SUMÁRIO: 1 - A questão de saber se o regime vertido no artigo 11.º do Código do ISV é compatível com as exigências do Direito Europeu é de natureza relativa e não absoluta, dependendo da avaliação que se faça entre o valor de ISV cobrado aos veículos usados importados de outros Estados-membros e o valor do imposto implícito em veículos usados equivalentes nacionais.
2 – Muito embora para efeitos de determinação do preço dos veículos no mercado nacional o n.º 3 do artigo 11.º do CISV apenas refira as publicações especializadas, as plataformas eletrónicas de venda de veículos são suscetíveis de constituir um meio idóneo para a referida prova, desde que ofereçam amostragens significativas, passíveis de verificação, que afastem qualquer suspeita de manipulação da recolha e dos preços de venda.
3 – Ainda que os autos revelem que o ISV liquidado e cobrado em excesso foi superior ao constante do pedido de pronúncia, por força do artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, o Tribunal Arbitral deve dar procedência ao pedido nos precisos termos em que foi formulado, sob pena de nulidade da decisão arbitral,
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
1. I…, com o número fiscal …, residente na …, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente, impugnar a liquidação do Imposto sobre Veículos (ISV) que recaiu sobre a admissão de um veículo usado de sua propriedade proveniente de um país da União Europeia, nos termos e com os fundamentos, que mais adiante se enunciam.
2. O pedido foi apresentado em 18.04.2025 e visa a anulação parcial do ato de liquidação do ISV praticado pelo Diretor da Alfândega do … na admissão de um veículo usado, proveniente de França, requerendo a restituição da quantia cobrada em excesso, no montante de 4916,89 €.
3. Nos termos do disposto no artigo 11.º n.º 1, alínea c) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) constituiu o Tribunal Arbitral Singular em 26.06.2025.
4. Nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, em 27.06.2025, a AT foi notificada, enquanto parte requerida, para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, remeter cópia do processo administrativo e, querendo, requerer a produção de prova adicional.
5. Nessa resposta, em 17.09.2025, a Requerida defendeu-se por impugnação, sustentando a legalidade da liquidação efetuada, tendo concluído pelo pedido de improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por infundado e não provado, tendo juntado o respetivo processo administrativo.
6. Em 19.09.2025 o Tribunal Arbitral notificou as Partes de que dispensava a reunião a que se refere o artigo 18.º, n.º 1 do RJAT, uma vez que os factos estavam estabelecidos e estava em causa apenas uma questão de direito, e concedeu um prazo simultâneo de 10 dias para as Partes, facultativamente, alegarem, tendo sido anunciado como prazo limite para a prolação da Decisão Arbitral a data de 17.10.2025.
7. Em 30.09.2025 e 03.10.2025, respetivamente, a Requerente e a Requerida apresentaram alegações escritas.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
8. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, é materialmente competente e as Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, sendo legítimas, à luz dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
9. O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe resolver nem questões prévias sobre as quais o Tribunal Arbitral se deva pronunciar.
III – DA POSIÇÃO DAS PARTES
10. A REQUERENTE, a fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, no essencial, diz o seguinte:
10.1. Admitiu um veículo ligeiro de passageiros da marca «Mini», modelo UKL/X proveniente de França, matriculado pela primeira vez em 06.06.2012, onde circulou com a matrícula ….
10.2 Para o efeito, apresentou a respetiva Declaração Aduaneira de Veículo (DAV), na Alfândega do …, em 01.06.2024, a que coube o n.º 2024/….
10.3. Em resultado da apresentação da referida declaração, a AT procedeu à liquidação do ISV através do registo 2024/…., de 24.04.2024, no montante de 4818,56 €, correspondendo 999,41 € à componente cilindrada e 3819,16 € à componente ambiental, o qual foi pago pela Requerente, em 31.05.2024.
10.4 No que concerne à parte do ISV incidente sobre a componente ambiental suscita a questão de não ter sido aplicada a mesma redução aplicada à componente cilindrada, de 80%, mas antes uma taxa de redução de 60% resultante da aplicação do escalão de antiguidade do veículo ser o de mais de dez anos a 12 anos.
10.5 Considera que o legislador nacional ao determinar a aplicação de diferentes taxas de dedução a veículos importados de outros países da União Europeia estabeleceu regras de desvalorização da componente ambiental que os discriminam dos demais veículos, porque não se aplica a esta componente a mesma percentagem de desvalorização prevista para a componente «cilindrada», daqui resultando que são ilegais os atos de liquidação de imposto que se fundam no mencionado normativo
Se fossem observadas as normas do direito comunitário, à componente ambiental deveria ter sido deduzido o valor de 80% e não apenas 60% como o foi.
10.6 Referenciando o despacho de indeferimento proferido na reclamação graciosa pelo diretor da alfândega do Freixieiro, de que «para cada caso em concreto, terá de comprovar que o montante cobrado sobre o referido veículo importado excede o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados» alega que a AT ignora a obrigação de respeitar o direito da União Europeia, nomeadamente o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE),
10.7 Em demonstração do alegado, e a partir da utilização de plataformas de venda de veículos usados, … (6), … (4), …. (24), …. (5), … (4), referenciando a marca e modelo, sensivelmente a mesma antiguidade, e referindo o n.º de quilómetros, evidencia um conjunto de preços de venda, com preços variáveis, tanto em função das quilometragens, como de configurações diversas, representando de um modo geral o funcionamento do mercado.
10.8 A partir do tratamento da referida informação conclui como preço de venda razoável de veículo similar do mesmo ano 2012, a importância média de 10 000 €.
Por outro lado, para o preço de venda de um veículo novo no mesmo ano de 2012 indica um valor médio de 39 000 €, com a incorporação de um ISV de 10 553,04 € (3884,61 + 6668,43 €). Afirma que tendo a Requerente sido objeto de uma liquidação de ISV no montante de 4818,56 € é fácil de perceber que tal quantia representa uma percentagem altamente significativa do valor total de mercado de um veículo nacional semelhante.
