Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 117/2025-T
Data da decisão: 2025-10-06  IRC  
Valor do pedido: € 774.263,40
Tema: IRC | Livre Circulação de Capitais | Fundos de Investimento Não Residentes | Dividendos | Retenção na Fonte.
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SUMÁRIO:

      I.         O artigo 63.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (doravante “TFUE”), deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (doravante “OIC”) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

     II.         A restrição à livre de circulação de capitais resultante da diferença de tratamento fiscal dos dividendos obtidos por fundos de investimento mobiliário, consoante estes sejam residentes ou não residentes em Portugal para efeitos fiscais, não pode, à luz da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante “TJUE”), considerar-se neutralizada por efeito da aplicação da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (doravante “CDT”) celebrada entre Portugal e os Estados Unidos da América (doravante “EUA”).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Carla Castelo Trindade (árbitro-presidente), Alexandra Gonçalves Marques (relatora) e Sofia Ricardo Borges, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante “CAAD”) para formar o tribunal arbitral coletivo, constituído em 11 de abril de 2025, decidem o seguinte:

I – Relatório

 

1.      A..., fundo de investimento constituído ao abrigo da legislação dos EUA, com o número de identificação fiscal português ..., aqui representado pela sua entidade gestora, B..., sociedade de direito norte-americano, com sede em ..., Boston, ..., EUA, com o número de identificação fiscal norte-americano ... (doravante “Requerente”), veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), para apreciar a legalidade dos atos de retenção na fonte respeitantes a Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante “IRC”), incidentes sobre os dividendos auferidos em território nacional, referentes ao período de maio e setembro de 2022, no valor total de 774.263,40 euros, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda o reembolso do imposto pago e a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.

2.     É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT”).

3.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 07-02-2025.

4.     As Árbitras designadas pelo Conselho Deontológico do CAAD aceitaram as designações.

5.     Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, o Presidente do CAAD informou as Partes dessa designação em 24-03-2025.

6.     Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 11-04-2025.

7.     A AT apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral. 

8.     Por despacho de 22-05-2025 foi decidido dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e as partes notificadas para apresentarem alegações.

9.     A AT apresentou alegações escritas mantendo, no essencial, a posição vertida na Resposta.

10.   O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é competente. 

11.    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas. 

12.   O processo não enferma de nulidades.

 

 

II. Posição das Partes

 

13.   O Requerente alega ser um OIC, com residência, para efeitos fiscais, nos EUA, qualificado para efeitos fiscais, pelo direito norte-americano como Regulated Investment Company.

 

No ano de 2022, tendo o Requerente investido em participações sociais de sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal, recebeu dividendos da sociedade C... SGPS, S.A., no montante total de 5.161.756,03 euros.

 

Esses dividendos auferidos, pelo Requerente, no decurso do ano de 2022 (mais concretamente em maio e setembro de 2022), foram objeto de retenção na fonte de IRC a título definitivo, à taxa liberatória de 15%, ao abrigo do artigo 94.º do Código do IRC e do artigo 10.º da CDT celebrada entre Portugal e os EUA. 

 

O Requerente suportou, assim, a título de IRC, por retenção na fonte, o montante total de 774.263,40 euros.

 

O Requerente sustenta, no entanto, que estes dividendos estariam excluídos de tributação pela legislação portuguesa; mais concretamente, o artigo 22.º, n.º 3 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (de ora em diante “EBF”) excluiria de tributação tais dividendos se os mesmos fossem auferidos por um OIC constituído e a operar de acordo com a legislação nacional.

 

Na perspetiva do Requerente, o tratamento fiscal que resulta da aplicação da legislação nacional, que distingue a tributação dos dividendos auferidos por fundos de investimento consoante a residência fiscal, constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º, do TFUE.

 

E este entendimento encontra-se confirmado pelo TJUE no acórdão AllianzGI-Fonds AEVN, Processo C545/19 de 17.03.2022, bem como pelas decisões arbitrais que vêm sendo proferidas nos processos 528/2019-T, n.º 548/2019-T, entre outras. 

 

O Requerente apresentou reclamação graciosa, no dia 20.05.2024, peticionando o reembolso do montante total de 774.263,40 euros, relativo ao IRC retido incidente sobre os dividendos que lhe foram distribuídos, a qual foi indeferida por despacho de 29.10.2024.

