Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 338/2025-T
Data da decisão: 2025-10-22  IRC  
Valor do pedido: € 130.327,08
Tema: OIC não Residentes – Retenções na Fonte – discriminação e violação da livre circulação de capitais – arts. 22.º, n.ºs 1 a 3 e 10 do EBF e 63.º do TFUE.
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SUMÁRIO.

I. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquele.

II. A legislação portuguesa de IRC, ao tributar por retenção na fonte dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OIC’s constituídos ao abrigo da legislação de outro Estado, ao mesmo tempo que permite aos OIC equiparáveis constituídos ao abrigo da legislação nacional beneficiar, em idêntica situação, de isenção dessa retenção na fonte, não é compatível como direito da União Europeia, por violação da liberdade fundamental de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça no processo C-545/19, (acórdão de 17.03.2022).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., NIPC..., com sede em ..., ... Frankfurt am Main, Alemanha, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

I-               RELATÓRIO

 

a)     O Pedido

 

O Requerente pede a anulação das liquidações de IRC (retenções na fonte) operadas pelo seu substituto tributário, B... A.G, nos anos de 2022 e 2023, no montante total de EUR 130.327,08, importância entregue ao Estado através das guias de pagamento ..., ... e ... .

Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que apresentou.

Pede ainda a condenação da Requerida o pagamento de juros indemnizatórios. 

 

b)    O litígio

 

A questão a decidir é saber se viola a liberdade de circulação de capitais, consagrada no artigo 63.º do TFUE, o facto de os dividendos distribuídos a organismos de investimento coletivo (OIC) não residentes por entidades com sede ou com estabelecimento estável em Portugal estarem aqui sujeitos a tributação por retenção na fonte, enquanto idêntico tipo de rendimentos, quando distribuídos a fundos de investimento constituídos e operando de acordo com a legislação nacional, estão isentos de tributação por força do disposto no nº 3 do art. 22 do EBF.

O Requerente conclui, obviamente, pela positiva.

A Requerida defende a posição contrária à da Requerente, entendendo, nomeadamente, que os regimes fiscais em IRC aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e aos OIC constituídos noutros países (não residentes) não são diretamente comparáveis.

 

c)     Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 07/04/2025.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 18/06/2025.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

Foi dispensada, sem oposição, a realização da reunião a que se refere o art. 18ª do RJAT e a produção de alegações.

 

d)    Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Não foram alegadas exceções. Não existem questões que devam obstar ao conhecimento do mérito.

 

II – PROVA

 

II.1 - Factos Provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)             O Requerente é residente fiscal na Alemanha, país onde tem a sua sede, não possuindo estabelecimento estável em Portugal.

b)             O Requerente é um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), encontrando-se inscrito como tal junto da Bundesanstal für Finanzdienstleistungsaufsicht (“BaFin”), a autoridade alemã competente para a supervisão financeira.

c)              Nos anos de 2022 e 2023, o Requerente, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, recebeu dividendos com fonte em Portugal. 

d)             Tais dividendos foram sujeitos, em Portugal, a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 35% prevista no artigo 87.º do Código do IRC.

e)             O Requerente suportou, em Portugal, nos anos em causa, a quantia total de imposto de EUR 130.327,08, a qual que foi entregue ao Estado incluída nas guias de pagamento..., ... e..., relativas a 2022 e ..., relativa a 2023 entregues pelo substituto tributário, B... A.G.

f)              O Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte de IRC. 

g)             O Requerente, em 06.01.2025, foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, fundada no entendimento de que “(…) não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável.” 

h)             Mais refere a AT na sua decisão final que “(…) no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal. 

 

Estes factos resultam dos documentos e outras informações juntos aos autos.

A AT, na sua resposta, objetou o seguinte_

Importa referir que as guias mencionadas pela Requerente no § 6.º do PPA, através das quais as retenções na fonte de IRC em causa neste PPA foram, alegadamente, entregues, ou seja, as guias de RF [... (maio 2022), ... (setembro 2022) e ... (dezembro de 2022) e ... (maio de 2023)], apresentam valores muito superiores aos aqui solicitados, não sendo possível à AT conhecer os valores isoladamente. 

Tal objeção surge como irrelevante, porquanto:

(i) estão em causa factos que a AT tem obrigação de conhecer (a razão de ser das importâncias de imposto que recebe, ainda que autoliquidadas por contribuintes ou seus substitutos tributários). Tal “desconhecimento”, além de incompreensível, não pode, sem mais, ser invocado para pôr em causa as declarações dos contribuintes

- de todo o modo, trata-se de uma fundamentação a posteriori (não consta da fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa), legalmente inadmissível.

