Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 78/2025-T
Data da decisão: 2025-10-13  IRC  
Valor do pedido: € 52.638,37
Tema: IRC. Fundos de Investimento Não-Residentes. Tributação de dividendos Retenção na Fonte. Livre Circulação de Capitais.;
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Sumário

1.     A legislação nacional, in casu o Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (CIRC), ao sujeitar a retenção na fonte em IRC os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal aos Organismos de Investimento Coletivo estabelecidos em Estados Membros da União Europeia, simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a Organismos de Investimento Coletivo estabelecidos e domiciliados em Portugal, consagra uma discriminação proibida à luz da livre circulação de capitais, inscrita no artigo 63.º do TFUE.

2.     Assim, são ilegais por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado na violação do Direito da União Europeia, os atos tributários impugnados e consequentemente deve ser anulada por padecer de vício de violação de lei. 

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

 

1. A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português ..., com sede em ... Munique, Alemanha, (doravante designado de “Requerente”) requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro. 

2. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pede: 

«(i) A anulação do ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa previamente apresentada pelo ora Requerente; 

(ii) Em virtude da procedência do pedido acima, a anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC ora sindicados por vício de violação de lei, em concreto por violação do Direito Comunitário e da CRP (…) 

(iii) O reconhecimento do direito do Requerente à restituição da quantia de EUR 52.638,37, relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2022, ao abrigo do disposto nos artigos 94.º do CIRC e 22.º do EBF, tudo com as demais mormente o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT; 

(iv) Com a procedência dos pedidos formulados supra, a condenação da Autoridade Tributária no pagamento das custas de arbitragem.».

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida). 

 

4. O pedido de constituição de Tribunal arbitral foi apresentado em 20/01/2025, aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 22/01/2025, e seguiu a sua normal tramitação.

 

5. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, al. a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a aqui signatária como Árbitro do Tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido. 

 

6. Foram as partes notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11.º, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT. Não se verificou a possibilidade prevista no artigo 13º do RJAT, pelo que, decorrido o prazo aí previsto para a eventual alteração ou revogação do ato impugnado, foi o Tribunal Arbitral constituído em 31-03-2025. 

 

7. Em 01-04-2025, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho, nos termos do artigo 17º do RJAT, ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. A Requerida apresentou a sua resposta, em 12-05-2025, remetendo o processo administrativo.

 

8. Em 22-05-2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, conferindo às partes o prazo de 10 dias para apresentarem, querendo, alegações escritas. Requerente e Requerida pronunciaram-se, em requerimentos com data de 06-06-2025.

 

II - SÍNTESE DA POSIÇÃO DAS PARTES

9. Como fundamento do pedido arbitral, o Requerente alega, em síntese, que os atos de retenção na fonte relativos aos dividendos distribuídos em 2022, com referência ao ano de 2021, estão feridos de um vício de violação de lei, por incompatibilidade das normas que os preveem com o direito da União Europeia (DUE). O Requerente sustenta este entendimento, no essencial, em defesa da ilegalidade do ato impugnado, ressaltando a fundamentação contida no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 17.03.2022, proferido no processo AllianzGI-Fonds AEVN (doravante designado apenas como Ac. AllianzGI-Fonds AEVN), com o número de processo C-545/19, o qual decidiu que: 

O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um EstadoMembro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

 

10. Assim, resulta do acórdão Allianz Fonds, processo C-545/19, do Tribunal de Justiça, que o regime constante dos artigos 94.º, n.º 1, c), 94.º, n.º 3, b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes estão sujeitos a retenção na fonte liberatória em sede de IRC a uma taxa de 25%, ao mesmo tempo que prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes, é incompatível com o princípio da livre circulação de capitais, consagrado no artigo 63.º do TFUE (ponto 22.º do PPA). Considera, ainda que a interpretação vertida no acórdão do Tribunal de Justiça é plenamente aplicável ao caso sub judice, uma vez que estão em causa dividendos distribuídos em Portugal a um OIC não residente e, portanto, não constituído ao abrigo da legislação nacional, razão que foi a única pela qual beneficiou da isenção prevista nos n.ºs 1 e 3 do artigo 22.º do EBF. Sucintamente, conclui o Requerente que por força do princípio do primado do DUE, se impõe a desaplicação das normas de direito interno contrárias ao direito da União, independentemente de os factos tributários afetados por aquela contradição se terem verificado antes ou depois da prolação do acórdão do Tribunal de Justiça. E, assim sendo, conclui que, por ter pago um valor de imposto que se afigura ilegal este deve ser restituído acrescido dos devidos juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