 

Conclui requerendo que se julgue procedente o pedido de pronúncia arbitral e se anulem os atos de retenção na fonte postos em crise (bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa) e, em consequência, se condene a AT a proceder ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

14.   Por seu turno, a AT, Autoridade Tributária, na sua resposta, pugna pela manutenção daqueles atos. Reconhece a AT que o imposto retido na fonte ao Requerente foi-lhe entregue através das guias de retenção na fonte n.ºs ... (2022-05) e ... (2022-09), no montante de 774.263,40 euros, pelo D..., com o número de contribuinte português 980.560.500, na qualidade de substituto tributário.

 

No entanto, a AT questiona, por um lado, que o Requerente seja um OIC que cumpra as condições referidas pela Directiva 2009/65/EC e, por outro lado, que se encontre demonstrado – tanto em sede administrativa (aquando do precedente procedimento de reclamação graciosa), como em sede arbitral – que “a Reclamante não deduziu nos EUA, Estado de residência, o imposto retido na fonte em Portugal”. 

 

Quanto à desconformidade do artigo 22.º, do EBF, com o direito da União Europeia, a AT não aceita a incompatibilidade do regime português com o artigo 63.º do TFUE, porquanto, no seu entender, a “opção legislativa de “aliviar” estes sujeitos passivos da tributação em IRC, é criada uma taxa em sede de Imposto do Selo incidente sobre o ativo global líquido dos OIC”, sendo que “estas entidades estão sujeitas a tributação autónoma nos termos previstos no artigo 88.º do CIRC, conforme estipulado no n.º 8 do artigo 22.º do EBF”. 

 

Ademais, salienta que a AT está vinculada ao princípio da legalidade positiva, não podendo deixar de aplicar as normas legais que a vinculam, nem lhe cabendo “a sindicância das normas no que concerne à sua adequação relativamente ao Direito da União Europeia”.

Conclui pela improcedência do pedido. 

 

II.  Matéria de facto

 

15.   Com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

A)    O Requerente é um OIC constituído ao abrigo da legislação da norte americana, com residência fiscal nos EUA.

B)    É gerido por uma entidade gestora, a B..., cuja sede também se situa nos EUA.

C)    Em 2022, o Requerente era residente, para efeitos fiscais, nos EUA.

D)    Em 2022, o Requerente era um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem estabelecimento estável em território nacional.

E)    Nesse ano, o Requerente era detentor de participações sociais na sociedade C... SGPS S.A., com sede em Portugal.

F)     Em maio e setembro de 2022, o Requerente, na qualidade de acionista daquela sociedade, recebeu dividendos, no montante total de 5.161.756,03 euros.

G)    Estes dividendos recebidos pelo Requerente foram objeto de retenção na fonte, em sede de IRC, a título definitivo, à taxa de 15%, ao abrigo do artigo 94.º, do Código do IRC, e artigo 10.º, da CDT celebrada entre Portugal e os EUA, nos seguintes termos:

Entidade Distribuidora dos Dividendos

N.º de Ações

Dividendos(valor bruto)

Data doPagamento

Retenção na Fonte

Taxa

Imposto

Guia

C… SGPS SA COMMON STOCK EUR1.0

10.329.909

€       2.582.477,25

10/05/2022

15%

€       387.371,59

C… SGPS SA COMMON STOCK EUR1.0

9.920.303

€       2.579.278,78

20/09/2022

15%

€       386.891,82

Total

       774.263,40

 

H)    O importo retido na fonte em resultado do pagamento de dividendos ao Requerente foi entregue à AT pelo D..., com o número de contribuinte (português) 980.560.500.

I)      Nas declarações de rendimentos entregues pelo Requerente, nos EUA, referentes aos períodos em questão nos autos, não foi deduzido, neste país, o imposto retido na fonte em Portugal alusivo aos dividendos que lhe foram pagos nesses períodos.

J)     Em 20 de maio de 2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte do IRC a título definitivo, a qual correu os seus termos sob o n.º ...2024... .

K)    Em 22 de setembro de 2024, o Requerente foi notificado pela AT do projeto de indeferimento da reclamação graciosa.

L)     Em 4 de novembro de 2024, o Requerente foi notificado pela AT da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, com data de 29 de outubro de 2024.

