SUMÁRIO DO ACÓRDÃO QUE SEGUE:
I. A discussão, judicial ou administrativa, pendente ou não, do pedido de inscrição como residente não habitual (RNH), não prejudica ou impede a impugnação direta do ato de liquidação de IRS com fundamento na não aplicação do sobredito regime fiscal (RNH).
II. No domínio do regime fiscal aplicável aos residentes não habituais, a inscrição a que se refere o n.º 10 do artigo 16º do Código do IRS (redação de 2023) assume natureza meramente declarativa e não constitutiva do direito a ser tributado nos termos de tal regime.
III. Em conformidade com o disposto no artigo 16º, nº 8, do CIRS, os requisitos para o contribuinte ser considerado RNH são os seguintes: (i) o sujeito passivo tornar-se residente fiscal em Portugal, nos termos do nº 1 ou nº 2, do artigo 16º, do CIRS e (ii) por referência ao ano da sua inscrição como residente fiscal em Portugal, não o ter sido (residente fiscal) em qualquer um dos cinco anos anteriores.
ACÓRDÃO ARBITRAL
Os árbitros que constituem este Tribunal Arbitral Coletivo, Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. Ricardo Marques Candeias e Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho, todos designados pelo Conselho Deontológico do CAAD, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., com o número de identificação fiscal ... e B..., com o número de identificação fiscal..., casados, ambos residentes na ..., ..., ..., ..., ...-..., Lisboa, doravante denominados conjuntamente por Requerentes, notificados, por ofício datado de 30-9-2024 da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Serviços de IRS, do despacho, proferido, em 25-9-2024, pelo Diretor de Serviço Central (ao abrigo de delegação de competência) que indeferiu o pedido de revisão oficiosa deduzido contra a liquidação de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2019, que prevê um montante global a pagar de € 78.479,50, com limite de pagamento até 31 de agosto de 2020 (cfr. Documentos 1 e 2), vêm formular pedido de pronúncia arbitralcontra o mencionado ato de liquidação de IRS, pedindo “(...) a sua anulação, com substituição por outro ato de liquidação de IRS em que os rendimentos auferidos pelo Requerente A... sejam qualificados e tributados de acordo com o regime especial aplicável aos Residentes Não Habituais (RNH), tudo com as necessárias consequências legais, designadamente, o reembolso do imposto pago indevidamente pelos Requerentes, acrescido dos competentes juros indemnizatórios calculados à taxa legal (...)”
Fundamentam os Requerentes o pedido alegando, no essencial e em síntese:
● Os Requerentes são cidadãos com dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa, tendo decidido, no decurso do ano de 2017, estabelecer a sua residência em Portugal, em resultado da aceitação, por parte do Requerente A..., de uma proposta de contrato de trabalho a celebrar com o Grupo C... (de agora em diante Grupo C...).
● De acordo com os termos do contrato de trabalho por tempo indeterminado que iniciou a sua vigência no dia 1 de Outubro de 2017, o Requerente A... iria desempenhar funções de Líder da Marca D..., cujas funções corresponderiam, em termos genéricos, à responsabilidade pela definição, evolução e respeito pela singularidade da marca e pelos projetos vitais, em conjunto com o global líder e outros líderes de marca (cfr. Documento n.º 3).
● Após a aceitação desta proposta de trabalho e início da sua prestação, os Requerentes estabeleceram a sua residência em Portugal, tendo procedido ao seu registo, no dia 22 de Outubro de 2017, junto da Administração tributária, como residentes fiscais em Portugal.
● Nesta sede, refira-se que o contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado entre o Requerente A... e o Grupo C..., sua entidade empregadora e responsável pelo pagamento do seu salário mensal, prevê que o local da prestação do trabalho seja realizado em França.
● Apesar de os Requerentes se encontrarem a residir e a permanecer fisicamente a maior parte do ano em Portugal, os rendimentos de trabalho dependente auferidos pelo Requerente A... provêm do exercício da sua atividade laboral em território francês.
● Uma vez que, nos cinco anos anteriores a 2017, os Requerentes não residiram em território português – facto que, aliás, pode ser comprovado através de consulta do cadastro de contribuintes –, mas sim, em França, estavam convictos que reuniam os requisitos necessários para, enquanto contribuintes já devidamente registados como residentes fiscais em Portugal, beneficiar do regime especial de Residente Não Habitual (“RNH”).
● Em concreto, os Requerentes tomaram a referida decisão profissional de vir trabalhar e residir em Portugal em linha com aquele que, antecipavam, seria o respetivo impacto fiscal em Portugal, em particular, no que diz respeito à tributação dos rendimentos do trabalho dependente auferidos pelo Requerente A... e enquadráveis na Categoria A do IRS.
● Contudo, ao contrário do que seria expectável, tal não tem vindo a suceder, como fica demonstrado através da liquidação de IRS relativa ao ano de 2019, aqui em causa.
● Pese embora não concordarem com o valor de imposto apurado, em virtude da não aplicação do regime especial de RNH, do qual entendem que estariam a beneficiar, os Requerentes, com o intuito de evitar a instauração de qualquer processo de execução fiscal, procederam ao pagamento da sobredita liquidação, no valor de € 78.479,50 – conforme comprovativo de pagamento que se encontra na posse da Administração tributária, ficando, assim, os Requerentes, nos termos do n.º 2, do artigo 74.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), dispensados de proceder à sua junção nesta sede.
● O Requerente A..., consciente da sua inscrição como simples residente fiscal junto da Administração tributária (ou seja, sem o estatuto especial de RNH) e na impossibilidade de apresentar o pedido de inscrição como RNH através do Portal das Finanças, procedeu à apresentação, no dia 26 de Junho de 2023, de um Requerimento, junto da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, através do qual o aqui Requerente A... requereu a sua inscrição como RNH (cfr. Documento n.º 4).
● Os Requerentes foram notificados, mediante Ofício n.º ..., datado de 19 de Setembro de 2024, da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes, do Despacho de indeferimento proferido pelo Diretor de Serviços de Registo de Contribuintes, que determinou a rejeição do pedido de inscrição como Residente Não Habitual, encontrando-se, a correr, agora, prazo para impugnação daquela Decisão (cfr. Documento n.º 5).
● No dia 28-6-2023 o Requerente formulou um pedido de Revisão Oficiosa contra o ato de liquidação de IRS nº 2020..., relativo ao ano de 2019, com o valor global a pagar de € 78.479,50, objeto mediato do presente pedido de pronúncia arbitral em que, de forma sumária, fundamentam esse pedido alegando que preenchem os pressupostos legais para poderem beneficiar do estatuto de RNH desde a data em que se registaram como residentes fiscais em Portugal, sem prejuízo de não terem procedido à sua inscrição enquanto RNH até 31-3-2018, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 10, do artigo 16º, do Código do IRS (Doc nº 6);
● A Administração Tributária apresentou projeto de indeferimento do pedido de revisão oficiosa no entendimento de que, designadamente, “(...) a causa de pedir em apreço nos presentes autos, centra-se na condição de residente não habitual do autor. Não obstante o contribuinte solicitar a anulação da liquidação vigente, respeitante ao período de tributação de 2019 (...) (…) no caso do regime dos RNH, o artigo 16.º do Código do IRS (CIRS), não prevê um processo de reconhecimento do benefício fiscal em concreto. O que o artigo 16.º do CIRS prevê, é um procedimento de reconhecimento da verificação, em concreto, da existência de dois dos pressupostos legais (ou condições), necessários, para que possa existir a aplicação de algum benefício fiscal no âmbito do regime dos RNH. Quais sejam: (i) que a pessoa singular se tornou fiscalmente residente em território português (TP), e, (ii) que a pessoa em causa não foi residente em TP em qualquer dos cinco anos anteriores. Este procedimento de reconhecimento administrativo é, ele próprio, um dos pressupostos (acessório) dos benefícios fiscais associados ao regime dos RNH, o que significa que este pressuposto tem de se verificar, nos exatos termos previstos na lei, para que a pessoa singular possa usufruir dos diversos benefícios fiscais associados ao regime dos RNH, em qualquer um dos 10 anos a que tenha direito ao regime.”
● Considerou ainda a AT, mediante recurso ao Acórdão prolatado pelo Tribunal Constitucional n.º 718/2017, proferido no âmbito do processo n.º 723/2016, de 15 de Novembro de 2017, onde se entendeu, designadamente que “do regime legal que acaba de expor-se parece, assim, extrair-se com segurança que o ato de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto – isto é, o procedimento tributário comum, antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo.”
● A AT concluiu assim que, “(...)perante a natureza autónoma da impugnação do ato de reconhecimento da residência não habitual, a impropriedade do meio, destinada à discussão da liquidação, é manifesta(...)”
● Por não poderem concordar com o sentido do projeto de Decisão, os Requerentes exerceram, no passado dia 26 de Agosto de 2024 o seu direito de participação na Decisão a proferir na modalidade de Audição Prévia (cfr. Documento n.º 8)
● O projeto de indeferimento foi consolidado ou convolado em indeferimento, notificado aos requerentes pelo ofício datado de 30-10-2024, da Divisão de Justiça Tributária, melhor identificado supra (Cfr citado documento nº 1).
● Entende a AT que os Requerentes não podem ser considerados residentes não habituais, uma vez que considera que a inscrição nessa qualidade, nos termos do n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS, até 31 de março do ano seguinte aquele que se tornaram residentes, é um pressuposto para o válido reconhecimento daquele estatuto e, portanto, que o cumprimento do prazo de inscrição nos termos do n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS é um pressuposto material de aplicabilidade do regime de RNH e assim um requisito para a atribuição do estatuto de RNH.
● Consideram os Requerentes que, ao analisar os pressupostos legais para se ser considerado como RNH, em conformidade com o disposto no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, retira-se que os requisitos para que se possa ser considerado RNH são os seguintes: (i) o sujeito passivo de IRS tornar-se residente fiscal em Portugal, nos termos do n.º 1 ou n.º 2 do artigo 16.º do Código do IRS; (ii) o sujeito passivo de IRS, por referência ao ano da sua inscrição como residente, não ter sido residente fiscal em território português em qualquer um dos cinco anos anteriores.
● Verificadas estas condições, o “(…) residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.” (cfr. n.º 9 do artigo 16.º do Código do IRS), direito este que “(…) depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.” (cfr. n.º 11 do artigo 16.º do Código do IRS)
● Sobre este ponto, salienta-se, desde já, que, na redação original, prévia à Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, todo o Regime dos Residentes Não Habituais encontrava-se regulado no Código Fiscal de Investimento, nos termos do Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro, o qual, no n.º 2 do seu artigo 23.º, dispunha que “[o] sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal, pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI.” (destacado dos Requerentes).