11. Requerida respondeu nos seguintes termos: 

a) Regista-se uma evidente inconsistência nos atos contestados, cuja falta de correspondência temporal será devidamente analisada em seguida, uma vez que a Guia comprovativa do pagamento do imposto por retenção na fonte é de 2019 e nos presentes autos estão em causa dividendos de 2022, os quais nunca poderiam ser distribuídos antes do período económico a que respeitam.

b) Cabe ao Requerente provar os factos que sustentam a sua pretensão, quer as retenções efetuadas quer o período a que estas respeitam. Alega ainda a Requerida AT que, não menos relevante é o facto de não ter sido junta aos autos pela requerente a declaração emitida pelo agente pagador em Portugal nos períodos relevantes (artigo 28.º da LGT). ou seja, pelo substituto tributário B..., com o NIF..., atestando a data de distribuição dos dividendos, montante bruto dos dividendos distribuídos ao requerente e imposto retido na fonte em Portugal bem como o número da guia através da qual foi entregue o imposto retido junto da AT. O ónus da prova recai sobre a requerente, sendo da sua obrigação demonstrar, de forma inequívoca, que a retenção ocorreu e que o montante correspondente foi entregue nos cofres do Estado. Alega a Requerida que a guia constante do processo administrativo (documento único que incorpora no PA) reporta-se a um período anterior às retenções na fonte contestadas, não sendo suscetível de justificar qualquer liquidação de imposto referente a 2022. 

12. Acresce ainda que o mesmo documento já foi anteriormente utilizado para fundamentar pedidos de restituição, indiciando uma tentativa de duplicação na recuperação do imposto alegadamente retido. Conclui a AT que «não só não se verifica a comprovação de que a retenção foi efetivamente realizada, como a prova apresentada não pode ser considerada, já que a documentação se refere a um período tributário completamente distinto daquele em que o rendimento foi obtido.»

c) Por último a Requerida AT alega que a diferença de tratamento instituída pelo Decreto-lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, na parte em que altera o artigo 22.º do EBF excluindo da isenção de imposto os OIC não constituídos ao abrigo da legislação nacional (artigo 22.º, n.º 1 e 3 do EBF) se encontra “plenamente justificada dentro da sistematização e coerência do sistema fiscal português”, não havendo, por isso, discriminação proibida à luz do DUE, uma vez que os OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional (residentes) e os outros (não residentes) não estão numa situação objetivamente comparável, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente. Por último, alega que não compete à AT, enquanto autoridade administrativa, sindicar a compatibilidade das normas internas com o DUE, «não podendo aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE, quando estas não têm, na sua origem, a apreciação de compatibilidade entre as disposições do interno português e o direito europeu.» 

e) Por tudo isto conclui a Requerida pela legalidade do imposto, e pela manutenção das liquidações na ordem jurídica. E, por fim, mesmo que outro seja o entendimento não são devidos juros indemnizatórios por não estar verificado o requisito do “erro imputável aos serviços”, ou seja, por não estar na disponibilidade da administração agir de outra forma, deixando de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade. 

 

III – Saneamento

13. O Tribunal arbitral foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades. 

 

IV – Matéria de facto

§1 – Factos provados  

14. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos: 

a) O Requerente é um organismo de investimento coletivo com residência fiscal na Alemanha, em ..., ... Munique constituído de acordo com o direito Alemão, como resulta do documento n.º 1 em anexo ao pedido arbitral, emitido pelas Finanças de Munique – Deutschen Finanzverwaltung – Finanzamt München, que consta do processo administrativo;

b) Para efeitos fiscais o Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente em Portugal, sem estabelecimento estável no país, facto reconhecido e mutuamente aceite pelas partes nos articulados juntos aos autos, e comprovado pelos documentos nºs 1 e 2 juntos ao pedido arbitral, que igualmente constam do processo administrativo em anexo à reclamação graciosa.

c) No ano de 2022 o Requerente era detentor de participações sociais em sociedades residentes em Portugal, pelas quais auferiu dividendos.

d) Os dividendos recebidos com referência ao ano de 2022 foram sujeitos a tributação em Portugal por retenção na fonte definitiva, à taxa liberatória de 15%, prevista no Acordo para Evitar a Dupla Tributação (“ADT”) celebrado entre Portugal e a Alemanha, no montante total de imposto de €52.638,37, conforme quadro seguinte: 

 

 

 