10.9 Acrescenta que, de acordo com os cálculos constantes da DAV e com base nas tabelas aplicáveis em 2012, o ISV devido, quando novo, seria de 10 553,04 €, resultando, assim evidente que a quantia exigida à Requerente é desproporcional, desfasada da realidade do mercado e contrária à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia. …
10.10 Assinala que utilizando o simulador de ISV disponível no Portal das Finanças, a própria AT aplica de forma uniforme a taxa de depreciação de 80% a ambas as componentes do imposto, cilindrada e ambiental, o que no seu entender significa que a liquidação carece de fundamento como se mostra desconforme com a atual prática da AT, o que põe em causa os princípios da igualdade, da legalidade tributária e da confiança legítima.
10.11 Conclui pelo pedido de condenação da AT no reembolso do montante pago indevidamente e dos respetivos juros indemnizatórios, em valor que calcula.
11.1 Em alegações, a Requerente refere que demonstrou com base em dados objetivos de mercado e mediante a própria fórmula legal do artigo 11.º n.º 3 do CISV que o ISV devido seria substancialmente inferior ao liquidado, tendo para o efeito apresentado exemplos de anúncios públicos relativos a veículos com as mesmas características do seu.
11.2 A circunstância de os anúncios terem sido recolhidos em março de 2025 não invalida, por si só, a pertinência da amostra, tanto mais que o mercado de usados evolui de forma contínua e com variações normalmente graduais, permitindo quando muito ajustes temporais para recuar o valor a 2024. Mesmo que tal fosse feito a conclusão de que o imposto exigido excede o compatível com o mercado nacional de usados não se altera, pelo que se impõe a anulação parcial da liquidação.
11.3 No entender da Requerente, a Requerida não fez a análise material da efetiva carga fiscal aplicada ao veículo importado comparada com veículos similares nacionais, nem rebateu a demonstração feita pela Requerente, consubstanciadas nas provas concretas e nos cálculos objetivos efetuados a partir da fórmula legal prevista no artigo 11.º, n.º 3 do CISV.
11.4 Salienta que não pede que o tribunal substitua à Requerida na «emissão de nova liquidação», e esclarece que o que pede é a anulação parcial do ato e a consequente restituição da quantia certa paga em excesso, a qual resulta de simples operações aritméticas já demonstradas, concluindo a reiterar o já peticionado no pedido de pronúncia arbitral.
12. Por seu turno, a REQUERIDA em resposta ao pedido de pronúncia arbitral, vem dizer, no essencial, o seguinte:
12.1 Em termos de defesa por impugnação, a Requerida junta cópia do processo administrativo referente a uma DAV e o pedido de revisão oficiosa que correu termos na Alfândega do Freixieiro, destacando da respetiva DAV os elementos de informação que determinaram a liquidação e o indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
12.2 Em termos de direito, enuncia as regras de vários Capítulos do CISV que subjazem à instituição do ISV, salientando, designadamente, os artigos 2.º, 3.º 5.º 6.º, n.º 1, 17.º, n.º 1, 20.º n.º 1, alínea a) e 27.º, transcreve os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 11º do CISV, que regulam a tributação da admissão de veículos usados,
12.3 Tendo em conta a demonstração do excesso de tributação e a linha argumentativa da Requerente, salienta que o ato de liquidação foi praticado tendo em conta as normas constantes do CISV, pelo que, tendo as mesmas sido criadas por lei, conforme ao artigo 103.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), e encontrando-se a AT sujeita ao princípio da legalidade tributária prevista no artigo 8.º da Lei Geral Tributária (LGT), não poderia ter atuado doutra maneira, contrariando ou desobedecendo às normas legais pré-existentes sob pena de cometer uma ilegalidade ao deixar de aplicar as taxas que se encontram em vigor à data da introdução no consumo.
12.4 Refere que o ato de liquidação não pode ser considerado ilegal porque foi efetuado de acordo com a disciplina legal aplicável, além de que não existe qualquer decisão que declare com força obrigatória geral o vício de violação de lei comunitária relativamente ao artigo 11.º do CISV, na nova redação dada pelo artigo 391.º, da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro.
12.5 No acórdão de 2 de setembro de 2021, processo C-169/2020 do TJUE estava em causa o facto de o legislador nacional não aplicar qualquer desvalorização à componente ambiental, à semelhança do que se encontrava previsto para a componente cilindrada, mas com a nova redação do artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de setembro, foi ultrapassada essa ilegalidade e a desconformidade com o direito comunitário, além de que tal entendimento não resulta igualmente da recente jurisprudência do TJUE, vertida no acórdão do processo C-169/20.
12.6 Do exposto, a Requerida extrai a conclusão de que a liquidação que foi objeto de pedido de revisão oficiosa, ao ser aplicado o artigo 11.º do CISV foi efetuada em conformidade com a lei nacional e com o direito comunitário, cumprindo, designadamente o disposto nos artigos 77.º da LGT, 110.º e 191.º do TFUE e os artigos 66.º e 103.º da CRP, não existindo a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados Membros, não ocorrendo, por isso, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.
12.7 No sentido da conformidade da redação atual do artigo 11.º do CISV com o direito da União Europeia, no âmbito arbitral pronunciaram-se as decisões proferidas nos processos n.ºs 349/2022-T e 209/2021-T de que transcreve alargada fundamentação.
12.8 O ónus da prova dos factos constitutivos do direito recai sobre quem os invoque e embora a Requerente discorde dos montantes apurados através da liquidação provisória prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, não apresentou qualquer método de avaliação a que tenha recorrido.
12.9 Sobre a conformidade da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, pronunciou-se o TJUE no processo C-399/23 (processo Ósoquim), no sentido de que «O artigo 110.º do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo usado proveniente de outro Estado membro, a desvalorização, da componente ambiental deste imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação á componente ambiental do referido imposto se, e na medida em que, o montante do imposto cobrado sobre o referido veículo importado exceder o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados».
