Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 26/2025-T
Data da decisão: 2025-09-02  IRS  
Valor do pedido: € 1.667.128,02
Tema: IRS. Cláusula geral antiabuso. Juros compensatórios majorados.
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SUMÁRIO:

      I.         A transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, ainda que tivesse sido motivada exclusivamente pela obtenção de uma vantagem fiscal, não reveste a natureza abusiva das formas jurídicas nem é qualificável como não genuína, porque, quanto ao primeiro pressuposto, está prevista no Código das Sociedades Comerciais, no Capítulo nele dedicado à transformação de sociedades, mostrando-se preenchidos todos os requisitos legais de que depende e, quanto ao segundo, foi o próprio legislador quem optou por determinar de forma distinta, nas transmissões gratuitas, o valor tributável das quotas e das ações.

     II.         Não se encontram reunidos cumulativamente todos os elementos que permitam, neste caso, aplicar a Cláusula Geral Antiabuso (CGAA).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I. RELATÓRIO

 

              A... e B... (doravante "Requerentes" ou "a Requerente"), titulares dos números de identificação fiscal  ... e ..., respetivamente, residentes na ..., ..., ...-.... Espinho, vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação de IRS n.º 2023..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., da liquidação de juros compensatórios n.º 2023..., referente à  taxa majorada, e da demonstração de acerto de contas n.º 2023..., referentes ao ano de 2019, no valor  global de € 1.667.128,02, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida.

              O presente pedido tem por objeto imediato a declaração de ilegalidade e subsequente anulação do ato expresso de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes e como objeto mediato, a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários consubstanciados nas liquidações de IRS relativas ao ano de 2019, antes identificadas. 

              É requerida a Autoridade Tributária (doravante "AT" ou "Requerida")

              É ainda peticionada a condenação da Requerida, na restituição do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios e de mora, e, sem prescindir, deve ser igualmente declarado ilegal e reembolsado o montante de juros liquidado ao abrigo do disposto no n.º 6 do art.º 38.º da LGT.

              O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida em 18-01-2025.

              Os Requerentes optaram por não designar Árbitro.

              Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, foram os árbitros designados pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

              Em 25-02-2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.

              Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral coletivo, foi constituído em 17-03-2025.

              Em 19-03-2025, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar Resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, que apresentou, em 04-11-2024, juntamente com o Processo Administrativo (doravante PA), em 02-05-2025.

              Em 6-05-2025, foi proferido despacho arbitral nos termos do qual em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), e não havendo outros elementos sobre que as partes devam pronunciar-se, foi dispensada a reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime, bem como a apresentação de alegações.

 

 

 

II. SÍNTESE DA POSIÇÃO DAS PARTES

1. Da Requerente

              De acordo com os argumentos apresentados no PPA, “A sociedade por quotas C..., de cariz familiar, foi constituída, em 1971, respetivamente pela Avó, Mãe e Tia da Requerente e, desde 30-10-1987, passou a ter o respetivo capital social integralmente detido pelos Pais da Requerente.

              Em 18.10.2019, a Requerente recebeu dos Pais uma doação de 18.956.310 ações, representativas de 31,67% do capital social da C..., que aceitou, por não ter razão para rejeitar.

              Sendo um ato “típico” entre ascendentes e descendentes, e que a Requerente encarou como natural, tendo particularmente em consideração a idade avançada dos Pais (de tal forma que o Pai viria, entretanto, a falecer e a Mãe se encontra num estado de incapacidade total).

              Aliás, a própria AT, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa (p. 4) refere que “Por outro lado, veja-se que em 2021 a reclamante completou a idade de 56 anos, enquanto o seu pai completou a idade de 90 anos e sua mãe a idade de 82 anos”

              A sociedade por quotas C..., até então com a natureza jurídica de sociedade por quotas, foi, em 30.09.2019, transformada, por deliberação dos Pais, os sócios detentores da totalidade do capital social, em sociedade anónima.

              Dessa deliberação fizeram parte, de um ponto de vista meramente formal e simbólico, além da Requerente, os seus irmãos L... e O..., a quem foram atribuídas quotas com o valor nominal de apenas € 1, com o único objetivo de assegurar o cumprimento do número mínimo de 5 acionistas legalmente exigido pelo Código das Sociedades Comerciais (“CSC”).

              A este propósito, é expressamente referido na ata da Assembleia Geral da C... (junta como Anexo 6 ao Relatório de Inspeção (RIT) da AT) que “foi pelos Sócios comentado que a operação de Aumento de Capital visa precisamente permitir a entrada dos Novos Sócios no capital da Sociedade, para cumprir o requisito de estrutura mínima societária de cinco acionistas, conforme previsto no artigo 273.º do Código das Sociedades Comerciais, e assim permitir a transformação da Sociedade numa sociedade anónima (…)”.

              Sendo certo que, após a transformação em sociedade anónima, os Pais da Requerente “ficaram a deter 99,9995% do capital, ou seja, a quase totalidade do capital, tal como acontecia antes da transformação” (Cf. Verso da Folha 9 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).

              A Requerente, que até à data da aquisição da quota no valor de € 1, nunca foi sócia da sociedade embora, por decisão dos únicos acionistas, tenha sido nomeada e passado a exercer, na primeira década do século XXI, o cargo de gerente única, teve, como os restantes sócios seus irmãos, uma intervenção meramente simbólica na operação de transformação da C... em sociedade anónima, sendo evidente que em nenhum momento o controlo do capital da sociedade deixou de pertencer aos seus Pais.

              Aliás, tal como refere a AT, que confirma que “Após esta transformação, E... e F... continuaram a controlar o capital da sociedade, sendo que os 3 novos acionistas (membros da FAMÍLIA D...) eram detentores de participações meramente simbólicas” (Cf. Verso da Folha 9 do Relatório de Inspeção).

              A este propósito, importa salientar que a transformação de uma sociedade em sociedade anónima, além de se tratar de um ato previsto na legislação e frequente na vida das empresas, era um ato adequado à fase de desenvolvimento em que se encontrava a C..., não cabendo à Requerente (tal como à AT) qualquer possibilidade de se substituir à decisão dos Pais, sócios absolutamente maioritários, que, tal como repetidamente refere a AT no Relatório de inspeção, controlavam, antes e após a operação de transformação, o capital da sociedade (detendo primeiro 100% e após a transformação 99,9995%).

              Verificou a Requerente, no entanto, pela análise ao Projeto de Relatório e ao Relatório de Inspeção, que a AT, estranhamente, teceu um conjunto de considerações sobre as motivações subjacentes à operação de transformação que, além de serem inapropriadas, demonstram um total afastamento da realidade empresarial.

              Na verdade, ao contrário do que a AT menciona, a referência a que a evolução para uma estrutura jurídica de sociedade anónima melhor se ajusta à dimensão, posicionamento, e perspetiva de crescimento da sociedade, é perfeitamente comum nestas operações, e só pode ser entendida como “vaga” e “genérica” se nos abstrairmos totalmente da realidade da empresa e do percurso que, entretanto, continuou a trilhar.

              Por outro lado, considera a Requerente que o facto de a sociedade ter tido um histórico de vários anos como sociedade por quotas, e de ter tido sucesso enquanto tal, não pode limitar os seus sócios na possibilidade de, se assim entenderem, promoverem a transformação em sociedade anónima.

              Aliás, a própria AT, quando realizou a inspeção tributária, deveria ter tido o cuidado de verificar que a sociedade, nesse momento, quase 3 anos após a transformação, já detida por um Fundo de Private Equity altamente profissionalizado, ainda era uma sociedade anónima.

              Se seria possível obter resultados positivos como sociedade por quotas? Provavelmente sim. Se esse aspeto é minimamente determinante para que se possa considerar a operação de transformação como devidamente justificada e sem qualquer carácter abusivo? Não.

              De facto, há que distinguir a obtenção de resultados positivos e o percurso satisfatório enquanto sociedade familiar, de uma decisão legítima e livre dos sócios, da afirmação da sociedade num outro patamar e em outros mercados, bem como da preparação da estrutura para uma gestão mais profissional.

              Por outro lado, importa ter presente que, ao contrário do que pretende insinuar a AT, o facto de o contrato promessa de compra e venda subscrito pelos Pais da Requerente referir a existência de uma possibilidade de transformação em sociedade anónima antes da execução definitiva da venda, e não uma obrigação de tal ocorrer, em nada releva para o que aqui está em causa. Muito menos para permitir que se conclua “Pelo contrário, esta cláusula terá sido incluída por conveniência dos alienantes (…)” (Cf. Verso da Folha 11 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3). Até porque o que veio efetivamente a ocorrer foi exatamente o oposto. Vejamos,

              Os contactos havidos no âmbito das negociações com a R..., uma sociedade gestora de fundos de private equity sedeada em Espanha, e de referência internacional, contribuíram de facto para que os Pais da Requerente, frequentemente representados por esta, tivessem um contacto muito direto com gestores altamente profissionalizados, tendo ficado claro que a evolução para uma estrutura de sociedade anónima poderia ser um passo importante, além de natural, para a C... .

              Por outro lado, tendo a aquisição da sociedade sido realizada por uma sociedade gestora de fundos de private equity, sujeita a regulação e a deveres de reporte junto dos investidores dos respetivos fundos, e tendo sido iniciado processo (com o respetivo CPCV assinado) e sendo a C... uma sociedade por quotas, foi necessário acautelar no contrato promessa a possibilidade de tal transformação ocorrer, fundamentalmente porque, dependendo da estrutura de financiamento da aquisição, poderia de facto revelar-se necessário que tal ocorresse. E foi o que efetivamente aconteceu.

              Tendo a operação de transformação em sociedade anónima sido essencial para viabilizar a concretização da transmissão, não por motivações predominantemente fiscais, como refere a AT, mas sim para assegurar a possibilidade de a entidade adquirente reunir os meios financeiros necessários à concretização da transmissão.

              Na medida em que, no processo de obtenção de financiamento bancário para pagamento do preço, a entidade compradora teve de prestar como garantia o penhor financeiro (não o penhor mercantil) das ações da C... (garantia tipicamente exigida pelas instituições financeiras).

              O carácter essencial do penhor financeiro sobre as ações (e, como tal, da transformação da sociedade em momento anterior à transmissão) pode ser comprovado pela declaração entretanto emitida pela entidade compradora, juntando uma declaração da compradora como Documento 
n.º 7, a qual refere expressamente, quanto à constituição de penhor financeiro sobre as ações da C... para garantia do financiamento necessário à concretização da operação, que “This is a standard security in this type of financing in Portugal and without the possibility of creating such guarantee, the obtaining of the financing could have beenjeopardized or in alternative, G... and its shareholder would have been requested to Grant other, more onerous guarantees The financing, and therefore the creation of a financial pledge over the shares, was an essential part of the transaction”.

              É evidente, em face do que efetivamente ocorreu, que, para além da total legitimidade que os Pais da Requerente tinham para livremente deliberar a transformação da sociedade em sociedade anónima, fizeram-no naquele preciso momento a pedido da entidade adquirente, com o objetivo de viabilizar a operação de financiamento da aquisição da sociedade.

              Importando ainda recordar que, para a entidade adquirente, a transformação em sociedade anónima permitiria uma aquisição da C... sem sujeição a IMT (a sociedade era detentora de ativos imobiliários).

              Recorde-se, quanto ao penhor financeiro das ações da C..., garantia ao financiamento utilizado para a respetiva aquisição que, nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de maio “(…) entende-se por obrigações financeiras garantidas quaisquer obrigações abrangidas por um contrato de garantia financeira cuja prestação consista numa liquidação em numerário ou na entrega de instrumentos financeiros”.

              Clarificando a alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º do referido Decreto-Lei que se entende por Instrumentos financeiros os “valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos relativos a quaisquer dos instrumentos financeiros referidos”. Consequentemente, verifica-se que o penhor financeiro não pode incidir sobre quotas, na medida em que estas não são valores mobiliários, ao contrário do que sucede com as ações, definidas como tal na alínea a) do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários. Desta forma, no caso concreto da C..., não seria possível à entidade adquirente – G... UNIPESSOAL LDA – assegurar a prestação de garantia relevante para obtenção de financiamento bancário para a operação de aquisição sem que tivesse ocorrido a transformação em sociedade anónima da C... . Sendo apenas possível a constituição de penhor financeiro sobre ações da C... e não sobre quotas da C... .

              O que, aliás, é explicado de forma muito clara pela entidade adquirente, e também pode ser constatado (a típica exigência de penhor financeiro de ações) pela simples análise de qualquer operação de transmissão de sociedades cujo financiamento da aquisição dependa de entidades do setor financeiro. Como tal, a operação de transmissão não teria ocorrido sem a constituição do referido penhor, encontrando-se perfeitamente justificada (ainda que sobre a Requerente não possa recair essa obrigação) a razão pela qual a transformação foi realizada naquele concreto momento.

              Afirma ainda a Requerente que a AT considera que  “(…) foi apurada uma construção realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustra o objeto ou finalidade do direito fiscal aplicável, realizada com abuso das formas jurídicas e que não se pode considerar genuína, tendo resultado na eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização destes meios, que, em nosso entender, constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal anti abuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT” (vide Verso da Folha 3 do Relatório de Inspeção, já junto como Documento n.º 3).

              As ações adquiridas por doação pela Requerente foram devidamente avaliadas pela AT, ao abrigo da alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, tendo sido apurado um valor de € 10.497.220,60. Este valor é o valor que releva como custo fiscal de aquisição das ações da C... na esfera da Requerente, tal como resulta do n.º 1 doartigo 45.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.

              No momento do preenchimento da Declaração Modelo 3 de IRS, a Requerente ainda não tinha sido notificada das liquidações de Imposto do Selo (ocorreram apenas em 12.11.2020), pelo que o valor por si inicialmente inscrito da Declaração Modelo 3 de IRS (€ 10.667.845,36) divergiu em € 170.624,76 do valor apurado pela AT (€ 10.497.220,60).

