Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 128/2025-T
Data da decisão: 2025-10-01  IRS  
Valor do pedido: € 44.718,40
Tema: IRS — Inutilidade superveniente da lide — direito a juros indemnizatórios.
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Sumário:

Sendo um dos deveres em que a Administração fica constituída, por efeito da anulação administrativa do acto, a reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

A. Dinâmica processual

 

  1. A..., NIF..., e B..., NIF..., ambos residentes na..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, (“Requerentes”), apresentaram pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja declarada a ilegalidade do ato de liquidação relativo ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2024...no valor de € 44.718,40, referente ao período tributário de 2021 e, consequentemente, anulado, e efetuado o reembolso correspondente, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
  2. No dia 7 de fevereiro de 2025, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado aos Requerentes e à AT.
  3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  4. Em 27 de março de 2025 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 15 de abril de 20245
  6. Por despacho de 15 de abril de 2025 foi concedido prazo para a Requerida responder, querendo, no prazo legal.
  7. No dia 13 de maio de 2025, a Requerida apresentou requerimento informando os autos do despacho de 7 de maio de 2025, da Subdiretora-Geral da área do Imposto sobre o Rendimento Singular, de revogação do ato em apreciação.
  8. No dia 29 de setembro de 2025 foi proferido despacho para os Requerentes se pronunciarem no sentido de informar se pretendiam prosseguir com o presente PPA.
  9. No dia 30 de setembro de 2025 os Requerentes vieram informar que, não obstante aceitarem a revogação do ato,pretendiam que lhes fosse reconhecido o direito a juros indemnizatórios..
  10. Nesse mesmo dia foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 10 de outubro de 2025.

 

B. Posição das partes

 

            Para fundamentar o seu pedido alegam os Requerentes, em síntese, que residem em Portugal, tendo adquirido em 1999 imóvel sito em Benavente pelo preço de €141.409,20, pagando também a sisa e despesas notariais. Em 2004, os Requerentes procederam à realização de obras de construção no Imóvel, cujo valor total ascendeu a € 458.184,39 .

 Entre 1999 e 2004 realizaram obras de construção no valor de €458.184,39 e, entre 2009 e 2021, suportaram encargos de valorização de €176.705,97. Entre julho de 2009 e julho de 2021, os Requerentes suportaram, ainda, encargos com a valorização do Imóvel, cujo valor total ascendeu a € 176.705,97. Em 30-07-2021 venderam o imóvel por €1.150.000,00. Submeteram a declaração de IRS /2021, tendo  preenchido o quadro 4 do Anexo G . Vieram a ser notificados da liquidação do correspondente IRS, tendo sido apurado um imposto a pagar de € 91.992,48. A AT, não obstante, apresentou projeto de correções dos valores declarados no quadro 4 do Anexo G, tendo desconsiderado 94.472,60€, por os documentos de suporte destas despesas não cumprirem com o disposto no art. 36.º, CIVA, o que veio  a suportar a decisão final de alteração oficiosa dos valores anteriormente declarados pelo Requerentes e consequente emissão de nova liquidação de IRS.

Consequentemente, os Requerentes vieram a ser notificados da liquidação nova de IRS, referente ao ano de 2021, e de juros compensatórios, bem como da demonstração de acerto de contas, com valor a pagar de € 44.718,40, tendo efetuado o respetivo pagamento.

Não se conformando e não aceitando as correções levadas a cabo pela AT, vieram  sustentar o pedido que formulam alegando que o despacho que fundamenta as correções operadas pela AT não contém as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, conforme exigido pelo artigo 77.º, 2, LGT. Sendo assim, a liquidação de IRS iem causa deve ser considerada ilegal, por enfermar de vícios determinativos da sua ilegalidade e, por consequência, anulável,

nos termos do art. 163.º, CPA.

Além disso, em sede de IRS, inexiste qualquer remissão para os requisitos previstos no Código do IVA para as faturas, podendo as despesas ser demonstradas por qualquer meio de prova.

