SUMÁRIO:
I. Nos termos do artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, apenas se encontra excluída a concessão de auxílios à atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas quando se verifica alguma das situações aí previstas, nomeadamente:
(i) Quando o montante dos auxílios é fixado com base no preço ou quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou
(ii) Quando o auxílio é subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.
II. Na ausência destas condições, não está vedada a aplicação do RFAI à atividade de transformação de produtos agrícolas, como sucede com a atividade principal do sujeito passivo, pelo que o investimento por ele realizado é elegível para efeitos do benefício fiscal do RFAI.
III. A Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que exclui do âmbito de aplicação do RFAI, os projetos de investimento relacionados com a transformação de produtos agrícolas, não pode ser utilizada para afastar a aplicação do benefício fiscal previsto no RFAI, na medida em que a sua função é apenas definir os CAEs elegíveis e não excluir setores abrangidos pela lei.
IV. O entendimento da AT, no sentido de excluir automaticamente as atividades em apreço com base apenas no CAE, sem a verificação concreta das situações previstas no RGIC, não encontra respaldo nem na legislação nacional, nem na legislação europeia.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Dr. André Sousa Tavares (Vogal e relator) e Prof. Doutor Rui Miguel Zeferino Ferreira (Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral Coletivo no processo identificado em epígrafe, decidem o seguinte:
1 RELATÓRIO
A..., S.A., sociedade anónima, com o número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., ... (“Requerente”), ao abrigo do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, n.º 3, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária”, ou “RJAT”), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, bem como do artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requereu a constituição de Tribunal Arbitral e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“AT” ou “Requerida”), com vista à declaração de ilegalidade e anulação do despacho de indeferimento proferido no âmbito do processo de recurso hierárquico n.º ...2022..., da decisão de indeferimento da reclamação graciosa tramitada sob o n.º ...2021..., e da liquidação de IRC com o n.º 2020..., referente ao exercício de 2017, e respetivos juros compensatórios — compensação n.º 2020.... Mas peticiona a Requerente que seja a AT condenada na restituição das quantias indevidamente pagas, a título de imposto e de juros, no montante total de € 324.679,02 (trezentos e vinte e quatro mil, seiscentos e setenta e nove euros, e dois cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, contados desde a data do pagamento indevido (12.01.2020) até integral reembolso, bem como na integral reconstituição da situação que existiria se os atos tributários objeto da decisão arbitral não tivessem sido praticados.
O pedido de constituição do Tribunal foi entregue no dia 16.01.2025, e aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, tendo sido automaticamente notificado à AT.
A Requerente não nomeou árbitro e, em 07.03.2025, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo os aqui signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes, devidamente notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, pelo que, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 25.03.2025, tendo na mesma data sido dado cumprimento ao disposto no artigo 17.º do RJAT.
Em 08.05.2025, a AT apresentou a resposta ao PPA e juntou aos autos o processo administrativo (“PA”).
Em 12.05.2025, foi proferido despacho arbitral em que foi dispensada a reunião e as alegações escritas previstas no artigo 18.º do RJAT.
2 SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, encontrando-se reunidos os pressupostos previstos nos artigos 10.º e 11.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se devidamente representadas, nos termos da lei.
O processo não enferma de nulidades e as partes não suscitaram exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
3 QUESTÃO DECIDENDA
Na sequência de ação inspetiva ao ano de 2017, e com os fundamentos contidos no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) junto ao PPA como Documento 4, a AT desconsiderou a dedução à coleta do benefício fiscal do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (“RFAI”), no montante de € 307.142,45, promovendo uma correção aritmética ao valor de imposto devido pela Requerente nesse ano e emitindo a liquidação de IRC ora impugnada.
A questão a decidir no caso em apreço consiste em determinar se a atividade exercida pela Requerente de “transformação e comercialização de produtos alimentares à base de carne” se insere nos setores de atividade elegíveis para a concessão do RFAI, à luz da interpretação dos artigos 2.º e 22.º do Código Fiscal do Investimento (“CFI”) e demais legislação aplicável, bem como das exclusões previstas no Regime Geral de Isenção por Categoria (“RGIC”), consagrado no Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, e nas Orientações Relativas aos Auxílios com Finalidade Regional (“OAR”).
