Sumário:
I – Se o pedido de revisão oficiosa de IRC (autoliquidação) é deduzido após 2 anos e não se ancora em injustiça grave ou duplicação de coleta – o mesmo será indeferido, porque extemporâneo, se não fundado em erro imputável aos serviços.
II – E igual desfecho tem a ação arbitral consequente, ainda que ancorada na presunção do seu indeferimento tácito.
DECISÃO ARBITRAL
O Árbitros Jorge Lopes de Sousa (Presidente), Vítor Braz e Tomás Cantista Tavares (relator), em arbitragem coletiva, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem o seguinte:
I – Relatório
1.A..., LDA., com o número de identificação de pessoa coletiva ... e com sede domicílio fiscal na Rua ..., ..., ...-... ... veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade
do ato tributário de indeferimento tácito do pedido de revisão da liquidação de IRC determinando-se, em consequência, a liquidação da declaração Mod. 22 e de substituição e anulação da liquidação de IRC n.º 2022..., com impacto declarado no valor a pagar de 97 299,78 Euros.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros acima identificados, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de os recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. O Tribunal Arbitral ficou constituído em 11 de junho de 2025.
5. A Requerida apresentou a resposta, por impugnação, e juntou o processo administrativo.
6. Foi prescindida a realização da reunião do art. 18.º do RJAT, bem como as alegações finais, dada a clareza dos argumentos das partes, como expostos nos seus articulados.
7. O tribunal arbitral foi regularmente constituído. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.
A requerente alega, em síntese: Em 2021, alineou um imóvel, por 240 mil euros, que o havia adquirido em 2020, por 75 mil euros – e o Valor Patrimonial Tributário era de 199.092,25€. Por erro, na autoliquidação de IRC de 2021, declarou (e pagou) o IRC com base no custo de aquisição de 75 mil euros. Constatou depois o erro, pois nos termos do art. 64.º, n.º 3, al. b), do CIRC, o custo de aquisição fiscal deveria ser o VPT – e nesse sentido efetuou declaração de substituição e deduziu pedido de revisão oficiosa em 3/9/2024 (fundado em injustiça grave e duplicação de coleta); que não tendo a AT respondido em tempo, presumiu o seu indeferimento e deduziu a presente ação arbitral.
A requerida alega, em síntese: a declaração de substituição foi deduzida fora do prazo e não é sindicável pela arbitragem; o pedido de revisão ofícios sustenta-se em dois argumentos: duplicação de coleta e injustiça grave (art. 78.º, n.º 4 e 6 da LGT); e, no caso, não existe nem uma nem outra situação; logo, o pedido de revisão oficiosa seria improcedente, porque, nos termos do art. 78.º, n.º 1, da LGT, a causa do processo não se reconduz a um erro imputável aos serviços – e igual desfecho deve ter a ação arbitral, por falta de idoneidade do meio processual anterior.
II – Decisão
A. Matéria de facto
A.1. Factos dados como provados com relevância para a decisão.
a) Em 27/11/2020, a requerente adquiriu o seguinte imóvel, pelo preço de 75 mil euros:

b) Em 13/01/2021, a requerente alienou esse imóvel por 240 000 Euros.
c) O VPT do imóvel é de 199.092,25€, seja em 2020, seja em 2021.
d) Na declaração de IRC de 2021 (vulgo Modelo 22), a requerente declarou o IRC (autoliquidação), incluindo essa mais valia imobiliária, com base no custo de aquisição de 75 mil euros.
e) Em 3/9/2024 (mais de 2 anos após apresentação da dita Modelo 22), a requerente formulou pedido de revisão oficiosa em que solicita que o custo de aquisição seja o VPT e não o custo histórico de aquisição, ao amparo do art. 64.º, n.º 3, al. b), do CIRC – com a consequente diminuição do IRC a pagar.
f) No pedido de revisão oficiosa, os factos e o pedido estão claramente identificados – cfr. o teor dos factos a) a e) supra: e reconduz juridicamente esta situação a duplicação de coleta ou injustiça grave (art. 78.º, n.º 4 e 6, da LGT).
g) O pedido de revisão oficiosa não foi respondido no prazo de 4 meses – e perante este silêncio – a requerente apresentou a presente ação arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Não existem.
A.3. Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Os factos pertinentes para o julgamento são escolhidos em função da sua relevância jurídica (art. 596.º do CPC).
E os factos descritos estão provados por documento (não impugnada a sua veracidade) e por acordo entre as partes.