M)   Em 2 de fevereiro de 2025, o Requerente apresentou o pedido de pronuncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

16.   O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

17.   Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante “CPPT”) e 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante “CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

18.   Os factos foram dados como provados com base na análise critica dos documentos juntos pelo Requerente com o pedido de constituição do tribunal arbitral e naqueles que se encontram juntos ao processo administrativo apenso, tendo os mesmos sido apreciados pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação dos factos, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

19.   Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

IV. Matéria de Direito

Da compatibilidade do artigo 22.º, do EBF, com o artigo 63.º, do TFUE

 

20.  Considerando a posição das partes, a questão que é objeto deste processo é a de saber se a legislação portuguesa, ao excluir de tributação os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (artigo 22.º, do EBF) e, por isso, residentes em território nacional, mas sujeitando a retenção na fonte, em IRC, os dividendos distribuídos por essas mesmas sociedades a fundos de investimento ou, se se preferir, a OIC que não tenham sido constituídos, nem operem, de acordo com a legislação nacional e, por isso, não residentes fiscais em Portugal, configura uma restrição à livre circulação de capitais proibida pelo artigo 63.º, do TFUE.

 

21.   In casu, verifica-se – conforme resulta da matéria de facto assente – que o Requerente é um OIC, constituído segundo o direito norte americano, o qual investiu em acções de sociedades com sede em Portugal, em particular da C..., SGPS, S.A..

 

22.   Na perspetiva do Requerente, as normas que constam nos artigos 22.º, n.º 1 e 3, do EBF, são incompatíveis com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º, do TFUE.

 

23.   O artigo 63.º, do TFUE, prevê a livre circulação de pagamentos e capitais que, como é sabido, constitui a quarta liberdade económica europeia, a qual proíbe “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”, sem prejuízo do disposto nos artigos 64.º, 65.º e 66.º, do TFUE. 

 

24.  Quanto ao artigo 65.º, do TFUE, o qual enuncia as restrições admitidas, nelas se incluindo as “disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar onde o seu capital é investido.”

 

25.   As restrições aqui enunciadas têm como limite, nos termos do artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, que essas restrições não sejam “um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º do TFUE.”.

26.  No que respeita à livre circulação de capitais, o já mencionado acórdão do TJUE, proferido em sede de reenvio prejudicial, no processo AllianzGI-Fonds AEVN, Processo C545/19 de 17-03-2022, ECLI:EU:C:2022:193, esclarece quanto à aplicação das medidas proibidas pelo artigo 63.º, do TJUE, o seguinte:

“(...)

36

Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.o, n.o 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016,Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14EU:C:2016:402, n.o 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17EU:C:2020:51, n.o 49 e jurisprudência referida).

 

37

No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

 

38

Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

 

39

Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.o TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

40

Não obstante, segundo o artigo 65.o, n.o 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.o TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

 

41

Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.o, n.o 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.o, n.o 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.o 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.o [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19EU:C:2021:334, n.o 29 e jurisprudência referida].

 

42

O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.o, n.o 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.o, n.o 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19EU:C:2021:334, n.o 30 e jurisprudência referida].”.

27.   Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, o mencionado acórdão conclui que a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações comparáveis (cf. considerando 74):

                                         72

“Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12EU:C:2014:249, n.o 58 e jurisprudência referida).

 

                           73

Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.”.

 

28.  Nos termos da jurisprudência do TJUE, o artigo 63.º, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional do Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

29.  As disposições dos tratados que regem a União Europeia são directa e obrigatoriamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do princípio do primado previsto no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, prevalecendo sobre as normas do direito nacional, razão pela qual se impõe aos tribunais nacionais a recusa da aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo - doravante “STA”- de 01.07.2015, proferido no processo n.º 0188/15).

 

30.  A questão da compatibilidade do artigo 22.º, do EBF, com o disposto no artigo 63.º, do TFUE, foi já apreciada em vários processos, tanto no âmbito da Arbitragem Tributária (cf. decisões proferidas no âmbito dos processos números 382/2021, 206/2024-T, 156/2024-T, 816/2023-T, 983/2023-T), como em sucessivos acórdãos proferidos pelo STA, que se pronunciaram, reiteradamente e de forma uniforme, sobre a questão decidenda – cf. Acórdão de 02-07-2025, Processo n.º 01665/20.2BELRS; Acórdão n.º 7/2024, de 26-02-2024, (Acórdão de 28 de Setembro de 2023, Processo n.º 093/19BALSB); Acórdão de 13-09-2023, Processo n.º 715/18.7BELRS (cuja decisão é subscrita por vários Acórdãos subsequentes, designadamente, de 08-05-2024, Processo n.º 0802/21.4BELRS; de 29/05/2024, Processos n.º 0806/21.7BELRS e n.º 0755/19.9BELRS; de 05-05-2024, Processo n.º 0757/19.5BELRS[1]), não se identificando, até agora, argumentos que permitam quebrar a unanimidade que vem sendo alcançada pelas decisões já proferidas.