Cfr. Estes valores resultam provados pelo teor dos documentos nºs 2 e 3 juntos em anexo ao pedido arbitral.

e) No dia 17-01-2025, o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2022 – cf. Documento n.º 04, junto com o pedido arbitral. 

f) O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 22-01-2025.

g) Os referidos dividendos recebidos no decorrer do ano de 2022 foram sujeitos a tributação em IRC por retenção na fonte liberatória, à taxa de 15% prevista no Acordo para Evitar a Dupla Tributação (“ADT”) celebrado entre Portugal e a Alemanha, como resulta dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao pedido arbitral.

h) O Requerente suportou, em Portugal, no ano em causa, a quantia total de imposto de EUR 52.638,37€, como resulta dos documentos n.ºs 2 e 3 juntos ao pedido arbitral.

i) No dia 19.06.2024, o Requerente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 132.º n.ºs 3 e 4 do CPPT e no artigo 137.º do CIRC, reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2022, na qual solicitou a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da União Europeia (UE), bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal (cfr. documento n.º 4 junto à p.i.). 

j) O Requerente nunca foi notificado de qualquer decisão quanto à reclamação graciosa, tendo-se formado a presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa, decorridos 4 meses desde a data da sua apresentação.

k) Em 20-01-2025 o Requerente apresentou o presente pedido arbitral.

 

§2 – Factos não provados 

15. Não existem factos não provados com relevo para a causa. 

 

§3 – Fundamentação da decisão da matéria de facto

16. Os factos dados como provados resultam da prova documental junta com o PPA e do processo administrativo. 

O montante de imposto retido pode ser comprovado a partir da documentação junta com o PPA, em especial a partir dos documentos n.ºs 2 e 3. De resto, a própria AT reconhece, na sua Resposta, que os dividendos auferidos, no montante de € 125.182,65, foram sujeitos a tributação em Portugal, por retenção na fonte, à taxa de 15% prevista no acordo para evitar a dupla tributação (“ADT”) celebrado entre Portugal e a Alemanha, no valor de € 52.638,37.

O estatuto do Requerente enquanto OIC com sede na Alemanha também se afigura suficientemente demonstrado nos autos através dos documentos juntos aos autos pelo Requerente, e bem assim do documento único junto no processo administrativo. Ao que acresce que este facto é reconhecido pela AT ao longo da resposta junta aos autos.

Finalmente, a questão levantada na Resposta, no sentido de que não consta dos autos prova sobre se existiu, ou não, um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera do próprio Requerente ou dos seus investidores, não tem a relevância que a Requerida lhe atribui. Conforme resulta do acórdão AllianzGI Fonds, já mencionado, a diferenciação discriminatória, estabelecida pela legislação portuguesa, entre a tributação de dividendos distribuídos a OIC residentes e não residentes releva independentemente da situação fiscal de que os fundos não residentes possam gozar nos respetivos Estados de residência.

 

V – Matéria de direito 

A. Da (i)legalidade abstrata dos atos de retenção da fonte por violação do direito da União Europeia

17. A questão de direito a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral tem que ver, exclusivamente, com a ilegalidade abstrata dos atos de retenção na fonte, relativos a 2022 e 2023, por violação do direito da União, mormente da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, na parte em que o artigo 22.º, n.º 3 do EBF isenta de retenção na fonte (em sede de IRC) os dividendos distribuídos por sociedades portuguesas a OIC constituídos de acordo com a legislação portuguesa (residentes), ao mesmo tempo que sujeita a tributação, por retenção na fonte a título definitivo (em sede de IRC), os dividendos distribuídos por sociedades portuguesas a favor de OIC não residentes em Portugal. 

 

18. Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 22.º do EBF, sob a epígrafe «Organismos de investimento coletivo»: 

“São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”

Segundo o n.º 3 do mesmo normativo, para efeitos do apuramento do lucro tributável destes organismos, não se consideram os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS (juros, dividendos, rendas, mais-valias) – exceto quando esses rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças – os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do CIRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1. Os OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional estão também isentos de derrama estadual e derrama municipal, impostos acessórios relativamente ao IRC (cf. artigo 22.º, n.º 6 do EBF). Finalmente, dispõe o n.º 10 do artigo 22.º que “[N]ão existe obrigação de efetuar retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos por sujeitos passivos referidos no n.º 1”. 