● Contudo, tal redação foi modificada pela Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, passando a estabelecer-se a partir desse momento, no então n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, que “[o] sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”, tendo tal redação permanecido em vigor até à presente data, sem prejuízo de o n.º 7 ter sido renumerado como n.º 9 do artigo 16.º do Código do IRS.
● Confrontando ambas as redações, sempre se terá de concluir que, na primeira, o residente não habitual somente adquire o direito a ser tributado como tal com a inscrição “(…) dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI”, o que sempre poderia dar cobertura à ideia de que o registo poderia, no momento em que vigorou tal redação, ser constitutivo de tal direito.
● Acontece que, mesmo essa redação do n.º 2 do artigo 23.º do Código Fiscal de Investimento já aludia à questão de, previamente à inscrição, se ser considerado residente não habitual, remetendo para a interpretação de que se poderia ser considerado residente não habitual sem estar inscrito enquanto tal, sem prejuízo de não poder ser tributado enquanto tal por falta de registo.
● Todavia, independentemente do entendimento quanto à interpretação do n.º 2 do artigo 23.º do Código Fiscal de Investimento, a Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, passou, sem margem para quaisquer dúvidas de interpretação, a estabelecer, no então n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, uma redação substancialmente diferente, deixando cair a obrigação de inscrição enquanto residente não habitual para se adquirir o direito a ser tributado enquanto tal, para uma formulação em que o direito a ser tributado enquanto residente não habitual ocorre por força do mero registo enquanto residente fiscal, cumprindo, claro, os requisitos materiais para ser considerado residente não habitual, conforme exposto acima.
● Assim, com aquela alteração, o direito a ser tributado como RNH deixou de depender “da inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da DGCI”, para depender, apenas, de acordo com a lei, da “inscrição como residente em território português”.
● Trata-se, indubitavelmente, de uma diferença abissal em termos dogmáticos, pois que, atenta a letra da lei, a atribuição do direito passou a resultar de um ato distinto.
● Se, no primeiro momento, dependia da inscrição como residente não habitual em cadastro, no segundo, esse direito passou a resultar da inscrição como residente em território português.
● Ou seja, verificados os requisitos materiais previstos no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, a atribuição do direito a ser tributado como RNH opera ope legis da inscrição como residente em território português, não dependendo, nos termos da lei, de qualquer ato posterior nem de reconhecimento ou registo pela Administração tributária.
● Portanto, e em conclusão, os únicos requisitos legalmente obrigatórios para se ser considerado RNH são os seguintes: (i) o sujeito passivo de IRS tornar-se residente fiscal em Portugal, nos termos do n.º 1 ou n.º 2 do artigo 16.º do Código do IRS; (ii) o sujeito passivo de IRS, por referência ao ano da sua inscrição como residente, não ter sido residente fiscal em território português em qualquer um dos cinco anos anteriores.
Do RNH enquanto benefício fiscal de reconhecimento automático
● Sendo este um regime fiscal especial, os seus contornos e características enquadram o regime dos residentes não habituais no âmbito do conceito legal de benefício fiscal, constante do artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”) — cfr. nesse sentido Dos Prazeres Lousa, Maria, Algumas considerações sobre o novo regime fiscal dos “Residentes Não Habituais”, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, Volume V, Coimbra Editora, 2011, pp. 687-699; ou ainda Da Palma Borges, Ricardo; Ribeiro De Sousa, Pedro, O Novo Regime Fiscal dos Residentes Não Habituais, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, Volume V, Coimbra Editora, 2011, pp. 709-772.
● Assim, centrando-se a questão decidenda em torno de um benefício fiscal, devem aqui ser chamados à colação as regras e os princípios constantes do EBF.
● De acordo com o disposto no n.º 1 e n.º 2 do artigo 5.º do EBF, os benefícios fiscais distinguem-se, quanto ao tipo de procedimento envolvido na sua atribuição, entre benefícios automáticos e benefícios dependentes de reconhecimento, sendo que os primeiros resultam, directa e imediatamente, da lei e os segundos pressupõem um ou mais actos posteriores de reconhecimento, que podem ter lugar por acto administrativo ou por acordo/contrato — cfr. d’Oliveira Martins, Guilherme Waldemar, Os Benefícios Fiscais: Sistema e Regime, Cadernos IDEFF, n.º 6, 2006, p. 93.
● Relativamente aos benefícios sujeitos a reconhecimento, uma vez reconhecido o benefício, os seus efeitos retroagem à data dos seus pressupostos legais, a não ser quando o legislador tenha disposto diferentemente — cfr. n.º 2 do citado artigo 5.º do EBF.
● Ora, exatamente porque o reconhecimento tem natureza declarativa — e não constitutiva — do direito ao benefício fiscal respetivo, esse mesmo direito deve reportar-se à data da verificação dos respetivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo, salvo quando a lei dispuser de outro modo (cfr. artigo 12.º do EBF).
● Além do mais, e completando o desenho introdutório do regime que regula os benefícios fiscais, na medida em que estejam reunidas as condições objetivas para a sua concessão, o seu reconhecimento só pode ser impedido caso se verifique alguma das situações taxativas, também previstas no n.º 1 e n.º 2 do artigo 13.º do EBF.
● Estabilizados os princípios gerais acima descritos, importa, ainda assim, aprofundar um pouco mais a natureza do acto de reconhecimento.
● No tocante ao reconhecimento propriamente dito, o mesmo, nuns casos, é oficioso, e noutros, dependente de um pressuposto, autónomo, que se traduz num pedido de reconhecimento dirigido à Administração tributária — neste sentido, Xavier, Alberto, Manual de Direito Fiscal, Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, 1974, p. 295 e Sá Gomes, Nuno, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, CTF 165, 1991, pp. 220 a 222.
● Ora, quando os benefícios fiscais operam automaticamente na esfera jurídica do sujeito passivo, isso significa que, verificados objectivamente os respectivos pressupostos, nasce ope lege o direito ao benefício; se, pelo contrário, o benefício decorrer de pedido do interessado à entidade a quem, legalmente, se encontre atribuída a competência para avaliar e decidir da aptidão do benefício, então estaremos perante um benefício dependente de reconhecimento, que terá, em qualquer caso, efeito meramente declarativo — cfr. Sá Gomes, Nuno, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 362, 1991, p. 272.
● Dito isto, cumpre enquadrar o benefício do RNH, quanto ao respectivo reconhecimento.
● Nestes termos, parece claro e imperioso concluir que, apesar da necessidade de solicitação de inscrição no regime, o benefício em causa consiste num benefício automático, visto que, nos termos da lei, o mesmo não depende já de prévio reconhecimento por parte da Administração tributária.
● Com efeito, a qualificação do benefício fiscal em apreço resulta directa e claramente da lei.
● Por um lado, é manifestamente evidente que o direito a ser tributado como RNH constitui-se no momento em que, nos termos do n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, o contribuinte interessado reúne ambas as condições materiais nele previstas: (i) registar-se como residente em Portugal e (ii) não ter sido residente em Portugal em nenhum dos cinco anos anteriores.
● Por outro lado, a natureza automática, ope legis, do benefício em causa resulta do disposto no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que determina que o sujeito passivo tem o ónus de solicitar a sua inscrição como RNH, mas não o dever de requerer qualquer reconhecimento desse benefício.
● De facto, e ao contrário do que se verificava na formulação aprovada pelo Código Fiscal do Investimento — em que o direito a ser tributado como residente não habitual era adquirido com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral das Contribuições e dos Impostos —, na formulação atual, esse direito depende, apenas, da inscrição como residente em território português e de não ter sido residente em Portugal em nenhum dos cinco anos anteriores.
● Não dependendo, portanto, de qualquer prévio reconhecimento formal, por parte da Administração tributária, para que tal direito produza os seus efeitos
● Acrescente-se que a Circular n.º 9/2012, de 3 de Agosto de 2012 (que atualizou a Circular n.º 2/2010, de 6 de Maio da Direção de Serviços de IRS), dispunha o seguinte:
“1. Podem solicitar a inscrição como residentes não habituais no registo de contribuintes os sujeitos passivos que preencham as seguintes condições:
(i)tornarem-se fiscalmente residentes em território português de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do Código do IRS no ano relativamente ao qual pretendam que tenha início a tributação como residentes não habituais; (ii) não serem considerados residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretendam que tenha início a tributação como residentes não habituais; (iii) solicitarem a inscrição como residentes não habituais no ato da inscrição como residentes em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se tornem residentes nesse território”.
● Para efeitos da correta contextualização dos factos, acrescente-se que, à época (ou seja, em 2012) e ao contrário do que atualmente sucede, o pedido de registo como RNH era formulado “em papel”, sendo depois apreciado pela Direção de Serviços de Registo de Contribuinte.
● Entretanto, e na sequência da entrada em vigor do artigo 7.º do Decreto-Lei nº 41/2016, de 1 de Agosto, que alterou a redação do n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS, o pedido de registo passou a ter lugar exclusivamente por via eletrónica, através da funcionalidade denominada “Inscrição como Residente Não Habitual”, disponível no Portal das Finanças, conforme o Ofício-Circulado n.º 90023, emitido em simultâneo com a publicação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto.
● Por sua vez, a Circular n.º 4/2019, relativa ao exercício de atividades de elevado valor acrescentado, segue no sentido da progressiva automatização dos procedimentos burocráticos associados aos RNH, reconhecendo que os procedimentos até então adotados se revelavam excessivamente morosos e não obviavam a necessidade de controlo a posteriori.
● Importa relevar que é a própria Administração tributária que, no ponto 1 daquela Circular, refere − numa corretíssima interpretação das normas jurídicas em causa − que “[a]s normas constantes do n.º 10 do artigo 72.º e do n.º 5 do artigo 81.º, ambas do Código do IRS, consubstanciam medidas excecionais de desagravamento da tributação de caráter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da Autoridade Tributária, conforme determina o artigo 5.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).”.
● Portanto, a própria Administração tributária reconhece, de forma expressa, que os benefícios fiscais inerentes ao regime dos RNH — quer os referentes à tributação das atividades de elevado valor acrescentado previstos no n.º 10 do artigo 72.º do Código do IRS, quer os referentes à tributação dos rendimentos das Categorias B, E, F e G de fonte estrangeira, previstos no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS — decorrem automaticamente da lei e que não estão sujeitos a qualquer tipo de reconhecimento constitutivo.
● Acrescente-se que, atualmente, a inscrição enquanto RNH no Portal das Finanças não é sequer objeto de qualquer instrução ou é sequer solicitado qualquer documento ao requerente do mesmo, sendo somente obrigatório que o requerente preste uma declaração de honra na qual afirma cumprir “os requisitos para ser considerado não residente nos cinco anos anteriores ao ano pretendido para o início do estatuto não habitual”.