 

31.   Nessa jurisprudência firmada decidiu-se que o artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13 de janeiro, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados, é incompatível com a liberdade de circulação de capitais que decorre do artigo 63.º, do TFUE. 

 

32.   Sobre a questão que está em discussão nos autos, salienta-se o já mencionado Acórdão do STA n.º 7/2024, de 26-02-2024, que uniformizou jurisprudência no sentido de que o artigo 22.º, do EBF, é incompatível com o artigo 63.º, do TFUE, conforme sumário que se transcreve[2]:

“I - Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação. 

 

II - O artº. 63.º do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

III - A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.”

 

33.   A circunstância de, neste caso particular, estar-se na presença de um OIC constituído ao abrigo da lei dos EUA (e, portanto, um país terceiro à União Europeia) não altera o entendimento acima expresso.

 

34.Com efeito, o TJUE, de forma consistente (e.g., entre outros, Acórdão X-GmbHProcesso C-135/17, de 26-02-2019), tem expresso que o artigo 63.º, do TFUE, “proíbe, em termos gerais, as restrições aos movimentos de capitais entre os Estados‑Membros e os países terceiros” sendo que “[c]onstituem movimentos de capitais visados por esta disposição, designadamente, os investimentos diretos sob a forma de participação numa empresa através de uma detenção de ações que confira a possibilidade de participar efetivamente na sua gestão e no seu controlo (investimentos ditos «diretos»), assim como a aquisição de títulos no mercado de capitais com a única intenção de realizar uma aplicação financeira, sem pretender influenciar a gestão e o controlo da empresa (investimentos ditos «de carteira»)”. 

 

35.   E mesmo considerando que o TJUE assinala (por exemplo, no acórdão acima mencionado) que os princípios associados às restrições à livre circulação de capitais que vigoram dentro da União Europeia não podem ser inteira e automaticamente transpostas para os movimentos de capitais entre Estados-Membros e aqueles países, não se vislumbra, no presente caso, que as derrogações previstas nos artigos 64.º e 65.º, do TFUE, ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, possam ser aplicáveis a neste processo. 

36.  Importa ainda acrescentar que o recente acórdão do STA de 02-07-2025, Processo n.º 1665/20.2BELRS, cuja decisão é transponível para o caso, reitera o entendimento no sentido de que a restrição à livre de circulação de capitais resultante da diferença de tratamento fiscal dos dividendos obtidos por fundos de investimento mobiliário, ou, se se preferir, OIC, consoante estes sejam residentes ou não residentes em Portugal para efeitos fiscais não pode, à luz da jurisprudência do TJUE, considerar-se neutralizada por efeito da aplicação da CDT celebrada entre Portugal e os EUA. 

 

37.   Atente-se ao seguinte excerto deste acórdão:

Como o Supremo Tribunal Administrativo já teve oportunidade de salientar, para que possa considerar-se ocorrida a neutralização, não basta a previsão de um qualquer método de crédito na convenção, sendo necessária uma neutralização efetiva, isto é, que o sujeito passivo seja efetivamente capaz de imputar toda a retenção sofrida na fonte em imposto a suportar na residência (acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 9/7/2014, no recurso n.º 01435/12).

 

38.  Volvendo ao caso dos autos, não resulta demonstrado que o Requerente tenha deduzido, nos EUA, a título de crédito de imposto, montante correspondente ao imposto retido na fonte em Portugal (não ocorrendo a neutralização efetiva a que o STA se reportava no acórdão acima mencionado).

