Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1297/2024-T
Data da decisão: 2025-10-14  IVA  
Valor do pedido: € 8.547,91
Tema: IVA - Perdas em inventários – Presunção do artigo 86º do CIVA
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SUMÁRIO: 

O artigo 86.º do CIVA consagra uma presunção juris tantum de transmissão dos bens não encontrados nos locais de atividade do sujeito passivo, transferindo-lhe o ónus de provar que não ocorreu transmissão onerosa dos mesmos, o que este poderá fazer através de qualquer meio de prova legalmente admissível, desde que permita, ante o específico contexto económico em que a atividade se desenvolve, densificar os concretos termos em que tais bens saíram da esfera do sujeito passivo.   

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro singular, Luís Ricardo Farinha Sequeira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante apenas ‘CAAD’) para constituir o presente Tribunal Arbitral (TA) singular, no âmbito do qual se decide o seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

Onde é:

Requerente: A... LDA (doravante “Requerente”)

Requerida: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” e/ou “Requerida”)

 

 1. Relatório

A..., LDA.,NIPC..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ..., doravante designado por Requerente, submeteu ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) o pedido de constituição e de pronúncia por tribunal arbitral  (PPA) com vista a pronuncia arbitral de declaração de anulação, na parte que respeita ao IVA, do despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.° ...2024..., do Chefe de Divisão da Direcão de Finanças de Leiria, ao abrigo de subdelegação de competências e, consequentemente com vista à pronuncia relativa à declaração de anulação parcial da liquidação de IVA e de Juros Compensatórios (JC) do período 202012, n.° 2024..., e respetivas demonstrações de acerto de contas n.°s 2024 ... e 2024 ..., pelas quais foram apurados os montantes a pagar de € 12.531,77 e € 1.378,83.

Em síntese, no PPA (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) a Requerente fundamenta a ilegalidade do supra identificado ato tributário e da decisão administrativa que tal ilegalidade não veio a acolher, enquanto objeto mediato e imediato destes autos, respetivamente, assente no seguinte:

a)     A Requerente foi objeto de ação inspetiva externa ao exercício de 2020 (OI2023...), tendo a AT, no Relatório de Inspeção Tributária (RIT), a AT corrigido perdas em inventário no valor de €34.344,04, aplicando o disposto no artigo 86.º do Código do IVA (CIVA), presumindo transmitidos os bens, e apurando IVA em falta de €7.899,13.

b)    Tais diferenças correspondem a perdas normais e inevitáveis da atividade, não constituindo transmissões tributáveis, quebras essas originadas por trocas de referências aquando da receção de mercadorias, erros de expedição, erros administrativos, furtos sem identificação do autor e produtos danificados no manuseamento.

c)     As diferenças apuradas em 2020, expurgados os valores recolhidos pela B..., ascenderam a cerca de €33.000,00, o que corresponde a apenas 0,08% do volume total de vendas do ano, sendo estas perdas uma realidade intrínseca da atividade comercial da empresa e não resultam de vendas ocultas, pelo que não se verificam os pressupostos do artigo 86.º do CIVA, pelo que a sua aplicação é ilegal.

d)    A AT desconsiderou a inevitabilidade destas perdas e aplicou a presunção do art. 86.º CIVA de forma automática, sem atender às circunstâncias específicas da atividade da Requerente, o que representa erro nos pressupostos de facto e de direito.

e)     Invoca a Requerente jurisprudência na qual se reconhecem como aceitáveis perdas normais de inventário.

f)     A Requerente conclui que a liquidação adicional de IVA é ilegal, por violação do artigo 86.º do CIVA, por errónea aplicação das normas de avaliação da prova em sede inspetiva, devendo ser anulado o ato de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2024..., proferido pelo Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Leiria e parcialmente anulada a liquidação adicional de IVA do período 2020/12, na parte em que apurou IVA sobre perdas em inventário no montante de €7.899,13, bem como a correspondente proporção dos juros compensatórios.

g)    Mais requer o direito a juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT, a calcular à taxa legal, desde a data do pagamento indevido (18.03.2024) até efetiva e integral restituição.