● Ou seja, resulta do Portal das Finanças, e do modo como o pedido de inscrição enquanto RNH é apresentado no mesmo, que é a própria Administração tributária que reconhece que o único requisito é a não residência fiscal em Portugal nos 5 anos anteriores e não qualquer outro, não sendo sequer solicitado qualquer documento ou comprovativo da situação para controlo e fiscalização da Administração tributária, bastando tão-somente uma declaração de honra.
● Por não se tratar de um ato administrativo, mas, sim, de um ato de mero expediente, a inscrição como RNH não obedece aos requisitos legais previstos no Código do Procedimento Administrativo, não carecendo de indicação da autoridade que procedeu à inscrição, nem de enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem, nem de fundamentação específica, nem de qualquer assinatura – elementos estes que, corretamente e em linha com o que se vem expondo, não são informados aos sujeitos passivos subsequentemente à sua inscrição como RNH.
● A inscrição como RNH no cadastro dos contribuintes — cfr. Decreto-Lei n.º 14/2013, de 28 de Janeiro — embora, como melhor se demonstrará adiante, relevante para a boa execução da administração dos impostos, terá, apesar dessa utilidade, uma natureza meramente instrumental.
● Em conclusão, o regime do RNH será, assim, (funcionalmente) similar a outros benefícios que, embora de natureza automática, são, por razões de operacionalidade, de publicidade ou outras, sujeitos a inscrição ou a qualquer outra forma de comunicação à Administração tributária ou a outras entidades competentes.
Do registo como RNH enquanto obrigação acessória
● O objeto da relação jurídica tributária corresponde às obrigações dos sujeitos passivos, que se desdobram na obrigação principal e nas obrigações acessórias.
● A obrigação principal consiste no dever de efetuar o pagamento da dívida tributária, conforme resulta do disposto no n.º 1 do artigo 31.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
● As obrigações acessórias, por sua vez, visam possibilitar o apuramento da obrigação de imposto, consistindo, nomeadamente, na apresentação de declarações, na exibição de documentos fiscalmente relevantes e na prestação de informações, como resulta do n.º 2 do artigo 31.º da LGT.
● Nesta conformidade, podem considerar-se como deveres ou atos legalmente exigíveis, atos esses instrumentais ou que emanam das necessidades da Administração tributária e do sistema fiscal, ou seja, estando no quadro de deveres acessórios, estas obrigações legitimam ou completam, autonomamente, a obrigação tributária principal.
● O conteúdo das obrigações acessórias pode variar consoante os diferentes tipos de relações jurídicas e de sujeitos passivos, sendo que, no entanto, todas elas, pela sua natureza, visarão em última linha tornar possível, ou mais eficiente, o apuramento da obrigação de imposto.
● Ora, as obrigações de inscrição em registo (também referidas como deveres especiais de informação), onde se inclui o dever de solicitar a inscrição como RNH em cadastro, correspondem, nesta aceção, a uma das modalidades de obrigações acessórias, a par, por exemplo, do dever de declarar o início, alteração e cessação de atividade — cfr. artigos 112.º do Código do IRS e artigos 31.º a 33.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado —, de proceder à inscrição de prédios na matriz e de proceder à sua atualização — cfr. artigo 13.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis – ou de inscrever heranças indivisas e comunicar deficiências fiscalmente relevantes.
● Pelo que, sendo o direito a ser tributado como RNH atribuído ope legis — verificados os requisitos materiais do regime e a inscrição do sujeito passivo como residente em território português (cfr. n.º 8 e n.º 9 do artigo 16.º do Código do IRS) —, a solicitação da inscrição dessa qualidade em cadastro mais não consiste que um dever acessório do contribuinte, o qual deverá por este ser cumprido de forma a possibilitar ab initio um correto processamento do IRS aplicável.
● A este propósito, e citando António de Sousa Ferreira, “(…) com um sistema fiscal fortemente marcado por um caráter autodeclarativo, tornou-se imperioso comprovar os dados constantes das declarações apresentadas pelos contribuintes e investigar a possível existência de factos tributários omitidos.” — cfr. de Sousa Ferreira, António, Avaliação Indireta da Matéria Tributável pela Administração Tributária, Porto: Faculdade de Direito da Universidade, p. 34 —, comprovação esta que se faz, logo à partida e internamente pela Administração tributária, através do cruzamento dos dados declarados pelos sujeitos passivos com aqueles que constam do respetivo cadastro fiscal e comunicados por outros sujeitos passivos.
● Assim, sendo o IRS um imposto autodeclarado — cfr. artigo 57.º do Código do IRS —, processado automaticamente pela Administração Tributária, é fundamental que os dados constantes do cadastro fiscal do sujeito passivo estejam corretos, de forma a possibilitar uma também correta liquidação (automática) do imposto.
● Havendo sujeitos passivos residentes que são RNH e outros que não o são, é obviamente importantíssimo que aqueles que o sejam tenham essa qualidade registada em cadastro, de forma que, aquando do processamento das respetivas declarações de rendimentos, o sistema informático da Administração tributária possa assumir, sem erros, aquele benefício e proceder à emissão de uma correta liquidação do imposto devido.
● Para que tal se possa verificar, torna-se necessário que a inscrição do RNH em cadastro ocorra antes do prazo para apresentação da declaração Modelo 3 de IRS, ou seja, antes de 1 de Abril do ano seguinte àquele a que respeitam os rendimentos obtidos pelo sujeito passivo — cfr. n.º 1 do artigo 57.º e artigo 60.º do Código do IRS —, ergo, até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que o RNH se torne residente em território português, de forma a permitir que a declaração Modelo 3 referente ao ano de inscrição enquanto residente possa ser liquidada na qualidade de residente não habitual.
● Sendo, no entendimento dos Requerentes, apenas esta a razão de ser do prazo estipulado para o cumprimento do dever em causa (31 de Março do ano seguinte), consagrado no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS.
● Pois caso a inscrição como RNH pudesse ser feita em momento posterior a essa, poderia dar-se o caso de serem submetidas declarações de rendimentos e, no limite, emitidas liquidações de imposto, impossíveis de conciliar com os dados inscritos no cadastro do sujeito passivo, o que levaria o sistema informático da Administração tributária a notificar o contribuinte de supostos erros ou ocorrências que teriam de ser dirimidas em procedimentos autónomos, mormente através de reclamação graciosa, perdendo-se a harmonia, certeza, simplicidade e eficiência que deve pautar o cumprimento das obrigações fiscais.
● Assim, e concluindo-se, como consideram os Requerentes, que a inscrição em cadastro corresponde a um mero dever acessório e de natureza instrumental, novamente resulta que a ausência daquela inscrição não pode determinar o afastamento do direito de vir a ser tributado, nem de ser reconhecido, como tal, nomeadamente promovendo-se a inerente atualização do cadastro fiscal de forma a serem considerados os Requerentes como residentes não habituais.
● E é exatamente neste sentido que vai a jurisprudência arbitral, vertida, entre outros, na Decisão Arbitral proferida a 24 de Setembro de 2021, no âmbito do processo n.º 188/2020-T, cujo sentido da decisão foi seguida na Decisão Arbitral proferida a 15 de Dezembro de 2021, no âmbito do processo n.º 777/2020-T.
● Especificamente, na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 188/2020, entendeu o Tribunal Arbitral que, considerando o disposto no n.º 7 e n.º 8 do artigo 16.º, em vigor à data dos factos em causa no processo (2014 e 2015), “(…) a tributação de acordo com o regime do residente não habitual, depende do preenchimento de dois pressupostos cumulativos:
a) Que se torne fiscalmente residente em território português de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 16.º do Código do IRS no ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual;
b) Que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos 5 anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como residente não habitual.”.
● Deste modo, conclui o Tribunal que “[r]esulta, portanto, que o benefício do regime dos residentes não habituais depende apenas do preenchimento dos requisitos do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, e da inscrição como residente em território português, e não da inscrição como residente não habitual. A inscrição como residente não habitual prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS trata-se de uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito.” (destacado dos Requerentes).
● No caso em concreto, considera o Tribunal Arbitral que “[n]ão obstante, como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.
● Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efetividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.” (destacado dos Requerentes).
● Acrescenta o Tribunal Arbitral que “[e], nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto, não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.” (destacado dos Requerentes)
● Conclui o Tribunal Arbitral, de forma assertiva, que “[d]o exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto.” (destacado dos Requerentes).
● Entendimento que se tem consolidado conforme resulta das Decisões que têm vindo a ser proferidas pelo Tribunal Arbitral, nomeadamente, no âmbito dos processos n.º 705/2022-T, n.º 894/2023-T, n.º 550/2022-T, n.º 57/2023-T, n.º 656/2023-T, n.º 67/2023, n.º 188/2020-T, n.º 777/2020-T, n.º 815/2021-T, n.º 57/2023-T, n.º 581/22-T, n.º 777/2020-T, n.º 319/2022-T, n.º 891/2023-T, n.º 894/2023-T.
● Das quais decorre, sem margem para outras interpretações, a impossibilidade de reputar a inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual como sendo um requisito necessário e constitutivo do direito à aplicação do regime respetivo e dos benefícios fiscais dele emergentes.
● Entendendo, o Tribunal Arbitral, por exemplo, no processo n.º 705/2022-T que “A facti species constitutiva da situação tributária de residente não habitual e dos correspondentes benefícios fiscais em sede de IRS é, portanto, a verificação dos dois pressupostos materiais atinentes à residência fiscal em certo ano em território português e à não residência fiscal pretérita nos cinco anos anteriores nesse território.
● O pedido de inscrição como residente não habitual imposto pelo n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se um dever acessório do contribuinte (art. 31-º, n-º 2 da LGT) que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do beneficio fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos, sendo, porém, da verificação destes requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como residente não habitual.”
● Onde conclui que “(…) a aplicação do regime dos residentes não habituais exige a verificação dos requisitos de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores, mas não depende da inscrição correspondente no cadastro. Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime correspondente.” (destacado dos Requerentes).
● Atenta a vasta jurisprudência sobre a matéria, entendem os Requerentes que não podem, assim, restar quaisquer dúvidas de que a inscrição, no Portal das Finanças, dos residentes não habituais, tem natureza declarativa, pelo que não tem efeitos constitutivos do direito a ser tributado como tal.
● Sendo evidente que o direito a ser tributado como residente não habitual, em cada ano, decorrer automaticamente e ope legis do sujeito passivo ser residente em território português e desde que não tenha sido residente em Portugal nos 5 anos anteriores.