12.10 Na subsequente densificação efetuada pela jurisprudência do STA, vertida no acórdão de 24.04.2024, proferido no processo 25/23.8 BALSB, concluiu-se do seguinte modo:
«A questão de saber se o regime vertido no artigo 11.º do Código do ISV é compatível com as exigências do Direito Europeu é de natureza relativa e não absoluta, dependendo da avaliação que se faça entre o valor de ISV cobrado aos veículos usados importados de outros Estados Membros e o valor do imposto implícito em veículos usados equivalentes nacionais.».
12.11 Considera a Requerida que, na senda do referido acórdão do STA, para se aquilatar da eventual desconformidade do direito nacional com o direito da União Europeia, para fundamentar a ilegalidade da liquidação fundada na violação do artigo 110.º do TFUE, não basta à Requerente alegar simplesmente que as percentagens aplicadas à componente ambiental, são inferiores às que são aplicadas à componente cilindrada, mantendo assim um tratamento desigual entre estas duas componentes do imposto.
12.12 Impende sobre a Requerente a prova de que, de facto, no caso concreto, o imposto incidente sobre o veículo objeto de legalização fiscal em território nacional, é superior ao valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados, conducentes a favorecer a venda dos veículos usados nacionais.
12.13 Considera que a Requerente limita-se no pedido de pronúncia a afirmar as discrepâncias financeiras resultantes da aplicação de percentagens de redução diferenciadas consoante as componentes, devendo salientar-se que os anúncios extraídos de plataformas de venda de veículos usados em Portugal foram recolhidos em março de 2025, pelo que tais valores não espelham a situação em análise, uma vez que já decorreram 11 meses desde a entrada do veículo em território nacional, logo, são indubitavelmente inferiores aos valores de cotação aplicáveis em 2024, pelo que os termos da comparação são enviesados.
12.14. Uma empresa especializada em cotações de veículos – …, assinala para um veículo com as características do da Requerente, um valor de 15 000 €, logo, muito superior ao «valor equilibrado de 10 000 €» avançado pela Requerente, pelo que não se prova no caso em análise que tenha havido excesso de tributação, de que tenha resultado um tratamento desvantajoso para o veículo automóvel usado importado.
12.15 Quanto à informação prestada pelo simulador, a mesma está em sintonia com a alteração legislativa introduzida pela Lei do OE/2025.
12.16 Sobre o pedido de restituição de quantia certa, a Requerida refere que a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação, competindo ao tribunal arbitral a apreciação da legalidade de atos de liquidação de tributos (artigo 2.º, n.º 1), não lhe competindo, por conseguinte, pronunciar-se sobre a restituição de valor/montantes e cálculo do imposto, por conta da anulação, total ou parcial, de atos de liquidação de ISV.
12.17 Finalmente, relativamente ao pedido de juros indemnizatórios, refere a Requerida que o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão de 20.05.2020,processo 0630/18.4BALSB já se pronunciou no sentido de que «formulado elo sujeito passivo o pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação e vindo o ato a ser anulado, ainda que em processo arbitral instaurado após o indeferimento tácito daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano, contado da apresentação do pedido de revisão, até á data do processamento da respetiva nota de rédito, e não desde data do pagamento indevido do imposto …», pelo que tendo o pedido de revisão oficiosa ocorrido em 11.11.2024 e o pedido arbitral em 14.04.2025, não há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios.
13. Em alegações, reiterou toda a defesa apresentada na respetiva resposta ao pedido de pronúncia.
IV - DOS FACTOS
14. Em matéria de facto, relevante para a decisão a proferir, dá este Tribunal Arbitral como provado, face aos elementos constantes dos autos, os seguintes factos:
14.1 A Requerente, em 24.04.2024, por via da apresentação na Alfândega do … da Declaração Aduaneira de Veículo (DAV), a que foi atribuído o n.º 2024/…, procedeu à admissão do veículo ligeiro de passageiros da marca «Mini», Modelo UKL/X, com o n.º de chassis WMW…, de 1995 centímetros cúbicos de cilindrada e 160 g/Km de emissões de dióxido de carbono, com a anterior matrícula definitiva da França, …., atribuída pela primeira vez em 06.06.2012, a que veio a ser atribuída a matrícula nacional ….
14.2 O veículo move-se a gasóleo, foi declarado aos serviços aduaneiros como tendo 151 300 quilómetros no conta quilómetros, e teve um valor de aquisição de 9 000 €.
14.3 O referido veículo foi sujeito à liquidação do ISV n.º 2024/…., em 24.04.2024, no montante de 4818,56 €, correspondendo 999,41 € à componente cilindrada e 3819,16 € à componente ambiental, o qual foi pago pela Requerente, em 31.05.2024.
14.4 O imposto foi formado a partir do cálculo das taxas em vigor para os veículos novos, com uma redução de 80% na componente cilindrada, por força da aplicação de uma tabela escalonada em função dos tempos de uso, até dez anos, aplicável aos veículos de cinco a seis anos de uso, e uma redução de 60% na componente ambiental, por força da aplicação de uma tabela escalonada, em função dos tempos de uso, até quinze anos, aplicável aos veículos com cinco a seis anos de uso.
14.5 Em 11.11.2024, a Requerente apresentou na Alfândega do … um pedido de revisão oficiosa, de devolução da diferença entre o ISV pago por conta da admissão do veículo e o que deveria ter sido pago, tendo em conta a parcela da componente ambiental em relação à qual não foi aplicada a mesma redução de imposto por anos de uso aplicada à componente cilindrada, que foi indeferida por despacho do diretor da referida alfândega de 14.01.2025.
15. Embora mencionado pela Requerente e pela Requerida, não é dado como provado que a data de apresentação da DAV, seja em 01.06.2024.