              Na medida em que a Requerente apurou, quanto à transmissão das ações da C..., uma menos-valia, a referida divergência não deu origem a qualquer impacto no apuramento do IRS de 2019 (não tendo igualmente as perdas sido aproveitadas no exercício de 2020, ou em qualquer outro exercício posterior).

         Posto isto, verifica-se que a AT fundamenta a sua exposição quanto ao caráter alegadamente abusivo da operação, no facto de o curto espaço temporal verificado entre o momento da doação e da venda da C... significar que a Requerente não assumiu, de facto, a qualidade de acionista da sociedade.

              E mais referiu a AT: “Destaca-se ainda que, conforme datas constantes do quadro 9 do anexo G da Modelo 3 de 2019, constata-se que A... foi detentora das ações da C... durante apenas 6 dias, com exceção de 100 ações (com valor nominal total de € 1,00) que deteve durante 24 dias. Tendo em conta a peculiaridade de ter sido realizada uma menos-valia de 
€ 3.700.454,06 com ações
 detidas durante apenas 6 dias, procedeu-se a uma análise mais aprofundada desta transação, conforme descrito nos pontos seguintes deste relatório. (Cf. Folha 6 do Relatório de Inspeção)

              Tendo por base este raciocínio, considera a AT que, quando a doação ocorreu, a Requerente se limitou a receber as ações da sociedade, não praticando qualquer ato relevante na qualidade de acionista até ao momento em que as vendeu. Refere inclusivamente que o facto de, no momento da doação, já ter sido celebrado um contrato de promessa para transmissão da totalidade do capital social da C... à sociedade G..., com um caráter “vinculativo”, demonstra que os Pais da Requerente pretenderam assegurar que a venda da sociedade ocorreria.

              Ou seja, "neste quadro constata-se que A... exercia funções de gerência na sociedade desde 1991, tendo passado a ser gerente única em 28-06-2000. Por outro lado, constata-se que o conselho de administração nomeado em 30-09-2019, apenas exerceu funções durante 24 dias, sendo evidente que neste período já era do conhecimento de E... e F... que em 24-10-2019 iriam ser substituídos, por força do contrato-promessa de venda das suas quotas da C... que tinham subscrito em 08-08-2019. (Cf. Folha 8 do Relatório de Inspeção).

              E que “Da análise deste contrato-promessa conclui-se que não se trata de uma mera declaração de intenções das partes, mas de um acordo firme para a transmissão do capital da C...”.

              Nesse sentido, continua a Requerente:  

·     Se a AT sustenta o caráter instrumental da qualidade da Requerente como acionista, deveria com isso concluir, como concluiu, que os doadores (Pais da Requerente, únicos responsáveis e legítimos decisores da operação de transformação em sociedade anónima) nunca pretenderam, de facto, doar quotas ou ações de uma sociedade, mas apenas encontrar forma de incrementar a liquidez subjacente à respetiva alienação a terceiros, por via da redução da carga fiscal incidente sobre eventuais mais-valias que, na sua esfera (dos Pais da Requerente), poderiam apurar.

·     Se estamos perante uma sequência de atos preparatórios para uma operação fiscalmente abusiva (argumento utilizado pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, invocando que os vários atos praticados devem ser analisados de forma integrada), então deveria ter sido reconstituída a situação fiscal que decorreria de uma venda da sociedade pelos Pais da Requerente A..., seguida de uma doação da respetiva liquidez aos filhos.

·     E se a AT, numa postura de coerência com as premissas da sua exposição, tivesse concluído este raciocínio, teria verificado (será que não o fez?) que uma alienação das participações da sociedade C... (quotas ou ações), pelos Pais da Requerente A... não teria dado lugar a qualquer tributação em sede de IRS, 

              Fruto de a respetiva data de aquisição ser anterior a 1 de janeiro de 1989, na medida em que, tal como resulta da análise efetuada pela AT à evolução do capital social da C... e devidamente refletida no Relatório de Inspeção, em 2019: (i) E... era detentora de uma única quota adquirida em 1972, com o valor nominal de € 359.134,49, representativa de 60% do capital social; (ii) F... era detentor de uma única quota adquirida em 1987, com o valor nominal de € 239.422,99, representativa de 40% do capital social.

              Oraa verdade é que os Pais da Requerente A... doaram as ações aos filhos porque, caso não fosse concretizada a venda (apesar de tudo, tinha sido celebrado apenas um CPCV), já não queriam ter mais envolvimento na empresa, fruto da idade avançada, sendo certo que sempre seriam os filhos a assumir a posição acionista num cenário de não realização da transmissão.

              Admitindo-se que talvez também para acautelar essa possibilidade tenha a Requerente A... sido positivamente distinguida pelos Pais, que decidiram doar-lhe uma participação superior à que doaram aos restantes filhos.

              Recorde-se, aliás, que o Pai da Requerente A... se encontrava, à data, já com idade avançada e em estado de saúde fragilizado, tendo vindo a falecer.

              Nunca foi, por isso, intenção dos Pais voltar a assumir a qualidade de acionistas da sociedade, tendo deliberadamente tomado a opção de doar as participações sociais aos filhos, essencialmente para a eventualidade de a operação de transmissão perspetivada não se concretizar. O que, como se disse, é evidente pelo facto de terem doado percentagens distintas de capital social aos filhos, em função do respetivo envolvimento na empresa.

              E sempre se diga que, ao contrário do que refere a AT na decisão da reclamação graciosa apresentada, os Requerentes não pretendem com esta argumentação apresentar um negócio alternativo ao efetivamente realizado.Pretendem apenas demonstrar que a alegada vantagem fiscal em sede de IRS é inexistente, na medida em que a mais-valia não seria tributada na esfera dos Pais. Não existindo, por isso, qualquer fundamento para aplicação da CGAA a uma operação que, na esfera familiar da Requerente, não originou qualquer vantagem fiscal.

              Adicionalmente, não pode a AT, como fez em sede de inspeção e de decisão da reclamação graciosa apresentada (cf. P. 5) referir que “(...) os atos e negócios correspondentes à realidade económica seriam os pais doarem as suas quotas aos filhos e estes venderem-nas à G...”.

              Deturpando a realidade, quando utiliza o curto espaço temporal entre operações e as relações familiares para sustentar que o objetivo das várias operações consistiu em assegurar uma venda da sociedade sem tributação,

              Mas já não utiliza os mesmos elementos para concluir que, se o objetivo da Família D... consistia em vender a sociedade sem tributação, nada seria necessário fazer, porque os Pais não seriam tributados em sede de IRS e, da mesma forma que doaram aos filhos as ações da sociedade, teriam doado o dinheiro resultante da respetiva venda.

              Aliás, apesar de a AT referir no Relatório de Inspeção (vide Folha 9 do Relatório) que “(…) à data da transformação da C... em sociedade anónima (30-09-2019) ser do conhecimento dos sócios E... e F..., da gerente única A... e da restante FAMÍLIA D..., que passados alguns dias, a totalidade do capital seria transmitido (…)”, a verdade é que apenas E... e F... tinham de facto poder para a realização de qualquer operação, incluindo a operação de transformação da C... em sociedade anónima.

              Como tal, verifica-se que a AT está a considerar abusiva uma operação de transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima prévia a uma doação quando:

i. Existe um motivo económico inquestionavelmente válido para a transformação: sem penhor financeiro não haveria financiamento bancário; sem financiamento bancário não haveria operação de transmissão;

ii. A operação “de base”, transmissão de participações pelos Pais da Requerente estaria sempre excluída de IRS, na medida em que as mais-valias que seriam declaradas no Anexo G1 da Declaração Modelo 3 de IRS não seriam sujeitas a imposto;

iii. Por outro lado, como poderia a Requerente ter atuado em alternativa?

a. Rejeitava a doação que lhe havia sido feita pelos Pais?

b. "Auto qualificava" a operação de transformação (que não decidiu nem tinha poderes para decidir, e da qual não foi parte) e calculava o custo da aquisição “simulando” ter recebido quotas, quando na realidade recebeu ações?

c. Admitiria como valor de aquisição um valor distinto do valor que resulta da liquidação de Imposto do Selo validada pela AT?

d. Este facto – este, sim – justificaria a aplicação de uma norma antiabuso!

e. Efetivamente, a AT desconsidera os atos praticados pelos Pais da Requerente para ficcionar outros que, sem qualquer justificação em matéria de elemento resultado, poderiam ser suscetíveis de gerar uma receita fiscal que nunca seria apurada na ausência dessa ficção.

iv. Qual a razão para a AT colocar em causa apenas a transformação e não a doação?

v. A resposta parece-nos óbvia:

a. Se a AT desconsiderasse ambas as operações (transformação e doação) 
ficcionar-se-ia que a transmissão tinha ocorrido diretamente na esfera dos Pais da Requerente.

b. Neste cenário, não haveria lugar a qualquer tributação, apesar do que refere a AT em resposta ao direito de audição que, com o devido respeito, não se pode sobrepor a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo e profusamente repetida na jurisprudência do CAAD.

c. Ao colocar em causa apenas o ato de transformação, a AT consegue sujeitar a tributação uma realidade que nunca seria, na sua base, tributável.

vi. Como tal, a questão que se impõe é a seguinte: Estando a exclusão de tributação de 
mais-valias por aquisição anterior a 1 de janeiro de 1989 em situações semelhantes perfeitamente clarificada por Acórdão do STA de março de 2018 (mais de um ano antes da transmissão das ações à adquirente), por que motivo fariam os Pais da Requerente uma operação “abusiva” para evitar uma mais-valia que nunca poderia ser tributada?

vii. Qual a vantagem fiscal? O legislador passou a permitir “aplicações parciais” da cláusula geral antiabuso, em que a AT “seleciona” as operações que pretende desconsiderar, em função do resultado obtido?

viii. Se a construção, neste caso, foi abusiva, porque não colocar em causa a doação? Apenas porque da mesma não resultaria qualquer receita fiscal?

              Na situação aqui em apreço, discute-se a aplicação indevida da cláusula geral antiabuso e, consequentemente, a violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, em virtude de não ocorrer a verificação cumulativa dos elementos – meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório – constantes do n.º 2 do artigo 38.º da LGT.

              Em conformidade com o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, a AT tem o ónus de provar os factos constitutivos de direito que invoca. Impende-lhe, pois, não somente o ónus de alegar, como também de demonstrar a verificação dos referidos requisitos.

              Ora, basta o não preenchimento de um dos elementos para que se conclua pela ilegitimidade do recurso à CGAA e, consequentemente, para provocar a anulação da liquidação em causa.

              Assim, para a efetiva aplicação da CGAA, têm de se verificar todos os seus pressupostos, que, conforme de seguida se demonstrará, a AT não logrou demonstrar estarem preenchidos.

              Em suma:

i. O elemento meio determina que tenha existido o recurso a formas ou negócios jurídicos inabituais, atípicos ou artificiais, tendo em vista a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal, o que manifestamente não aconteceu no caso em apreço. Ficou, pois, (mais do que) demonstrada, a necessidade efetiva de transformar a sociedade em anónima, pois de outro modo não seria viável a constituição de penhor financeiro, o qual era exigido para efeitos de financiamento bancário, sem o qual, por sua vez, não seria realizada a operação de compra e venda.

ii. Quanto ao elemento resultado, este consiste na obtenção de uma vantagem fiscal efetiva, decorrente dos esquemas ou montagens abusivas, que se traduz na redução, eliminação ou diferimento temporal do imposto. Não foi, manifestamente, o caso: além de não se poder invocar a falta de genuinidade do meio, a transformação da sociedade em anónima, foi, como se viu, determinante para a realização do negócio, pois sem ações não seria viável o penhor financeiro, e sem este não seria possível o empréstimo bancário. Acresce que, caso a venda tivesse ocorrido diretamente da esfera dos Pais da Requerente, nunca haveria lugar ao pagamento de qualquer imposto.

iii. O elemento intelectual procura analisar se a motivação do contribuinte, relativamente à obtenção da vantagem fiscal efetiva através dos meios utilizados, apurada objetivamente, com base num juízo de razoabilidade e normalidade, foi ou não preponderantemente de natureza fiscal. A este respeito, refira-se que a Requerente teve um amplo contributo enquanto gerente da sociedade, nunca tendo no entanto sido sócia até ao momento da transformação e doação realizada pelos Pais, que ocorreu manifestamente num contexto sucessório, de tal forma que existiram diferenças muitíssimo significativas nas percentagens de capital doadas aos 5 filhos. Como tal, nunca poderia a Requerente decidir e deliberar a transformação (ou a doação), pelo que nunca poderia estar verificado o elemento intelectual;

iv. Por fim, relativamente ao elemento normativo respeitante à reprovação normativo- sistemática da alegada vantagem obtida, reitere-se que a Requerente, nas palavras da própria AT, teve uma intervenção meramente simbólica na operação de transformação colocada em causa pela AT. Por outro lado, o artigo 45.º do Código do IRS (em vigor à data dos factos) é claro quando prevê que o custo de aquisição de participações sociais adquiridas a título gratuito, neste caso via doação, é o valor que resulta da liquidação de Imposto do Selo. Por sua vez, o artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, estabelece uma fórmula objetiva e matemática para determinar a base tributável das ações doadas. Ora, de acordo com as regras estabelecidas pelo próprio legislador, a Requerente apurou uma menos-valia de € 3.700.454,06 (estando a AT a procurar “transformá-la” numa mais-valia de 
€ 3.932.335,22). Mais se diga que não se verifica qualquer abuso de formas jurídicas para alcançar uma “poupança fiscal”, pois o resultado seria o mesmo (não pagamento de imposto), caso fossem os Pais da Requerente a realizar a venda diretamente.