 

19. Sobre esta específica questão de direito pronunciou-se o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no acórdão AllianzGI Fonds de 17-03-2022, com o número de processo C-545/19, entretanto reiterado e aplicado pelo STA, em acórdão de 28-09-2024, processo 093/19.7BALSB. Importa aquilatar o que foi dito naquela pronúncia do TJUE no sentido de perceber se a interpretação fixada quanto ao sentido do artigo 63.º do TFUE e quanto à incompatibilidade do artigo 22.º do EBF daí resultante é plenamente transponível para o presente processo arbitral, condicionando a legalidade dos atos de retenção na fonte sob dissídio. Cumpre, ainda, ter em devida conta que não cabe ao tribunal arbitral – nem, verdadeiramente, a nenhum órgão jurisdicional nacional – reinterpretar as disposições do Direito da União pertinentes, nem reponderar o tratamento dado pelo TJUE aos argumentos invocados pelos Estados-membros. Nisso consiste a autonomia da ordem jurídica da União, cabendo ao Tribunal de Justiça assegurar a unidade na interpretação do direito da União, especialmente através das decisões proferidas em sede de reenvio prejudicial de interpretação ou de validade (artigo 267.º do TFUE). A última palavra sobre o sentido de uma norma de direito da União pertence ao Tribunal de Justiça, não aos tribunais dos Estados-membros. 

Assim, uma vez determinado o sentido do direito da União, restará ao órgão jurisdicional nacional, tratando-se de norma dotada de efeito direto (como é o caso das normas sobre as liberdades do mercado interno inscritas no TFUE), e em obediência ao princípio do primado, solucionar a antinomia detetada mediante a desaplicação da norma de direito interno, preservando, destarte, a plena efetividade do direito da União. 

Ora, seguindo o Tribunal de Justiça no acórdão AllianzGI Fonds sobre as questões prejudiciais que lhe foram colocadas, resulta que:

(a) Seguindo a metodologia habitual, o Tribunal de Justiça apurou que uma legislação como a portuguesa constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais (artigo 63.º TFUE). Ou seja, ao tratar diferenciada e desfavoravelmente os OIC estabelecidos noutro Estado-membro, a legislação portuguesa constitui uma medida suscetível de dissuadir ou tornar menos atrativo o investimento em sociedades estabelecidas em Portugal por parte de OIC não residentes e o investimento em sociedade estabelecidas noutros Estados-membros por parte de OIC residentes (§30-39). 

(b) O artigo 65.º, n.º 1, a) do TFUE salvaguarda o direito dos Estados-membros de aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes residentes e não residentes. Mister é que estas medidas derrogatórias da livre circulação de capitais não sejam discriminatórias, o que pressupõe que as situações objeto de tratamento diferenciado não sejam objetivamente comparáveis ou que, sendo objetivamente comparáveis, a diferenciação de tratamento se mostre justificada por uma razão imperiosa de interesse geral (§40-42). 

(c) Ora, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes, mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, as situações tornam-se objetivamente comparáveis, isto é, sem diferença objetiva. O Tribunal de Justiça já admitiu – é certo – a aplicação, aos beneficiários de rendimentos de capitais, de técnicas de tributação diferentes consoante os beneficiários sejam residentes ou não residentes. Contudo, tal arrazoado não é transponível in casu, uma vez que a legislação nacional não se limita a prever modalidades diferentes de imposto em função do local da residência do OIC, mas prevê um regime de tributação que atinge exclusivamente os OIC não residentes (§43-52). 

(d) Também não vinga o argumento do Governo português no sentido de que os OIC residentes estão sujeitos a um imposto específico, previsto no artigo 88.º, n.º 11 do CIRC (as designadas tributações autónomas de despesa), bem como ao Imposto do selo, tributação a que não se acham sujeitos os OIC não residentes. Entende o Tribunal de Justiça que o Imposto do Selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento, como é o caso do IRC, para além de que a tributação autónoma de despesa só opera em circunstâncias específicas,[1] não podendo por isso ser equiparada a um imposto geral sobre o rendimento, como o IRC (§53-57).

(e) A comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado-membro deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais. Ora, o Governo português precisou que o regime tem em vista evitar a dupla tributação económica internacional, transferindo a tributação da esfera dos OIC para a esfera dos respetivos participantes. Todavia, sendo esta a teleologia visada pelo legislador, o Tribunal de Justiça destaca que o risco de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia advém unicamente da decisão do Estado-membro de exercer a sua competência fiscal, pelo que, nestas hipóteses, deverá o Estado de residência assegurar que as sociedades não residentes são sujeitas a um tratamento equivalente ao que beneficiam as sociedades residentes (§58-63). 