Da ilegalidade da liquidação de IRS
● Conforme já mencionado, nos cinco anos anteriores a 2017, os Requerentes não residiram em território português, tendo, naquele ano, sido registados como residentes fiscais em Portugal.
● Assim, desde então, o Requerente A... preenche os requisitos materiais necessários à sua tributação em Portugal na qualidade de RNH, tal como estes resultam do n.º 8 e n.º 12 do artigo 16.º do Código do IRS, o que significa e implica que: (i) se tornaram fiscalmente residentes em território português, nos termos do já referido n.º 1 e n.º 2 do artigo 16.º do Código do IRS; e, (ii) não foram residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores ao ano da inscrição como residentes neste território.
● Sem prejuízo de, formalmente, não ter o Requerente A... procedido à inscrição na qualidade de RNH, até ao dia 31 de Março de 2018 em conformidade com o disposto no n.º 10 do artigo 16.º do Código de IRS, a verdade é que preenchia os requisitos materiais necessários para ser considerado RNH, e assim ser tributado nessa conformidade.
● Conforme resulta do supra exposto, nos termos da própria lei, o pedido de inscrição em cadastro não constitui um requisito (constitutivo) necessário à tributação do sujeito passivo como residente não habitual, nem prejudica o reconhecimento desse direito pela própria lei, nem a inscrição do mesmo em cadastro.
● Considerando o acima exposto, resulta claro e evidente que:
a) O Requerente A... não foi, nem constavam em cadastro, como residente fiscal em Portugal em qualquer dos cinco anos anteriores àquele em que se tornou residente (2017);
b) em resultado da sua inscrição como residente em Portugal, o Requerente A... passou a constar como contribuinte residente.
● Estão, assim, verificados os dois únicos pressupostos de que o n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS faz depender a qualificação do sujeito passivo como RNH e de que o n.º 9 e o n.º 11 do mesmo artigo fazem depender o direito a ser tributado nessa qualidade.
● Não existindo, por isso, qualquer fundamento legalmente válido que obste ao reconhecimento desse direito, nem à sua inscrição em registo.
● É certo que não desconhece o Requerente A... o dever que a Lei estabelece de “solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território” (cfr. n.º 10 do artigo 16.º do CIRS), nem se nega, igualmente, a relevância daquele dever no procedimento conducente à tributação na qualidade de RNH.
● O que sucede é que o indicado dever não é constitutivo do direito a serem tributados como RNH, razão pela qual não pode o seu incumprimento, ou cumprimento tardio, obstar ao reconhecimento daquele direito, nem à inscrição do mesmo em sede de cadastro fiscal.
● Contextualizando: (i) o regime dos RNH qualifica-se como um benefício fiscal de natureza automática que decorre automaticamente da mera verificação dos pressupostos materiais previstos no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS — i.e. a inscrição como residente fiscal em Portugal e não ter sido residente fiscal em Portugal em qualquer dos 5 anos anteriores; (ii) tal natureza automática decorre não só da letra e da ratio do referido n.º 8 do artigo 16 do Código do IRS, bem como, de forma clara e expressa, da própria letra e ratio do n.º 10 artigo 16.º do Código do IRS, e da evolução legislativa que o regime sofreu a esse respeito;
● É absolutamente relevante a eliminação pelo legislador, em 2012, da norma que determinava que “[o] sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal (...) com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos” — cfr. n.º 2 do artigo 23.º do Código Fiscal de Investimento anterior à Lei n.º 20/2012 –, impondo as mais elementares regras de interpretação das normas jurídicas que sejam retiradas as devidas conclusões dessa eliminação e da sua substituição pelo mero dever de solicitar a inscrição como residente não habitual;
● Ficando clara a natureza automática de todo o regime dos RNH, é fácil concluir que, do atraso pelos Requerentes na solicitação da inscrição no cadastro da Administração tributária, não poderá, em caso algum, sob pena de manifesta ilegalidade, decorrer a negação do benefício fiscal em causa desde o ano em que os Requerentes se tornaram residentes fiscais em Portugal.
● Neste contexto, conforme referido, o Requerente A... auferiu, durante o ano de 2019, rendimentos provenientes do trabalho dependente, nomeadamente salários, ao abrigo do seu contrato de trabalho com o Grupo C..., pelo cargo de Líder da Marca D....
● Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIRS estabelece-se que:
“1 - Consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de:
a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;”.
● Já de acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 18.º do CIRS, considera-se de fonte portuguesa:
“a) Os rendimentos do trabalho dependente decorrentes de atividades nele exercidas, ou quando tais rendimentos sejam devidos por entidades que nele tenham residência, sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento;”.
● Neste ponto importa notar que, nos termos do n.º 4 do artigo 81.º do Código do IRS, aos residentes não habituais em território português, que obtenham no estrangeiro rendimentos da categoria A, deve aplicar-se o método de isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições: (i) Sejam tributados no outro Estado contratante, em conformidade com a convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado, ou (ii) sejam tributados no outro país, território ou região, nos casos em que não exista convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, desde que os rendimentos, pelos critérios previstos no n.º 1 do artigo 18.º do Código do IRS, não sejam de considerar obtidos em território português;
● Ora, apesar de se encontrar a residir em Portugal e com isso permanecer fisicamente a maior parte do tempo neste país, analisado o contrato de trabalho do Requerente A... com o Grupo C..., verifica-se que os rendimentos de trabalho dependente auferidos provêm do exercício da sua atividade em território francês, mantendo aí o seu local habitual de trabalho (i.e., em ..., França).
● Para além disso, resulta, igualmente, daquele contrato, que os rendimentos são pagos pelo Grupo C... sendo nesse país tributados.
● Deste modo, dúvidas não podem subsistir que tais rendimentos deverão ser considerados como de fonte estrangeira, neste caso, obtidos em França.
● Nesta conformidade, importa atentar o disposto na Convenção entre Portugal e a França para evitar a dupla tributação e estabelecer regras de assistência administrativa recíproca em matéria de impostos sobre o rendimento (CDT Portugal – França), de modo a determinar as competências de tributação de cada Estado sobre este rendimento e, bem assim, evitar a dupla tributação internacional.
● Assim, uma vez que o Requerente A..., residente fiscal em Portugal, exerce a sua atividade no Estado da fonte (i.e., em França), dispõe a correspondente CDT que os rendimentos do trabalho dependente auferidos poderão, também, ser tributados naquele Estado da fonte (cfr. segunda parte do n.º 1 do artigo 16.º da CDT Portugal – França).
● Efetivamente, esta competência cumulativa entre Estados é confirmada pelo facto de a entidade pagadora estar localizada no Estado da fonte (i.e., em França).
● Atento o que antecede, reconhecendo-se a aplicação do regime especial dos RNH, ao Requerente A..., como se julga devido e necessário, os rendimentos do trabalho dependente por si auferidos, decorrentes do exercício da sua atividade em território francês, devem ser isentos de tributação em Portugal, uma vez que é competente o Estado da fonte (i.e. França) para tributar tais rendimentos, de acordo com a correspondente CDT, como sucede in casu. (cfr. Documento que se protesta juntar)
● De todo o modo, subsidiariamente, verificando-se que tal tributação efetiva não ocorre no Estado da fonte (França), condição necessária para aplicação da isenção de tributação ao abrigo do regime especial dos RNH, o que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, deverá, igualmente, o Requerente A... beneficiar de uma tributação mais favorável em Portugal, ao abrigo do referido regime especial.
● Assim, na medida em que a atividade exercida pelo Requerente A..., enquanto líder da Marca D..., está enquadrada como uma das atividades de elevado valor acrescentado, constantes da lista da Portaria n.º 12/2010, de 17 de Janeiro (em vigor à data da inscrição do Contribuinte como residente fiscal), em concreto, no código 802 correspondente a “Quadros superiores de empresa” ou, caso assim não se entenda, através da aplicação da Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho, enquadrando-se a atividade exercida pelo Requerente A... no código 112 correspondente a “Diretor-geral e gestor executivo de empresa”, da lista constante na mencionada Portaria.
● Em consequência, devidamente enquadrado no regime fiscal dos RNH, e exercendo atividades de elevado valor acrescentado, será de aplicar a norma prevista no n.º 10 do artigo 72.º do Código do IRS, aplicando-se uma taxa reduzida especial: “10- os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em actividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %.”
● Em face de tudo quanto ficou exposto, é manifesto que a liquidação de IRS ora contestada enferma de erro sobre os pressupostos de Direito e de facto, devendo ser, em conformidade, anulada, porque praticada com ofensa das normas e princípios jurídicos aplicáveis, e, em consequência, substituída por outra, que aplique, ao Requerente A..., o regime especial de tributação dos Residentes Não Habituais.
● Concluem os Requerentes pedindo a restituição do imposto indevidamente pago acrescida essa importância de juros indemnizatórios nos termos legais considerando que, de acordo com o disposto nos artigos 43.º e 100.º da LGT, o contribuinte tem direito a ser indemnizado pela Administração tributária, através do pagamento de juros indemnizatórios, sempre que exista o pagamento indevido de dívida tributária, por culpa imputável aos serviços.
● Assim é que, atento o pagamento do imposto aqui em causa, e verificando-se as condições no artigo 43.º da LGT, a procedência do presente Pedido de Pronúncia Arbitral deverá, também, determinar a restituição aos Requerentes da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios calculados à taxa legal, o que também desde já se requer.
2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
4. O Presidente do CAAD informou oportunamente as partes da designação dos árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
5. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 25-3-2025
Resposta da AT
6. A AT apresentou resposta em que defendeu a (i) procedência das exceções que invocou – incompetência do CAAD para reconhecer o estatuto de residente não habitual (RNH) e a impropriedade do meio processual e subsidiariamente, a improcedência do pedido, alegando, no essencial e em síntese, o seguinte:
● Não obstante solicitar a anulação da liquidação posta em crise, referente ao ano de 2019, a causa de pedir formulada pelos Requerentes nos presentes autos arbitrais centra-se no reconhecimento da condição de residente não habitual dos Requerentes, sendo que o reconhecimento da aplicabilidade aos Requerentes do regime dos RNH teria de ser efetuado por via de Ação Administrativa Especial e não pela presente via impugnatória arbitral, sustentando-se para o efeito nas decisões arbitrais proferidas nos processos nºs 796/2022-T, 906/2023-T e 651/2024-T e certos entendimentos doutrinários (cfr 11º e segs., da Resposta);
● Por força do estatuído no nº 8, do artigo 16º, do CIRS, seria imprescindível que os Requerentes não tivessem sido residentes em Portugal nos 5 anos anteriores a 2019, condição que se não verifica porquanto, conforme alegam, são residentes em Portugal desde 2017 (cfr artigo 7º, do PPA) e, por outro lado, também não produzem qualquer prova de preenchimento, pelo Requerente A..., dos requisitos ou pressupostos materiais para aplicação do regime de residente não habitual ou, dito doutro modo, não foi feita a prova dos requisitos previstos no artigo 72º-10, do CIRS.