A introdução no consumo de um veículo, novo ou usado, encerra várias fases, a começar pela apresentação da DAV pelo Requerente, a aceitação por parte dos serviços aduaneiros com a consequente numeração e datação, conferência da informação dela constante e, se estiver em termos, o registo de liquidação e as notificações (automáticas) para pagamento, o pagamento, e o envio da informação por via eletrónica para o IMTT para efeitos de atribuição de matrícula.
Uma DAV que tem data de apresentação em 01.06.2024 não pode ter uma data de liquidação e de pagamento em data anterior, sob pena de invalidar o procedimento, devendo-se esta não confirmação do facto a uma errada configuração do «lay out» do documento por parte da Requerida.
A referência no miolo da DAV, campo 03b, a uma data de aceitação não ultrapassa o referido erro.
16. Os factos foram selecionados a partir da informação disponibilizada pelas Partes, por via da apresentação de cópia da DAV que suportou a introdução no consumo e do respetivo processo administrativo, tendo o Tribunal formado a sua convicção tendo em conta o relevo jurídico que a referida documentação assumiu para a decisão.
V - QUESTÕES A DECIDIR:
17. No entendimento do Tribunal Arbitral as questões a decidir são a seguintes:
- Determinar se a tributação em ISV a que foi sujeito o veículo da Requerente, efetuada nos termos do artigo 11.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CISV, na redação dada pela Lei n.º 75-B/ 2020, de 31 de dezembro, baseada em reduções diferenciadas do imposto residual em função dos tempos de uso, consoante se trate da componente cilindrada ou da componente ambiental, foi efetuada de acordo com o artigo 110.º do TFUE e com a jurisprudência comunitária e nacional decorrente da sua interpretação ou enferma de alguma outra ilegalidade.
- Em caso de procedência do pedido de pronúncia, promover a anulação da liquidação e da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e determinar o reembolso do ISV pago a mais, com os respetivos juros indemnizatórios.
VI – O DIREITO NACIONAL E COMUNITÁRIO
A) A Legislação nacional
18. A admissão do veículo foi sujeita a uma liquidação do ISV prevista no artigo 11.º do CISV, sob a epígrafe «Taxas – veículos usados», na redação dada pela Lei n.º 75-B/ 2020, de 31 de dezembro, o qual preceitua o seguinte:
«1 - O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente:
TABELA D
Componente Cilindrada
Tempo de uso
|
Percentagem de redução
|
Até 1 ano
|
10
|
Mais de 1 a 2 anos
|
20
|
Mais de 2 a 3 anos
|
28
|
Mais de 3 a 4 anos
|
35
|
Mais de 4 a 5 anos
|
43
|
Mais de 5 a 6 anos
|
52
|
Mais de 6 a 7 anos
|
60
|
Mais de 7 a 8 anos
|
65
|
Mais de 8 a 9 anos
|
70
|
Mais de 9 a 10 anos
|
75
|
Mais de 10 anos
|
80
|
Componente ambiental
Tempo de uso
|
Percentagem de redução
|
Até 2 anos
|
10
|
Mais de 2 a 4 anos
|
20
|
Mais de 4 a 6 anos
|
28
|
Mais de 6 a 7 anos
|
35
|
Mais de 7 a 9 anos
|
43
|
Mais de 9 a 10 anos
|
52
|
Mais de 10 a 12 anos
|
60
|
Mais de 12 a 13 anos
|
65
|
Mais de 13 a 14 anos
|
70
|
Mais de 14 a 15 anos
|
75
|
Mais de 15 anos
|
80
|
2 - ...
3 – Sem prejuízo da liquidação provisória efetuada, sempre que o sujeito passivo entenda que o montante do imposto apurado nos termos do n.º 1 excede o imposto calculado por aplicação da fórmula a seguir indicada, pode requerer ao diretor da alfândega, mediante o pagamento prévio de taxa a fixar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, e até ao termo do prazo de pagamento a que se refere o n.º 1 do artigo 27.º, que a mesma seja aplicada à tributação do veículo, tendo em vista a liquidação definitiva do imposto.
ISV = _V _U
VR x Y + (1 - UR) x C
em que
ISV representa o montante do imposto a pagar;
V representa o valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor, apresentadas pelo interessado;
VR é o preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, tal como declarado pelo interessado, considerando-se como tal o veículo da mesma marca, modelo e sistema de propulsão, ou, no caso de este não constar de informação disponível, de veículo similar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez;
Y representa o montante do imposto calculado com base na componente cilindrada, tendo em consideração a tabela e a taxa aplicável ao veículo, vigente no momento da exigibilidade do imposto;
C é o «custo de impacte ambiental», aplicável a veículos sujeitos à tabela A, vigente no momento da exigibilidade do imposto, e cujo valor corresponde à componente ambiental da referida tabela, bem como ao agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º;
U é o número de dias de tempo de uso da viatura;
UR é a média do número de dias de tempo de uso dos veículos contados desde a data da primeira matrícula até à data do cancelamento da matrícula dos veículos em fim de vida abatidos nos três anos civis anteriores à data de apresentação da DAV.
4 - ...»
B) O Direito Comunitário
19. O artigo 110.º do TFUE (antes 90.º e 95.º noutras redações dos Tratados) diz o seguinte:
«1) Nenhum Estado-Membro pode fazer incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares.
2) Além disso, nenhum Estado-Membro pode fazer incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indiretamente outras produções».
C – A Jurisprudência comunitária
20. A questão suscitada pelo pedido de pronúncia arbitral insere-se na problemática da admissão dos veículos usados provenientes de outros Estados Membros que ao longo dos últimos trinta anos tem sido objeto de sucessiva jurisprudência por parte do Tribunal de Justiça, tudo tendo a ver com o facto de a legislação fiscal automóvel não se encontrar harmonizada a nível comunitário e coexistirem regimes fiscais diferenciados e, nalguns casos, até nem existir tributação sobre os veículos
21. O ISV é um imposto interno, com características de imposto de registo ou matrícula, que tem de se conformar com as normas dos Tratados e com a interpretação que delas fazem os órgãos comunitários. Essa conformação impõe-se por força do artigo 8.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa que, em matéria de direito internacional, estabelece que «As disposições dos tratados que regem a UE e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático.».