(f) A conclusão não se altera se se concluir que o propósito da legislação portuguesa é o de deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o acionista desse veículo (detentor de participações sociais dos OIC). O que releva, nesta circunstância, são as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos acionistas, e não a técnica de tributação utilizada. Ora, um OIC não residente pode ser detido por residentes fiscais em Portugal, caso em que está em situação comparável à de um OIC residente detidos por residentes fiscais em Portugal, uma vez que, em ambos os casos, pode ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (§64-74). 

(g) As razões imperiosas de interesse geral invocadas pelo Governo com o propósito de justificar a restrição à livre circulação de capitais não procedem. O Governo português invoca, primeiro, que a diferenciação entre OIC residentes e não residentes é necessária para preservar a coerência do regime fiscal nacional. Para que esta justificação possa ter acolhimento, porém, a jurisprudência do TJUE exige a demostração de “uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (§78). Relação que não se perscruta no caso português, onde o legislador não faz depender a isenção de tributação dos dividendos distribuídos a OIC residentes da condição de estes virem a ser redistribuídos pelos detentores de participações sociais e, consequentemente, tributados “à saída”. O Governo português invoca, segundo, a necessidade de preservar a repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-membros. Todavia, esta justificação só é admitida quando a medida restritiva vise prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado-membro de exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território. Isso é precisamente o oposto do que acontece no presente caso, onde o legislador português optou por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional (§82-83). 

(h) Em conformidade, conclui o Tribunal de Justiça que “[O] artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”. 

 

20. Esta jurisprudência foi, entretanto, reiterada pelo STA, em acórdão de 28-09-2023, processo n.º 093/19.7BALSB – um acórdão para uniformização de jurisprudência por oposição entre duas decisões arbitrais (artigo 25.º, n.º 2 do RJAT). A questão a decidir, e relativamente à qual os dois juízos estavam em oposição, era a de saber se, para efeitos de averiguação da compatibilidade da legislação portuguesa com o direito da União, a comparabilidade do regime de tributação de OIC residentes e de OIC não residentes deveria ser aferida apenas por referência à fiscalidade aplicável ao nível do veículo de investimento ou se, pelo contrário, deveria ser considerada a situação fiscal dos detentores de participações. Sufragando o dito do TJUE no acórdão Allianz GI Fonds, o STA concluiu, em linha com os princípios do efeito direto e do primado do DUE, que a comparabilidade entre a situação dos OIC residentes e não residentes, para efeitos de tributação ou de isenção de tributação de dividendos de origem nacional, não está dependente do tratamento conferido, seja no Estado de residência seja no Estado na fonte, aos detentores das participações sociais dos fundos. 

21. Na Resposta, a Requerida reiterou alguns dos argumentos veiculados pelo Governo português no processo que conduziu ao acórdão Allianz GI Fonds, mormente o argumento da falta de comparabilidade entre as situações de OIC residentes e OIC não residentes e a circunstância de, do regime português, se holisticamente perspetivado, não se retirar a conclusão de que os OIC não residentes recebem um tratamento sistematicamente menos favorável do que os OIC residentes. Como já se disse supra, não é tarefa dos órgãos jurisdicionais nacionais reinterpretar o direito da União, de molde a dele retirar um sentido apto a garantir a compatibilidade do direito interno. A interpretação definitiva do direito da União – e das restrições admissíveis à liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE – compete ao Tribunal de Justiça, que exerceu essa prerrogativa, em termos plenamente transponíveis para o caso concreto, no acórdão AllianzGI Fonds

De ressaltar que, em síntese, a argumentação da Requerida insiste em subalternizar os princípios do primado e do efeito direto, o que se afigura improcedente face às vinculações resultantes do disposto no artigo 8.º, n.º 4 da CRP.

 

22. Por tudo o que vem exposto e sem necessidade de mais considerações, conclui.se que os atos de retenção na fonte objeto dos presentes autos estão feridos de ilegalidade, por desconformidade das normas que os suportam com o artigo 63.º do TFUE, o que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, al. c), da LGT e do artigo 29º, n.º 1, al. d) do RJAT. Anulação que se estende, por maioria de razão, ao ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa que teve por objeto a legalidade dos atos de retenção. 