De outra banda, respondeu a Requerida (cuja Resposta se dá igualmente aqui por reproduzida), pugnando pela improcedência dos pedidos formulados, invocando, sumariamente, o seguinte:

a)     A Requerente exerce atividade de comércio por grosso de produtos farmacêuticos (CAE 46460), enquadrada em sede de IVA no regime normal mensal desde 01.01.1986, tendo sido alvo de inspeção externa (OI2023...), iniciada em 13.06.2023,, na qual se detetou que a Requerente registou na conta SNC 684, perdas em inventário no valor global de €511.176,92.

b)    Após aceitação parcial (B..., produtos compensados por fornecedores, acertos de entradas/saídas), remanesceu um valor de perdas de inventário não justificado documentalmente, de €34.344,04, pelo que a AT procedeu, ao abrigo do artigo 86.º do CIVA, à presunção de transmissão desses bens, apurando-se IVA em falta, pelo montante de €12.854,80.

c)     Os argumentos apresentados (perdas normais inevitáveis em armazenagem, transporte, manuseamento) foram analisados pela inspeção e apenas não foram aceites os que careciam de prova documental, sendo que a Requerente tinha recursos humanos e meios tecnológicos para produzir prova suficiente (ex.: autos de destruição, fotografias, comunicação prévia de abates), apoiando-se em doutrina para pugnar pela existência de documentação que permita afasta a presunção de transmissão de bens.

d)    Entende a AT que a presunção do art. 86.º do CIVA é juris tantum, podendo ser ilidida, mas incumbia à Requerente esse ónus, o que esta não cumpriu, violando assim o artigo 74º da LGT.

e)     A AT sustenta assim que a sua atuação respeitou ainda os princípios da igualdade, proporcionalidade e justiça (art. 266.º da CRP; art. 55.º da LGT; arts. 5.º e 6.º CPA).

f)     Perante este posicionamento, entende a Requerida que todos os pedidos devem ser julgados totalmente improcedentes, por a liquidação e a respetiva decisão de indeferimento da reclamação graciosa não padecerem de qualquer vício legal.

g)    Nesta senda, conclui igualmente pela improcedência do peticionado direito a juros indemnizatórios, por não se verificar qualquer erro imputável aos serviços (art. 43.º, n.º 1 da LGT).

Concluindo dever ser totalmente improcedente o PPA deduzido.

O árbitro único foi designado em 29.01.2025. 

Em conformidade com o previsto no artigo 11º n.º 1 alínea c) do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 18.02.2025.

O processo administrativo instrutor veio a ser junto a estes autos em 09.05.2025.

Data em que igualmente a Requerida veio a apresentar a sua Resposta, nos termos do artigo 17º do RJAT.

Em 12.05.2025 foi realizada reunião arbitral, na qual foram inquiridas as testemunhas arroladas pela Requerente, presentes nas instalações do CAAD de Lisboa.

Na sequência de despacho para as partes, querendo, formularem alegações escritas, vieram as mesmas a ser apresentadas.

 A Requerente reafirmou integralmente o teor do pedido de pronúncia arbitral, reiterando que as perdas de inventário resultam do normal funcionamento da sua atividade e não configuram transmissões sujeitas a IVA, sustentando que as diferenças apuradas são inevitáveis e devidamente justificadas pelos procedimentos internos e pela prova testemunhal, representando uma percentagem mínima do volume de negócios, pelo que conclui que a liquidação adicional e os juros compensatórios padecem de erro de facto e de direito, devendo ser anulados e restituído o montante indevidamente pago, com juros indemnizatórios.

A Requerida veio a reafirmar o conteúdo da sua Resposta, sem apresentar novos argumentos ou elementos probatórios, mantendo que apenas foram corrigidas as perdas de inventário não comprovadas documentalmente e que a presunção legal aplicável não foi afastada pela Requerente, concluindo, assim, pela total improcedência do pedido arbitral e pela manutenção da liquidação adicional de IVA

Por despacho de 13.08.2025, veio este tribunal arbitral a prorrogar, nos termos do artigo 21º do RJAT, por dois meses, o prazo para a prolação de decisão, assente na pertinência para a boa decisão dos autos da solicitação à Requerente de informação relativa às quebras por inventário em causa, tendo esta vindo a pronunciar-se, em 09.09.2025.