22. Foi na sequência de uma questão posta a título pré-judicial ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias que, por via do acórdão de 22.02.2001, Processo C-393/98, (Gomes Valente), foi obtida uma clarificação dirigida especificamente à legislação portuguesa. No referido acórdão se referiu que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria necessariamente contrário ao artigo 95.º, contudo, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros fatores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a tabela forfetária refletisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objetivo da tributação dos veículos usados, em termos de que, em nenhum caso, pudessem ser superiores ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.
23. No seguimento da publicação do referido acórdão, o então Imposto Automóvel (IA) passou a contemplar também a opção dos proprietários dos veículos poderem optar por um método, baseado no valor comercial do veículo a determinar, inicialmente por comissões de peritos, mais tarde por mera prova documental, em que o imposto a pagar fosse igual ao IA residual incorporado em veículos da mesma marca, modelo e sistema de propulsão ou, na sua falta, de veículos idênticos ou similares, introduzidos no consumo em Portugal no mesmo ano da data de atribuição da primeira matrícula, em detrimento da pura aplicação da tabela de reduções por anos de uso.
24. Igualmente como reflexo do referido acórdão, conforme o n.º 1 do artigo 34.º da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, pela primeira vez foram escalonados os dez anos de uso para fixar as percentagens de redução, desde os 20% para os veículos com 1 a 2 anos, até aos 80% para os veículos com mais de dez anos, aumentando as percentagens de redução consoante o crescente número de anos de uso.
25. Com a reforma global da tributação automóvel e a aprovação do Código do Imposto sobre Veículos, pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho de 2007, o sistema de tributação que existia no IA, no essencial, manteve-se, não se fazendo qualquer distinção entre os recém-criados sub fatores «Componente Cilindrada» e «Componente Ambiental», este introduzido de forma experimental em 2005.
26. Sucede que o legislador nacional, pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, veio alterar de forma significativa o referido sistema, o que veio originar a intervenção do Tribunal de Justiça, que em acórdão de 16 de junho de 2016, processo C-200/15, o considerou desconforme com o direito da união europeia.
A receção no ordenamento jurídico português da jurisprudência dimanada deste acórdão não se pautou pela melhor conformidade, tendo originado uma nova pronúncia do TJUE (Nona Seção) que em acórdão de 2 de setembro de 2021, processo C-169/20, decidiu que «Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º».
27. Todavia, antes mesmo deste acórdão ter sido proferido e sem conhecer o alcance interpretativo que poderia ter, o legislador nacional já se tinha apressado a alterar o preceito em causa e dado uma nova redação ao artigo 11.º do CISV através da publicação da Lei do Orçamento do Estado para 2021 – Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, em que fixou percentagens de redução por tempos de uso do veículo diferenciadas em função da componente cilindrada (redução máxima de 80% para veículos com mais de dez anos) e da componente ambiental (redução máxima de 80% para veículos com mais de 15 anos), justificando tal facto com razões ambientais resultantes da maior longevidade dos veículos. A conformidade desta legislação com o direito comunitário veio igualmente a ser posta em causa.
28. Chamado novamente a decidir, o TJUE através do Despacho de 6 de fevereiro de 2024, processo C-399/23, da Oitava Secção, acordou que «O artigo 110.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que não tem em conta, para efeitos do cálculo do montante de um imposto sobre veículos, quando é aplicado a um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro, a desvalorização da componente ambiental deste imposto na mesma proporção e nos mesmos termos em que o faz em relação à componente cilindrada do referido imposto se, e na medida em que, o montante do imposto cobrado sobre o referido veículo importado exceder o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados».
VII - FUNDAMENTAÇÃO
29. Importa referir que a diferenciação da percentagem de redução por tempo de uso consoante as componentes cilindrada e ambiental, estratificadas por escalões, que é objeto do pedido de pronúncia arbitral e suportou o ato impugnado já não se encontra em vigor.
Com efeito, a Lei n.º 45-A/2024, de 31 de dezembro, alterou o artigo 11.º do CISV e estabeleceu percentagens de redução ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional segundo escalões de, até 1 ano a mais de 10 anos, nas percentagens de 10% a 80%, precisamente idênticas às que vigoraram apenas para a cilindrada no período subsequente à publicação do acórdão Gomes Valente e, mais tarde, já com a consideração da componente cilindrada e ambiental, com a publicação do CISV.
Esta alteração legislativa teve como causa próxima a prolação do despacho proferido no âmbito do processo C-399/23, de 6 de fevereiro, pelo TJUE.
Isto não invalida a necessidade de o Tribunal Arbitral apreciar o pedido de pronúncia, uma vez que se mostram preenchidos todos os pressupostos para a apreciação da legalidade do ato tributário praticado no domínio da anterior legislação.
30. A Requerente entende que o imposto liquidado excede o valor residual do imposto incorporado no preço dos veículos similares comercializados em Portugal. alegando, para o efeito, a diferenciação de percentagens de redução, consoante as componentes.
Decorre da jurisprudência comunitária que a desvalorização da componente cilindrada e da componente ambiental não podem ser diferentes, se da soma de tal tributação resultar que o montante do imposto cobrado excede o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados.
Isto é, «a contrario», as duas componentes poderão ser diferentes, se do somatório do imposto por elas devido não resultar o cálculo de um valor de imposto superior ao valor de imposto residual dos veículos similares que integram o mercado nacional.