4 MATÉRIA DE FACTO
4.1 Factos provados
O Tribunal Arbitral, com base nos documentos juntos pelas partes, considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
A. A Requerente é uma sociedade anónima que tem o seguinte objeto social: “Abate de animais, preparação e conservação de carne e produtos à base de carne. Comércio, importação e exportação, de produtos alimentares. Comércio por grosso de carne e produtos à base de carne” (cf. certidão de registo comercial junta ao PPA como Documento 6).
B. A Requerente encontra-se registada, desde 19.06.2012, com o CAE principal 10130 (fabricação de produtos à base de carne) e com o CAE secundário 10110 (abate de gado - produção de carne) (cf. RIT junto ao PPA como Documento 4).
C. A Requerente possui um matadouro próprio, onde procede ao abate dos suínos adquiridos aos seus fornecedores, realizando depois o trabalho necessário à limpeza e preparação da carne que é vendida, quer na forma de carne fresca (após desmancha da carcaça), quer, em resultado da sua transformação industrial, na forma de produtos de charcutaria à base de carne de porco (paio, bacon, fiambres, presunto, salame, chouriço) (cf. RIT junto ao PPA como Documento 4).
D. A Requerente não exerce qualquer atividade de criação de animais (procedendo à aquisição de animais vivos a empresas que se dedicam à sua criação, ou de peças em carcaça a outros matadouros), nem produz ou comercializa animais vivos (dedicando-se, pelo contrário, à transformação e comercialização de suínos em distintos produtos de carne e enchidos) (cf. alegado nos artigos 15.º e 16.º do PPA, e não contestado pela Requerida).
E. Nos exercícios de 2016 e 2017, a Requerente realizou investimentos relacionados com a modernização das suas instalações e equipamentos afetos à atividade industrial de transformação de produtos alimentares, no montante de € 2.022.298,38 (dois milhões, vinte e dois mil, duzentos e noventa e oito euros, e trinta e oito cêntimos) (cf. Documento 7 junto ao PPA, e RIT junto ao PPA como Documento 4).
F. A Requerente incluiu na sua declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC, do exercício de 2017, a dedução do benefício fiscal relativo ao RFAI no valor de € 307.142.45 (trezentos e sete mil, cento e quarenta e dois euros, e quarenta e cinco cêntimos) (cf. RIT junto ao PPA como Documento 4).
G. A Requerente foi objeto da ação inspetiva credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2019..., de âmbito parcial, respeitante ao IRC de 2017 (cf. RIT junto ao PPA como Documento 4).
H. Na sequência deste procedimento inspetivo, a AT procedeu à correção do benefício fiscal do RFAI, com fundamento na não elegibilidade da atividade principal da Requerente, resultando na emissão da liquidação adicional de IRC n.º 2020 ... – compensação n.º 2020..., no montante de € 307.142,45 (trezentos e sete mil, cento e quarenta e dois euros, e quarenta e cinco cêntimos), acrescido de juros compensatórios (cf. Documento 3 junto ao PPA).
I. A Requerente apresentou reclamação graciosa (processo n.º ...2021...) contra a liquidação adicional, tendo a mesma sido indeferida por despacho da AT (cf. Documento 2 junto ao PPA).
J. A Requerente apresentou recurso hierárquico (processo n.º ...2022...), que veio a ser indeferido pela AT e notificado à Requerente em 22.10.2024 (cf. Documento 1 junto ao PPA).
K. A Requerente procedeu ao pagamento, em 12.01.2021, do valor da liquidação impugnada, no montante total de € 324.679,02 (trezentos e vinte e quatro mil, seiscentos e setenta e nove euros e dois cêntimos), correspondente ao imposto e aos juros compensatórios (cf. Documento 5 junto ao PPA).
L. A Requerente apresentou, em 16.01.2025, pedido de pronúncia arbitral junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).