Pedem ainda juros indemnizatórios, por ocorrer erro sobre os fundamentos de facto ou de direito num ato de liquidação de um tributo imputável aos serviços reconhecido em processo de reclamação graciosa, impugnação judicial ou processo arbitral e do qual resulte o pagamento do tributo ou de outra dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

            Por estas razões, deve a Requerida anular a liquidação em causa, por duplicação de coleta.

            Notificada por despacho arbitral de 27 de março de 2025 , nos termos e para os efeitos previstos no art. 17.º, RJAT, a AT apresentou, em 13 de maio de 2025, requerimento juntando cópia do Despacho da Senhora Subdiretora-Geral da DG- IRS, datado de 7 de maio de 2025, nos termos do qual se determinou a revogação da liquidação de IRS objeto nos presentes autos, de acordo com o Despacho n.º 6400, de 7 de maio de 202, não tendo, no entanto, sido reconhecido o direito dos Requerentes a juros indemnizatórios, nos termos do art 43.º, LGT, e art. 13.º, 5, RJAT. 

 

II. SANEAMENTO

     O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, todos do RJAT.

     As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

     O processo não enferma de nulidades.

     Não foram invocadas exceções que ao tribunal arbitral compra apreciar e decidir.

 

III FUNDAMENTAÇÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

A) Os Requerentes efetuaram o pagamento integral da liquidação de IRS n.º 2024..., referente ao ano de 2021, e de juros compensatórios, bem como da demonstração de acerto de contas n.º 2024 ... com valor a pagar de € 44.718,40. 

B) O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no CAAD em 5 de fevereiro de 2025, tendo sido aceite dois dias depois.

C) O PPA foi automaticamente notificado à Requerida AT a 112 de fevereiro de 2025.

D) O Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 15 de abril de 2025 tendo sido de imediato notificado às partes.

E) Por despacho da DS IRS n.º..., de 7 de maio de 2025, da Senhora Subdiretora-Geral, foi determinada a revogação da liquidação de IRS objeto nos presentes autos, não tendo sido  sido reconhecido o direito dos Requerentes a juros indemnizatórios.

F) Consta o seguinte na informação de suporte ao referido despacho: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

G) Em 13 de maio de 2025, a AT comunicou aos autos o teor do Despacho da Senhora Subdiretora-Geral da Área antes mencionado.

H) Notificado pelo despacho arbitral de 26 de setembro de 2025 para no prazo de cinco dias, se pronunciar, querendo, sobre o teor da comunicação da Requerida, designadamente informar se pretende prosseguir ou não com o presente PPA, vieram os Requerentes dizer que deve ser julgado totalmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por fundado e provado, e, em consequência, que se digne a Reconhecer o direito dos Requerentes aos juros indemnizatórios, calculados sobre os montantes a restituir aos Requerentes.

A.2. Factos dados como não provados

            Com relevo para a decisão, não foram identificados outros factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

            Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, 1, a), e e), RJAT). 

            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

            Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

B. DE DIREITO

 

             No decurso do processo arbitral, a Requerida exerceu os seus poderes de revogação, procedendo à anulação do ato tributário impugnado, no montante de € 44.718,40, referente a IRS relativo ao ano de 2021. Dessa forma, satisfez-se, nessa proporção, a pretensão anulatória apresentada pela Requerente.

            Notificados para se pronunciarem, os Requerentes vieram pedir a total procedência do pedido de pronúncia arbitral, em particular, deve, assim, “prosseguir o pedido de pronúncia arbitral relativamente aos restantes pedidos dos Requerentes e, muito concretamente, o pedido de pagamento dos juros indemnizatórios.”

            Compulsados os autos, nomeadamente, o PPA, além da anulação da liquidação do ato melhor identificado, os pedidos formulados consistem no de reembolso do montante pago, no de reconhecer o direito a juros indemnizatórios e na condenação da Requerida ao pagamento das custas arbitrais.   

            Vejamos, enquadrados conforme acórdão proferido nos autos do proc. 215/2018-T, CAAD, que seguimos de perto.