Notificada a Requerida do teor de tal requerimento da Requerente, aquela nada aduziu.

Em 06.10.2025, veio a se proferido despacho para que a Requerente proceda ao pagamento da taxa arbitral devida, o qual deve ter lugar até à data da prolação da decisão, a ocorrer até 14.10.2025. 

2. Saneamento

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março), tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado tempestivamente. 

O processo não enferma de nulidades. 

Não tendo sido erigidas exceções, nada obsta a que se conheça do mérito do pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente.

  3. Matéria de facto

3. 1. Factos provados:

Analisada a prova documental produzida, o posicionamento das partes face à factualidade trazida a estes autos, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:

1.     A Requerente, A..., Lda., NIPC..., exerce a atividade principal de comércio por grosso de produtos farmacêuticos (CAE 46460).

2.     Está enquadrada, em sede de IVA, no regime normal mensal, desde 01.01.1986.

3.     Possui contabilidade organizada e encontra-se sujeita ao regime geral de determinação do lucro tributável em IRC.

4.     A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva externa ao período de 2020, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2023..., iniciada em 13.06.2023.

5.     No decurso da ação, foi analisada a contabilidade da Requerente e analisados os inventários e demais elementos documentais contabilísticos.

6.     O procedimento visou verificar o cumprimento das obrigações declarativas em IRC e IVA.

7.     No âmbito do RIT, foi analisado, entre outras, a Conta SNC 684 – Perdas em Inventários – a qual registava um montante global de €511.176,92, tendo da versada análise resultado o seguinte:

 

...

 

 

B...

B...

B...

 

 

B...

 

8.     Parte desse valor total registado por - Perdas em Inventário (€ 511.176,92) - veio a ser considerado como justificado (compensado) o valor de €476.932,88, através de:

a)     recolhas pela B... (produtos danificados/fora da validade): € 16.493,49;

b)     produtos danificados/inutilizados compensados por fornecedores (conta SNC 611): € 236.308,20;

c)     perdas por transformação/junção de produtos em kits: € 18.956,92;

d)    ganhos em inventários (conta SNC 784): € 205.074,27;

tudo em conformidade com o teor do quadro-resumo VII, no qual se concluiu pela existência, ainda assim, de um diferencial de € 34.344,04.

9.     Com base na fundamentação de facto vinda de supra expor, a AT efetuou, no RIT, o apuramento em sede de IVA relativo a tal diferencial, nos termos seguintes:

 

10.  Em face de tais apuramentos no RIT, em sede de IVA, conclui a AT pelas seguintes correções, por IVA em falta nos cofres do Estado:

-  IVA não liquidado – art.º 86º do CIVA: € 7.899,13 – correção contestada pela Requerente;

- IVA deduzido indevidamente – I...S.A.: € 4.955,67;

11.  A Requerente registou, na conta SNC 684, perdas em inventário no montante global de € 511.176,92.

12.  Os bens adquiridos que comporiam o valor de € 34.344,04 não justificados no âmbito de inventários, não se encontravam em qualquer dos locais onde a Requerente exerce a sua atividade – facto este que decorre do posicionamento congruente das partes quanto a esta matéria.

13.  A Requerente encontrava-se, no decurso de 2020, numa fase de transição quanto ao modelo de gestão de armazém, uma vez que estava a ser progressivamente implementado um novo sistema para o efeito, o qual até esse ano era, essencialmente, manual, sendo que o sistema de controlo ainda não abrangia todos os produtos e armazéns, o que limitava a rastreabilidade das mercadorias – cfr. resulta dos depoimentos das testemunhas, com especial enfoque, no de C... .  

14.  A Requerente foi notificado do projeto de relatório de inspeção, no qual se concluía, no que a Perdas em Inventários em sede de IVA diz respeito, na qual a /AT considerou presumida a transmissão dos bens correspondentes, ao diferencial apurado, no valor de €34.344,04, apurando-se IVA em falta, no montante de €7.899,13.

15.  A Requerente exerceu o direito de audição, alegando que as diferenças de inventário resultavam de perdas normais relacionadas com armazenamento, transporte, manuseamento e distribuição.