4.2 Factos não provados
Não existem factos alegados pelas partes que se tenham por não provados e que sejam relevantes para a decisão da causa.
4.3 Fundamentação da decisão sobre a matéria de facto
A convicção deste Tribunal Arbitral sobre os factos dados como provados fundou-se, para além da livre apreciação das posições assumidas pelas partes, no teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente a certidão de registo comercial, declarações fiscais, comprovativos de investimento, decisões administrativas impugnadas, bem como todos os elementos constantes do PA e demais prova documental apresentada.
5 MATÉRIA DE DIREITO
5.1 Posição das partes: sumário
Tal como referido supra, as partes contendem sobre se a atividade exercida pela Requerente de “transformação e comercialização de produtos alimentares à base de carne” se insere nos setores de atividade elegíveis para a concessão do RFAI.
AT Requerida
Tanto no RIT como na resposta ao PPA, a Requerida conclui que a atividade desenvolvida pela Requerente não é elegível para efeitos do RFAI, com base no preceituado nos artigos 1.º e 2.º da Portaria 282/2014 de 30 de dezembro, que remetem para as OAR e o RGIC, que por sua vez excluem do benefício fiscal em causa a transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – que inclui “Carnes e miudezas, comestíveis” (Capítulo 1) e “Preparados de carne, de peixe, de crustáceos e de moluscos” continuam a ser produtos agrícolas” (Capítulo 6). Ora, se setor de atividade da Requerente se encontra excluído do âmbito setorial de aplicação das OAR, encontra-se também excluído para efeitos do n.º 1 do artigo 22.º do CFI.
Salienta a Requerida que o RFAI configura um auxílio com finalidade regional, aprovado nos termos do RGIC, estando, portanto, sujeito aos limites e exclusões previstos na regulamentação europeia aplicável. Com efeito, o artigo 22.º, n.º 1, do CFI determina que o RFAI apenas se aplica aos sujeitos passivos de IRC que exercem atividades nos setores elencados no n.º 2 do artigo 2.º do CFI (definidos de acordo com os códigos CAE a fixar em portaria), “com exceção das atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional (OAR) e do Regulamento Geral de Isenção por Categoria (RGIC)”.
O artigo 1.º da Portaria 282/2014, de 30 de dezembro, estabelece expressamente que, em conformidade com as OAR e com o RGIC, não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto atividades económicas em determinados setores excluídos. Entre esses setores excluídos incluem-se a produção agrícola primária e a transformação e comercialização de produtos agrícolas, enumerados no Anexo I do TFUE. Para este efeito, interessa atentar aos conceitos definidos no direito comunitário, os quais foram transpostos para a ordem interna, em particular, pela Portaria n.º 297/2015, de 21 de setembro. ao regulamentar o CFI, mandata a aplicação das definições constantes do artigo 2.º, do RGIC, para delimitar o âmbito setorial do RFAI e da Portaria 282/2014, de 30 de dezembro. O Artigo 2.º do RGIC define “«Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda”, e como “«Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013.” Ora, o anexo I do Tratado elenca “Carnes e miudezas, comestíveis” e “Preparados de carne, de peixe, de crustáceos e de moluscos”, que assim continuam a ser produtos agrícolas.
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A atividade da Requerente – centrada na transformação de matéria-prima agrícola em produtos alimentares finais – enquadra-se precisamente nessa definição de produtos agrícolas, já que os bens resultantes do processo produtivo continuam a ser produtos agrícolas abrangidos pelo anexo I do TFUE (produtos esses típicos do setor alimentar de origem animal ou vegetal).