              Quanto à liquidação de juros ao abrigo do disposto no n.º 6 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária, afirma a Requerente “Nos termos do disposto pelo n.º 6 do artigo 38.° da LGT, em caso de aplicação do disposto no n.º 2, os juros compensatórios que sejam devidos, nos termos do artigo 35.º", são majorados em 15 pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.-° 15/2001, de 5 de junho, na sua redação atual”.

              (…) ficou demonstrado supra que não se encontram preenchidas, in casu as condições cumulativas necessárias para o preenchimento da tipicidade da CGAA, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 38.° da LGT.

              Na verdade, a AT limitou-se a apresentar indícios, insinuações e presunções, nunca tendo logrado demonstrar e fundamentar a existência de uma configuração jurídica inabitual e que configura uma prática evasiva ou de elisão fiscal.

              Não se pode, pois, aceitar que, em face da aplicação da CGAA, o sujeito passivo possa ser penalizado, via aplicação de uma taxa de juro aparentemente compensatória, mas de natureza efetivamente punitiva, que se aproxima, mais, a uma natureza sancionatória.

              Sucede, assim, que, assumindo que a taxa de juros “compensatórios” majorada assume natureza punitiva, forçoso será concluir que a mesma viola de forma direta e flagrante o princípio geral de direito de proibição do ne bis in idem, na medida em que o sujeito passivo é penalizado mais do que uma vez pelo mesmo comportamento.

              Significa isto que, no limite, o sujeito passivo pode vir a ser penalizado duplamente – em sede contraordenacional, por aplicação do artigo 114.° do RGIT, e via aplicação de juros compensatórios de natureza sancionatória, à taxa de 19% – , quanto ao mesmo facto.

              Em face do exposto, não pode a Requerente aceitar a liquidação de juros em apreço, devendo a mesma ser anulada, por não estarem reunidos os requisitos para aplicação da CGAA; e

              Sem prejuízo, caso assim não se entenda, pelo facto de a majoração em apreço ter natureza exclusivamente sancionatória, sendo ilegal e inconstitucional:

• Por falta de previsão legal no RGIT ou na lei penal;

• Por violar princípios constitucionais basilares do direito fiscal: princípio da capacidade contributiva e princípio ne bis in idem.

              Sobre o pagamento de juros indemnizatórios considera a Requerente:

              De acordo com o n.º 1 do artigo 43.° da LGT “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços que resulte pagamento da divida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

              Temos, assim, que o direito à perceção de juros indemnizatórios assenta um conjunto de pressupostos de verificação cumulativa, quais sejam: a existência de um erro imputável aos serviços, em função do qual resulte pagamento em montante superior ao devido, sendo esse erro analisado em sede de reclamação ou impugnação judicial.

              Entende a Requerente que o erro se consubstanciou nas correções efetuadas pelos SIT em resultado da ação de inspeção.

              Ainda, considera que se encontra verificada a imputação do erro aos serviços, na medida em que a AT praticou os atos tributários por sua iniciativa em erro sobre os pressupostos de facto e de direito e, diga-se, sem fundamento legal.

              Em face do exposto, entende a Requerente que estão verificados todos os requisitos legais do direito a juros indemnizatórios, previsto no n.º 1 do artigo 43.° da LGT, solicitando, portanto, que as autoridades fiscais competentes procedam ao pagamento dos mesmos, ressarcindo-a por esta via dos danos/prejuízos causados na sua esfera.

              Nessa medida, são devidos juros indemnizatórios contados desde a data de pagamento da prestação tributária indevida até ao seu integral reembolso, devendo a AT proceder à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 100.° da LGT.

 

2. Da Requerida

              Sintetizam-se, em seguida, os argumentos apresentados na Resposta pela Requerida:

              Dever-se-ão considerar impugnados os factos alegados pela Requerente, nos termos do disposto no art.º 574.º n.º 2 do Código do Processo Civil - CPC, ex vi art.º 29.º n.º 1 alíneas a) e e) do RJAT, de que a transformação societária se terá ficado a dever a motivos de ordem de gestão empresarial, financeira e concorrencial.

              O relatório de Inspeção contém a descrição pormenorizada dos factos tributários/construções que foram submetidos a aplicação da CGAA prevista no nº 2 do art.º 38º da LGT.

              Uma análise integrada de todos os atos ou negócios (construções), principais, preparatórios e complementares, permite concluir que a FAMÍLIA D..., agiu sempre de forma concertada, com vista à obtenção do resultado final (alienação das ações sem as sujeitar a tributação), sendo a Requerente A..., a principal interveniente por ser a gerente da sociedade e representante dos outros irmãos em quase todos os atos, tendo assinado tanto o contrato promessa de compra e venda – CPCV como representante dos Pais (em 08-08-2019), como o contrato definitivo em representação dos 4 irmãos e da própria (em 24-10-2019).

              Neste sentido, e com o devido respeito, não nos parece razoável a alegação de mera intervenção simbólica nos factos e construções em discussão, uma vez que, de acordo com o que foi apurado, os restantes irmãos, delegaram ou deram poderes à ora Requerente para agir em seu nome (o que demonstra a confiança entre todos os intervenientes), sendo ela a principal peça deste negócio/plano da Família D... e que foi gizado para obtenção de vantagens fiscais que resultou na transformação da C..., NIF..., em sociedade anónima antes da doação das suas ações (dos Pais para os 5 filhos) e sua posterior alienação pelos donatários para a sociedade G..., UNIPESSOAL, LDA, NIF ... .

              A convicção da AT, a qual resulta fundamentada e evidenciada no procedimento inspetivo, é que o contexto familiar restrito (pais, filhos e irmãos) permitiu que todos tivessem conhecimento de todo o processo de reorganização societária (transformação, doação, e posterior alienação) de forma a obter a melhor vantagem fiscal possível na venda das ações.

              E consequentemente a tributação deve recair sobre os donatários (os 5 filhos onde se inclui a ora Requerente) como efetivos beneficiários da vantagem fiscal de toda a construção abusiva gizada não nos parecendo de acolher as alegações contantes neste ponto da petição.

              No ponto IV. a) (nºs 104 a 158 da petição), a Requerente sustenta que não estão preenchidas as condições cumulativas necessárias para o preenchimento da tipicidade da CGAA nos termos do disposto no nº 2 do art.º 38º da LGT (nomeadamente os elementos meio, resultado, intelectual e normativo).

              Ora a CGAA (cláusula geral antiabuso) como medida de prevenção e combate à fraude e evasão fiscais destina-se a combater o chamado planeamento fiscal abusivo, que resulta da contradição entre as formas jurídicas adotadas pelas partes na realização de determinado ato ou negócio jurídico e os verdadeiros fins económicos desse ato ou negócio.

              É neste sentido que o n.º 2 do art.º 38º da LGT na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29/12, vigente à data dos factos, dispõe que “São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”.

              O n.º 1 do art.º 63º do CPPT, na redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, e vigente à data dos factos, determina que a liquidação de tributos com base na disposição antiabuso constante do n.º 2 do art.º 38.º da LGT segue os termos previstos neste artigo.

              O n.º 3 daquele art.º 63º refere que a fundamentação do projeto e da decisão de aplicação da disposição antiabuso, deve conter necessariamente: “a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.”.

              Assim, como se depreende da Lei, a CGAA tem como requisito a prática utilizada pelo contribuinte de um negócio jurídico artificioso ou com abuso de formas jurídicas que tem como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida caso tivesse sido utilizado um negócio ou ato de substância económica equivalente.

              Ou seja, tal disposição foi consagrada pelo legislador no sentido de não permitir a redução, eliminação, diferimento de ou produção de vantagens fiscais nos casos em que a transação que as originou não possa ser razoavelmente considerada como tendo um propósito económico principal e manifeste uma utilização abusiva, fraudulenta e artificiosa de formas jurídicas.

              Nos casos em que haja fortes indícios da sua prática, através da norma citada, a Autoridade Tributária tem o poder/dever de requalificar a operação realizada e liquidar o imposto de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e como se a vantagem fiscal nunca tivesse sido produzida. Que é o que sucedeu no caso sub judice.

              Feito este enquadramento e contrariamente às alegações da Requerente A..., resulta evidenciado que a AT fundamentou de facto e de direito as correções efetuadas (conforme descrito no ponto V.2, do RIT) nos termos referidos no art.º 77º da LGT, contendo todos os factos relevantes para a decisão, bem como o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido (cfr: Acórdão STA, nº 068/17 de 26/06/2017 e nos termos do artºs 268º, nº 3 da CRP, 77º da LGT e 153º do CPA).

              De acordo com o ponto V.2.1, do RIT (nos termos do nº 2 do art.º 38º da LGT), a AT aplicou a CGAA, tendo seguido os procedimentos constantes no nº 3 do art.º 63º do CPPT, descrevendo o conjunto de negócios sujeitos a arquitetura global, celebrados entre agosto e outubro de 2019 pelos Ascendentes/Pais do SP e ora Requerente (e os restantes 4 filhos), nomeadamente:

I. Alínea a) - A descrição da construção ou série de construções que foram realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflitam a substância económica (ponto V.2.1.1, do RIT);

II. Alínea b) - A demonstração de que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável (ponto V.2.1.2, do RIT);

III. Alínea C.1ª parte) - A identificação dos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica (ponto V.2.1.3, do RIT).

IV. Alínea C.2ª parte) - A indicação das normas de incidência que se lhes aplicam (ponto V.2.1.4, do RIT);

V. Para efeitos da alínea d), consta no ponto V.2.1.5, do RIT que “Não aplicável ao caso em análise, já que estes rendimentos da categoria G de IRS não são tributáveis por retenção na fonte.”.

              No ponto V.3 do RIT, encontram-se refletidas as conclusões decorrentes da aplicação da CGAA e sobre o enquadramento fiscal relativamente aos factos tributários detetados e que suportam os atos tributários agora impugnados, bem como as correções (art.º 65.º n.º 4 do CIRS) ao rendimento líquido de IRS da categoria G no ano de 2019, nomeadamente a opção (ou a não opção) pelo englobamento dos rendimentos e o apuramento do rendimento líquido coletável.

              No ponto X do RIT, encontra-se a notificação para o exercício do direito de audição sobre o projeto do Relatório e as conclusões relativamente à manutenção das correções propostas.

              A análise do encadeamento destas operações/construções permitiu concluir que foram realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, pelo que, competia à Administração Fiscal considerar ineficaz, no âmbito tributário, os efeitos da transformação da C... em sociedade anónima, que resultaram na eliminação da tributação em sede de IRS que seria devida caso esta operação não tivesse sido realizada.

              Sendo evidente que a ordem de precedência cronológica das operações (em sociedade anónima, a doação de pais para filhos e a posterior alienação das ações), foi feita de molde a satisfazer um propósito fiscal pormenorizadamente descrito no relatório.

              A construção consubstanciou-se em 4 atos (ponto V.2.1.1 do RIT).

              A vantagem fiscal desta construção, de acordo com o apurado (V.2.1.2 do RIT), foi obtida através do aproveitamento abusivo do regime previsto nos art.º 45.°, n.º 1 do CIRS e art.º 15.°, n.º 3, al, a) do CIS.

              A transformação em sociedade anónima foi um ato que não podia produzir efeitos económicos, já que foi praticado quando já tinha sido acordada a venda do capital da C..., que veio a ser concretizada apenas 24 dias após a transformação (30/09 a 24/10) e 6 dias após a doação (18/10 a 24/10), sendo que o contrato promessa de venda, já tinha sido assinado a 08-08-2019 por A..., como uma das donatárias das ações e em representação dos seus Pais, detentores à data, da totalidade do capital da C... .

              Assim sendo, a transformação da sociedade teve como vantagens a maximização dos ganhos resultantes da venda das ações da sociedade C... por parte da Família D... (donatários filhos) através:

a. Da eliminação da tributação das mais valias realizadas em sede de IRS uma vez que a operação permitiu incrementar o custo de aquisição para efeitos de calculo das mais ou menos valias resultantes da sua posterior alienação (24/10); e

b. Do direito a reportar as perdas apuradas na categoria G de IRS, nos 5 exercícios seguintes no valor total de 11.316.273,01€ (sendo 3.700.454,06€ no caso da ora Requerente D...), tendo em conta a opção pelo englobamento dos rendimentos da categoria G, é dedutível aos rendimentos positivos da mesma categoria nos 5 exercícios seguintes - art.ºs 22.° e 55.° do CIRS).

              Vantagens essas que não aconteceriam se fossem alienadas as quotas da sociedade C... (sem a transformação).

              Note-se que o contrato promessa (designado Share Purchase Agreement - SPA) celebrado em 08-08-2019 não previa a obrigação dos vendedores transformarem a C... em sociedade anónima, simplesmente foi introduzida uma cláusula que autorizava os vendedores a fazê-lo. Sendo um indiciador da preparação de um plano para eliminar a tributação que seria devida e maximizar os ganhos para os alienantes.

              À semelhança de alegações anteriores (procedimento inspetivo e reclamação graciosa), neste pedido de pronúncia arbitral, a Requerente A... continua a insistir que:

- A AT, conforme lhe competia (art.º 74º nº 1 da LGT), não logrou demonstrar os pressupostos de facto e de direito bem como a verificação cumulativa dos elementos (meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório) constantes no nº 2 do artº 38º da LGT;

- Não se vislumbra na sua atuação o uso de qualquer meio artificioso ou abuso de formas jurídicas;

- A operação de transformação da sociedade C... em sociedade anónima foi deliberada pelos Pais, na qualidade de detentores de 100% do capital social, e que a mesma é tolerável, aceitável e expressamente prevista na lei como meio normal de criação de sociedades, de acordo com o art.º 130º, nºs 1 e 2 do CSC;

- A operação revelou-se imprescindível e essencial para assegurar a realização do negócio uma vez que não seria possível o penhor financeiro exigido para obtenção do financiamento bancário, o qual não podia incidir sobre quotas, mas apenas sobre ações;

- Juntando para tal a declaração de 28/05/2023 dos compradores (sociedade G... UNIPESSOAL LDA), pedida pela própria da Requerente A... como anexo 7 da petição.