7. Traz ainda a Requerida à colação o acórdão do Tribunal Constitucional nº 718/2017.
Resposta dos Requerentes às exceções
8. Sobre a Resposta vieram os Requerentes pronunciar-se sobre a matéria da exceção sustentando que a competência do tribunal se determina pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, tal como se decidiu nos processos n.ºs 262/2018-T e 188/2020-T, “é à face do pedido ou conjunto de pedidos que formulou o autor que se afere a adequação das formas de processo especiais, designadamente o processo arbitral".
9. Uma coisa é a (i)legalidade da liquidação cuja anulação se peticiona, aqui em causa, outra é o próprio estatuto de Residente Não Habitual e a sua atribuição, que não se encontra em discussão nesta sede pois, também os Requerentes, consideram que, quanto a este último, não é esta a sede própria.
10. A Requerida respalda, ainda, a sua argumentação no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 718/2017, proferido no âmbito do processo n.º 723/2016, de 15 de Novembro de 2017, no qual se pode ler, nomeadamente, que “(…) o ato de liquidação de deferimento /indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo, cuja ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes mas do facto de constituir um ato pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objeto do beneficio fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente ato beneficiador positivo, negativo ou extintivo (…) (…) configurando o ato de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, como se viu, um ato administrativo autónomo, com efeitos próprios e que se estendem para além do ato de liquidação do imposto que imediatamente se lhe segue, nada parece haver de anómalo, do ponto de vista da ratio subjacente a um tal regime, que a sua impugnação autónoma constituía para o contribuinte um ónus e não uma mera faculdade.”(destacado dos Requerentes)
11. De facto, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 718/2017, de 15 de Novembro de 2017, veio considerar a não inconstitucionalidade do artigo 54.º do CPPT interpretado com o sentido de que “(…) a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação de imposto com fundamento em vícios daqueles.”
12. Todavia, não obstante o sentido da não inconstitucionalidade resultar do aresto supra identificado, importa relevar que, por um lado, tal decisão não tem força obrigatória geral e que, por outro, a mesma não obteve unanimidade, tendo votado vencido o Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, o qual concluiu “Se, pelo contrário, e como julgo mais correto, não chegasse a semelhante conclusão ─ aceitando como não manifestamente errada a qualificação do ato acolhida na decisão recorrida ─, cabia-lhe revisitar a questão decidida pelo Acórdão n.º 410/2015. Nessa hipótese, julgo que o Tribunal deveria ter reiterado essa jurisprudência, por me parecer que a convivência de um ónus normal de impugnação unitária com um ónus excecional de impugnação autónoma, delimitada por um conceito de elevado grau de complexidade e imprecisão ─ «ato imediatamente lesivo de direitos» ─, constitui um fator de insegurança jurídica que condiciona o exercício do direito à impugnação contenciosa das decisões tributárias, sem que se consigam discernir quaisquer razões constitucionalmente relevantes que o justifiquem. Como se afirmou naquele aresto: «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.» Em suma, o Tribunal deveria ter julgado o recurso improcedente.”
13. Assim, importa trazer à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/2015, de 29 de Setembro de 2015, no qual se acordou: “Julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do principio da tutela judicial efetiva e do principio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa;” (destacado dos Requerentes)
14. Mais importa relevar que, a jurisprudência citada pela Requerida diz respeito a uma liquidação relativa ao ano de 2010, cujo contexto normativo se reportava, naquele caso, à regulação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro, portanto, anterior às alterações ocorridas com a Lei n.º 20/2012, de 14 de Maio, e com o Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto.
15. Sendo que, nessa altura, o n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS dispunha: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos, renováveis, com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos.” (sublinhado dos Requerentes)
16. Diversamente, o n.º 9 do artigo 16.º do Código do IRS aplicável à factualidade em discussão, refere que “o sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributados como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.”
17. Portanto, o legislador, intencionalmente, considerou retirar a menção à inscrição no registo de contribuintes da Direcção-Geral dos Impostos, “bastando-se” com a inscrição como residente em território português, condição que no caso dos Requerentes se reporta ao ano de 2017.
18. Pelo que, a realidade dos Requerentes e a factualidade tratada no mencionado aresto é, evidentemente, diversa e, portanto, não transponível para os presentes autos.
19. Refira-se ainda, que o n.º 10 do artigo 16.º do Código de IRS, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, prevê que “O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato de inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.”.
20. Tal imposição, da inscrição no registo dos contribuintes como Residentes Não Habituais, não consagra, para além da imposição de um dever acessório, nos termos do n.º 2 do artigo 31.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), um procedimento autónomo ou um momento procedimental interlocutório dirigido a um acto de reconhecimento do estatuto de residente não habitual, prévio e prejudicial, sem o qual estaria inviabilizada a aplicação em cada ano dos benefícios fiscais a isso associados.
21. Tal entendimento, como mencionado pelos Requerentes no Pedido de Pronúncia Arbitral, está, aliás, respaldado na Circular n.º 4/2019, segundo a qual as medidas resultantes do regime dos residentes não habituais “(…) consubstanciam medidas excecionais de desagravamento da tributação de caráter automático, pois os seus efeitos resultam direta e imediatamente da lei pela simples verificação dos respetivos pressupostos e condições, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT, conforme determina o artigo 5.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF)”.
22. Ou seja, é a própria Administração Tributária que reconhece, de forma expressa, que os benefícios fiscais inerentes ao regime dos RNH — quer os referentes à tributação das atividades de elevado valor acrescentado, previstos no n.º 10 do artigo 72.º do Código do IRS, quer os referentes à tributação dos rendimentos das Categorias B, E, F e G de fonte estrangeira, previstos no n.º 5 do artigo 81.º do Código do IRS — decorrem automaticamente da lei e que não estão sujeitos a qualquer tipo de reconhecimento constitutivo.
23. Ainda, neste contexto, com relevância para a análise dos presentes autos, veja-se o entendimento constante da Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 319/2022-T, onde se esclareceu que “(…) nos termos da al. a) do artigo 99.º do CPPT: “Constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente: a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários;” No que à ilegalidade apontada à liquidação por não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais concerne, tal causa de pedir não poderá deixar de ter como inscrita na leque de fundamentos suscetíveis de, em caso de provimento, determinar a errada quantificação dos rendimentos por esta declarados e consequentemente, a ilegalidade do ato tributário de liquidação.”
24. Mais se considerando naquela Decisão, a qual é perfeitamente transponível para os presentes autos, que “ante o exposto, visando o pedido arbitral a ilegalidade de ato tributário de liquidação (no caso, do IRS de 2019), com acolhimento na al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e não qualquer pedido de reconhecimento de beneficio fiscal, tendo por causa de pedir fundamentos integráveis no disposto no artigo 99.º do CPPT, não pode deixar de improceder a exceção de incompetência material deste tribunal arbitral pela Requerente invocada.”
25. Prosseguindo, e atento o exposto, parece pacífico que o Tribunal Arbitral não tem competência para reconhecer o estatuto de Residente Não Habitual; no entanto, e ao contrário do que a Requerida alega, os Requerentes não pretendem que o regime fiscal do RNH lhes seja reconhecido no presente processo, não existindo, pois, discordância relativamente à incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar o reconhecimento do estatuto dos Residentes Não Habituais.
26. Coisa diversa é a (i)legalidade da liquidação.
27. Neste caso, os Requerentes são claros no seu pedido para constituição do Tribunal Arbitral: “(…) a procedência, por provado e fundado, nos termos e fundamentos expostos, do presente Pedido de Pronúncia Arbitral, com a consequente a(i) anulação do ato de liquidação de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2019, que prevê um montante global a pagar de € 78.479,50, (ii) a substituição por outro ato de liquidação de IRS em que os rendimentos auferidos pelo Requerente A... sejam qualificados e tributados de acordo com o regime especial aplicável aos Residentes Não Habituais, tudo com as necessárias consequências legais, designadamente, o reembolso do imposto pago indevidamente pelos Requerentes, acrescido dos competentes juros indemnizatórios calculados à taxa legal.
28. Assim, não assiste razão à Requerida, pois o Tribunal Arbitral é o tribunal competente para a apreciação da (i)legalidade do ato de liquidação em apreço, ao abrigo do regime previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e em conformidade com a previsão dos artigos 2.º, n.º 1, alínea b) e 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, bem como do artigo 102.º, n.º 1, alínea b) do CPPT.
29. Os Requerentes formulam um pedido muito concreto no qual solicitam a anulação do ato de liquidação de IRS referente ao ano de 2019 e não qualquer indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto de Residente Não Habitual.
30. Não podendo restar dúvidas de que o Pedido de Pronúncia Arbitral apresentado pelos Requerentes tem por objeto, única e exclusivamente, o ato de liquidação de IRS de 2019 e não o pedido de reconhecimento de qualquer estatuto, devendo, portanto, improceder a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral invocada pela Administração tributária.
31. Com base no mesmo raciocínio, a Administração tributária alega estarmos perante uma situação de impropriedade do meio processual e que nessa medida “(…) o reconhecimento do regime jurídico do residente não habitual só pode ser peticionado junto do tribunal tributário por via da ação administrativa prevista e regulada no CPTA, pelo que, como se viu, é inquestionável que o PPA apresentado pelos Requerentes não é o meio próprio para fazerem valer a sua pretensão.
32. Concluindo, também neste ponto, que “a impropriedade do meio consubstancia uma exceção dilatória inominada, de utilização indevida de uma forma de processo desadequada à pretensão deduzida nos autos, que determina a absolvição da Requerida da instância, nos termos estatuídos no n.º 2 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.”
33. Também neste caso, e tendo em conta o acima já mencionado, os Requerentes pretendem a anulação do ato de liquidação de IRS de 2019 com fundamento na sua ilegalidade, não estando em causa conhecer qualquer Decisão da Administração tributária, designadamente, de carácter administrativo, relacionada com o ato de indeferimento da inscrição como Residente Não Habitual.
34. A questão a decidir é a de saber se os Requerentes, não tendo, no prazo previsto na lei, requerido a sua inscrição como Residentes Não Habituais, têm direito a ser tributados ao abrigo de tal regime no ano de 2019.
35. Pelo que, também aqui, deve improceder a exceção de impropriedade do meio processual invocada pela Administração tributária.
36. Verificadas as condições acima referidas para aquisição do estatuto de Residente Não Habitual, o “(…) residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.” — cfr. n.º 9 do artigo 16.º do Código do IRS.