Adicionalmente, as OAR de 2014-2020 reforçam que o setor agrícola (incluindo a sua transformação básica) não está coberto pelos auxílios regionais como o RFAI. O ponto 10 das OAR estabelece que a Comissão aplicará os princípios dessas orientações a todos os setores da economia “com exceção da pesca e da aquicultura, da agricultura e dos transportes”, setores estes “sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações”. Em particular, no que tange ao âmbito agrícola, as OAR esclarecem que as orientações de finalidade regional apenas se aplicam à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas. A contrário, infere-se que as OAR não se aplicam e vedam a concessão de auxílios regionais à transformação de produtos agrícolas da qual resulte um produto que continue a ser um produto agrícola (i.e., permaneça incluído no anexo I do TFUE). Esta interpretação é corroborada pela nota de rodapé n.º 11 das próprias OAR, a qual explicita que os auxílios estatais à produção agrícola primária, bem como à transformação e comercialização de produtos agrícolas que resultem em produtos enumerados no anexo I do TFUE estão sujeitos às regras específicas das orientações para auxílios no setor agrícola.
Na verdade, nem o RGIC nem as OAR legitimam a inclusão da atividade da Requerente no RFAI, antes confirmando a sua exclusão. A invocação de eventuais permissões europeias genéricas não aproveita à Requerente, pois o regime nacional – em rigorosa conformidade com as diretivas europeias – sempre excluiu o setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas (quando o resultado permaneça um produto agrícola) do âmbito dos auxílios regionais.
Requerente
Em face das OAR e do RGIC, não se pode dizer que, só em atenção à sua natureza, a atividade de transformação e comercialização de produtos agrícolas, como é o caso da atividade desenvolvida pela Requerente de fabricação de produtos à base de carne e de comércio por grosso de carne e produtos à base de carne, se encontra excluída do âmbito setorial de aplicação das OAR ou do RFAI.
O legislador fiscal, no CFI, apenas remeteu para regulamentação (por portaria) a definição dos códigos CAE correspondentes às atividades económicas listadas no artigo 2.º, n.º 2 do CFI – mas não autorizou essa portaria a excluir atividades inteiras que a lei já havia considerado elegíveis. Por outras palavras, a portaria em apreço deveria identificar os CAE dentro dos setores previstos na lei, não podendo subtrair setores inteiros do âmbito do benefício fiscal, sem base legal de igual hierarquia. Com efeito, uma portaria (ato regulamentar) não pode excluir um setor de atividade que a lei habilitante admitiu como elegível, a menos que tal exclusão decorresse de diploma legal de valor equivalente (lei ou decreto-lei autorizado). Assim sendo, a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, excedeu a sua habilitação legal ao incluir no seu artigo 1.º uma cláusula de exclusão setorial.
5.2 Enquadramento Legislativo
Legislação nacional
No que respeita ao enquadramento legislativo relevante para a questão decidenda, importa referir as disposições aplicáveis do CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro, bem como da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, que define o âmbito setorial do regime:
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O artigo 1.º do CFI (Objeto) esclarece, no seu n.º 2, que “o regime de benefícios fiscais contratuais ao investimento produtivo e o RFAI constituem regimes de auxílios com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento (UE) n.º 651/2014, da Comissão, de 16 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC)”
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O artigo 2.º do CFI (Âmbito objetivo) estabelece, no n.º 1, que “até 31 de dezembro de 2020, podem ser concedidos benefícios fiscais, em regime contratual, com um período de vigência até 10 anos a contar da conclusão do projeto de investimento, aos projetos de investimento (...) cujas aplicações relevantes sejam de montante igual ou superior a € 3 000 000”. O n.º 2 do mesmo artigo dispõe que os projetos de investimento abrangidos devem ter por objeto determinadas atividades económicas, respeitando o âmbito setorial definido pelas OAR 2014-2020 e pelo RGIC. Designadamente, incluem-se setores como “indústria extrativa e indústrias transformadoras” e “atividades agrícolas, aquícolas, piscícolas, agropecuárias e florestais”. Para o efeito, o n.º 3 do artigo 2.º remete para uma portaria conjunta dos Ministérios das Finanças e da Economia a definição dos códigos de atividade económica (CAE) correspondentes a essas atividades –a Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro.