De referir que o tema da declaração de substituição é irrelevante para a decisão da causa. O que importa é o pedido de revisão oficiosa, como acordado pelas partes, que, em geral, é meio idóneo e tempestivo para solicitar a sua pretensão e é passível de sindicância através de arbitragem tributária, contendendo com a legalidade do ato de liquidação. Além disso, a requerente não deu seguimento processual e essa declaração de substituição, nomeadamente intentando ação judicial a sindicar tal situação, nem numa ação própria, nem na presente ação arbitral – não alega que a revisão oficiosa se ancora num indeferimento da declaração de substituição; e, diga-se, tal seria sempre votado ao insucesso por falta de lei habilitante.
B. Do Direito
O objeto do processo está marcado pela argumentação das partes – e no caso também pela resposta da AT na ação arbitral, que corresponde ao primeiro pronunciamento da entidade pública sobre o tema deste processo.
Por regra, o pedido de revisão oficiosa tem o prazo de 4 anos, desde que fundado em erro imputável aos serviços. Melhor dito, o contribuinte pode sinalizar à AT, nesse prazo (se tributo não pago), que a AT tem o dever de repor a legalidade – e tem tal prazo de 4 anos, desde que o tema tenha subjacente um erro imputável aos serviços (art. 78.º, n.º 1, da LGT).
Por outro lado, cessa esse requisito (de erro imputável aos serviços), caso a revisão oficiosa se ancore em injustiça grave ou duplicação de coleta (art. 78.º, n.º 4 e 6, da LGT) e aí, o prazo é respetivamente de 3 e 4 anos. E foi neste enquadramento que o requerente formulou a revisão oficiosa.
Ora, no caso dos autos não existe injustiça grave ou duplicação de coleta (art. 78.º, n.º 4 e 6, da LGT). O pedido da requerente não se reconduz a duplicação de coleta, nem a injustiça grave. O caso consiste simplesmente num erro na autoliquidação, em que o requerente declarou um custo de aquisição (na mais valia realizada) correspondendo ao custo histórico de aquisição e não ao VPT, quando e porque superior. A autoliquidação efetuou-se sob erro de direito, imputável à requerente, que não atendeu ao disposto no art. 64.º, n.º 3, do CIRC que dispõe: o adquirente (a requerente), para cálculo das ulteriores mais valias, adota o VPT do imóvel em causa, quando superior ao custo de aquisição.
Com efeito, só há duplicação de coleta (art. 205.º do CPPT) quando estando pago um tributo por inteiro, se exigir da mesma ou outra pessoa, um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período. No caso dos autos, o facto tributário do precedente vendedor é diverso do relativo ao requerente, como são diversos os períodos temporais.
A injustiça grave e notória só releva se o erro não for imputável a comportamento negligente do contribuinte. (art. 78.º, n.º 4, da LGT). Além disso, “apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional”. No caso, a injustiça não é inequívoca e não existe manifesto exagero ou desproporção. Para além de que este erro de direito é imputável a comportamento negligente do contribuinte, que desconhecendo o teor do art. 64.º, n.º 3, al. b), do CIRC, efetuou declaração de IRC de 2021, com tal erro que lhe é imputável.
Porém, é verdade, por um lado, que o pedido de revisão oficiosa foi factualmente bem formulado – diz-se que a tributação da mais valia tem de incidir sobre um custo de aquisição que é o VPT (e corretamente quantificado) e não o custo real de aquisição. E tal ocorre no contexto de um imposto em autoliquidação (o IRC do requerente).
Assim, a questão é a de saber se acaso se pode aplicar ao caso o disposto no art. 78.º, n.º 1, da LGT; mas tal não é possível, porque o ato de génese (na autoliquidação) não é imputável aos serviços da AT, mas ao requerente. Não há, assim, um erro imputável aos serviços.
O requerente atuou sob erro, por desconhecimento do disposto no art. 64.º, n.º 3, al. b), do CIRC. Não foi induzido ou sugestionado pela AT; seja porque lhe está subjacente uma autoliquidação, seja porque não existem circulares ou qualquer direito circulatório que tenha induzido em erro o requerente. Aliás, nada refere nesse sentido no seu articulado.
O recente Acórdão do STA de 2/10/2024, proc. 01917/21.4BELRS, veio iluminar a decisão do presente caso, no sentido agora preconizado pelo tribunal arbitral, em duplo segmento.