16.  A AT não aceitou essa fundamentação por ausência de documentação que comprovasse tais perdas, considerando não afastada a presunção do art. 86.º do CIVA.

17.  Nesta sequência, foi emitida liquidação adicional de IVA, relativa ao período de 2020/12, no valor de €12.531,77 e de €1.378,83 relativos a juros compensatórios.

18.  Inconformada com a correção constante de 9., a Requerente apresentou, em 26.06.2024, reclamação graciosa, à qual coube o n.º ...2024... .

19.  Esta reclamação foi indeferida por despacho de 09.09.2024, com fundamento na ausência de comprovação documental das perdas invocadas e do destino de tais bens.

20.  Inconformada, a Requerente deduziu, em 05.12.2024, o pedido de pronúncia arbitral que está na origem destes autos, visando a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e a anulação parcial das liquidações adicionais de IVA e JC.

21.  A Requerente procedeu ao pagamento da taxa arbitral subsequente devida.

 

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.

 

3. 2. Factos não provados:

 

Com relevo para a decisão dos presentes autos, não se provou que os bens que perfazem o diferencial de €34.344,04 decorrente do registo contabilístico da Requerente como - perdas em inventários - e consideradas pela Requerida como não justificados, não tenham sido transmitidos ou que tenham sido objeto de destruição, inutilização, deterioração, extravio, furto ou outra forma de desaparecimento comprovado.

3.3. Fundamentação da matéria de facto provada:

Relativamente à matéria de facto, o tribunal arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT). 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

Os factos dados como provados resultam da prova produzida nos autos e, ou, do acordo, expresso ou implícito (por não impugnação especificada), de Requerente e Requerida, livremente apreciados (nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) à luz das regras de racionalidade, lógica e experiência comum, segundo juízos de normalidade e razoabilidade.

No âmbito da apreciação da prova produzida, a convicção deste tribunal arbitral fundou-se, essencialmente, na análise crítica, não só da prova documental como também da prova testemunhal – testemunha arrolada pela Requerente: C..., D... e E... .

As testemunhas inquiridas — colaboradores da Requerente com funções de responsabilidade nas áreas de logística, armazém e compras — prestaram depoimentos coerentes entre si, descrevendo um contexto de transição tecnológica em 2020, com a implementação do sistema de gestão de armazéns e dificuldades acrescidas decorrentes da pandemia de Covid-19, fatores que poderão ter originado erros operacionais e divergências de inventário.

Referiram que as diferenças apuradas no inventário resultariam de falhas de controlo interno, como, por exemplo, erros de expedição, trocas de referências, produtos danificados, lapsos de contagem ou registo, bem como da sobrecarga de trabalho associada ao aumento do volume de operações nesse ano.

Contudo, nenhuma das testemunhas foi capaz de identificar de modo concreto e circunstanciado o destino dos bens correspondentes ao montante de €34.344,04 considerado injustificado pela AT, limitando-se a referir, genericamente, sobre possíveis causas de tais perdas.

De igual modo, todas reconheceram que o sistema informático e de controlo existente em 2020 não permitia rastrear de forma integral a movimentação dos produtos, nem dispunha de registos que comprovassem documentalmente o desaparecimento dos bens. 

Confirmaram, aliás, que não existia qualquer documentação de suporte — como autos de destruição, relatórios de inutilização, notas de devolução ou comunicações a entidades competentes — que pudesse comprovar que tais bens não foram transmitidos.

Acresce que, apesar do seu conhecimento técnico e funcional, nenhuma das testemunhas conseguiu densificar, com referência a tempo, modo, termos ou identificação específica, o destino dos bens concretos dados pela AT como não justificados, limitando-se a descrever genericamente o funcionamento da empresa e as diversas possíveis origens das discrepâncias detetadas.

Com pertinência para a decisão inexistem outros factos alegados que se devam considerar provados ou não provados, em conformidade com o supra alinhado.

4. Matéria de direito:

4.1. Objeto e âmbito do presente processo

Atento o teor do PPA e alegações formuladas pela Requerente, a questão central a apreciar no presente processo consiste em determinar se as perdas em inventários, no montante de €34.344,04, apuradas no exercício de 2020 e consideradas em sede de RIT, pela AT, como não justificadas, configuram ou não transmissões de bens para efeitos de IVA, nos termos e para os efeitos do artigo 86.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA).