37. Sendo que a inscrição como Residente Não Habitual no cadastro dos contribuintes, embora relevante para a boa execução da administração dos impostos, tem uma natureza meramente instrumental, como, salvo respeito por opinião diversa, resulta da exposição feita pelos Requerentes em sede de Pedido de Pronúncia Arbitral.
38. Portanto, o regime do Residente Não Habitual será, assim, (funcionalmente) similar a outros benefícios que, embora de natureza automática, são, por razões de operacionalidade, de publicidade ou outras, sujeitos a inscrição ou a qualquer outra forma de comunicação à Administração tributária ou a outras entidades competentes.
39. Em conclusão, a aplicação do benefício fiscal em discussão exige a verificação dos requisitos de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores, mas não depende da inscrição correspondente no cadastro.
40. Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime em análise, como pretende fazer valer a Requerida.
41. Ante os fundamentos apresentados pelos Requerentes, não podem deixar de improceder as exceções de incompetência do CAAD para reconhecer o estatuto de residente não habitual e exceção de impropriedade do meio processual, invocadas pela Requerida, na sua Resposta.
Cópia do processo administrativo
42. A Requerida, notificada para a junção de cópia do processo administrativo, efetuou a junção com a resposta.
Tramitação subsequente do processo
43. Por despacho de 3-5-2025, o Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificou as partes para a produção de alegações escritas em prazo, simultâneo, de 15 dias.
44. Ambas as partes apresentaram alegações, tendo os Requerentes respondido também à matéria das exceções suscitadas pela parte contrária, suprindo assim o lapso notório do sobredito despacho quando refere a inexistência de exceções.
45. As conclusões das partes nada de novo contêm relativamente à matéria alegada, salvo no que se refere às exceções, consideradas totalmente improcedentes pelos demandantes.
II. MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
46. Consideram-se provados, com relevo para a presente decisão, os seguintes factos:
a. Os Requerentes são cidadãos com dupla nacionalidade, brasileira e portuguesa, tendo decidido, no decurso do ano de 2017, estabelecer a sua residência em Portugal, em resultado da aceitação, por parte do Requerente A..., de uma proposta de contrato de trabalho a celebrar com o Grupo C... (de agora em diante Grupo C...);
b. Esse contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado em 21 de julho de 2017 iniciou a sua vigência no dia 1 de Outubro de 2017 (Doc 2, com o PPA);
c. O Requerente foi contratado para desempenhar funções de líder da marca D..., cujas funções corresponderiam, em termos genéricos, à responsabilidade pela definição, evolução e respeito pela singularidade da marca e pelos projetos vitais, em conjunto com o global líder e outros líderes de marca (cfr.citado Documento n.º 2);
d. Após a aceitação desta proposta de trabalho e início da prestação do trabalho, os Requerentes estabeleceram a sua residência em Portugal...
e. ...tendo feito a inscrição como residentes em território português em 3-11-2017;
f. Os demandantes e contribuintes requereram à AT, em 26-6-2023, a respetiva inscrição como residentes não habituais (RNH), com efeitos ao ano de 2017, mas...
g. ...esse requerimento foi indeferido por despacho do Diretor de Serviços de Registo de contribuintes, notificado pelo ofício n.º ..., datado de 19 de Setembro de 2024, da Direção de Serviços de Registo de Contribuintes – Cfr Docs nºs 3 e 4, com o PPA;
h. Entendeu a AT que os Requerentes não podem ser considerados residentes não habituais, uma vez que considera que a inscrição nessa qualidade, nos termos do n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS, até 31 de março do ano seguinte aquele que se tornaram residentes, é um pressuposto para o válido reconhecimento daquele estatuto e, portanto, que o cumprimento do prazo de inscrição nos termos do n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS é um pressuposto material de aplicabilidade do regime de RNH e assim um requisito para a atribuição do estatuto de RNH;
i. Considerou concretamente a AT, a fundamentar o ato de indeferimento mencionado, que “(...) o contribuinte deveria ter solicitado a inscrição como RNH para o ano de 2017 posteriormente ao ato de inscrição como residente em território português (2017-11-03) e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território (2018.03.31) (...) Tendo entregue esse pedido em suporte de papel em 2023.06.26, o mesmo deve ser indeferido por extemporaneidade (...)” – Cfr Doc 4, com o PPA;
j. O citado contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado entre o Requerente A... e o Grupo C..., sua entidade empregadora e responsável pelo pagamento do seu salário mensal, estabeleceu que o local da prestação do trabalho seria em França;
k. Apesar de os Requerentes se encontrarem a residir e a permanecer fisicamente a maior parte do ano em Portugal, os rendimentos de trabalho dependente auferidos pelo Requerente A... provêm do exercício da sua atividade laboral em território francês;
l. Nos cinco anos anteriores a 2017, os Requerentes não residiram em território português, mas sim, em França;
m. Os Requerentes tomaram a referida decisão profissional de vir trabalhar e residir em Portugal em linha com aquele que, antecipavam, seria o respetivo impacto fiscal em Portugal, em particular, no que diz respeito à tributação dos rendimentos do trabalho dependente auferidos pelo Requerente A... e enquadráveis na Categoria A do IRS;
n. Relativamente aos rendimentos do trabalho auferidos pelo Requerente no ano de 2019, foi liquidado, pela AT, IRS no valor de € 78.479,50 – Cfr Doc 1, junto com o PPA;
o. Pese embora não concordarem com o valor de imposto apurado, em virtude da não aplicação do regime especial de RNH, do qual entendem que deveriam beneficiar, os Requerentes, com o intuito de evitar a instauração de qualquer processo de execução fiscal, procederam ao pagamento da sobredita liquidação, no valor de € 78.479,50 – conforme comprovativo de pagamento na posse da Administração Tributária;
p. O Requerente A... auferiu, durante o ano de 2019, rendimento proveniente de trabalho dependente, nomeadamente salários, ao abrigo do seu contrato de trabalho com o Grupo C..., pelo cargo de líder da marca D...;
q. O presente pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no CAAD em 13-1-2025.
Factos não provados
47. Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a decisão da causa.
Fundamentação da fixação da matéria de facto
48. Não existe um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes. O Tribunal Arbitral tem sim o dever de selecionar a matéria de facto que releva para a decisão e decidir se a considera provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.
49. No caso, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica dos documentos apresentados pelas partes, e que não foram reciprocamente impugnados, fundando-se o litígio em razões jurídicas e não factuais.
50. Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, o que prevê o artigo 110.º do CPPT e a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
IV. DO DIREITO
Saneamento do processo
Questões prévias:
a) A incompetência material do Tribunal Arbitral
51. A competência material dos tribunais é de ordem pública[1] e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a sua apreciação previamente à verificação dos demais pressupostos processuais, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA, ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT[2].
52. Em abono da exceção aduzida, a Requerida considera que o tribunal arbitral não é materialmente competente para apreciar a questão suscitada pelos Requerentes, uma vez que, a seu ver, a causa de pedir se baseia na condição de residente não habitual da Requerente, regime fiscal este que a Requerente não requereu em tempo (artigo 16º, n.º 12 do CIRS).
53. Invoca, em abono de tal exceção, a jurisprudência do Tribunal Constitucional decorrente do acórdão n.º 718/2017, de 15-11-2017, no qual se concluiu “(...)não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles(...)”
54. Nesta senda, conclui a Requerida ser o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar a matéria controvertida nos presentes autos a qual se funda na invocada e alegadamente ilegal desaplicação do regime previsto para os residentes não habituais, sendo certo que a impugnação de ato de indeferimento sobre benefícios fiscais assume natureza autónoma e logo, o meio de reação correto passaria pela Ação Administrativa Especial e não pelo presente meio de reação arbitral.
55. Replicou a Requerente, sustentando, no essencial, a impugnabilidade e propriedade do meio de defesa de que se socorreu in casu, estribado no facto de estar a impugnar arbitralmente a liquidação de IRS, com base em vícios desta e não ter o meio de defesa deduzido por objeto qualquer decisão de indeferimento da sua inscrição como residente não habitual.
56. Conclui assim a Requerente que o PPA deduzido visa a declaração da ilegalidade do ato de liquidação de tributo, o que se insere na previsão normativa do n.º 1 do artigo 2º do RJAT, não podendo assim a exceção por incompetência material deixar de ser julgada improcedente.
Vejamos de que lado está a razão.
57. Do teor do PPA apresentado resulta, sem margem para quaisquer dúbias interpretações, que o peticionado pelos Requerentes se reconduz à anulação da liquidação de IRS do ano 2019 supra melhor identificada, com todas as consequências dessa anulação.
58. O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), que concretizou a autorização legislativa e “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no art.º 2.º do RJAT, expressamente consignou como competência dos tribunais arbitrais a pretensão relativa à “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.
59. Através da Portaria n.º 112-A/2011, de 20-04, ficaram vinculados os serviços da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, sendo que a estes serviços corresponde, presentemente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15-12, que aprova a estrutura orgânica desta Autoridade.
60. Na referida portaria estabelecem-se condições adicionais e limites de vinculação tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa.
61. Sérgio Vasques e Carla Castelo Trindade, em Cadernos de Justiça Tributária n.º 00, Abril/Junho de 2013, no artigo “O âmbito material da arbitragem tributária”, referem que, “nos termos da alínea a) do n.º 1, os tribunais arbitrais têm competência para apreciar as pretensões que se prendam com a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta. O âmbito material da arbitragem tributária, recortado por esta alínea, corresponde ao previsto no artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), estando-se perante questões que podem simultaneamente ser objeto de arbitragem e impugnação judicial. De facto, pode ler-se neste preceito do CPPT que o processo judicial tributário compreende “a impugnação da liquidação dos tributos, incluindo os parafiscais e os atos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta”.
62. Destarte, a competência dos tribunais arbitrais prevista no RJAT é taxativa, razão pela qual é o mesmo competente para decidir questões relacionadas apenas com a ilegalidade dos atos acima enunciados.
63. Relembre-se que é pelo critério do pedido que se afere a competência de um Tribunal, irrelevando para tal efeito quaisquer considerações em torno da viabilidade substancial da pretensão deduzida.
64. Ora, a esta luz, ou seja, apreciando em abstrato a pretensão dos requerentes, não se vislumbra que o pedido formulado possa extravasar o âmbito da competência material do tribunal arbitral, na medida em que o pedido se reconduz à declaração da ilegalidade de um ato tributário de liquidação e não ao reconhecimento de um qualquer benefício fiscal, maxime o reconhecimento do estatuto de residente não habitual.