              Em resposta, importa referir que, os factos tributários e as construções detetados, evidenciam a intenção e a procura de um caminho menos oneroso e afastar a devida tributação em sede de IRS, por parte dos intervenientes neste processo (onde se inclui a ora Requerente) e a forma anómala e artificiosa como os negócios foram montados e gizados, não obstante, terem liberdade de iniciativa, de gestão e de fixação das condições contratuais.

              Conforme já referido, a transformação da sociedade, a celebração dos contratos de doação de ações da sociedade pelos ascendentes E... E F... aos seus 5 filhos (onde se inclui a Requerente A...) e os negócios subsequentes (nomeadamente, a alienação das mesmas à sociedade G...) num curto período de tempo, envolveu uma sucessão de negócios ou atos que, embora ocorressem em momentos temporais diferentes, não deixaram de ocorrer no seio de um grupo familiar, tendo como objetivo primordial a obtenção de vantagens fiscais e encontra-se desprovida de razões económicas válidas.

              Enfatiza-se que os intervenientes (doadores e donatários) tinham noção do impacto fiscal da alienação/doação de uma sociedade por quotas com 2 sócios ou uma sociedade anónima (ações) com 5 acionistas, não obstante a substância económica ser a mesma.

              Ao optarem pela doação de ações e não de quotas, o objetivo seria a possibilidade de inflacionar o custo de aquisição, o que se revelaria bastante vantajoso numa futura alienação (como viria a acontecer).

              Portanto, no caso sub judice, a transformação da sociedade revelou-se crucial para as operações subsequentes, sendo certo que, se a mesma não tivesse acontecido, no caso da Requerente A... com o valor de realização/venda das quotas de 6.967.399,96€ (de um total de 21.999.999,99€ da Família D... – no caso, os 5 filhos donatários), e um custo de aquisição (sem a transformação) determinado nos termos do 15º nº 1 do CIS e constante no quadro 26 do RIT, no valor de 3.035.063,74€ (num total de 9.583,403,02€ da Família D...), teríamos uma mais-valia tributável no valor de 3.932.299,47€ (do total de 12.416.486,72€ das mais-valias da Família D...), nos termos do art.º 9.º, n.º 1, al. a), art.º 10.º, n.º 1, al. b), art.º 43.º, n.º 1, art.º 45.º, n.º 1, al. b), ambos do CIRS.

              A declaração de 28/05/2023 dos compradores (sociedade G... UNIPESSOAL LDA), como anexo 7 da petição, serve para a Requerente justificar e fundamentar a necessidade da transformação da C... em sociedade anónima.

              No entanto, verifica-se que a mesma levanta dúvidas de credibilidade, de sustentação e é contraditória com a realidade objetiva e factual:

- A declaração foi emitida a pedido da própria Requerente A...;

- Tem data de 28 de maio de 2023, data posterior à ocorrência dos factos tributários (a alienação das ações foi feita 24/10/2019) e da realização do procedimento inspetivo (que foi concluído a 13/01/2023).

- Parece tratar-se de fundamentação à posteriori e à medida da necessidade de justificar as suas ações envolvendo uma entidade terceira;

- Não apresenta qualquer prova do tipo de financiamento que sociedade G... UNIPESSOAL LDA recorreu para concretizar esta aquisição;

- É muito vaga na sua descrição, não demonstra e nem prova a necessidade da transformação em sociedade anónima, porquanto a própria sociedade adquirente G... é uma sociedade por quotas, o que leva a crer que não havia nenhuma incompatibilidade relativamente à natureza jurídica das entidades envolvidas;

- Em 28-11-2023 (Dep. 43399/2023-10-06 20:16:42 UTC), foi deliberada a incorporação da H..., SA NIF ..., na I..., LDA NIF ... (anteriormente denominada J..., LDA).

- Ato societário publicado em 13-12-2023 e disponível na página do Ministério da justiça em: https://publicacoes.mj.pt/pesquisa.aspx, o que revela contradição em relação aos argumentos da Requerente porquanto, 3 anos volvidos, o fundo de investimento voltou a transformá-la em sociedade por quotas.

              Tornou-se assim, forçoso concluir que a montagem de negócios com base na reorganização societária, foi consciente e deliberadamente tomada pelos intervenientes de forma concertada, e não por imposição de terceiros interessados no negócio (no caso a sociedade G...) conforme defendido pela Requerente.

              Por outro lado, e respondendo à outra das questões colocadas no nº 103 da petição sobre a atuação e o negócio alternativo para que a AT não a considerasse abusiva, os atos e negócios que corresponderiam à realidade económica, seriam os Pais (E... E F...) doarem as quotas aos seus 5 filhos (onde se inclui a ora Requerente) e estes venderem-nas à sociedade G... (conforme acordado no contrato-promessa subscrito pelos doadores em 08-08-2019), sem realizar a transformação em sociedade anónima, por se tratar de um ato inútil em termos económicos e que apenas serviu para a obtenção da vantagem fiscal, conforme descrito no ponto V.2.1.3 do RIT.

              Convém, contudo, enfatizar que a AT declara a ineficácia das ações/operações no âmbito tributário/fiscal e nem se pronúncia sobre a validade jurídica das mesmas, mantendo-se, assim, intactos os seus efeitos jurídicos (nº 2 do art.º 38º da LGT – CGAA).

              E consequentemente, a tributação deve ser efetuada de acordo com as normas aplicáveis aos negócios com idêntico fim económico, na esfera dos beneficiários (5 filhos donatários onde se inclui a ora Requerente A...), não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas, conforme prescrito no nº 4 do art.º 38º da LGT (CGAA) e descrito nos pontos V.2.1.3/4 do RIT.

              Quanto aos elementos que devem considerar-se verificados como pressuposto da aplicação da CGAA:

              O elemento meio, corresponde à forma eleita pelo contribuinte para chegar ou obter uma certa vantagem fiscal por si desejada, que no caso em análise corresponde à denominada “Step-by- step transaction doctrine”, envolvendo uma sucessão de atos coordenados entre si, isolados ou enquanto partes de um todo (embora possam ocorrer em momentos temporais diversos) e com o  objetivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Devendo assim, o aplicador da lei operar um tratamento integrado, visualizando-as como uma única transação propendendo para um único e final resultado;

              No caso sub judice, a verificação do elemento meio começa com a transformação da C... em sociedade anónima (S.A.), seguida da doação das partes de capital de pais para filhos (onde se inclui a ora Requerente A...) e por fim, a alienação destas à sociedade G....

              Conclui-se que a interposição das operações e negócios jurídicos não se deveu a razões económicas válidas e se encontra desprovida de substância económica. Importa sublinhar que, embora os atos e negócios jurídicos que compõem esta estrutura sejam, em si mesmos, válidos e lícitos, e correspondam à efetiva vontade dos sujeitos passivos e dos restantes intervenientes, não se lhes vislumbra qualquer substância económica (sendo evidente a vantagem fiscal daí decorrente), fator preponderante para a aplicação da CGAA;

              É precisar realçar que as construções foram realizadas nestes moldes pelo facto existirem relações especiais entre os intervenientes (no caso os Pais E... E  F...e os 5 filhos) tal como são definidas no art.º 63º do CIRC, conforme já referido.

              A AT fez, pois, prova da natureza abusiva das construções porquanto os atos praticados e meios utilizados permitiram obter vantagens fiscais que não seriam alcançados se fossem feitas operações normais e usuais. Assim, face ao atrás exposto, considera-se observado o elemento meio.

              O elemento resultado exige que a vantagem fiscal a tomar em consideração seja suscetível de delimitação por comparação com a carga tributária apurada numa operação normal. Esse elemento existe quando se verifique que ocorreu redução, eliminação ou deferimento temporal dos impostos que seriam normalmente devidos caso não se verificasse a pré-planificação de atos ou negócios jurídicos pelo contribuinte. Por conseguinte, as ações dos contribuintes não devem ser analisadas isoladamente, mas sim a globalidade da sua atuação, delimitando, então, a sua intenção.

              Ficou demonstrada no âmbito do procedimento inspetivo, a obtenção de vantagens fiscais com o “step by step transactions” que não seriam obtidas se os negócios/construções realizados o fossem com propósito económico válido e sem finalidade fiscal.

              Portanto, a transformação da sociedade revelou-se crucial para as operações subsequentes e os intervenientes tinham noção do impacto fiscal da compra de uma sociedade por quotas ou uma sociedade anónima (ações), não obstante a substância económica ser a mesma.

              E ao optarem pela doação de ações e não de quotas, o objetivo seria a possibilidade de inflacionar o custo de aquisição, o que se revelaria bastante vantajoso numa futura alienação. Neste sentido, considera-se observado o elemento resultado.

              O elemento intelectual, considera-se verificado quando a escolha do elemento meio seja dirigida para a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos ou a obtenção de outras vantagens fiscais.

              O elemento intelectual resulta da motivação do contribuinte, no qual detém como característica principal a alteração das prioridades que movem o contribuinte, sendo necessário que a finalidade fiscal prevaleça sobre a finalidade não fiscal.

              No caso dos autos, foi demonstrada a intenção de ocultar, através de negócios artificiosos, os verdadeiros objetivos que seriam a obtenção de vantagens fiscais ilegítimas, de pais aos seus descendentes. E, por conseguinte, a transformação da sociedade, a doação das ações a favor dos descendentes pelos sócios originários, vieram revelar-se atos desprovidos de substancia económica válida ou lógica, cujo objetivo seria o aumento do custo de aquisição dessas ações, de forma a gerar menos-valias fiscais. Assim sendo, considera-se verificado e devidamente comprovado o elemento intelectual.

              O elemento normativo, pressupõe que o contribuinte obtenha uma vantagem fiscal de modo reprovável ao nível dos princípios que regem o sistema fiscal. Ou seja, este elemento exige que os atos ou negócios tenham sido celebrados por meios artificiosos ou fraudulentos com abuso de formas jurídicas.

              Portanto, não obstante os citados princípios de liberdade de escolha, liberdade de gestão e de atuação dos contribuintes em praticar atos ou negócios jurídicos ou de planeamento fiscal (lícito) com o objetivo de diminuir a carga fiscal (racionalidade económica), é preciso ter em conta que o mesmo deve ser feito de forma a não utilizar meios ou instrumentos desapropriados ou desconformes com a legislação fiscal ou que tenham uma reprovação a luz do direito.

              Assim, no que concerne ao elemento normativo, verifica-se que, após enquadramento normativo das situações em apreço, foi aplicada a CGAA prevista no nº 2 do art.º 38º da LGT, devendo a tributação ser efetuada de acordo com as normas aplicáveis aos negócios com idêntico fim económico na esfera dos efetivos beneficiários, não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas (ponto V.2. do RIT). Considera-se, assim, verificado e devidamente comprovado o elemento normativo.

              O elemento sancionatório corresponde à estatuição da norma da CGAA, dependendo da verificação cumulativa dos elementos atrás referidos. Portanto, é a consequência legal da sua aplicação, acarretando a ineficácia do ato ou do negócio jurídico para efeitos fiscais, mantendo, porém o ato ou o negócio jurídico a sua validade e eficácia no âmbito civil (entre partes e terceiros)

              A ineficácia consagrada na lei sanciona o comportamento elisivo pelo que os efeitos fiscais obtidos ou a obter deixam de ser vinculativos para a administração fiscal, passando a desconsiderar os atos praticados e negócios jurídicos celebrados, adaptando-os em termos capazes de negar as vantagens fiscais visadas.

              Considera-se, por isso, verificado e devidamente comprovado o elemento sancionatório, porquanto foi provada a pratica de abuso de formas jurídicas com o objetivo de obtenção de vantagens fiscais.

              Quanto aos juros indemnizatórios, as liquidações mostram-se corretas e de conformidade com a lei, não procedendo os argumentos dos Requerentes, devendo, em consonância ser mantidas a liquidação de IRS 2019 nº 2023 ... de 14-04-2023, com valor a pagar de 1.217.215,78€ (acerto de contas nº 2023 ... de 12-12-2023 e juros compensatórios majorados nº 2023... no valor de 444.343,10€, juros compensatórios por recebimento indevido nº 2023 ... no valor de 597,49€ e estorno de liquidação nº 2020... no valor de 5.569,14€), perfazendo um valor global de 1.667.128,02€.

              No que respeita à decisão prolatada nos autos de processo 886/2024-T, com o devido respeito, a jurisprudência não é fonte de direito no ordenamento jurídico português, ao que acresce que a mesma ainda não transitou em julgado.

Conclusão

A.   O conjunto de operações realizadas - transformação da C..., NIF..., em sociedade anónima antes da doação das suas ações (dos Pais para os 5 filhos) e sua posterior alienação pelos donatários para a sociedade G..., UNIPESSOAL, LDA NIF..., permitiu aos Requerentes não serem tributado em IRS.

B.   Atenta a fatualidade apurada, outra não podia ser a conclusão, senão a de que a operação desenvolvida é manifestamente artificial e abusiva e teve como objetivo a transformação artificial de uma mais-valia a pagar, numa mais-valia excluída de tributação.

C.   Sem que para o efeito releve nenhuma justificação económica, uma vez que, não se pode considerar lícito, nem legítimo que um contribuinte transforme rendimentos sujeitos a tributação em rendimentos dela excluídos, construindo artificiosamente uma mais-valia fiscal não sujeita a tributação.

D.   Tal atuação é totalmente desconforme com a realidade económica que presidiu ao seu surgimento e que como tal tem de ser sujeita à aplicação da CGAA prevista no artigo 38º, n.º 2 da LGT, em conformação com o princípio da legalidade e da capacidade contributiva.