31. Sobre o conceito de similar pronunciou-se o TJUE no acórdão, de 15 de março de 2001, (Comissão/ França) em termos de que «Produtos, como as viaturas, são similares na aceção do artigo 95.º, primeiro parágrafo (atual 110.º) do Tratado, quando as suas propriedades e as necessidades que satisfazem os coloquem numa relação de concorrência, dependendo o grau de concorrência entre dois modelos da medida em que haja satisfação de diversas exigências, nomeadamente em matéria de preço, dimensões, conforto, resultados, consumo, longevidade e fiabilidade. O veículo de referência deve ser idêntico em todos os aspetos ao veículo usado importado, ou seja, deve ser do mesmo modelo e do mesmo tipo que o veículo importado e deve ser similar em todas as suas outras características, podendo eventualmente ser retificado tendo em conta a inflação
32. Está em causa determinar se a tributação em ISV a que foi sujeito o veículo da Requerente, baseada em reduções diferenciadas do imposto residual em função dos tempos de uso, consoante se trate da componente cilindrada ou da componente ambiental, foi efetuada de acordo com o artigo 110.º do TFUE e com a jurisprudência comunitária e nacional, designadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 025/23.8BALSB, de 24.04.2024, que assinala que estão em causa questões factuais e essa factualidade carece de ser provada. Como nele se concluiu «A questão de saber se o regime vertido no artigo 11.º do Código do ISV é compatível com as exigências do Direito Europeu é de natureza relativa e não absoluta, dependendo da avaliação que se faça entre o valor de ISV cobrado aos veículos usados importados de outros Estados-membros e o valor do imposto implícito em veículos usados equivalentes nacionais».
33. A solução mais consentânea e mais aproximada para fazer essa prova consta do n.º 3 do artigo 11.º do CISV implicando, designadamente, por um lado, o apuramento do valor comercial do veículo, tomando por base o valor médio de referência determinado em função da marca, do modelo e respetivo equipamento de série, da idade, do modo de propulsão e da quilometragem média de referência, constante das publicações especializadas do setor e, por outro lado, o apuramento do preço de venda ao público de veículo idêntico no ano da primeira matrícula do veículo a tributar, introduzido no mercado nacional, no mesmo ano em que o veículo a introduzir no consumo foi matriculado pela primeira vez.
Trata-se de uma redação próxima da que foi aditada pela Lei n.º 85/2001 de 4 de agosto, ao artigo 1º. do Decreto-Lei n.º 40/93, de 18 de fevereiro, em que o respetivo n.º 12 previa o valor comercial, só que apurado por comissões de peritos em vez do recurso a publicações especializadas.
Entre o preço do veículo novo, que na ocasião incorporou o ISV por inteiro, e o preço do veículo usado é estabelecida uma relação percentual de depreciação do respetivo valor intrínseco, sendo o ISV nele incorporado desvalorizado na mesma proporção.
34. A Requerente elaborou contagens em que concluiu por um pagamento indevido de 1 909,57 euros, baseado nas diferenças percentagens de redução das componentes, tendo em conta que foi aplicada a desvalorização de 80%, à componente cilindrada e 60% à componente ambiental.
35. No setor automóvel existem publicações, algumas de carácter mensal, normalmente gravitando na órbita de associações de automóveis a que se acede por assinatura ou consulta individual que executam um trabalho de divulgação dos preços de mercado dos veículos usados, tanto na perspetiva da compra como no da venda, sendo um meio auxiliar na fixação de preços de referência nas transações dos veículos, numa base de uma utilização normal do veículo na ordem dos quinze mil quilómetros anuais. A Requerida, aliás cita uma, a …, de origem multinacional, mas agindo em território nacional em favor dos interesses dos concessionários das principais marcas de automóveis, que para o caso do veículo da Requerente lhe atribuiu um valor de 15 000 euros, valor que o Tribunal Arbitral não pode confirmar, uma vez que não foi junto documento ou extrato probatório.
36. A referência às «publicações especializadas no setor» nasceu com a Lei n.º 85/2001, num tempo em que ainda não estava generalizada a venda de veículos por via eletrónica, sendo, na ocasião, o meio mais comum, a sua divulgação nas páginas de anúncios dos jornais diários.
Com a aprovação do CISV esta expressão transitou sem alterações.
Sucede que desde a publicação do CISV, a divulgação assegurada pelas publicações especializadas do setor passou gradualmente a coexistir com a divulgação de preços de venda de automóveis por empresas que se dedicam à própria comercialização de veículos, a partir da utilização de plataformas eletrónicas, os quais reportam práticas comerciais próprias, com base em fatores de avaliação que internaliza o seu próprio lucro.
Trata-se de uma evolução natural, compatível com o progresso tecnológico que nesta área, neste século, se verificou a todos os níveis, e que, pelo facto de a lei não se referir expressamente a estes métodos de fixação do preço dos automóveis usados em território nacional, não deve deixar de ser ponderada e aceite.
No caso dos autos, a Requerente socorreu-se de informação disponível em diversas plataformas eletrónicas que revelam um conjunto de preços de venda de veículos com as mesmas características e do mesmo ano do seu, para propor um valor no mercado nacional.
A informação proveniente de tais plataformas tem de ser vista com uma certa cautela, pois corresponde a um mercado aberto e não está imune a fraudes e manipulações, consoante os objetivos que se prossigam, mas não deve ser excluída.
No caso do presente pedido de pronúncia arbitral é fornecida informação de fontes diversificadas que não se suscita dúvidas quanto à credibilidade das propostas de preços de venda nele insertas e a uma clara aproximação ao que se poderá considerar o «preço de mercado».
37. Tendo em conta a necessidade de densificação, o Tribunal Arbitral constata a apresentação de um conjunto de preços de venda e de quilometragens, reportados a veículos a gasóleo do ano de 2012, obviamente com preços variáveis.