A controvérsia centra-se assim em saber se estão verificados os pressupostos de aplicação da presunção de transmissão de bens não justificados e se a Requerente logrou ilidi-la, demonstrando que as diferenças de inventário correspondem a perdas inerentes e inevitáveis ao normal exercício da sua atividade.

4.2. Da presunção do artigo 86º do Código do IVA (CIVA):

Assim e no tocante à primeira das questões que se impõem dirimir, não se poderá deixar de aqui explicitar o teor do normativo pela Requerida invocado em sede inspetiva em ordem a fundamentar a correção ora arbitralmente impugnada.

Dispõe o artigo 86º do CIVA, o seguinte:

Presunção de aquisição e de transmissão de bens

Salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua atividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrem em qualquer desses locais.

Da leitura do normativo supra, resulta, conforme vem sendo inequivocamente sufragado quer pela jurisprudência, quer pela doutrina, uma presunção juris tantum, quer quanto à aquisição, quer quanto à transmissão de bens que não sejam detetados nos locais onde o sujeito passivo exerce a sua atividade, de onde tal presunção é suscetível de ser ilidida, através de prova em contrário.

As presunções assentam na prova de um facto conhecido, no qual a presunção se firma, da qual se infere um facto desconhecido, tal como resulta do disposto no artigo 349º do Código Civil – “ Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”.

Assim, a figura da presunção encerra não um meio de prova, mas antes um meio de dispensa da prova do facto que o legislador entende se dever assumir, por presunção.

Deste modo, parte-se de um dado facto (que podemos apelidar de instrumental) considerado como adquirido (provado) para dele inferir ou extrapolar, por via da figura da presunção, um facto que se desconhece.

Que o mesmo significa afirmar que para a operacionalização do preceito em análise, imprescindível se torna que o sujeito ativo da relação tributária faça prova do facto instrumental – conhecido – de molde a poder extrair a assunção ou ilação quanto à ocorrência, no caso do artigo 86º do CIVA,  do facto desconhecido: a transmissão dos bens adquiridos, importados, ou produzidos que não se encontrem nos locais de exercício da atividade do sujeito passivo.

Volvendo ao caso em apreciação, a Autoridade Tributária e Aduaneira apurou — sem que tal tenha sido objeto de controvérsia por parte da Requerente — o facto instrumental que constitui a base da presunção prevista no artigo 86.º do CIVA: a saber, a prévia existência de mercadorias e outros bens (matérias-primas, produtos acabados ou intermédios) na esfera patrimonial da Requerente, os quais deixaram de se encontrar na sua posse.

A saída desses bens da órbita patrimonial da Requerente encontra-se, de resto, corroborada pela própria contabilidade desta, que refletiu tais ocorrências na conta 684 – “Perdas em inventários”, traduzindo o reconhecimento, pela própria entidade, de que aqueles bens deixaram de integrar os seus inventários.

Assim, verificado o facto conhecido — a existência de bens anteriormente adquiridos e/ou produzidos, os quais, à época do período a que se reporta a inspeção efetuada – ano de 2020 - não se encontravam em poder da Requerente, não se pode deixar de anuir na aquisição do facto instrumental (ou conhecido) habilitador do acionamento do mecanismo da presunção estabelecido no artigo 86º do CIVA.

E em face de tal adquirida factualidade, a qual não é sequer controvertida, a Requerida presumiu, assim, a transmissão, não da totalidade do saldo da conta 684 – no montante de € 511.176,92 – mas sim pelo montante parcial – € 34.448,04 – considerado enquanto saída ijustificada.

4.3. Da ilisão do artigo 86º do Código do IVA:

Aqui chegados, o tema central do dissídio repousa na divergência quanto à verificação ou não de justificação de saída dos bens contabilizados em € 34.448,04. 

No entender da Requerida, prova alguma – designadamente documental – foi efetuada que permita afastar a presunção decorrente do artigo 86º do CIVA.