 “o Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto que a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação do mundo jurídico de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

Ora, no caso em apreciação, a Autoridade Tributária entendeu que a “liquidação contestada não deve ser mantida por motivo de falta de fundamentação”. Dessa forma, o que foi praticado configura, segundo a terminologia própria, um ato de anulação administrativa, ou seja, um ato que assenta em razões de legalidade administrativa e não em juízos de mera conveniência ou oportunidade.

Assim, o despacho de 2 de outubro de 2018, embora utilize a fórmula verbal que anteriormente era aplicada, deve ser qualificado como um autêntico ato anulatório.

Importa desde já referir, de acordo com o disposto no 168.º, 3, CPA, articulado com o previsto no art. 604.º, 3, e), CPC, que o CPA colocou à disposição da Administração, na pendência do processo, os poderes que permitem a anulação administrativa, quando o acto tenha sido objecto de impugnação jurisdicional. Isso deve  ocorrer até ao encerramento da discussão, o que se verifica, in casu.

Além disso, é relevante ter em consideração que a AT anulou os atos sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica. Dessa forma, veio de encontro ao peticionado pelos Requerentes, satisfazendo a pretensão impugnatória destes. Isso origina a impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância — art. 277.º, e), CPC).

Acontece que os Requerentes, pelo que se depreende das suas palavras, admitem a “revogação” do ato mas contestam a posição da AT quando nega o direito a juros indemnizatórios.

Cumpre salientar, neste contexto, que a anulação administrativa constitui um ato promovido oficiosamente pela Administração e, sendo um ato unilateral, a sua produção de efeitos não carece da concordância ou manifestação de vontade do particular interessado.

De igual modo, o pedido de juros indemnizatórios em sede arbitral só pode ser compreendido como uma pretensão de natureza condenatória, meramente acessória ou consequencial em relação ao pedido principal. Tal circunstância determina que o processo deve prosseguir unicamente para a apreciação incidental da legalidade do ato impugnado, tendo em vista apenas aferir da existência, ou não, do direito ao ressarcimento pretendido a título de juros indemnizatórios.

Com efeito, a anulação administrativa implica a eliminação dos efeitos do ato administrativo anulado (art. 165.º, 2, CPA), acarretando a sua eliminação da ordem jurídica.

Deste modo, ocorre uma situação de impossibilidade superveniente da instância, em virtude da inexistência de objeto processual.

Indo de novo ao citado acórdão prolatado nos autos do proc. 215/2018-T, CAAD: “Acresce que o artigo 172.º do CPA, sob a epígrafe “Consequências da anulação administrativa”, reproduz o disposto no artigo 173.º do CPTA, aplicável à execução de sentenças de anulação de actos administrativos, estipulando um conjunto de deveres de executar relativamente ao acto anulado administrativamente que correspondem aos que igualmente se impõem à Administração se houver lugar a anulação contenciosa no âmbito de um processo impugnatório. O que faz supor que as consequências resultantes da anulação de um acto administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente da anulação resultar de um acto da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório (nestes precisos termos, CARLOS FERNANDES CADILHA, “Implicações do Novo Regime do Código de Procedimento Administrativo no Direito Processual Administrativo”, in Julgar n.º 26, maio-agosto 2015, pág. 31).

Sendo um dos deveres em que a Administração fica constituída, por efeito da anulação administrativa do acto, a reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.”

Posto isto, não podemos deixar de dar integral razão ao peticionado pelos Requerentes.

 

C. DECISÃO 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar: 

a)    Extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quanto  à liquidação de IRS  n.º 2024...no valor de € 44.718,40, referente ao período tributário de 2021, dada a sua anulação administrativa e consequente reembolso;

b)    Condenar a Requerente quanto ao pedido de  pagamento de juros indemnizatórios;

c)    Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

D. Valor do processo

       Fixa-se o valor do processo em € 44.718,40, nos termos do artigo 97.º-A, 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

       Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, 4, RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 01 de outubro de 2025

 

O Árbitro Singular

 

(Ricardo Marques Candeias)