E.   Estando, pois, devidamente fundamentada a decisão de aplicação da clausula geral antiabuso.

F.   Demonstrou a Administração Tributária, quer em sede de procedimento inspectivo, quer nos presentes autos arbitrais que estão reunidos os pressupostos previstos no n.º 2 do art.º 38.º da LGT que determinam a aplicação da cláusula geral antiabuso para efeitos de liquidação do imposto que se mostra devido.

G.   Abstraindo da delimitação da fronteira do que permite licitamente reduzir encargos fiscais e o que não o permite, há que considerar sempre que, pondo o planeamento fiscal em causa o princípio da igualdade, a CGAA é uma medida que visa assegurar a reposição da equidade na distribuição relativa dos encargos, pressuposto e critério da tributação no nosso sistema jurídico fiscal, cf. artigo 4º, n.º 1 da LGT que prescreve que «os impostos assentam especialmente na capacidade contributiva revelada através do rendimento ou dasua utilização e do património», bem como nas disposições legais relativas à tributação de rendimentos ilícitos.

H.   É importante colocar as coisas no seu devido contexto.

I.     Os destinatários da tributação podem adotar diferentes reações para evitar a cobrança de impostos, cabe à Administração Tributária defender a integridade do sistema fiscal e evitar atropelos ao princípio da igualdade.

J.    Os quais criam situações graves da perspetiva de um Estado de Direito, quando uma esmagadora maioria se sente privilegiada, porquanto afinal de contas a lei existe, é-lhe desfavorável, mas não lhe foi aplicada.

K.   Afrontando assim os princípios constitucionais da tributação do rendimento real, da proporcionalidade, da igualdade e da justiça.

 

III. SANEAMENTO

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

Cabe, pois, apreciar e decidir.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO 

              § 1.º Factos provados

Os factos relevantes para a decisão da causa que se dão como assentes são os seguintes.

A)   A sociedade C... era uma empresa familiar, constituída em 1971, sob a forma de sociedade por quotas, e cujo capital social, a partir de 1987, passou a ser integralmente detido pelos Pais da Requerente, E... e  F... (facto consensual).

B)   A Requerente exerceu, na sociedade, desde 2000, o cargo de gerente única, mantendo-se os Pais como únicos titulares do capital social daquela (RIT V.1.2 e ata n.º 55, de 22 de junho de 2000 , junta como anexo 5).

C)    No exercício desse cargo, a Requerente retirou a sociedade da situação financeira negativa em que se encontrava, recolocando-a numa situação de operação lucrativa e de capital positivo, e, consequentemente, valorizando-a (RIT V.1.3).

D)   Em 8 de agosto de 2019, os únicos sócios E... e F..., na qualidade de vendedores, celebraram com a sociedade de direito espanhol  K... SL, na qualidade de compradores, um contrato-promessa de compra e venda do capital social da sociedade C..., pelo valor de € 22.000.000.00 (Anexo 9 ao RIT).

E)    No contrato foi estipulado que a K... SL estava autorizada a ceder a sua posição contratual a uma sociedade de direito português ainda em processo de constituição, a qual seria assim a adquirente da totalidade do capital social da sociedade (Anexo 9 ao RIT).

F)    No mesmo contrato, denominado, em inglês, SHARE PURCHASE AGREEMENT (Contrato de compra de ações, em língua portuguesa), no Capítulo 9 - MANAGEMENT OF THE COMPANY UNTIL THE CLOSING DATE (Gestão da empresa até à data de encerramento), foi também estipulado que (Anexo 9 ao RIT):

Em língua portuguesa:

As partes concordam que, até à celebração do contrato de compra e venda, a Sociedade está autorizada a realizar as seguintes ações (Ações Permitidas):

a)          A conversão da Sociedade em "Sociedade Anónima", em conformidade com o artigo 130.º e seguintes do Código das Sociedades Português.

Os vendedores deverão realizar todos os atos societários e registos necessários para a conversão da Companhia em Sociedade Anónima e manter o Comprador informado sobre a conclusão de cada ato societário até o registo final da Conversão, inclusive.

G)   Em 26 de Setembro de 2019 ocorreu a cessão da posição contratual da promitente compradora a favor da G..., UNIPESSOAL LDA (Anexo 9 ao RIT).

H)    Em 30 de setembro de 2019, os sócios da C..., E... e F..., reunidos em assembleia geral, decidiram aumentar o capital social em € 3,00, através da emissão de três quotas, com o valor nominal de € 1,00, as quais foram adquiridas pelos filhos A..., L... e M... (RIT V.1.3 e doc. 6 junto ao RIT).

I)     A Assembleia Geral aprovou igualmente o Relatório Justificativo da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e os estatutos por que se regeria a partir dessa data (Doc. 7 junto ao RIT)

J)     Após a transformação em sociedade anónima, os sócios E... e F... passaram a deter 99,995% do capital social da C... (RIT V.1.3.).

K)   Em 18 de outubro de 2019, os sócios E... e F... doaram aos seus filhos N..., O..., P..., Q... e L... as participações sociais que detinham na empresa, sendo que a Requerente passou a deter 31,67% do capital social (RIT V.1.4.).

L)    Em 24 de outubro de 2019, os donatários alienaram, mediante contrato de compra e venda (COMPLETATION AND TRANSFER DEED) a totalidade das suas participações sociais à sociedade G... UNIPESSOAL, LDA pelo valor total de € 22.000.000,00 (RIT V.1.6. e Doc.9 anexo ao RIT).

M)   A sociedade G... UNIPESSOAL, LDA, entidade compradora e que para o efeito foi constituída segundo a lei portuguesa, emitiu uma declaração, que constitui o documento n.º 7 junto ao pedido arbitral, do seguinte teor:

Re.: Shares Sale and Purchase Agreement of H…, S.A.

Lisbon, May 28, 2023

Dear Sirs,

We make reference to the Shares Sale and Purchase Agreement entered into by and between G…, Unipessoal, Lda., as Buyer, and A… , O…, P…, L… and Q…, as Sellers, regarding the shares representing the entire share capital of H…, S. A. (the "Target") dated August 8th, 2019 and which closing took place on October 24th, 2019 (the "Sale and Purchase Agreement").

We hereby confirm that the acquisition of the Target was partially financed through a facility agreement granted by a Portuguese bank. As a standard mandatory condition for the obtaining of such financing, G… was requested to grant guarantees, among which was the creation of a financial pledge over the shares of the Target.

This is a standard security in this type of financing in Portugal and without the possibility of creating such guarantee, the obtaining of the financing could have been jeopardized or in alternative, G… and Its shareholder would have been requested to grant other, more onerous, guarantees. The financing, and therefore the creation of a financial pledge over the shares, was an essential part of the transaction.

                  Em língua portuguesa:

Ref.: Contrato de Compra e Venda de Ações da H..., S.A.

Lisboa, 28 de maio de 2023

Exmos. Senhores,

Vimos por este meio referir-nos ao Contrato de Compra e Venda de Ações celebrado entre a G... Unipessoal, Lda., como Compradora, e A..., O...,  P...,  L... e Q..., como Vendedores, relativamente às ações representativas da totalidade do capital social da H..., S.A. (a “Sociedade”), datado de 8 de agosto de 2019 e cuja conclusão ocorreu em 24 de outubro de 2019 (o “Contrato de Compra e Venda”).

Por este meio, confirmamos que a aquisição da Sociedade foi parcialmente financiada através de um contrato de financiamento concedido por um banco português. Como condição obrigatória padrão para a obtenção de tal financiamento, foi solicitado à G... que concedesse garantias, entre as quais se encontra a criação de um penhor financeiro sobre as ações da Sociedade.

Esta é uma garantia habitual neste tipo de financiamentos em Portugal e, não sendo possível a sua constituição, a obtenção do financiamento poderia ter sido comprometida ou, em alternativa, a G... e o seu acionista teriam sido solicitados a conceder outras garantias mais onerosas. O financiamento, e consequentemente a constituição do penhor financeiro sobre as ações, foi uma parte essencial da transação.

N)   Por efeito do negócio jurídico a que se refere a antecedente alínea I), a Requerente alienou a sua participação social de 31,67% à sociedade G... UNIPESSOAL, LDA, correspondendo a um a valor de realização de € 6.967.399,96 (RIT V.1.7.).

O)   A Requerente recebeu na sua esfera patrimonial pessoal todos os pagamentos efetuados pela compradora e relativos ao pagamento acordado para o preço de venda, mas entregou aos seus irmãos o valor das prestações que lhes cabiam, não tendo, com esse facto, alterado a sua situação patrimonial (RIT V.1.6).

P)    Em 3 de julho de 2020, a Requerente e o seu cônjuge B... apresentaram uma declaração de rendimentos de substituição Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2019, tendo a Requerente indicado, no Anexo A, rendimentos de trabalho dependente, no valor de € 134.240,00, e declarado, no anexo G, menos-valias, os valores e datas de realização e de aquisição das ações alienadas, tendo sido apurado um saldo negativo (menos-valias) entre aqueles valores, de € 3.700.454,06 (RIT IV.1.).

Q)   As menos-valias no valor de € 3.700.454,06 resultam da diferença entre o valor da realização, por efeito da alienação de ações representativas de 31,67% do capital social da C..., correspondente de € 6.967.399,96, e o valor de aquisição declarado, correspondente a € 10.667.853,02 (RIT IV.2.).

R)   O valor de aquisição declarado de € 10.667.853,02 resulta de se ter considerado, para efeitos de determinação de mais-ou menos-valias, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1, do CIRS, o valor que serviu de base à liquidação do imposto do selo aquando da doaçõe, conforme o previsto no artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto do Selo, e constitui uma consequência da transformação da C... em sociedade anónima (RIT V.2.1.4.).

S)    Os Requerentes foram alvo de uma ação inspetiva externa de âmbito parcial, em sede de IRS, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2022..., em vista à verificação do cumprimento das suas obrigações fiscais (documento n.º 3 junto ao pedido arbitral).

T)   Por ofício de 22 de julho de 2022, os sujeitos passivos foram notificados do teor do projeto de relatório de inspeção tributária para efeito do exercício do direito de audição prévia (documento n.º 5 junto ao pedido arbitral).

U)   Em 21 de setembro de 2022, os Requerentes exerceram o direito de audição, contestando as correções propostas.

V)   O Relatório de Inspeção Tributária conclui do seguinte modo (documento n.º 3 junto ao pedido arbitral):

         V.3. Proposta de decisão 

                                     I.              Tendo-se verificado, de acordo com os factos relatados nos capítulos anteriores deste relatório, estarem reunidas as condições para aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT, conforme já explicado, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz, no âmbito tributário, a transformação da H... SÁ em sociedade anónima, antes da doação das suas ações e sua posterior alienação pelos donatários (num negócio que já tinha sido negociado antes da transformação em sociedade anónima), permitindo-lhes não serem tributados em sede de IRS sobre a mais-valia das quotas realizada, para aproveitando abusivamente o facto da avaliação das ações ser diferente da avaliação das quotas, para efeito do imposto do selo, aquando da doação, sendo este valor que serve de custo de aquisição para efeitos de cálculo da mais-valia.

                                   II.              Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência de tal estrutura, concretamente desconsiderando a transformação em sociedade anónima por ser um ato abusivo e desprovido de substância económica, não se produzindo as vantagens fiscais, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LGT.

W)  Na sequência da "proposta de decisão" transcrita, a Autoridade Tributária aplicou a Cláusula Geral Antiabuso (CGAA), com base na qual alterou a disposição legal para determinação do valor de aquisição do ativo transmitido (ações) e aplicou, para o mesmo efeito, a norma aplicável à determinação do valor de aquisição de um ativo não transmitido (quotas) (RIT. V.I.7).

X)    E apurou uma mais-valia de € 3.932.335,22, correspondente à diferença entre o valor da realização (€ 6967.363,21) e o valor da aquisição (€ 3.035.063,74), resultando um imposto a pagar, em sede de IRS, de € 1.101.053,86, acrescido de juros num total de € 565.476,67, no valor total de € 1.667.128,02 (documento n.º 2 junto ao pedido arbitral).

Y)    Os Requerentes procederam ao pagamento do imposto devido em 16-01-2024 (PA 11, Reclamação Graciosa, Identificação do Ato reclamado).

Z)    Em 7 de maio de 2024, os Requerentes, apresentaram a reclamação graciosa contra a liquidação adicional referente ao ano de 2019 em 07-05-2024 (PA 11, Reclamação Graciosa, Identificação do Ato Reclamado).

AA)      Por despacho de 27 de setembro de 2024, do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Aveiro, a reclamação graciosa foi indeferida junto ao pedido arbitral, com os seguintes fundamentos (Documento 1 junto ao pedido arbitral):

3.2. Análise dos argumentos

De seguida, proceder-se-á à análise da argumentação constante da petição do contribuinte:

A. Pontos 12.° a 16.°: conforme consta da petição, a reclamante foi gerente da C... desde 28-06-2000, tendo exercido a sua atividade profissional nesta empresa desde 1991. Apesar disto, afirma que apenas tomava decisões operacionais, sendo aos seus pais que competiam as decisões que iam além disto. No entanto, da leitura do RIT (relatório de inspeção tributária) conclui-se que a reclamante assumiu em 2000 a gerência efetiva da sociedade, a qual se encontrava em dificuldades financeiras desde há alguns anos, pondo em causa a continuidade da atividade. A evolução dos resultados e indicadores financeiros demonstram que foi efetuada uma reestruturação bem-sucedida da atividade, a qual se refletiu em rentabilidades elevadas, principalmente a partir do ano 2012. Esta mudança operada na sociedade não pode ser dissociada de uma intervenção ampla da gerente, constando das atas das assembleias gerais citadas no RIT o reconhecimento do seu mérito. Assim, não tem fundamento a afirmação de que a reclamante se limitava a tomar decisões operacionais, quando na realidade operou uma alteração total da sociedade, tornando-a altamente rentável, o que só pode ter sido alcançado por força de uma atuação reforçada da gerente-única. Por outro lado, veja-se que em 2021 a reclamante completou a idade de 56 anos, enquanto o seu pai completou a idade de 90 anos e a sua mãe a idade de 82 anos.