Ao invés, sustenta a Requerente ter efetuado tal ilisão da presunção juris tantum, considerando que tal diferencial - € 34.344,04 – constituem perdas normais e inevitáveis da atividade, não constituindo transmissões tributáveis, quebras essas originadas por trocas de referências aquando da receção de mercadorias, erros de expedição, erros administrativos, furtos sem identificação do autor e produtos danificados no manuseamento, entre outras.

O artigo 86.º do Código do IVA consagra uma presunção legal (juris tantum) de transmissão dos bens adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer dos locais onde o sujeito passivo exerce a sua atividade, admitindo, todavia, prova em contrário, conforme decorre do artigo 73.º da Lei Geral Tributária.

Em face da concreta matéria em apreço, importa, desde já, atentar no entendimento de F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, sobre a presunção aqui em causa, segundo os quais:  “poderá considerar-se como uma consequência direta da inventariação que eventualmente tenha sido efetuada nos termos do artigo anterior, conduzindo à existência de bens não documentados nem registados e que se presume terem sido adquiridos pelo sujeito passivo. Também como resultado dessa inventariação poderá verificar-se a falta de bens face ao registo dos livros. Em ambos os casos, o legislador admite, por um lado, uma presunção juris tantum de aquisição daqueles bens e, por outro, a transmissão dos bens encontrados em falta, motivando, neste caso, a liquidação do correspondente imposto.”[1]

Nesta mesma linha, F. Duarte Neves sublinha que “este artigo estabelece que se presumem como transmitidos os bens não encontrados em qualquer dos locais em que o contribuinte exerça a sua atividade, salvo prova em contrário. O regime consagrado neste artigo pode considerar-se como uma consequência direta da inventariação de bens, sendo que o legislador presume a transmissão dos bens não encontrados no local onde é normalmente exercida a atividade do sujeito passivo, comportando a liquidação do respetivo IVA.”[2]

Trata-se, pois, de uma presunção legal ilidível, que transfere o ónus da prova: a Autoridade Tributária beneficia da presunção de que teve lugar transmissão dos bens, cabendo ao sujeito passivo demonstrar que, apesar de estes já não se encontrarem na sua posse, não terem os mesmos sido objeto de transmissão onerosa a terceiros.

Com efeito, conforme esclarece o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13.07.2016, de 07098/13, (a propósito do anterior artigo 80º do CIVA, cuja sentido é, no essencial, similar ao atual artigo 86º do referido compêndio): 

“A este propósito veja-se o que decorre do r Acórdão deste TCA Sul de 10/07/2015, no Processo nº 07692/14:

Nos termos do artigo 80.º do CIVA (1) (“Presunção de aquisição e de transmissão de bens”), «Salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua actividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou adquiridos, importados ou produzidos que não se encontrem em qualquer desses locais».

A este propósito, afirma-se que: «As presunções previstas na disposição [em referência] são presunções iuris tantum, que podem ser ilididas pela produção de prova em contrário» (2). «Importa sublinhar que para efeitos de determinação do rendimento ou lucro tributável, os contribuintes, nos termos do art.º 26.º e segs. do CIRC e art.º 32.º do CIRS, têm de observar regras precisas quanto aos inventários, bem como a depreciações e quebras extraordinárias que, quando não justificadas, podem não ser aceites como gasto em sede de IRC. Nesta medida, para afastar eventuais contingências fiscais, é indispensável fazer a prova real e objectiva dos factos de modo a ilidir a presunção de aquisição ou de transmissão dos bens, conforme for o caso, ou outras ocorrências de que são exemplo o roubo de bens ou a destruição ou inutilização dos bens objecto de abate» (3) Destaque nosso.

Verifica-se assim que, conforme vem dito no douto acórdão, é pois indispensável que o sujeito passivo faça prova real e objectiva dos factos de modo a ilidir a presunção, nomeadamente de roubos destruição ou inutilização dos bens em causa, e que prove que o destino dos mesmos foi outro que não a sua venda.”

Ante a clareza de tal entendimento jurisprudencial, importa assim sopesar no concreto caso em apreciação, se a Requerente logra ou não ilidir a presunção de que a Requerida beneficia ao abrigo do artigo 86º do CIVA, quanto ao efetivo destino dos bens e que esta reputa como de «desconhecido» e «injustificado». 