 

 B. Do pedido de condenação em juros indemnizatórios

23. Pretende ainda o Requerente, a par da anulação dos atos de retenção na fonte e do consequente reembolso da importância que indevidamente pagou em excesso, o Requerente pede que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT. A Requerida alega, por seu turno, que não são devidos juros indemnizatórios, uma vez que inexiste erro imputável aos serviços, não estando na disponibilidade da AT atuar de outra forma, atento o princípio da legalidade da administração (artigo 266.º, n.º 2 da CRP) e o dever de obediência à lei. 

 

24. Ora, dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. No n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) c) Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária; d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”. 

A necessidade de incluir a al. d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT (Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro) justifica-se pelo facto de à AT, enquanto autoridade administrativa, não ser reconhecido, via de regra, o poder de desaplicar normas jurídicas desconformes com a CRP. Este é um poder-dever que a CRP reserva aos tribunais, nos termos do artigo 204.º da CRP. Logo, a aplicação pela AT de uma norma inconstitucional não pode ser qualificada como um “erro imputável aos serviços”, na aceção do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas como uma decorrência inevitável do funcionamento do princípio constitucional da legalidade da administração (artigo 266.º, n.º 2 CRP). 

Já assim não é no caso de anulação de ato de autoliquidação com fundamento em incompatibilidade com o DUE. Com efeito, desde a prolação do acórdão Fratelli Costanzo, pelo Tribunal de Justiça, existe jurisprudência constante no sentido de que o princípio do primado – e o seu corolário prático, o princípio do efeito direto – estende à administração pública o dever de desaplicar as disposições de direito nacional contrárias a normas de direito da União que gozem de efeito direto, como é o caso do artigo 63.º do TFUE (Acórdão do Tribunal de Justiça de 22-06-1987, Fratelli Costanzo, processo 103/88, em particular o §31). A aplicação, pela AT, de norma legal contrária ao Direito da União constitui erro imputável aos serviços, na aceção do n.º 1 do artigo 43.º da LGT.

Isto mesmo é explicado no Acórdão do STA, de 18-01-2017, quando aí se dá conta que «o facto de a ilegalidade determinante da procedência da impugnação se concretizar em violação de norma comunitária, também não implica tratamento similar àquele que equaciona a aplicação de normas que venham a ser declaradas inconstitucionais, enquanto que, no caso dos preceitos de direito comunitário do que se trata é da aplicação de normas que vigoram diretamente na ordem jurídica interna e, mais do que isso, prevalecem sobre as normas do direito interno, não podendo os Estados-membros aplicar qualquer regra de direito interno que colida com as regras do direito da UE» (Acórdão do STA, 18-01-2017, processo n.º 0890/16).

 

25. Assim, são devidos juros indemnizatórios, por estarem preenchidos os respetivos pressupostos, a saber, a ocorrência de erro imputável aos serviços que resultou em pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (artigo 43.º, n.º 1 LGT). A única questão que subsiste é saber qual a data de início da sua contabilização. Quanto a este ponto, a jurisprudência resultante do acórdão do STA de 29-06-2022, processo n.º 093/21.7BALSB, vai no sentido de, em caso de retenção na fonte, e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passa a ser imputável à Autoridade Tributária depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte, ou seja, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração se pronunciou sobre a situação do contribuinte[2]

Em síntese, são devidos juros indemnizatórios, contados desde a data da formação do indeferimento tácito da reclamação graciosa, ou seja, a partir de 19-11-2024 

 

VI – Decisão

Termos em que delibera este Tribunal julgar totalmente procedente o pedido arbitral e, em consequência, decide:

(a)           Anular os atos tributários de retenção na fonte impugnados nos autos bem como o ato de indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa; 

(b)           Condenar a Requerida no reembolso da quantia de  52.638,37 ao Requerente, e no pagamento de juros indemnizatórios a partir de 19-11-2024;

(c)           Condenar a Requerida, parte vencida no processo, nas custas do processo. 

 

VII – Valor do processo

Nos termos do disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em €52.638,37, valor atribuído pelo Requerente, sem contestação da AT. 

 

VIII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4.º, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 2.142,00 a cargo da parte vencida. 

 

Lisboa, 13/10/2025

 

O Tribunal Árbitral,

 

 

 

 

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(Maria da Rosário Anjos)

 

 



[1] Artigo 88.º, n.º 11 do CIRC: “São tributadas autonomamente, à taxa de 23%, os lucros distribuídos por entidades sujeitas a IRC a sujeitos passivos que beneficiam de isenção total ou parcial, abrangendo, neste caso, os rendimentos de capitais, quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período”. 

[2] Para os casos de autoliquidação, cfr, o acórdão do STA de 18-01-2017, Processo n.º 0890/16.