 

- A AT objeta ainda que, não consta dos autos prova de que a Requerente seja um Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários (“OICVM”), abrangido pela Diretiva n.º 2009/65/CE ou Organismos de Investimento Alternativo (“OIA”), abrangidos pela Diretiva n.º 2011/61/EU, em igualdade de circunstâncias com os OIC nacionais para efeitos de aplicação do art.º 22.º do EBF, por não apresentar documento emitido no país de origem pela autoridade de supervisão financeira ou regulador do setor de fundos de investimento atestando que além de ser um OIC este cumpra os termos da Diretiva 2011/61/UE ou da Diretiva 2009/65/CE (o apresentado apenas declara que é um OIC).

 

Esta objeção é meramente formal. Sendo a Requerente uma entidade constituída e funcionando segundo o direito alemão, com a natureza de OIC, é de supor – à falta de outros factos, que caberia à Requerida alegar – que cumpre com os requisitos estabelecidos pelas Diretivas da União aplicáveis, uma vez que estas terão sido transpostas para o Direito interno da Alemanha

Acresce que, também aqui, estamos perante uma fundamentação a posteriori, legalmente inadmissível.

 

II.1 – Factos não provados.

Não existem com relevância para a decisão da causa.

 

É irrelevante o facto de não ter ficado provado que o Requerente não logrou, na Alemanha, deduzir o imposto suportado em Portugal.

Existem duas diferentes questões, a serem objeto de apreciação e decisão sucessiva; se a tributação feita no país da fonte, Portugal, foi legítima à luz dos princípios do Direito da União. Não o sendo – como não o é – a questão seguinte fica necessariamente prejudicada.

 

Na realidade, só no caso de a tributação na fonte se mostrar legítima é que – numa perspetiva jurídica – se pode colocar a questão de saber da questão do direito à dedução no país da residência do imposto pago no país da fonte, de forma a evitar a ocorrência de uma situação de dupla tributação internacional.

 

 III O DIREITO

 

Cumpre aferir se assiste razão ao Requerente quando alega a existência de uma discriminação, violadora do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, dados os regimes de tributação diferenciados que o artigo 22.º do EBF estabelece, nos seus n.ºs 1, 3 e 10, para os dividendos de fonte portuguesa auferidos por OIC constituídos e a operar de acordo com a legislação nacional, por comparação com os mesmos dividendos quando recebidos por OIC’s constituídos e residindo noutro Estado.

Esta questão foi objeto de pronúncia pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, em 17 de março de 2022, no processo de reenvio prejudicial C-545/19, o qual versou sobre uma situação factual idêntica à dos presentes autos, suscitada por Tribunal constituído no CAAD (processo n.º 93/2019-T), no mesmo enquadramento legislativo.

Tendo em conta que a jurisprudência do TJUE quanto à interpretação do Direito da União tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, corolário do primado do Direito da União consagrado no n.º 4, do artigo 8.º da CRP, apenas há que tomar em consideração o constante de tal decisão do TJUE (o que coincide com a jurisprudência nacional, versando sobre diferentes aspetos do tema em questão, desde há muito afirmada[1] ).

 

Citamos:

37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro EstadoMembro não podem beneficiar dessa isenção.

 

38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

 

39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C480/16,

EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

Nos números seguintes de tal acórdão, o TJUE responde especificadamente às objeções do governo português, as quais, no essencial, coincidem com o argumentário vertido pela AT na sua resposta. Muito embora este tribunal não esteja obrigado a considerar todos e cada um dos argumentos expendidos pelas partes, mas apenas a apreciar os vícios invocados, remete-se para a decisão do TJUE também enquanto “contraponto” à resposta da AT.

 

Pelo que a este tribunal arbitral nada mais resta que cumprir com o ditame do TJUE.

 

IV- JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).

Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.

 

V – DECISÃO

 

Pelo exposto, acordam os árbitros em:

a) Anular, por ilegais, a liquidações (retenções na fonte liberatórias) que incidiram sobre dividendos obtidos pela Requerente em 2022 e 2023, a que correspondeu o pagamento indevido de imposto no valor de € 130.327,08,

b) Condenar a Requerida a pagar ao Requerente juros indemnizatórios sobre a quantia referida na alínea anterior, a liquidar nos termos legais, contados desde o dia seguinte ao do indeferimento expresso da reclamação graciosa.

 

Valor: € 130.327,08, correspondente ao montante total das liquidações impugnadas.

Custas, no valor de € 3.060,00 a cargo da Requerida, por ter sido total o seu decaimento.

 

22 de outubro de 2025

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

Mariana Vargas

 

 

Paulo Ferreira Alves 

 



[1] Uma referência ao facto de o STA – como era seu dever – ter uniformizado a jurisprudência em obediência ao

decidido pelo TJUE (ac. 093/19, de 28/09/2023).