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O artigo 22.º do CFI (Âmbito de aplicação e definições), inserido no Capítulo III relativo ao RFAI, define as condições de elegibilidade e o tipo de investimentos abrangidos pelo regime. Em especial:
o O n.º 1 estipula que “o RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos setores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC”
o O n.º 2 considera como “aplicações relevantes” os investimentos realizados em certos ativos, desde que afetos à exploração da empresa, a saber:
(a) ativos fixos tangíveis adquiridos em estado de novo, com exceção de determinados bens – terrenos (salvo se destinados à exploração de concessões mineiras, águas minerais naturais e de nascente, pedreiras, barreiros e areeiros), edifícios (salvo se forem instalações fabris ou afetos a atividades turísticas, de produção de audiovisual ou administrativas), viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, mobiliário e artigos de conforto ou decoração (salvo equipamento hoteleiro afetos a exploração turística), equipamentos sociais, e outros bens de investimento não afetos à exploração.
(b) ativos intangíveis, constituídos por despesas com transferência de tecnologia (aquisição de direitos de patentes, licenças, «know-how» ou conhecimentos técnicos não protegidos por patente).
o O n.º 3 especifica que, para empresas que não sejam micro, pequenas ou médias (nos termos da Recomendação 2003/361/CE, da Comissão, de 6 de maio de 2003), as aplicações em ativos intangíveis não podem exceder 50% do total das aplicações relevantes.
o O n.º 4 do artigo 22.º estabelece que podem beneficiar dos incentivos fiscais do RFAI os sujeitos passivos de IRC que reúnam cumulativamente várias condições, entre as quais:
§ terem contabilidade organizada segundo a legislação aplicável; não terem o lucro tributável determinado por métodos indiretos;
§ manterem os bens objeto do investimento na empresa e na região por, pelo menos, 3 anos (no caso de micro, pequenas e médias empresas) ou 5 anos (no caso das restantes), ou durante o respetivo período mínimo de vida útil, ou até ao seu abate, desmantelamento, etc., conforme previsto no Código do IRC;
§ não terem dívidas ao Estado e à Segurança Social (ou encontrarem-se essas dívidas devidamente asseguradas);
§ não serem empresas em dificuldade, nos termos da comunicação da Comissão aplicável a auxílios de emergência e reestruturação;
§ efetuarem um investimento que proporcione a criação de postos de trabalho e a sua manutenção até ao final do período mínimo de manutenção dos bens objeto do investimento, nos termos da alínea c).
o O n.º 5 define que “considera-se investimento realizado o correspondente às adições, verificadas em cada período de tributação, de ativos fixos tangíveis e ativos intangíveis e, bem assim, o que, tendo a natureza de ativo fixo tangível e não dizendo respeito a adiantamentos, se traduza em adições aos investimentos em curso”.
o O n.º 6 esclarece que, para efeitos do número anterior, não são consideradas as adições de ativos resultantes de transferências de investimentos em curso transitados de períodos anteriores, exceto se corresponderem a adiantamentos.
o Por fim, o n.º 7 preceitua que, “nas regiões elegíveis para auxílios nos termos da alínea c) do n.º 3 do artigo 107.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE constantes da tabela do artigo 43.º, no caso de empresas que não se enquadrem na categoria das micro, pequenas e médias empresas, (...) apenas podem beneficiar do RFAI os investimentos que respeitem a uma nova atividade económica, ou seja, a um investimento em ativos fixos tangíveis e intangíveis relacionado com a criação de um novo estabelecimento, ou com a diversificação da atividade de um estabelecimento, na condição de a nova atividade não ser a mesma ou semelhante à anteriormente exercida no estabelecimento”.
A Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, mencionada no artigo 2.º, n.º 3, do CFI, veio definir os CAE aplicáveis e explicitar restrições setoriais em conformidade com o enquadramento comunitário. No seu Preâmbulo, a portaria salienta a necessidade de observar as normas da UE em matéria de auxílios estatais, referindo expressamente as Orientações de Auxílios com Finalidade Regional 2014-2020 (JOUE C 209, de 27/07/2013) e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16/06/2014 (RGIC).
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O artigo 1.º (Enquadramento comunitário) da Portaria estabelece que não são elegíveis para benefícios fiscais os projetos de investimento cujas atividades se insiram em setores como o siderúrgico, do carvão, das pescas e aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas abrangidos pelo Anexo I do TFUE, da silvicultura, da construção naval, das fibras sintéticas, dos transportes (e infraestruturas conexas) e da energia (produção, distribuição e infraestruturas).