B. Pontos 17.° a 21.°: nestes pontos, tal como nos seguintes, a argumentação da reclamante incorre no erro de analisar os atos de forma isolada (neste caso a doação dos pais aos filhos). Tal forma de argumentar não se mostra consentânea com a estatuição da CGAA, que se baseia numa análise holistica dos atos ou negócios, principais, preparatórios e complementares, já que apenas assim se revela o objeto elisivo da construção ou série de construções. Por outro lado, a CGAA tem como génese a desconsideração dos efeitos fiscais de atos ou negócios, que individualmente são lícitos, mas que em conjunto frustram os legais interesses do Estado. Assim, remete-se para o ponto E desta análise, onde serão elencados os fundamentos da aplicação da CGAA.

C. Pontos 22.° a 59.°: nestes pontos, a reclamante alega que na transformação em sociedade anónima se limitou a subscrever capital no valor de um euro, para que fosse cumprido o requisito legal do número mínimo de 5 acionistas e, para além disto, esta transformação é um ato legítimo e adequado. Ora, tal como se referiu anteriormente, os atos devem ser analisados de forma integrada, já que estamos perante uma construção constituída por vários atos, visando, no final, a obtenção da vantagem fiscal. Assim, e também aqui, remete-se para a análise constante do ponto E.

D. Pontos 60.° a 94.°: nestes pontos vem alegar que, se os pais da reclamante tivessem vendido as quotas, não teriam sido tributados em sede de IRS, já que detinham as ações antes de 1989, pelo que inexiste a alegada vantagem fiscal resultante desta construção. 

Para além disto, havendo tributação, esta teria que recair sobre aqueles e não sobre a reclamante. Ora, esta hipótese já tinha sido aventada pela reclamante no seu direito de audição sobre o projeto de relatório de aplicação da CGAA, constando do RIT a fundamentação para a impossibilidade de os intervenientes apresentarem um negócio alternativo ao efetivamente realizado, a qual seguimos. 

Com efeito, a CGAA não é uma cláusula aberta que permita afastar a solução legal de tributação que decorre da norma que resultaria aplicável por desconsideração dos atos ou negócios considerados abusivos, pelo que, da aplicação desta, deve resultar a tributação que seria devida caso não fossem praticados os atos considerados abusivos ou não genuínos. Aquilo que consta da petição e a substituição integral dos atos praticados pelos intervenientes por um cenário alternativo desconforme ao circunstancialismo que efetivamente ocorreu, o que não encontra enquadramento no conceito da CGAA.

Por outro lado, da aplicação da CGAA deve resultar uma tributação que repõe as normas fiscais iludidas ou frustradas, o que, neste caso, resultou na tributação do rendimento obtido pela reclamante em resultado da alienação onerosa das partes de capital da C..., ou seja, um rendimento tributável em sede de IRS, no âmbito da categoria G, nos termos do art. 10.° do CIRS.  Por conseguinte, não restam dúvidas de que o sujeito passivo sobre o qual deve recair a aplicação da CGAA é a reclamante, por ser o efetivo beneficiário da vantagem fiscal abusiva, ou seja, quem tem a capacidade contributiva (art. 104.°, n.° 2 da CRP) e por respeito ao princípio da justiça material (art. 5.°, n.° 2 da LGT).

Por fim, reforçamos que, conforme demonstrado no RIT, os atos e negócios correspondentes à realidade económica seriam os pais doarem as suas quotas aos filhos e estes venderem-nas à G..., ficando os donatários sujeitos à tributação em sede IRS - Categoria G, o que não aconteceu por força da construção realizada, já que a transformação (abusiva) da C... em sociedade anónima permitiu o "step up" do custo de aquisição, eliminando a tributação.

No ponto seguinte desta análise, o abuso praticado nesta construção será analisado mais pormenorizadamente.

E. Pontos 95.° a 138.°: nestes pontos, a reclamante vem contestar os fundamentos para aplicação da CGAA. Ora, conforme já se referiu anteriormente, a petição da reclamante incorre no erro de analisar os atos de uma forma individualizada, quando, para aplicação da CGAA deve ser efetuada uma análise holística da construção, permitindo destacar o seu objetivo elisivo. Os termos segundo os quais esta análise deve ser efetuada encontram-se definidos no n.° 3 do artigo 63.° do CPPT, sendo que estes elementos constam do RIT, no ponto V.2, pelo que foi cumprido este requisito legal para aplicação da CGAA.

Ora, conjugando a fundamentação do RIT e a contestação da reclamante, que invoca a inexistência dos elementos que permitem a aplicação da CGAA, apresentamos a seguinte análise:

o   De acordo com o RIT (ponto V.2.1.1), a construção consubstanciou-se em 4 atos, que foram: A celebração de um contrato-promessa de compra e venda do capital da C..., entre E... e F... e a K... em 08-08-2019;

o   A transformação da C... em sociedade anónima em 30-09-2019: 

o   E... e F... doam aos seus filhos a totalidade do capital da C... em 18-10-2019; e

o   A transferência da posse do capital da C... para a G... em 24-10-2019.

Esta análise sequencial da construção permite concluir que a introdução da transformação em sociedade anónima, quando já estava acordada a venda do capital da C..., foi um ato que teve por única finalidade a obtenção da almejada vantagem fiscal, não existindo qualquer razão económica subjacente, mas somente a motivação fiscal (tax driven scheme). Esta transformação, realizada 24 dias antes da entrega das partes de capital ao comprador, não poderia produzir qualquer efeito económico na esfera dos vendedores, pelo que só pode ter sido motivada pela obtenção da vantagem fiscal.

Assim, foi dado cumprimento ao disposto na alínea a) do n.° 3 do artigo 63.° do CPPT, tendo sido efetuada a descrição da construção ou série de construções que foram realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não foram realizadas por razões económicas válidas que reflitam a substância económica.

De acordo com o RIT (ponto V.2.1.2), a vantagem fiscal desta construção, consubstancia-se na venda das ações da C... à G... e recebimento do preço acordado de 
€ 22.000.000 (€ 6.967.399,96 no caso da reclamante), sem que a mais valia realizada ficasse sujeita a tributação em sede de IRS, através do aproveitamento abusivo do regime do regime previsto nos art. 45.°, n.° 1 do CIRS e art. 15.°, n.° 3, al. a) do CIS, tendo sido conseguida com a transformação da  C... em sociedade anónima (antes da doação das ações), tratando-se de um ato sem efeitos económicos, tendo apenas um efeito fiscal ao permitir incrementar o custo de aquisição das partes de capital, permitindo eliminar a tributação em sede de Categoria G de IRS. Esta transformação em sociedade anónima foi um ato que não podia produzir efeitos económicos, já que foi praticado quando já tinha sido acordada a venda do capital da C..., que veio a ser concretizada apenas 24 dias após a transformação e 6 dias após a doação, sendo que o contrato-promessa de venda, datado de 08-08-2019, tinha sido assinado pela reclamante. Ou seja, só pode concluir-se que este encadeamento de atos foi premeditado para a obtenção da vantagem fiscal, ou seja, incrementar o património dos vendedores, nomeadamente o da reclamante, prejudicando as receitas do Estado.

Por outro lado, neste ponto do RIT é destacado o facto do contrato promessa (anexo n.º 10 do RIT) incluir uma cláusula que autorizava os vendedores a transformar a C... em sociedade anónima, o que demonstra que estamos perante uma construção intencional e planeada pelos vendedores para obter a vantagem fiscal. No entanto, apesar de ficar clara a intenção subjacente à introdução desta cláusula, a reclamante vem invocar que o interesse na transformação era dos compradores, para poderem financiar a operação. Ora, tal argumento não pode ser acolhido, já que da leitura do contrato-promessa, que é extenso, pormenorizado e complexo, conclui-se que o mesmo foi cuidadosamente elaborado no sentido de salvaguardar os interesses do comprador que iria investir 22 milhões de euros. Por outro lado, tratando-se de um fundo de investimento de capital de risco (private equity) internacional, tem experiência neste tipo de operações e é devidamente assessorado por entidades especializadas (nas áreas jurídicas e económicas), não sendo plausível que, se efetivamente a transformação fosse indispensável para financiar a aquisição da sociedade, não tivesse sido incluída no contrato uma cláusula que obrigasse os vendedores a realizar aquele ato. Assim, deve ser mantido aquilo que foi concluído no RIT, ou seja, que a introdução da cláusula que autorizava os vendedores a transformar a C... em sociedade anónima resulta da vontade destes em concretizar a construção que lhes permitiu obter a vantagem fiscal.

A reclamante junta também uma declaração dos compradores, emitida a posteriori, a pedido da reclamante, não apresentando qualquer prova concreta do tipo de financiamento a que o fundo de investimento recorreu para concretizar esta aquisição, nem demonstrando a existência do alegado penhor prestado, pelo que esta declaração, tal como a argumentação que lhe está associada, não podem ser valorizados por falta de sustentação. Por outro lado, note-se que a sociedade veículo G... UNIPESSOAL LDA que adquiriu as ações da C... é uma sociedade por quotas, o que é contraditório com a argumentação da reclamante.

Veja-se ainda que, em 28-11-2023, a H..., SA - NIF ..., foi incorporada na I..., LDA - NIF ... (anteriormente denominada J..., LDA), ou seja, o argumento da reclamante de que a transformação em sociedade anónima era indispensável para esta ser adquirida por um fundo de investimento (private equity), é contrariado pelo facto de, em 2023, o fundo de investimento detentor a ter transformado em sociedade por quotas:

 

 

 

 

 

Assim, foi dado cumprimento ao disposto na alinea b) do n.° 3 do artigo 63.° do CPPT, tendo sido demonstrado que a construção ou série de construções foi realizada com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal não conforme com o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, pelo que. competia à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário os efeitos da transformação da C... em sociedade anónima, que resultaram na eliminação da tributação em sede de IRS que seria devida caso esta operação inútil em termos económicos não tivesse sido realizada.

De acordo com o RIT (ponto V.2.1.3), os atos e negócios que corresponderiam à realidade económica, seriam os pais doarem as quotas aos seus filhos e estes venderem-nas, sem realizar a transformação em sociedade anónima, por se tratar de um ato inútil em termos económicos e que apenas serviu para a obtenção da vantagem fiscal.

Ao realizar aquele ato inútil para a obtenção dos fins económicos desejados, a reclamante conseguiu alterar a forma de determinação do custo de aquisição das partes de capital alienadas, que, tratando-se de quotas, seria apurado por aplicação do art. 15.°, n.° 1 do CIS e, tratando-se de ações, foi apurado com base no art. 15.º, n.° 3, al. a) do CIS, ou seja, conseguiu um incremento do valor de aquisição que transformou o rendimento de mais-valias (categoria G de IRS) numa perda a reportar para os anos seguintes.

Assim, foi dado cumprimento ao disposto na alínea c) do n.° 3 do artigo 63.° do CPPT (1.ª parte), tendo sido identificados os negócios ou atos que correspondem à substância ou realidade económica, tendo em conta que, retirando desta construção a transformação em sociedade anónima (ato inútil em termos económicos), resultaria um negócio correspondente à realidade económica que lhe estava subjacente.

De acordo com o RIT (ponto V.2.1.4), a tributação que deveria ter incidido sobre este negócio foi contornada através da realização do ato inútil e abusivo de transformar a C... em sociedade anónima, evitando que a avaliação das quotas doadas para efeitos de imposto do selo fosse efetuada de acordo com o disposto no art. 15.°, n.° 1 do CIS, tendo sido efetuada com base nas regras art. 15.°, n.° 3, al. a) do CIS já que as quotas foram transformadas em ações, resultando assim um valor de avaliação substancialmente maior, e assim, resultando no apuramento duma menos-valia.

Neste caso, por força da avaliação das ações doadas à reclamante pelos seus pais no valor de 
€ 10.497.220,60, esta apurou na sua declaração Modelo 3 de IRS - anexo G uma menos-valia no montante de € 3.700.454,06, a qual, tendo em conta a opção pelo englobamento dos rendimentos da categoria G, é dedutível aos rendimentos positivos da mesma categoria nos 5 exercícios seguintes (art.s 22° e 55.° do CIRS).

No entanto, caso não tivesse sido praticado o ato inútil e abusivo de transformar a C... em sociedade anónima, a quota doada à reclamante teria sido avaliada em 
€ 3.035.063,74, resultando numa mais-valia no montante de € 3.932.299,47. Por outro lado, contrariamente ao que pretende fazer crer face ao teor da petição, a reclamante não pode ser considerada uma pessoa inexperiente na área dos negócios. nem é crível que a sua intervenção nestes atos tenha sido meramente ocasional. Pelo contrário, o seu histórico profissional, nomeadamente os resultados obtidos enquanto gerente da C..., desde o ano 2000, demonstram a sua capacidade de gestão e visão para o negócio, o que neste caso sustenta a intencionalidade desta construção, com vista à obtenção da vantagem fiscal.

Assim, foi dado cumprimento ao disposto na alínea c) do n.° 3 do artigo 63.° do CPPT (2.ª parte), tendo sido indicadas as normas de incidência aplicáveis, que, por força da diferença entre a forma de avaliar as quotas e as ações, valor este que serve de custo de aquisição aquando da venda, resulta numa correção ao rendimento tributável declarado em sede de IRS, na categoria G, no montante de 
€ 7.632.753,35 (diferença entre a menos-valia declarada de € 3.700.454,06 e a mais-valia corrigida de
 € 3.932.299,47).