A análise conjunta da prova produzida evidencia, desde logo, que não foi apresentada qualquer prova documental que permita demonstrar o destino efetivo dos bens correspondentes ao montante de €34.344,04, considerado pela Autoridade Tributária e Aduaneira como perdas de inventário não justificadas. 

A Requerente limitou-se a tentar sustentar a origem e natureza dessas diferenças mediante prova testemunhal, cujos depoimentos, embora coerentes quanto à caracterização do funcionamento interno da empresa e das dificuldades operacionais verificadas em 2020, não lograram concretizar factualmente o destino dos bens em causa, nem fornecer elementos de verificação objetiva que permitam afastar a presunção de transmissão prevista no artigo 86.º do Código do IVA.

Com efeito, as testemunhas inquiridas — todas vinculadas à Requerente e com funções relevantes nas áreas de logística, armazém e compras — prestaram depoimentos convergentes quanto à explicação genérica das causas das diferenças de inventário, apontando, para diversas causas como fossem, erros de expedição, trocas de referências, produtos danificados, furtos não apurados, lapsos de contagem, erros administrativos e deficiências no sistema de controlo interno. 

Tais explicações, todavia, não ultrapassaram o plano da plausibilidade geral, assumindo natureza meramente conjetural, destituída de concretização quanto a tempo, modo, natureza e identificação específica dos bens que deixaram de estar em poder (leia-se, nas instalações) da Requerente.

As testemunhas confirmaram, de resto, a inexistência de qualquer documentação de suporte — designadamente autos de destruição, relatórios de inutilização, notas de devolução, comunicações à B... ou a entidades competentes, ou quaisquer outros documentos internos que permitam individualizar e comprovar a perda efetiva dos bens.

Apenas foi afirmado que, em 2020, a empresa atravessava um período de transição tecnológica, com a implementação progressiva de um sistema de gestão de armazéns e que essa circunstância, conjugada com o impacto da pandemia de Covid-19 e o aumento do volume de operações, terá potenciado erros e divergências de stock.

Ainda que se reconheça a percentagem diminuta das «perdas em inventários» face ao volume de negócios – 0,08% - e a verosimilhança dos testemunhos quanto à realidade organizacional descrita e— marcada por um contexto de complexidade logística, crescimento de atividade e limitações tecnológicas — tais questões não podem deixar de ser a esta imputáveis e certamente com reflexos em matéria dos desvios de inventários

A invocação de dificuldades associadas à implementação de um novo sistema de gestão em 2020 não pode, por si só, justificar as discrepâncias detetadas nos inventários. 

Ainda que se admita, como se reconhece, que o sistema se encontraria em fase de transição, tal circunstância não exonera a entidade da obrigação de assegurar a fidedignidade e completude dos seus registos contabilísticos e de manter mecanismos eficazes de controlo interno sobre as existências.

Com efeito, a adoção ou substituição de um sistema informático de gestão deve ser acompanhada de procedimentos internos de validação e reconciliação, aptos a garantir que as operações de entrada e saída de bens são devidamente registadas e que o inventário físico corresponde ao contabilístico. 

Durante qualquer período de adaptação tecnológica, compete à administração da entidade implementar medidas de mitigação, designadamente controlos paralelos manuais, verificações periódicas e reconciliações sistemáticas de stock, de modo a evitar ou identificar de forma atempada eventuais discrepâncias.

A simples alegação de falhas no sistema, desacompanhada da demonstração de tais mecanismos de supervisão e correção, evidencia antes a insuficiência dos procedimentos de controlo interno e a inexistência de um sistema eficaz de monitorização das existências. 

A responsabilidade pela fiabilidade da informação contabilística e pela verificação do inventário é exclusiva da respetiva entidade, não podendo ser transferida para limitações técnicas ou circunstanciais.

Importa, ainda, salientar que o valor percentual reduzido dos desvios apurados — 0,08% face ao volume de vendas anual — não tem a virtualidade para afastar, de per se, a constatação de tais insuficiências. 

A maior ou menor relevância quantitativa não elimina a aferição qualitativa que deve nortear o sistema de controlo, pois o dever de assegurar a integridade dos registos de existências é absoluto e não depende da dimensão dos desvios detetados, sendo certo que a via documental é aquela que, consabidamente, assegura uma maior fidedignidade ao nível da aferição desfasada no tempo, porquanto permite reconstruir com objetividade e rigor as operações e movimentos ocorridos, garantindo a rastreabilidade e uma mais objetiva verificação dos factos contabilisticamente relevados.