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Por seu turno, o artigo 2.º (Âmbito setorial) da Portaria determina que as atividades económicas referidas no n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 162/2014 correspondem a códigos da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas, Rev.3 (CAE), indicando, a título de exemplo, que as “indústrias transformadoras” correspondem às divisões 10 a 33.
Legislação da União Europeia
O RGIC estabelece as categorias de auxílios compatíveis com o mercado interno e exonera determinados auxílios da obrigação de notificação (em virtude dos artigos 107.º e 108.º TFUE). O RGIC é aplicável em princípio à maioria dos setores económicos, mas o seu artigo 1.º, n.º 3, alíneas a) a c), exclui expressamente do seu âmbito:
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auxílios ao setor da pesca e aquicultura;
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auxílios à produção agrícola primária;
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auxílios à transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:
(i) sempre que o montante do auxílio seja fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou
(ii) sempre que o auxílio seja subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.
O artigo 13.º, n.º 1, alínea c), do RGIC define o âmbito dos auxílios regionais. Nele, excluem-se genericamente “auxílios com finalidade regional sob a forma de regimes orientados para um número limitado de setores específicos de atividade económica”, mas nomeia expressamente que os regimes de apoio à transformação e comercialização de produtos agrícolas não são considerados orientados para setores específicos.
As OAR 2014-2020 estabelecem as condições de compatibilidade dos auxílios regionais. No ponto 10 da introdução, a Comissão dispõe que as diretrizes se aplicam a todos os setores económicos, “com excepção da pesca e da aquicultura, da agricultura e dos transportes, que estão sujeitos a regras especiais”. Entretanto, clarifica-se que se aplica às operações de transformação e comercialização de produtos agrícolas apenas quando resultem em produtos não agrícolas. Em complemento, a nota de rodapé 11 dessas orientações ressalta que “os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado” e também à silvicultura “estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.
5.3 Apreciação do Tribunal Arbitral
Da leitura conjugada da legislação nacional e comunitária supra referida retira-se que:
(1) O artigo 13.º, n.º 1, alínea c), do RGIC confirma que as atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas podem ser abrangidas por regimes de auxílio regional, desde que não se enquadrem nas seguintes exclusões específicas:
(i) sempre que o montante do auxílio seja fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou
(ii) sempre que o auxílio seja subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido nos produtores primários.
(2) Inversamente, se tais exclusões específicas não se verificarem, o RGIC aplica-se normalmente à atividade, permitindo a concessão do auxílio compatível, nos termos ali estabelecidos.
(3) Para o setor agrícola valem regras especiais (OAR 2014-2020): se uma atividade de transformação produz um bem agrícola (por exemplo, vinho comum ou licoroso, que consta do Anexo I do TFUE), então as OAR e o RGIC só permitem auxílio se as exclusões específicas não se verificarem – caso contrário, a norma da produção agrícola prevalece.
No presente caso, a Requerente dedica-se à fabricação de produtos à base de carne (CAE 10130), ou seja, adquire carne em estado natural e industrialmente transforma-a em produtos de charcutaria. Tal como defendido pela Requerida, a carne e os seus preparados integram os produtos agrícolas enumerados no Anexo I do TFUE (capítulos 2 e 16 da Nomenclatura Combinada). Todavia, e em especial, o artigo 1.º, n.º 3, alínea c) do RGIC só impede auxílios à transformação de produtos agrícolas quando se verifica qualquer das exclusões específicas previstas no artigo 13.º, n.º 1, alínea c), do RGIC, o que não ocorre no presente caso. Assim sendo, conclui-se que, nos termos das normas do Direito da União Europeia, não há proibição genérica de conceder o RFAI à fabricação de produtos à base de carne (CAE 10130).