Deste modo, conclui-se que se encontram devidamente fundamentados os pressupostos para aplicação da CGAA a esta construção.

F. Pontos 139.° a 180.°: nesta parte da petição a reclamante vem contestar a majoração em 15 pontos percentuais dos juros compensatórios devidos. A majoração que a reclamante contesta encontra-se prevista no art. 38.°, n.° 6 da LGT, tendo a AT, na liquidação resultante da ação de inspeção, aplicado este normativo.

Ora, tendo sido aplicado o disposto no n.° 2 do art. 38.° da LGT, a AT limitou-se a cumprir com o disposto na Lei, pelo que, nada mais temos a acrescentar a esta mera aplicação dos normativos legais.

Por fim, importa realçar que, ao longo da petição, a reclamante tenta criar a ilusão de que estamos perante intervenientes que agiram de forma ingénua e negligente. Ora, da leitura do RIT só podemos concluir que estamos perante uma argumentação que não corresponde, de todo, à realidade dos factos, já que, de toda a factualidade exposta naquele documento inspetivo, se conclui com firmeza que a sucessão de operações realizadas pela reclamante e restante família, foram levadas a efeito com minúcia e tecnicidade que de forma alguma são compatíveis com o teor da petição agora apresentada. Contrariamente à argumentação constante da petição, os atos aqui em análise não são fruto do acaso, mas resultam de um encadeamento intencional e premeditado, com vista à obtenção da almejada vantagem fiscal.

....

5 - CONCLUSÃO

Perante o exposto, conclui-se que a reclamante não apresentou argumentos válidos que ponham em causa os pressupostos para aplicação da CGAA, pelo que somos de PARECER que será de decidir de harmonia com a proposta acima referida. já notificada ao sujeito passivo, no sentido do indeferimento.

BB)      O mandatário dos Requerentes foi notificado do despacho de indeferimento por ofício datado de 27 de setembro de 2024.

CC)       O pedido arbitral deu entrada em 6 de janeiro de 2025.

 

              § 2.º Factos não provados

              Não foi provado que as ações constituíram o objeto de penhor financeiro, apresentado como garantia, em financiamento, por um banco português, da aquisição;

              Com relevo para a decisão da causa, não existem mais factos que não tenham ficado provados. 

 

              § 3.º Motivação da matéria de facto

              O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição inicial que são discriminados na matéria de facto e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e no relatório de inspeção tributária enquanto fundamentação originária dos atos postos em crise e na informação que fundamentou a decisão de indeferimento proferida na reclamação graciosa e que não modificou a motivação expressa no RIT. 

              Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. 

              Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT). 

              Os factos dados como provados foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das partes. 

              Deste modo, face às posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, dão-se como provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 

              Não se deram como provadas nem como não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

V. MATÉRIA DE DIREITO

              § 1.º Questões a decidir

              Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, as questões a apreciar consistemem saber:

i.        Qual a redação em vigor, e consequentemente aplicável, da CGAA, à data da verificação dos factos relatados, designadamente à data à transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima;

ii.       Se a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, integrando um conjunto de operações sucessivas, que culminou com a venda da totalidade do capital da sociedade, o que se traduz na venda da sociedade, visou evitar a tributação de mais-valias realizadas pela Requerente na alienação onerosa da sua participação social representada por ações ou se, pelo contrário, não foi esse o único, ou principal, motivo para a referida transformação;

iii.      E se se concluir que a transformação da sociedade constituiu o único, ou principal, motivo para que a alienação das ações, embora tributada, não tivesse dado origem ao pagamento de imposto, pelo contrário, dando origem a menos-valias suscetíveis de reporte a anos subsequente, quais são os negócios ou atos que correspondem à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas;

iv.     A natureza da taxa de juros indemnizatórios aplicável ao imposto liquidado por aplicação da CGAA.

 

              § 2.º Sobre a cláusula geral antiabuso (CGAA)

i) Redação do artigo 38.º da LGT à data dos factos

              A liquidação que vem impugnada resulta de, no entendimento da Requerida, plasmado logo no RIT, ser aplicável à alienação das ações pela Requerente, no contexto em que o foram, a aplicação da CGAA. Importa, pois, em primeiro lugar, determinar qual a redação em vigor ao tempo da verificação dos factos, tendo em vista que:

i.        No RIT, V.2, se escreve que "A cláusula geral anti abuso (CGAA) está prevista no n.º 2 do artigo 38° da Lei Geral Tributária (LGT), e tem a seguinte redação (dada pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, no âmbito da transposição da ATAD 1 - Diretiva Anti Elisão da UE)";

ii.       A Requerente, no PPA, não contesta a aplicação da CGAA na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio;

iii.      Na RG e na decisão que sobre ela foi proferida o tema não é tratado;

iv.           Na Resposta da Requerida, no seu artigo 28.º, escreve-se que "É neste sentido que o n.º 2 do art.º 38º da LGT na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000 de 29/12 vigente à data dos factos, ..."

              O Tribunal deve tomar conhecimento desta contradição levantada pela própria Requerida, porque tem de determinar a base legal vigente à data dos factos para poder decidir o fundo da questão. E, neste sentido, não pode deixar de referir-se que a posição da Requerida, na sua Resposta, não é a correta. A Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, entrou em vigor, de acordo com o disposto no seu artigo 7.º (Entrada em vigor), "... no dia seguinte ao da sua publicação". Isto é, entrou em vigor em 4 de maio de 2019. Tendo todos os factos sob escrutínio ocorrido após a referida data, não pode deixar de concluir-se, como no RIT, que a redação da CGAA aplicável é a que foi dada ao artigo 38.º da LGT, designadamente ao seu n.º 2 e ao aditado n.º 6, pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio.

 

ii) e iii) A motivação das "construções ou séries de construções" e a realização "com abuso das formas jurídicas ou que não sejam consideradas genuínas”, estas assim qualificadas quando não sejam realizadas "por razões económicas válidas"

              Para dilucidar a questão que está em debate justifica-se descrever, ainda que em termos sucintos, o regime da cláusula geral antiabuso.

              O artigo 38.º da LGT, na redação resultante da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, sob a epígrafe “Ineficácia de atose negócios jurídicos”, na parte que interessa considerar, dispõe nos seguintes termos:

1 - A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.

2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.

3 - Para efeitos do número anterior considera-se que:

a)            Uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja realizada por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;

b)            Uma construção pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.

4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica.

[…]

6 - Em caso de aplicação do disposto no n.º 2, os juros compensatórios que sejam devidos, nos termos do artigo 35.º, são majorados em 15 pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2011, de 5 de junho, na sua redação atual.

              Segundo JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Introdução Ao Planeamento Fiscal (Teoria Jurídica), Almedina, Coimbra, 2024, pp. 160/176, na nomenclatura por ele adotada de norma antiabuso geral (NAAG), depois de referir que esta cumpre a sua função quando consegue fazer prevalecer sobre a forma - artificiosa, imaginativa, engenhosa - a substância das situações (princípio da prevalência da substância sobre a forma), constituindo uma medida de emergência do sistema fiscal para atingir uma capacidade contributiva que de outro modo se esfumaria e ainda que como medida de emergência, apenas deve ser utilizada em casos justificados, sendo a sua utilização indevida considerada ilegal, determina dois pressupostos para a sua aplicação: um pressuposto objetivo (existência de artifício ou abuso) e um subjetivo (intencionalidade artificiosa ou abusiva).

              De acordo com o mesmo Autor, o pressuposto objetivo traduz-se em atos, negócios ou construções, que tenham sido efetuadas com recurso a meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, sendo este o sentido mais adequado para interpretar a expressão "não sejam consideradas genuínas", procurando significar situações jurídicas que, podendo ser válidas em termos de Direito Privado, são artificiais tendo em vista o fim (fiscal) que se pretende atingir. Por outro lado, a invocação e aplicação, da CGAA, exige o pressuposto subjetivo, ou a dimensão subjetiva, relacionada com os motivos determinantes da vontade dos sujeitos: é necessário que as construções ou séries de construções prossigam o objetivo determinado de obtenção de uma vantagem fiscal que se considere contrária ao espírito das normas. É verdade que o legislador utiliza enunciados linguísticos nebulosos - para dizer o mínimo - mas parece ser este o alcance das suas palavras ("realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável").

              Por último, deve mencionar-se a posição do Autor que vimos seguindo, segundo a qual a tarefa de discernir a concreta finalidade que as partes tiveram não se afigura fácil, podendo revelar-se mesmo impossível: aliás, sempre que o legislador invoca desígnios, propósitos ou planos, como aqui acontece, apela-se a determinações psíquicas e interiores que, na maior parte das situações, apenas o(s) próprio(s) conhece(m), não as revelando a ninguém, muito menos aos agentes de controlo tributário. Neste sentido, admitindo que não se conseguirá obter uma confissão das concretas intenções, nem que é possível perscrutar o interior da mente das pessoas, a única via jurídica admissível de lidar com este requisito e não o ter mesmo por inútil - e consequentemente não escrito passa por uma consideração objetiva da intenção. Esta última resultará, não da vontade real (psíquica), mas da vontade declarada, materializada nos contornos específicos que foram dados ao ato, negócio ou operação, e na envolvência do mesmo, determinada de acordo com parâmetros racionais e de razoabilidade, podendo apelar-se, por exemplo, aos padrões que normalmente se seguiriam naquele segmento negocial ou naquele nicho de mercado, para procurar averiguar se a atuação em causa teve propósitos exclusivos ou predominantes de evitação fiscal. De resto, o próprio legislador, de modo um tanto tortuoso, acaba por apelar à "consideração de todos os factos e circunstâncias relevantes" e, neste sentido - e apenas neste - a censurabilidade ou a culpa do agente acabará por se revelar irrelevante. Deve reconhecer-se que se trata de uma construção lógica e terminologicamente contraditória (apelando a uma espécie de intenção objetivada), mas será, como se disse, a única forma de atribuir algum efeito útil ao preceito.

              O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer ato ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único ou principal objetivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula antiabuso é o de considerar os atos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos atos equivalentes que pudessem ser praticados.

              Resulta de todas as precedentes considerações, que a cláusula geral antiabuso se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de atos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns.

              A aplicação da cláusula antiabuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a atuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

              Recorde-se, sinteticamente, a sequência de atos e contratos que foram celebrados, de forma inequívoca, com o principal objetivo, com evidente substância económica, de vender uma sociedade de cariz familiar a um terceiro nela interessado - aspeto que o RIT não realça:

-      Em 8 de agosto de 2019, os sócios E... e F... da C..., quando esta era uma sociedade por quotas, celebraram um contrato-promessa de compra e venda do capital social com a sociedade de direito espanhol K... SL, pelo valor de € 22.000.000,00.

-      No contrato, a K... SL foi autorizada a ceder a sua posição contratual a uma sociedade de direito português ainda em processo de constituição, e, em 26 de setembro de 2019, ocorreu a cessão da posição contratual a favor da sociedade G..., UNIPESSOAL LDA.

-      Em 30 de setembro de 2019, em assembleia geral, os únicos sócios E... e F..., deliberaram

o   Aumentar em € 3,00 o capital social da C..., mediante a criação de 3 novas quotas, tituladas por três dos seus cinco filhos;  

o   Transformar a C... em sociedade anónima, 

-      Em 18 de outubro de 2019, os sócios E... e F... doaram aos seus filhos A..., O..., P..., Q... e L... as participações socais que detinham na empresa, sendo que a Requerente A... passou a deter 31,67% do capital social.

-      Em 24 de outubro de 2019, os donatários alienaram a totalidade das suas participações sociais à sociedade G... UNIPESSOAL, LDA pelo valor total de € 22.000.000,00, sendo que a Requerente A... alienou a sua participação social de 31,67%, correspondendo a um a valor de realização de € 6.967.399,96.

-      Na declaração de rendimentos referente ao ano de 2019, os Requerentes declararam, no anexo G, a operação de alienação das ações de que era titular a Requerente.

-      Na determinação da matéria coletável, foram apuradas menos-valias que resultaram da diferença entre o valor da realização, por efeito da alienação de 31,67% do capital social da C..., correspondente a € 6.967.399,96, e o valor de aquisição declarado no montante de € 10.667.853,02.

-      Esse valor de aquisição resultou de se ter considerado, para efeitos de determinação de mais-ou menos-valias, nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1, do CIRS, o valor que serviu de base à liquidação do imposto do selo aquando das doações, conforme o previsto no artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto do Selo.

              Na cronologia dos factos, verifica-se a transformação da C... em sociedade anónima, por deliberação dos sócios E... e F..., depois de ter sido celebrado um contrato promessa para venda (CPV) do capital social, quando a empresa se encontrava constituída sob a forma de sociedade por quotas, e ainda antes da doação das participações sociais aos seus filhos, que, poucos dias depois, vieram a alienar a totalidade das suas participações sociais.

              No contexto em que ela se deu, não pode dar-se como provado que a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima não teve motivos económicos válidos, e por isso integra uma construção não genuína, e que teve como única ou principal finalidade a obtenção de uma vantagem fiscal com fundamentos consistentes exclusivamente em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova Com efeito, na vontade declarada, constante do CPV, cuja validade e genuinidade, quer o RIT quer a Resposta da AT, puseram em causa, os "donos" da empresa pretenderam vendê-la a terceiros que nela tinham interesse. E é a partir desse documento que se podem, racionalmente, entender as suas motivações.