Essa variabilidade, tanto resulta dos quilómetros, como do próprio estado geral mecânico, elétrico e eletrónico e da conservação da carroçaria e cor do veículo, bem como dos equipamentos e acessórios que porventura disponha, caso de jantes, pneus e volantes especiais, aparelhagens, estofos em pele, etc. representando de um modo geral o valor que resulta do funcionamento do mercado. Não pode igualmente ignorar-se o fator do prestígio da marca do veículo em termos de segurança. longevidade, assistência pós-venda e conforto na condução, o qual conduz a que certas marcas e modelos de veículos se depreciem mais rapidamente que outros.
Não se trata da indicação de preços fixos, mas simplesmente de preços de orientação, cujo acolhimento por parte dos destinatários depende das estratégias comerciais de cada agente económico, pelo que não se pode considerar que sejam meios idóneos para restringir ou falsear a concorrência.
38. No caso concreto da Requerente é indicado como atual valor do veículo a importância de 10 000 euros, sendo identificadas cinco fontes de informação, todas com raiz em empresas que se dedicam à comercialização de automóveis.
O valor indicado não corresponde a uma média dos preços apresentados, o qual é superior, e se situa entre os onze e os doze mil euros, mas, de qualquer modo, resulta de uma amostragem bastante ampla e diversificada do preço de mercado deste tipo de veículo, com evidências que não suscitam dúvidas quanto à sua autenticidade, sendo passíveis de verificação.
Há uma divergência na determinação do valor do veículo, que tem reflexos na determinação do valor residual do imposto incorporado no respetivo preço de venda, mas não existem meios fiáveis para determinar o valor exato, que é na prática igual ao que o comprador está disposto a pagar e o vendedor a aceitar.
39. O Tribunal Arbitral não considera que o preço de 10 000 euros indicado pela Requerente seja um preço desajustado, tanto mais que o próprio facto de ter adquirido o veículo por 9000 €, conforme documento anexado de «Certificat de cession d´un vehicule d´ occasion», adicionado ao imposto, o leva a exceder a média de mercado deste tipo de veículos.
Todavia, importa assinalar que um regime de imposto que tivesse por objetivo eliminar uma vantagem concorrencial do veículo usado admitido relativamente ao veículo introduzido em Portugal como novo não poderia deixar de ser considerado contrário ao artigo 110.º do TFUE, pois o que se pede a um regime de tributação automóvel é que garanta a perfeita neutralidade entre produtos nacionais e produtos importados. Por isso, a aceitação de um valor de 10 000 euros não tem por finalidade minimizar os efeitos financeiros de uma compra de automóvel noutro Estado membro que poderá eventualmente ter sido mal avaliada, pois o mercado nacional poderia eventualmente ter proporcionado a aquisição de um veículo similar por menos dinheiro.
A Requerida assinala na resposta que os vários anúncios mostram preços que oscilam entre os 7750 € e os 13 500 € e que a Requerente, da informação das plataformas, destacou o «V – valor de mercado atual – aponta para um valor equilibrado (valor descrito no Volante SIC como preço justo final e tendo em conta os valores dos restantes documentos».
Com a incerteza que rodeia a avaliação de um veículo usado, a qual envolve uma diversidade de fatores, dos quais a própria quilometragem não é menos importante (cerca de treze mil quilómetros anuais não deixa de ser inferior à média geralmente considerada, mas não é uma diferença que se possa considerar anormalmente reduzida, sugerindo uma utilização parcimoniosa em função das necessidades), o Tribunal Arbitral aceita tal valor como valor de mercado de veículo similar.
40. Por outro lado, o valor indicado para um veículo novo com as características do da Requerente comercializado em território nacional no ano da primeira matrícula, em 2012, de 38 000 a 40 000 euros, com a menção declarada de 39 000 euros, embora sem um documento comprovativo, aliás de difícil obtenção dado o veículo já ter doze anos, afigura-se nos igualmente aceitável, dado que muito embora se insira numa gama média de veículos, os seus preços são relativamente mais elevados dentro da gama.
O Tribunal Arbitral confirma o valor de ISV pago por um veículo a gasóleo, similar, no ano de 2012, de 10 553,00 €, conforme resulta da aplicação das taxas constantes da Lei n.º 64-B/2011, de 30.12.2011, em vigor na data da primeira matrícula.
Tendo em conta o peso do ISV num veículo novo, na ordem dos 27% %, transposta tal percentagem para o veículo da Requerente constata-se que o ISV residual correspondente à data da admissão se situa em 2705,89 €, ou seja, o Requerente ao ter efetuado o pagamento de 4816,56 € superou o que era legalmente exigível por força do artigo 110.º do TFUE segundo a interpretação do Tribunal de Justiça, secundada pelo acórdão do STJ, de 24.04.2024.
41. Assim sendo a liquidação do ISV não pode subsistir.
A anulação da liquidação do ISV não se deve ao facto de terem sido apresentadas percentagens de redução diferenciadas em razão dos anos de uso, consoante a componente cilindrada ou ambiental, como a Requerente fundamenta, mas sim no facto de o montante residual de ISV incorporado no veículo usado por si admitido ter sido superior ao que incorpora um veículo similar introduzido em território nacional no ano da primeira matrícula, em 2012.
42. A referência ao simulador de ISV disponível no Portal das Finanças, em que a própria AT aplica de forma uniforme a taxa de depreciação de 80% a ambas as componentes do imposto, cilindrada e ambiental, que no seu entender significa que a liquidação carece de fundamento e é desconforme com a atual prática da AT, pondo em causa os princípios da igualdade, da legalidade tributária e da confiança legítima, é desprovida de fundamento, uma vez que houve alteração do quadro legislativo e a mesma limita-se a dar-lhe cumprimento em consonância com as novas regras legais.
43. Por seu lado, a questão colocada pela Requerida de que a recolha de preços dos veículos usados na plataforma eletrónica foi obtida passados onze meses e meio após a admissão e, por isso, já não reflete os preços atuais de mercado os quais seriam naturalmente superiores, com uma incorporação de ISV residual naturalmente superior, tem pertinência, mas tem de ser inserida na lógica do procedimento, que tem prazos e só admite reações a partir de atos administrativos de indeferimento, os quais não podem ser dados como adquiridos.