Por um lado, em que a restrição do prazo (para menos de 4 anos) quando o erro não é imputável aos serviços da AT em imposto sob autoliquidação redunda numa diminuição do prazo para o contribuinte fazer valer os seus direitos – mas disso “não resulta qualquer colisão com os princípios da legalidade, da igualdade, da justiça e da proporcionalidade, bem como do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva”.
Por outro lado, que em imposto sob autoliquidação, como o IRC dos presentes autos, só há erro imputável aos serviços se a AT tiver efetuado qualquer declaração positiva de como interpretar e aplicar a norma ao caso concreto – sobre decisão de outra reclamação ou direito circulatório. E nada disso acontece no caso dos autos.
E em conclusão, se o pedido de revisão oficiosa não é meio idóneo para a requerente fazer valer a sua pretensão – então a ação arbitral tem de declarar o mesmo, por falta de preenchimento de um dos requisitos processuais para a decisão material. E, com isso, as demais questões do processo estão prejudicadas, porque irrelevantes.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar:
a) totalmente improcedente o pedido arbitral;
b) mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário impugnado e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido
c) Condenar a requerente no pagamento da totalidade das custas do processo.
Valor da causa
Fixa-se o valor do processo em 97.299,78 Euros, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. Esse valor foi indicado pela requerente e não contestado pela requerida.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Porto, 09 de setembro de 2025
Jorge Lopes de Sousa (Presidente)
Vítor Braz
(com declaração de voto)
Tomás Cantista Tavares (relator),
Declaração de Voto
Atenta a factualidade e a prova, entendo que a questão estruturante ínsita no presente PPA e no resultado das autoliquidações realizadas (atentos os diferentes montantes declarados da matéria tributável), consiste na existência de duplicação (parcial) de coleta, independentemente da qualidade do alegado e do rigoroso enquadramento jurídico por parte da Requerente.
A duplicação de coleta consubstancia, além do mais, fundamento de oposição a execução fiscal, bem como é factualidade de conhecimento oficioso – cfr. al. g) do n.º 1 do art.º 204.º e art.º 175.º do CPPT, respetivamente.
Perante o pagamento em duplicado (parcial ou total) de um tributo “A revisão do acto tributário por motivo de duplicação de colecta pode efectuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos.” – cfr. n.º 6 do art.º 78.º da LGT.
Atenta a factualidade enunciada verifica-se a unicidade do facto tributário; a identidade da natureza do tributo e do período de tempo e o pagamento duplicado (parcial), em resultado de diferentes atos de autoliquidação – cfr. art.º 205.º do CPPT. Ac. STA – 2.ª Secção, 25-10-78, Acs. Douts., n.º 207, pág.391; Ac. STA – 2.ª Secção, 12-07-2006, rec.126/06; Ac. STA. 2.ª Secção, 23-10-2019, rec.492/16.6BELRA.
“A duplicação de colecta pode configurar-se como o equivalente, no domínio do direito fiscal, ao princípio penal da proibição do "non bis in idem", sendo causa de ilegalidade do acto tributário. A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta.” – cfr. Ac. STA, Proc. n.º 0915/11.0BEBRG 01037/12, 08-06-2022.
No contexto da duplicação de coleta, a revisão da matéria tributável é um procedimento administrativo instrumental e necessário através do qual se analisa e retifica o valor sobre o qual um imposto foi calculado.
No caso de duplicação de coleta, a revisão tem como objetivo: confirmar que o mesmo facto tributário foi tributado mais de uma vez, determinar o valor exato do imposto que deveria ter sido pago e anular a cobrança indevida, porquanto o contribuinte apenas deve suportar o encargo fiscal legalmente previsto.
Acresce que reunindo a AT os elementos que lhe permitem conhecer e detetar o erro nas autoliquidações do contribuinte, tem a obrigação de proceder à revisão oficiosa do/s ato/s tributário/s, nos termos do Artigo 78.º da LGT.
No presente contexto, o erro na autoliquidação do contribuinte foi conhecido, em tempo, pela AT, pelo que seria, ainda, suscetível de integrar uma situação de erro imputável aos serviços para fins de revisão oficiosa.
Termos em que se entende ser tempestiva e procedente a pretensão da Requerente e, subsequentemente, as autoliquidações efetuadas deverão ser substituídas por liquidação oficiosa da qual resulte não se verificar uma situação de duplicação de coleta, restituindo-se o pagamento superior ao legalmente devido.
O Árbitro,
Vítor Braz