65. Se, quanto ao pedido formulado, o mesmo se tem seguramente como enquadrado no âmbito da competência dos tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD, entende, ainda assim a Requerida que a causa de pedir subjacente a tal pedido implica a apreciação de vícios atinentes ao não reconhecimento de um benefício fiscal, in casu, do regime dos residentes não habituais, o que em seu entender, apenas poderia suceder em sede de ação administrativa especial, não tendo esta instância arbitral competência em razão da matéria para apreciar tal vício.
66. Deste modo é que importa apreciar a questão invocada pela Requerida quanto à alegada inimpugnabilidade nesta sede de vícios que se reconduzam ao não reconhecimento pela AT de tal benefício fiscal, entendendo a Requerida ser aplicável o decidido no acórdão do TC n.º 718/2017 e nessa senda não ser tal causa de pedir enquadrável no âmbito competência material deste tribunal arbitral.
Vejamos:
67. Ao contrário do que parece defender a Requerida, a pretensão dos Requerentes não é, como se viu, que lhes seja reconhecido o estatuto de RNH para desse modo, poder ser anulada a liquidação sob impugnação.
68. Na verdade, o pedido formulado pelos Requerentes é de anulação em consequência de declaração de ilegalidade de ato de liquidação, não sendo formulado qualquer pedido relativo ao reconhecimento ou registo do estatuto de RNH.
69. Certo que o Tribunal Constitucional veio, efetivamente, através do acórdão n.º 718/2017, de 15-11-2017 a considerar como não inconstitucional a interpretação do artigo 54º do CPPT com”…o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles.”
70. Não obstante o sentido da não inconstitucionalidade resultante do aresto supra identificado, importa relevar que a decisão não recolheu unanimidade, tendo votado vencido o Juiz Gonçalo de Almeida Ribeiro, o qual conclui que “(...) se, pelo contrário, e como julgo mais correto, não chegasse a semelhante conclusão ─ aceitando como não manifestamente errada a qualificação do ato acolhida na decisão recorrida ─, cabia-lhe revisitar a questão decidida pelo Acórdão n.º 410/2015. Nessa hipótese, julgo que o Tribunal deveria ter reiterado essa jurisprudência, por me parecer que a convivência de um ónus normal de impugnação unitária com um ónus excecional de impugnação autónoma, delimitada por um conceito de elevado grau de complexidade e imprecisão ─ «ato imediatamente lesivo de direitos» ─, constitui um fator de insegurança jurídica que condiciona o exercício do direito à impugnação contenciosa das decisões tributárias, sem que se consigam discernir quaisquer razões constitucionalmente relevantes que o justifiquem. Como se afirmou naquele aresto, «(...) ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP. (...)Em suma, o Tribunal deveria ter julgado o recurso improcedente (...)”.
71. Por outro lado, sobre similar matéria relativa à interpretação do artigo 54º do CPPT quanto à possibilidade de, em sede de impugnação de liquidação, apreciar vícios atinentes a atos interlocutórios ou autónomos entretanto já consolidados na ordem jurídica, se havia já pronunciado o Tribunal Constitucional em 2015 em sentido inverso, ou seja, propendendo para a possibilidade de apreciação de tais vício próprios do ato interlocutório ou autónomo, o que o faz através do acórdão nº 410/2015, de 29-09, no qual se acordou “julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (...)”
72. Ora, se esta questão relativa à interpretação da norma do artigo 54º do CPPT ao nível da sua conformidade constitucional pode não ser consensual, afigura-se que para a decisão da questão erigida nestes autos pela Requerida, a fundamentação para a sua dilucidação não contende sequer, no entender deste Tribunal Arbitral, com a decisão invocada pela Requerida (citado acórdão do TC n.º 718/2017) em suposto abono da exceção erigida, por inaplicabilidade ao caso dos autos.
73. Na verdade, o direito a ser tributado como residente não habitual constitui-se, como melhor se verá infra, aquando da apreciação do mérito do pedido, quando, nos termos do nº 8, do artigo 16º, do CIRS[3], o contribuinte interessado reúne ambas as condições materiais nele previstas a saber, recorde-se: (i) registar-se como residente em Portugal e (ii) não ter sido residente em Portugal em nenhum dos 5 (cinco) anos anteriores.
74. Há, por outro lado, e conforme já assinalado anteriormente, a natureza automática, ope legis, do benefício em causa resultante do disposto no nº 10[4], do artigo 16º, do CIRS que estabelece que o sujeito passivo tem o ónus de solicitar a sua inscrição como RNH, mas não o dever de requerer qualquer reconhecimento desse benefício.
75. À luz do exposto, provindo os rendimentos do trabalho dependente do Requerente, do exercício da sua atividade laboral em território francês (seu local habitual de trabalho), esses rendimentos são considerados provenientes de fonte estrangeira e, como tal, devem estar isentos de tributação em Portugal na medida em que para tal (tributação) é competente o Estado da fonte (França), de acordo com a correspondente CDT – cfr artigo 81º-4, do CIRS e 16º-1, 2ª parte, da CDT Portugal – França.
76. Por outro lado, ainda, verificando-se que a efetiva tributação não ocorre no Estado da fonte (França), condição necessária para aplicação da isenção de tributação ao abrigo do regime especial dos RNH, deve o Requerente beneficiar de uma tributação mais favorável em Portugal ao abrigo do referido regime especial (RNH).
77. Assim é que a liquidação de IRS nº 2020... sob impugnação enferma de erro sobre os pressupostos, de direito e de facto, na medida em que desconsiderou o estatuto dos Requerentes de Residentes Não Habituais.
78. Assinale-se, relembrando, que, nos termos da al. a) do artigo 99º do CPPT, “constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente:
a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários (...)”
79. No que à ilegalidade apontada à liquidação, por não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais, concerne, tal causa de pedir não poderá deixar de ter como inscrita no leque de fundamentos suscetíveis de, em caso de provimento, determinar a errada quantificação dos rendimentos por esta declarados e consequentemente, a ilegalidade do ato tributário de liquidação.
80. Inexistindo in casu qualquer ato ou decisão interlocutória ou autónoma, suscetível de ser enquadrada no artigo 54º do CPPT e constituindo fundamento da impugnação da liquidação qualquer ilegalidade, designadamente a “errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários” - al. a) do artigo 99º do CPPT - não se vislumbra a existência de qualquer entrave no ordenamento legal tributário, que impeça a apreciação da declaração de ilegalidade da liquidação que se reconduza, no que à causa de pedir concerne, ao direito da Requerente em ver apreciada a questão relativa à apontada ilegalidade tangente à não tributação de acordo com o regime de residentes não habituais, ainda que tenha sido indeferido o pedido de inscrição como residentes não habituais.
81. Ante o exposto, visando o pedido arbitral a ilegalidade de ato tributário de liquidação (do IRS de 2019), com acolhimento na al. a) do n.º 1 do artigo 2º do RJAT e não qualquer pedido de reconhecimento de benefício fiscal, tendo por causa de pedir fundamentos integráveis no disposto no artigo 99º do CPPT, não pode deixar de improceder a exceção de incompetência material deste tribunal arbitral pela Requerida invocada.
b) A (alegada) impropriedade do meio processual utilizado
82. Alega a Requerida a impropriedade do meio processual utilizado sustentando esta sua posição no entendimento de que, não obstante solicitar a anulação da liquidação de IRS objeto do pedido referente ao ano de 2019, a causa de pedir se centra no reconhecimento da condição de residente não habitual do Requerente e, consequentemente, a via ou meio próprio para tal reconhecimento seria o recurso à ação administrativa especial e não a via impugnatória arbitral.
83. Pois bem, na linha das considerações tecidas supra a propósito da competência deste Tribunal Arbitral, não é o reconhecimento do sobredito estatuto que é objeto do pedido, mas antes a anulação, por ilegalidade, de um ato tributário: a liquidação de IRS do ano de 2019.
84. Logo, sem necessidade de outras considerações, é manifestamente o seguido pelos Requerentes neste processo, o meio processual próprio para o fim pretendido.
85. Não há outras questões prévias e/ou exceções a apreciar e decidir.
86. Como se viu, o Tribunal é absolutamente competente e o processo é o próprio.
87. As partes são legítimas, têm personalidade jurídica e judiciária e estão devidamente representadas.
88. O processo está isento de nulidades que o inquinem.
Apreciação do mérito do pedido
89. Como oportunamente se referiu a propósito da motivação da matéria de facto dada por provada, também o posicionamento das partes foi sopesado enquanto elemento relevante para a convicção deste tribunal arbitral, sendo que os Requerentes não podem deixar de beneficiar, nos termos do n.º 1 do artigo 75º da LGT, da presunção de veracidade no tocante ao teor da declaração de rendimentos por esta entregue e em que assenta o conteúdo do pedido de ilegalidade do ato tributário arbitralmente impugnado.
90. Nos termos deste último normativo “presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.
91. Ora, tendo presente que o teor dos rendimentos declarados e documentados foram objeto de validação pela própria AT, que os reputou igualmente por corretos e verdadeiros, inexistem razões para colocar em crise a natureza, origem e valor de todos e de cada um dos rendimentos aí relevados e espelhados na demonstração de liquidação de IRS junta aos autos (cfr Doc 1, junto com o PPA).
92. Efetuado este enquadramento de base quanto à factualidade subjacente aos presentes autos, importa ater-nos no sustentado pelos Requerentes em abono da ilegalidade e anulação da liquidação ora posta em crise e a qual passa pela desconsideração por aquele ato tributário do regime de tributação dos residentes não habituais.
93. Contrapõe a Requerida, entendendo que tal não é legalmente possível, conforme por exceção se defendeu e cuja apreciação supra se deixou expendida, afigurando fundar-se na circunstância de o Requerente não ter procedido à inscrição enquanto residente não habitual no prazo legalmente cominado no n.º 10 do artigo 16º do CIRS.
94. Atentemos, pelo exposto e antes de mais, no enquadramento legal de tal regime e desde logo, no preceituado no artigo 16º do CIRS em vigor à data dos factos (2019), nos termos do qual[5]:
8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos nºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. (Redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto)
11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano. (sublinhados nossos)
95. Do cotejo dos n.ºs 8 a 11 do artigo 16º do Código do IRS, na redação vigente em 2023, é possível apreender, insiste-se, que os pressupostos para a aplicação deste regime são os seguintes:
- Que o sujeito passivo se torne fiscalmente residente em Portugal, em conformidade com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 16º do CIRS;
- Que o sujeito passivo não tenha sido considerado residente em território nacional em qualquer dos cinco anos anteriores ao ano em que se deva considerar residente nos termos do n.º 1 e 2 da referida norma.
96. Face ao exposto, indelével resulta concluir que o legislador fez depender, para efeitos da aplicação deste benefício fiscal, do preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 16º, n.º 8, do CIRS, e não da inscrição formal como residente não habitual.