 

39.  Assim sendo, e sem necessidade de mais considerações, adere o presente Tribunal Arbitral às conclusões da jurisprudência supra mencionada, sob evocação do desiderato uniformizador decorrente do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, razão pela qual se julga procedente o vício de violação do Direito da União Europeia invocado pelo Requerente e, consequentemente se declara que os atos tributários impugnados, de retenção na fonte, em sede de IRC, ocorridos com referência a dividendos pagos ao Requerente em maio e setembro de 2022, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles apresentada, são ilegais por assentarem numa disposição legal cuja aplicação ao caso em apreço deve ser afastada, por constituir uma violação do disposto no artigo 63.º, do TFUE.

 

Da Restituição da quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios

40.  O Requerente pede ainda a condenação da AT no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

41.   Quanto à restituição do imposto indevidamente pago, o Requerente tem direito à sua restituição, conforme decorre do disposto do artigo 100.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária (doravante “LGT”). Acrescenta-se que esse dever de restituição do imposto indevidamente pago acha-se, inevitavelmente, ligado à decisão arbitral que anula os atos de retenção na fonte postos em crise, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT. 

 

42.  Aqui se dispõe que a AT, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo (in casu, o Requerente), fica vinculada a: 

(r)estabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito;”.

 

43.  Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação dos atos tributários, há lugar ao reembolso de imposto indevidamente pago.

 

44.  Quanto ao pagamento de juros, o artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, dispõe o seguinte:

“(...) 

5 - É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”

 

45.  Por seu turno, dispõe o artigo 43.º, da LGT, que:

“1 — São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 — Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar de a liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3 — São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária;

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução. (...)”

 

46.  Tratando-se, in casu, de atos de retenção na fonte referentes a IRC, o erro imputável aos serviços da AT, que vai desencadear a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, opera – quando haja lugar a reclamação graciosa, como é o caso – com o indeferimento pela AT da reclamação administrativa (cf. artigo 43.º, n.º 1, da LGT).

 

47.  Tendo ocorrido retenções na fonte consideradas ilegais, constitui jurisprudência assente do STA, fixada no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, de 29-06-2022, Processo n.º 093/21.7BALSB, o seguinte: 

Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T”.

 

48.  Mais recentemente, o Acórdão proferido no processo n.º 78/22.6BALSB, em 28 de maio de 2025, o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA uniformizou jurisprudência, no seguinte sentido, aqui inteiramente transponível: 

Perante a desaplicação de norma legal com fundamento na sua desconformidade com o Direito da União Europeia, e perante a inerente anulação das retenções na fonte indevidas, por decisão judicial transitada em julgado, a consequente obrigação da AT de reconstituição da situação ex ante impõe, não apenas a restituição dos montantes indevidamente pagos a título de imposto retido, mas também o pagamento de juros indemnizatórios, computados desde a data do indeferimento, expresso ou tácito, do meio impugnatório administrativo intentado contra as retenções na fonte indevidas até à data do processamento da respectiva nota de crédito»”.

 

49.  Considerando que, em 29 de outubro de 2024, a AT indeferiu a reclamação graciosa (cf. ponto L da matéria de facto) que impugnava, por via administrativa, os atos de retenção na fonte em causa nestes autos, há que concluir que há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios contados deste a data do indeferimento, ou seja, 29 de outubro de 2024, até ao processamento da respetiva nota de crédito.

 

50.  Atendendo ao disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, conjugado com o disposto nos artigos 132.º, n.º 3 e 4, da CPPT, bem como a jurisprudência firmada, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, contados desde a data do indeferimento da reclamação graciosa até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

V. Decisão

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a)          Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade e anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC contestados no presente processo, no montante total de 774.263,40 euros relativos ao ano de 2022, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida pelo Requerente.

b)         Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago e condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, contados desde a data do indeferimento da reclamação graciosa até à data de processamento da respetiva nota de crédito.

c)          Condenar a AT no pagamento das custas do processo.

VI. Valor do Processo

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 306.º do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 774.263,40 euros, indicado pelo Requerente, sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VII. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 11.016,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da AT.

Notifique.

Lisboa, 6 de outubro de 2025

 

 

(Carla Castelo Trindade)

 

(Alexandra Gonçalves Marques - Relatora)

 

 

(Sofia Ricardo Borges)

 



[1] Todos disponíveis em www.dgsi.pt

[2] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 7/2024, de 28 de setembro de 2023, no Processo n.º 93/19.7BALSB — Pleno da 2.ª Secção – Publicado em DR a 26 de fevereiro de 2024.