As tabelas de reduções por anos de uso no âmbito do ISV não são uniformes, havendo anos em que a redução é maior do que noutros, refletindo em geral uma média de 5 a 6%.
No acórdão do Tribunal de Justiça de 19 de setembro de 2002, processo C-101/00, (Antti Siilin), o Tribunal de Justiça. considerava que o sistema finlandês de depreciação do valor de veículo que do 7.º mês ao 150.º mês de utilização era reduzido de forma linear à razão de uma percentagem, por mês de calendário, igual a 0,5% não permitia garantir, sempre, que o montante de imposto que fixa, não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no referido país.
O Índice Harmonizado de Preços no Consumidor, do Instituto Nacional de Estatística, considerava no ano de 2024 um valor de inflação de 2,7%, ou seja, para os onze meses e meio de diferença na recolha dos preços da amostra, a valores constantes, representaria um valor um pouco acima dos 2,5 %.
O Tribunal Arbitral, tendo em conta a relativa estabilidade económica nacional e as bases tributáveis movediças, não atribui significado especial à diferença temporal da recolha de informação sobre preços de veículos, não se sabendo mesmo as datas em que os veículos foram introduzidos com aqueles preços para venda nas plataformas, que em termos financeiros pode ter representado um prejuízo para o erário público um pouco acima do que normalmente se considera bagatela tributária, para o caso do ISV, o legislador estabelece limites mínimos de 30 € para justificar a recusa de reembolsos, caso dos artigos 28.º, n.º 2 e 29.º n.º 5 do CISV.
44. A liquidação do ISV é um ato tributário com uma natureza complexa, o que conduz a que o Tribunal Arbitral ao apreciar a sua legalidade ou reconhece a sua validade, porque o regime aplicado está conforme com legislação superior, designadamente o ordenamento comunitário, ou o elimina da ordem jurídica.
Sucede, todavia, que a Requerente, embora tenha feito uma prova mais ampla, circunscreveu o pedido de anulação da liquidação unicamente ao diferencial que existe entre os montantes resultantes da redução por anos de uso da componente cilindrada e da redução por anos de uso da componente ambiental, fixando esse diferencial com base no n.º 3 do artigo 11.º do CISV, e, nesse sentido, solicita uma anulação parcial do ISV pago. Trata-se de um valor inferior ao que foi encontrado pelo Tribunal Arbitral, a partir da consideração do valor do veículo em 10 000 euros.
Por força do artigo 615.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, sob pena de nulidade da decisão arbitral, o Tribunal Arbitral dá procedência ao pedido de pronúncia nos precisos termos em que foi formulado relativamente ao ISV, eliminando a liquidação nos estritos limites do pedido.
Caberá aos serviços tributários, promover os atos processuais necessários à consideração da eliminação meramente parcial da liquidação.
45. O artigo 43.º, n.º 1 da LGT em matéria de pagamento indevido da prestação tributária, prevê que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Por seu turno, o artigo 3.º, alínea c) do mesmo artigo, prevê também o pagamento de juros indemnizatórios quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.
Há uma ponderação legislativa entre a reação do contribuinte a uma liquidação que lhe tenha sido efetuada e da qual reaja em termos de reclamação graciosa e impugnação judicial nos prazos legalmente previstos, e aquela reação que ocorre após aqueles prazos terem sido excedidos por via do pedido de revisão oficiosa, em que existe um período de adormecimento ou de inércia da contestação da legalidade da dívida por parte do contribuinte, que o legislador, por falta da diligência necessária, não contemporiza com compensação.
Assim, em sintonia com a interpretação do Pleno em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.05.2020, processo 0630/18.4BALSB «formulado pelo sujeito passivo o pedido de revisão oficiosa da ato de liquidação e vindo a ato a ser anulado, ainda que em processo arbitral instaurado após o indeferimento tácito daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano, contado da apresentação do pedido de revisão, até ao processamento da respetiva nota de crédito, e não desde a data do pagamento indevido do imposto …».
No caso concreto, os mesmos apenas serão devidos se ultrapassada a data de 11.11.2025, ou seja, um ano após a apresentação do pedido de revisão.
VIII – DECISÃO
46. Nestes termos, julga o Tribunal Arbitral Singular o seguinte:
a) Anular o ato de liquidação impugnado, circunscrito exclusivamente ao montante solicitado no pedido de pronúncia pela Requerente, e o consequente despacho de indeferimento da revisão oficiosa, em razão da referida liquidação efetuada ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, na redação dada pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, com remissão para o artigo 7.º, n.º 1 do CISV, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de julho, se mostrar desconforme com o direito comunitário, designadamente com o artigo 110.º do TFUE, aplicável por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, e com a jurisprudência comunitária e nacional dele decorrente, em razão de ter ficado provado que o imposto pago excedeu o montante do valor residual do imposto incorporado no valor dos veículos nacionais similares presentes no mercado nacional de veículos usados.
b) Absolver a Requerida do pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas processuais arbitrais.
IX – VALOR
47. Nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA, aplicável por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT, é fixado o valor do processo em 1 909,57 € (mil novecentos e nove euros e cinquenta e sete cêntimos). Muito embora, a Requerente indique um valor de 4818,56 €, o mesmo não é considerado, dado que o valor económico do pedido de pronúncia arbitral se restringe a uma parte da liquidação e não à sua totalidade.
X – CUSTAS PROCESSUAIS ARBITRAIS
48. Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, aplicável por remissão do seu artigo 4.º, n.º 1, e em conformidade com o valor económico atribuído ao pedido, as custas arbitrais são fixadas no valor de 306 € (trezentos e seis euros), a pagar pela Requerida.
Notifiquem-se as Partes.
Lisboa, 06 de outubro de 2025.
O Árbitro Singular
António Manuel Melo Gonçalves