Mesmo variações de menor expressão evidenciam deficiências estruturais na fiabilidade dos processos de contagem, registo e reconciliação, incompatíveis com as boas práticas contabilísticas e de governação empresarial.

Em suma, a circunstância de os desvios injustificados poderem ser apelidados de «limitados» não permite sanar as deficiências do sistema, antes confirmando que os mecanismos de controlo e registo ainda se encontravam aquém do nível de rigor exigível, revelando a ausência de um modelo de controlo interno robusto e devidamente testado.

 Assim, os problemas internos de gestão e a reduzida expressão dos desvios não afastam a conclusão de que o sistema de controlo era insuficiente para garantir a fiabilidade dos inventários e a credibilidade da informação financeira.

Ora, é neste contexto marcado pelas limitações ao nível dos sistemas de controle, desacompanhado de quaisquer elementos documentais que é imperioso concluir pela  insuficiência dos depoimentos prestados em ordem a estabelecer um nexo factual densificado entre as divergências contabilizadas e eventuais ocorrências, que pudessem justificar e suportar a saída dos bens do património da empresa sem transmissão onerosa.

Limitando-se as testemunhas a elencar um conjunto alargado de causas, genericamente plausíveis, mas desacompanhadas de quaisquer informações densificadas quanto ao tempo, modo e natureza da saída de tais bens das instalações da Requerente, pelo que é de concluir que a prova produzida não atinge um grau de concretização e objetividade mínimo para, desacompanhado de quaisquer elementos documentais (de natureza externa e/ou interna), lograr demonstrar a não transmissão onerosa dos bens.

Deste modo, a prova testemunhal, embora coerente e verosímil quanto ao contexto operacional e à natureza em abstrato plausível das múltiplas causas apontadas, não permite demonstrar, com um mínimo de densificação exigível, a não transmissão dos bens em causa, mantendo-se, por conseguinte, intocada a presunção juris tantum de transmissão prevista no artigo 86.º do Código do IVA.

Face à falta de provimento do pedido de declaração de ilegalidade (atentas as causas de pedir formuladas) em que se funda o PPA apresentado pela Requerente, não poderão deixar de se manter na ordem jurídico-tributário quer o objeto imediato - decisão da Reclamação 

Graciosa

 - quer o objeto mediato destes autos – liquidação de IVA 202012 supra melhor identificada

 

4.4. Dos Juros indemnizatórios e da restituição do IVA indevidamente pago: 

Atento o vindo de expender, nos termos dos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, fica prejudicado o conhecimento sobre as demais questões e pedidos formulados, os quais pressupunham decisão de procedência e consequente anulação (parcial) do ato tributário, a saber, condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios e restituição por esta do valor pago referente à correção atinente a «perdas em inventário», apuradas no ato tributário de liquidação de IVA de 202012 e respetivos juros compensatórios mediatamente impugnados nesta instância arbitral.

 

 

5. DECISÃO:

Destarte, atento a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral, decide:

a)    Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, assim mantendo na ordem jurídica a decisão de indeferimento da reclamação graciosa supra identificada e bem assim o ato tributário de liquidação de IVA de 20212 e JC objeto destes autos e já supra melhor identificado.

b)    Julgar  prejudicado  o  conhecimento  sobre  as  questões  relativas  ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente e restituição a esta dos montantes suportados com o pagamento do ato tributário de liquidação no segmento concretamente impugnado e objeto destes autos.

c)    Condenar a Requerente ao pagamento das custas, face ao decaimento obtido com a presente decisão, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

Fixa-se o valor do processo em € 8.547,91 (oito mil quinhentos e quarenta e sete euros e noventa e um cêntimos), nos termos do artigo 97.°-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

Notifique-se esta decisão arbitral às partes e, oportunamente, arquive-se o processo.

Lisboa, 14 de outubro de 2025.   

O Árbitro 

 

Luís Ricardo Farinha Sequeira

 

Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, com versos em branco e por mim revisto.