Proc. n.º 0859/04.2 BEPRT, ou de 28/10/2020, Proc. n.º 02887/13.8BEPRT).
Por um outro prisma, o contencioso de mera legalidade deve apreciar o acto impugnado tal como ele ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, ainda quando eles pudessem ter conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o do acto praticado – porque só assim se preservam e respeitam os direitos de defesa ínsitos no princípio constitucional da tutela judicial efectiva (arts. 20.º, 1 e 268.º, 4 da CRP), pois, se a AT tivesse invocado outros fundamentos nos actos e decisões impugnados, a fundamentação do pedido de pronúncia arbitral poderia ser diferente (ou, antes dele, poderiam ser outros os meios de defesa administrativos e contenciosos), tal como poderiam ser outras as provas trazidas ao processo.