Note-se que não há motivo para fazer prevalecer a Portaria 282/2014, de 30 de dezembro, com a interpretação dada pela Requerida, sobre o disposto na legislação comunitária em apreço. Embora o artigo 1.º da Portaria mencione a genérica exclusão de auxílios para “transformação de produtos agrícolas”, tal norma é de natureza regulamentar e não pode contrariar as regras de fonte hierarquicamente superiores, como são as constantes do CFI e do RGIC – que, por sua vez, apenas vedaram o benefício fiscal se houver restrição explícita nas OAR ou no RGIC. Neste sentido, veja-se as Decisões Arbitrais proferidas nos processos n.ºs 220/2020-T, 142/2021-T, 169/2021-T, 273/2021-T, 333/2021-T, 187/2022-T, 750/2022-T, 495/2023-T, 232/2024-T, 345/2024-T.
Por último, em consonância com estes fundamentos, remete-se para a jurisprudência arbitral recente no sentido de que a atividade da Requerente de transformar carne em produtos de charcutaria (CAE 10110 e 10130) não está excluída do RFAI: 142/2021-T, 273/2021-T, 333/2021-T, 827/2021-T, 43/2022-T, 187/2022-T, 750/2022-T, 1049/2024-T.
Pelo exposto, o Tribunal Arbitral julga os investimentos da Requerente em apreço como elegíveis para efeitos do benefício fiscal do RFAI nos exercícios em litígio, e determina a declaração de ilegalidade e anulação dos seguintes atos tributários:
1. Liquidação de IRC do exercício de 2017, com o n.º 2020 ..., e respetivos juros compensatórios — compensação n.º 2020 ..., no que diz respeito ao benefício fiscal do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI);
2. Decisões de indeferimento da reclamação graciosa n.º ... 2021 ... e do recurso hierárquico n.º ... 2022 ... .
6 JUROS INDEMNIZATÓRIOS
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária. Em especial, o n.º 1 do identificado artigo estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
No presente caso, não restam dúvidas de que, nos termos acima expostos, ocorreu erro imputável aos serviços de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. Assim sendo, os juros indemnizatórios devem ser contados “desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito”, sendo que o pagamento do valor objeto do presente litígio ocorreu em 12.01.2021.
Em face do exposto, verifica-se que estão preenchidos os pressupostos legais para a condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios à Requerente, nos termos do artigo 43.º da LGT. Os juros devidos serão calculados desde 12.01.2021 (data do pagamento indevido) até à data em que for efetivado o reembolso, na forma e com os critérios legais aplicáveis.
7 DECISÃO
Nestes termos, e com base nos fundamentos de facto e de direito supra enunciados, decide-se julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente. Em consequência, decide-se:
(a) Declarar a ilegalidade e anular a liquidação de IRC referente exercício de 2017, com o n.º 2020... — compensação n.º 2020..., no que diz respeito ao benefício fiscal do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), por não ter sido deduzido o respetivo crédito à coleta, conforme fundamentado supra, bem como os juros compensatórios correspondentes;
(b) Declarar a ilegalidade e anular as decisões de indeferimento da reclamação graciosa n.º ... 2021 ... e do recurso hierárquico n.º ... 2022 ...;
(c) Determinar a restituição à Requerente das quantias indevidamente pagas, no valor de € 324.679,02 (trezentos e vinte e quatro mil, seiscentos e setenta e nove euros, e dois cêntimos), referentes a IRC e a juros compensatórios;
(d) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, desde a data do pagamento indevido (12.01.2021) até ao integral reembolso;
(e) Condenar a Requerida nas custas do processo, em razão do decaimento.
***
VALOR DA CAUSA: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 324.679,02(trezentos e vinte e quatro mil, seiscentos e setenta e nove euros, e dois cêntimos), conforme indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.
CUSTAS: Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00 (cinco mil quinhentos e oito euros), a cargo Requerida em razão do decaimento.
Notifique-se
CAAD, 29 de setembro de 2025
Os Árbitros,
(Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha– Presidente)
(Dr. André Sousa Tavares– Adjunto)
(Prof. Doutor Rui Miguel Zeferino Ferreira – Adjunto)