97. O teor da norma – n.º 11 do artigo 16º do CIRS – é, a este propósito, lapidar ao fazer depender para a aplicação de tal regime da circunstância factual de o sujeito passivo se ter inscrito (e assim ser considerado) como residente em território português e não da sua inscrição formal enquanto residente não habitual.
98. Destarte, a inscrição formal enquanto residente não habitual não poderá deixar de se ter como uma mera obrigação declarativa, obrigação essa que, quando eventualmente não cumprida no prazo definido no n.º 10 do artigo 16º do CIRS constituirá infração a esse mesmo comando legislativo, suscetível de ser punida nos termos do artigo 116º do RGIT, mas ainda assim neutra quanto à suscetibilidade do sujeito passivo poder ou não beneficiar desse mesmo regime, porquanto, como supra exposto, os pressupostos dos quais a lei faz depender a aplicação do regime em causa não compreendem o atempado cumprimento de tal procedimento de inscrição enquanto residente não habitual.
99. Neste sentido, veja-se o decidido no processo arbitral no âmbito do Processo n.º 188/2020-T e no Processo nº 1264/2024-T, cujo entendimento em ambos os casos acompanhamos, segundo o qual:
“…como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas. Sob esta perspetiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efetividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal. E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto, não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.
Do exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto”
100. Em idêntico sentido, veja-se ainda decisão coletiva proferida no processo arbitral tributário n.º 777/2020-T, no qual se concluiu:
Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo. Pelo contrário, o n.º 6 é perfeitamente expresso e inequívoco ao dizer que “consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos nºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.(...) Ou seja, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem dois requisitos, não sendo nenhum deles o registo como residente não habitual.
São esses requisitos os seguintes:
▪ Ter-se o sujeito passivo tornado fiscalmente residente num determinado ano e
▪ Não ter o sujeito passivo sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
101. Em face do enquadramento do regime fiscal em apreço e das decisões a que supra nos reportamos e sobre as quais não antevemos qualquer razão para, do sentido das mesmas, dissentir, não é possível deixar de concluir que o pedido de inscrição como residente não habitual no respetivo prazo a que se alude no n.º 10 do artigo 16º do CIRS encerra efeito meramente declarativo e não constitutivo do direito a ser tributado em tal regime fiscal.
102. Vistos os pressupostos dos quais o legislador faz depender a aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais e o efeito que o pedido de inscrição enquanto RNH reveste no ordenamento jurídico, importa aferir se no caso dos Requerentes, estes reúnem os pressupostos para a aplicação de tal regime de RNH relativamente aos rendimentos do ano de 2019.
103. Como resulta da matéria de facto dada por provada, os Requerente passaram a ser residentes para efeitos fiscais em Portugal a partir de 2017, sendo que igualmente se provou que os mesmos não estiveram inscritos como residentes fiscais em Portugal nos cinco anos imediatamente anteriores a 2017.
104. Em face da matéria de facto provada e do respetivo direito aplicável supra explanado, inexorável se torna concluir no sentido de os Requerentes cumprirem os necessários requisitos previstos no nº 8, do artigo 16.º, do CIRS, os quais são, como se viu, os únicos requisitos exigidos pela lei para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime dos residentes não habituais, considerando que o Requerente marido, relativamente ao ano de 2019, auferiu rendimentos de trabalho dependente provenientes do exercício de atividade laboral em território francês.
105. Em face da alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do CIRS, a eliminação da dupla tributação jurídica internacional faz-se através do método da isenção quando os residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos do trabalho dependente que possam ser tributados no outro Estado contratante (França), em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado.
106. Pois bem, tendo presente que o Requerente A... é residente fiscal em Portugal e exerce a sua atividade no Estado da fonte (França), dispõe a correspondente CDT que os rendimentos do trabalho dependente auferidos poderão, também, ser tributados naquele Estado da fonte – cfr artigo 16º-1/2ª parte, da CDT Portugal-França (DL 105/71).
107. Donde resulta que estão reunidos os pressupostos para a aplicação do regime especial dos RNH com a consequente isenção de tributação em Portugal na medida em que, à luz da CDT citada, é o Estado da fonte o competente para tributar esses rendimentos.
108. Quanto à consequência da inscrição dos Requerentes apenas em 2023 como RNH, com verificação dos respetivos pressupostos, o direito ao sobredito regime inicia-se nesse ano e vigora nos anos seguintes até 2026, inclusive (cfr Acórdão do T. Constitucional nº 718/2017, de 15-11-2017 e Acórdão do STA de 29-5-2024, no processo nº 0842/23.9BESNT).
109. Insiste-se: os dois únicos pressupostos ou requisitos materiais necessários para a tributação em Portugal, como Residente Não Habitual, do Requerente A... eram os que resultam do disposto nos nºs 8 e 12, do artigo 16º, do CIRS e que o Requerente preenche: (i) não foi residente fiscal em Portugal nos 5 anos anteriores a 2017 (ano em que se tornou residente em Portugal) e (ii) registou-se e passou a constar como residente fiscal em Portugal a partir desse ano de 2017.
110. Importante ainda a esta luz assinalar que, em 2012, foi eliminada a norma que determinava que o sujeito passivo que seja considerado RNH adquiria o direito a ser tributado como tal (...) com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da Direção-Geral dos Impostos – Cfr artigo 23º-2, do Código Fiscal de Investimento anterior à Lei nº 20/2012; do que resultou clara a citada natureza automática de todo o regime dos RNH.
111. Naturalmente que sendo o contencioso no âmbito dos Tribunais Arbitrais do CAAD de anulação, declaração de invalidade ou inexistência do ato administrativo ou tributário, não lhe compete a alteração do conteúdo do ato impugnado pois de outro modo estaria a intrometer-se na área da discricionariedade técnica, no caso, da AT, mediante a emissão de juízos valorativos apropriando-se das prerrogativas da Administração.
Jurisprudência
112. A jurisprudência arbitral sufraga, maioritariamente, a posição ora defendida por este Tribunal – Cfr., além das já citadas e entre outras, as decisões arbitrais dos Tribunais Coletivos constituídos no âmbito do CAAD, nos processos nºs 666/2024-T, 718/2024-T,732/2024-T, 745/2024-T, 960/2024-T,1223/2024-T, 1264/2024-T[6] e 1276/2024-T e as decisões de Tribunais singulares constituídos nos processos nºs 1118/2024-T, 670/2024-T, 386/2023-T, 245/2024-T e 1045/2023-T.
Pedido subsidiário prejudicado
113. Fundando-se subsidiariamente na circunstância de se considerar que a tributação efetiva do Requerente não ocorre no Estado da fonte (França) [condição, como se viu, necessária para aplicação da isenção de tributação ao abrigo do regime de tributação do RNH], alega o Requerente A... que deve beneficiar de uma tributação mais favorável em Portugal ao abrigo igualmente do citado regime especial de tributação (RNH) na medida em que a atividade exercida – líder da marca D... - está enquadrada como uma das atividades de elevado valor acrescentado, prevista nas Portarias nºs 12/2010, de 17 de janeiro (em vigor na data de inscrição do contribuinte como residente fiscal em Portugal – Código 802, “Quadros superiores de empresa”) ou nº 230/2019, de 23 de julho (código 112, correspondente a “diretor geral e gestor executivo de empresa”), com aplicação de uma taxa de tributação reduzida (20%) nos termos do disposto no artigo 72º-10, do CIRS em vigor à data.
114. Ora tal pedido subsidiário fica manifestamente prejudicado pela apreciação do pedido principal e, daí, ser irrelevante, a questão da prova do enquadramento profissional do Requerente numa das categorias previstas nas Portarias citadas, como pretende a Requerida.
Juros indemnizatórios
115. Os Requerentes pedem o reembolso do imposto indevidamente pago, no montante global de € 78.479,50, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal.
116. Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
117. De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários (ou arbitrais), “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que “(...)a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei (...)”
118. Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
119. No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do ato de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
120. É clara, deste modo, a existência de vício de violação de lei substantiva, consubstanciada em erro nos pressupostos de direito e de facto.
121. Assim é que deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução ao presente acórdão, nos termos do art. 24.º, n.º 1, do RJAT, determinando o montante a restituir ao Requerente e calcular os respetivos juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos arts. 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).
122. Os juros indemnizatórios são assim devidos desde a data o pagamento do imposto em causa até à do processamento da nota de crédito em que serão incluídos (art. 61.º, n.º 5, do CPPT).
IV. DECISÃO
De harmonia com o acima exposto, decide este Tribunal Arbitral:
a. Julgar improcedentes as exceções de incompetência material do Tribunal Arbitral e de erro no meio processual utilizado, suscitadas pela Requerida;
b. Julgar ilegal e anular, por erro nos pressupostos de direito, a liquidação de IRS e juros compensatórios de 2019, com o n.º 2020...;
c. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos expostos supra, conforme pedido;
d. Julgar prejudicados o pedido subsidiário formulado e demais questões suscitadas e
e. Condenar a Requerida nas custas do processo, em face do seu total decaimento.
V. VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 78.479,50, atribuído pelos Requerentes, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.
VI. CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas, totalmente a a cargo da Requerida, em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
● Notifique-se.
Lisboa, 8 de setembro de 2025
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
(Presidente e Relator)
Ricardo Marques Candeias
(Árbitro Adjunto)
Susana das Mercês Carvalho
(Árbitra Adjunta)
[1] I.e., deve ser aferida independentemente de ser suscitada pela Requerida. Note-se que no processo administrativo todas as exceções dilatórias são de conhecimento oficioso – v. artigo 89.º, n.º 2 do CPTA. Também o é a incompetência absoluta em razão da matéria no processo civil – v. artigos 97.º, n.º 1 e 578.º do CPC.
[2] Neste sentido, veja-se a Decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. n.º 384/2018-T. De igual modo, o Código de Processo Civil (“CPC”) considera a incompetência absoluta, na qual se inscreve a incompetência em razão da matéria, como primeira causa de absolvição da instância – v. artigo 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC.
[3] Ulteriormente, pela Lei nº 82/2023, de 29-12,foram revogados os nºs 8, 9, 10, 11 e 12, do artigo 16º, do CIRS.
[5] De salientar que os citados nºs 8, 9, 10, 11 e 12, do Código do IRS, então vigentes, vieram a ser revogados pela Lei nº 82/2023, de 29-12 [OE, para 2024]
[6] Acórdão de Tribunal Coletivo presidido pelo mesmo árbitro que desempenha idêntica função neste Tribunal e de que foi igualmente relator do acórdão, cujo teor se segue aqui muitíssimo de perto.