              Na verdade, bem sabiam os contratantes que a sociedade que os vendedores pretendiam vender e os compradores pretendiam comprar era, segundo o direito português, nomeadamente o Código das Sociedades Comerciais (CSC), uma sociedade por quotas. Não obstante, e segundo os factos dados como provados, celebraram entre si um "contrato de compra de ações" o que, necessariamente, tem um alcance distinto do que aquele que decorreria de ao CPV fosse dada a denominação de "contrato de compra de quotas", ou até, genericamente, instalando uma dúvida razoável "contrato de compra de participações sociais". O que igualmente revela a vontade declarada dos compradores de adquirirem uma sociedade sob a forma de "sociedade anónima", igualmente prevista no CSC, com regime jurídico distinto do da sociedade por quotas e com o seu capital representado por ações.

              É, pois, convicção deste Tribunal que a "permissão" para a transformação da sociedade em sociedade anónima, constante do CPV, fazendo pouco ou nenhum sentido na perspetiva dos vendedores, pois não necessitavam dela para a efetuar, uma vez que continuavam, na pendência do CPV, titulares únicos do capital, mais do que uma "autorização" ou "permissão" dos promitentes compradores, cuja ilegitimidade para a dar é óbvia e inquestionável, é, ao contrário, uma "imposição" desses mesmos promitentes compradores, o que, com clareza, se alcança do parágrafo segundo do n.º 9.4 do CPV: "Os vendedores deverão realizar todos os atos societários e registos necessários para a conversão da Companhia em Sociedade Anónima e manter o Comprador informado sobre a conclusão de cada ato societário até o registo final da Conversão, inclusive". Não é legítimo interpretar, no sentido em que o faz a Requerida, a "permissão" constante da cláusula referida do CPCV como uma autorização, se os então promitentes-compradores não tinham, legalmente, legitimidade para a dar. Muito menos é apropriado para comprovar uma alegada "intenção" dos alienantes invocar factos posteriormente ocorridos com a sociedade alienada e relativamente aos quais eles não dispunham já de qualquer poder de controlo.

              Esta "imposição" dos promitentes compradores era suscetível de criar aos promitentes vendedores um problema novo, uma vez que, como vem afirmado pela Requerente e este Tribunal aceita, a alienação onerosa das quotas que representavam a totalidade do capital social pelos seus originários titulares seria sempre um ato não sujeito a IRS, independentemente do que aqueles fizessem com a liquidez obtida com a alienação.

              Igualmente se aceita a afirmação da Requerente, não contestada, de que, para transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima se exige um mínimo de cinco sócios, tal como se impõe no artigo 273.º, n.º 1, do CSC, ainda que, literalmente, tal exigência seja efetuada para a constituição da sociedade anónima.  O Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 
5-05-2005, Processo 0532143, fundamentando com a doutrina de RAÚL VENTURA, declarou nula a deliberação de transformação de uma sociedade por quotas com três sócios em sociedade anónima. Note-se, no entanto, que à condição de novos sócios apenas foram chamados 3 dos 5 filhos, "visando o cumprimento da exigência legal de 5 sócios", sendo um deles a Requerente. 

              Nos termos expostos, a substância económica da operação de transformação da sociedade em sociedade anónima, integrada no conjunto de operações que se concluíram com a sua alienação a terceiros, de harmonia com a factualidade dada como provada, está patente nessa alienação, efetuada em conformidade com as condições impostas pelos promitentes compradores. É, para o efeito, irrelevante, que a adquirente tivesse a forma de sociedade por quotas e que a exigência da transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima tivesse, na esfera da adquirente, o objetivo de obter o financiamento mediante o penhor de ações e que este se tivesse ou não concretizado. Trata-se, com efeito, de motivações que os vendedores não controlavam, não podiam nem tinham legitimidade para controlar. Não podem, assim, ter "efeitos retroativos" e servir de fundamento para pôr em causa factos muito antes ocorridos.

              A doação das ações pelos Pais aos cinco filhos - recordando-se que, como quotistas/acionistas da sociedade, apenas estavam três deles - é uma doação com respaldo legal no artigo 2029.º do Código Civil, que nada tem de artificioso ou abusivo. Com efeito, "não é havido como sucessório o contrato pelo qual alguém faz uma doação entre vivos de todos os seus bens ou de parte deles. Trata-se de uma transmissão de bens para os presumidos herdeiros legitimários que, apesar de regulada no livro do direito sucessório, a lei não considera como pacto sucessório. Não se trata de pacto sucessório uma vez que os bens são doados em vida, não são deixados pelo doador e não fazem parte da sua herança. A partilha não é da herança, mas de bens presentes. Como qualquer doação em vida, a doação produz imediatamente os seus efeitos, podendo o beneficiário da liberalidade dispor dos bens doados ainda em vida do doador" - in Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, CRISTINA ARAÚJO DIAS (Coord.), Almedina, Coimbra, 2018, pp. 21. Relativamente à doação, a Requerente cumpriu as obrigações declarativas fiscais, pois, tratando-se de uma transmissão gratuita de bens, está sujeita a Imposto do Selo, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 3, al. c), do artigo 1.º do Código do Imposto do Selo (CIS), embora beneficiando da isenção subjetiva consagrada na alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º do mesmo Código.

              Resulta deste contexto a determinação do valor tributável das ações nos termos do n.º 3 do artigo 15.º do CIS. Aliás, não pode deixar de causar perplexidade o facto de, tratando-se de realidades com a mesma natureza - a de participações sociais - e tendo subjacente a mesma realidade patrimonial, económica e financeira, espelhada nas expressões "último balanço" no n.º 1 do artigo 15.º (aplicável à avaliação de quotas) e "valor substancial da sociedade participada o qual é calculado a partir do valor contabilístico[1] correspondente ao último exercício anterior à transmissão com as correções que se revelem justificadas, considerando-se, sempre que for caso disso, a provisão para imposto sobre lucros" na definição da variável S incluída na fórmula de avaliação, no n.º 3, alínea a) do mencionado artigo, com as correções que hajam de ser feitas[2], os valores da aplicação resultantes da aplicação de uma ou outra norma, seja tão díspar. 

              Aliás, ficou demonstrado que a fórmula pode não ser apropriada aos seus fins quando, no período em que a "taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento" foi de 0% (zero) - período compreendido entre 16 de março de 2016 e 27 de julho de 2022[3] - o valor do fator f, determinado nos termos do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 10 de maio de 1996 e divulgado através do Ofício-Circulado n.º 1428, da DSISTP da DGCI, de 15 do mesmo mês, segundo o qual "f = 100/i, sendo i a taxa básica de desconto do Banco de Portugal"[4] tendia para o infinito. O legislador "remendou" o problema com a adição do um spread de 4% à referida taxa de refinanciamento, o que pode igualmente produzir resultados perversos, caso a taxa de juro de referência atinja valores muito elevados - neste caso, diminuindo drasticamente o "valor substancial" das ações. 

              Foi necessário contextualizar esta forma de determinação do valor das ações nas transmissões gratuitas, porque não se podem imputar aos contribuintes a sua formulação, as várias formulações que utiliza e os resultados a que conduz. Do que, na verdade, podem resultar economias de opção, fiscalmente consagradas e consequentemente motivos económicos válidos, sendo que nenhnuma obrigação existe de os contribuintes optarem por soluções fiscais menos onerosas.

              Não se pode, assim, concluir-se que a Requerente, com a alienação da sociedade já na forma de sociedade anónima, obteve como única ou principal vantagem económica o não pagamento de imposto, porque da determinaçãodo "valor legal de aquisição", por aplicação de normas que a AT não podia deixar de aplicar, resultou, em concreto, um saldo negativo entre o valor de realização e o valor de aquisição. A vantagem económica que obteve com a alienação das ações de que era detentora foi o preço que lhe foi pago e só isso já constitui uma razão económica válida, sob pena de qualquer alienação suscetível de tributação, e que o não seja por qualquer razão legalmente prevista, poder ser alvo de aplicação da CGAA. Já dita "vantagem fiscal", o não pagamento do imposto, resulta imperativamente da lei e, face à vontade declarada, não pode dar-se como provado, mediante conjeturáveis intenções, que "conhecia" ou "sabia bem" que a ia obter.

              O STA já se pronunciou, direta e indiretamente, sobre a transformação de sociedade por quotas em sociedade anónima e sobre a determinação ou não de razões económicas válidas de uma operação societária. 

              No primeiro caso, foi no Acórdão de 07-06-2023, Processo 03285/11.3BEPRT, que se sumariou, com base em fundamentação a que se adere e que aqui se dá como transcrita para todos os efeitos, nos seguintes termos:

transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, ainda que tivesse sido motivada exclusivamente por finalidades fiscais não é condenável face ao ordenamento jurídico tributário então vigente, na medida em foi o próprio legislador que optou por tributar as mais-valias resultantes da alienação das quotas e não tributar as mais-valias resultantes da alienação das ações. 

E, neste caso, a transformação societária operou-se exclusivamente, segundo a AT, para que os sócios da sociedade por quotas pudessem alienar as suas participações sem imposto[5], uma vez que, à data dos factos, a alienação de ações estava expressamente excluída da incidência, com maior ou menor âmbito - o que sucedeu desde o início da vigência do Código do IRS até à revogação do então n.º 2 do artigo 10.º pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho. 

Ou seja, a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima deu origem, diretamente, por aplicação do aspeto material do elemento objetivo do facto tributário aqui traduzido numa delimitação negativa da incidência ou exclusão tributária, sem sequer ter de aplicar-se a norma de determinação do valor de aquisição para ações, que no RIT é afastada por via da aplicação da CGA. Por maioria de razão, a doutrina do aresto citado, se deve aplicar quando a não tributação resulta de uma norma de determinação da matéria coletável, ainda que esta, na tese doutrinária que o Tribunal aceita, se integre no aspeto quantitativo do elemento objetivo da incidência, acrescendo que é uma norma de resultado aleatório como se argumentou.

              No segundo caso, no Acórdão de 12-10-2022, Processo 03110/09.5BCLSB, a propósito das razões económicas válidas, pressuposto da genuinidade das operações societárias[6], sumariou-se o seguinte:

I - A determinação da existência ou não de razões económicas válidas de uma operação societária não constitui um espaço de valoração próprio da AT imperscrutável pelo poder judicial; trata-se antes de um conceito originário do direito europeu, em cuja análise e densificação há que observar a jurisprudência do TJUE, em especial as directrizes do Acórdão Foggia (C-126/10) e Euro Park (C-14/16).

II - A mera abrangência por um benefício fiscal, i. e., a obtenção de uma vantagem fiscal, não é suficiente para qualificar como desprovida de razões económicas válidas uma determinada operação societária, é necessário que a AT demonstre que esse é o único objectivo daquela operação e que o legislador, utilizando a faculdade que o direito europeu concede nestes casos, adoptou medidas de combate à erosão da base tributável, que incluem a desconsideração daquele tipo de operações, cujos pressupostos se encontram preenchidos no caso concreto.

              Com os fundamentos expostos, não pode o Tribunal concluir, de forma rigorosa, que o motivo da transformação da forma societária foi o único, ou o principal motivo, para evitar a tributação em sede de mais-valias. E mesmo que o tivesse sido, é a lei que expressamente permite, ainda que casuisticamente, pelo que nunca poderia deixar de ser, para a Requerente, uma economia de opção legitima. E mesmo admitindo que ocorre a verificação cumulativa dos elementos – meio, resultado, intelectual, normativo e sancionatório – que são suscetíveis de retirar-se do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, não é possível concluir, nos termos do disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, que o motivo da transformação da forma societária foi o único, ou o principal motivo, para evitar a tributação em sede de mais-valias. 

              Não se encontrando preenchidas, in casu, as condições cumulativas necessárias para o preenchimento da tipicidade da CGAA, procede o peticionado pela Requerente, ficando prejudicado o conhecimento da questão de direito elencada sob o n.º II, supra.

              Quanto à liquidação, seguindo-se aqui a posição expressa na decisão arbitral proferida no Processo 886/2024-T, de juros compensatórios, ao abrigo do artigo 38.º, n.º 6 da LGT, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 8 da LGT, é de referir que os juros compensatórios se integram na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados. 

              Assim, sendo anulada a liquidação do imposto, nos termos descritos, cai a liquidação dos juros compensatórios, perdendo autonomia a discussão em torno dos argumentos da Requerente quanto ao carácter punitivo dos juros compensatórios previstos no citado artigo 38.º, n.º 6 da LGT, cujo conhecimento fica também prejudicado. 

              Nestes termos, considera-se procedente o PPA, com vista à declaração de ilegalidade, e consequente anulação da decisão e indeferimento de reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, e anulação dos atos tributários impugnados.

 

iv) Dos Juros Indemnizatórios

              A requerente pede juros indemnizatórios a seu favor, desde a data do pagamento do imposto e juros compensatórios que lhe foram liquidados.

              Este Tribunal Arbitral, considera procedente o PPA tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequenteanulação da decisão expressa  de indeferimento de reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, e dos atos tributários impugnados. 

              Consequentemente, conclui-se que os atos tributários impugnados enfermam de vício de violação de lei, o que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA) subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, e bem assim ao processo arbitral por via do disposto no artigo 29.º do RJAT. 

              Existe, por conseguinte, erro imputável aos serviços quando é indeferida a reclamação graciosa dos atos tributários acima identificados. 

              Entende-se, consequentemente, que são devidos juros indemnizatórios desde a data do pagamento do imposto, nos termos do artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, não se adere aqui à tese defendida na decisão do mencionado Processo Arbitral n.º 886/2024-T, segundo a qual só seriam devidos a partir da data do indeferimento da reclamação graciosa, com o fundamento de que, nesta reclamação, a AT teria tido possibilidade de reverter as ilegalidades descritas.

              Não obstante aderirmos à tese doutrinária de que a reclamação graciosa prevista no n.º 11 do artigo ainda integra o procedimento de aplicação da CGAA, tendo, por isso, natureza prejudicial, a verdade é que as ilegalidades descritas já resultavam do RIT, o RIT foi sancionado pelos órgãos competentes da AT pelo que a AT não pode alegar que só tomou conhecimento dos factos através da reclamação graciosa.

              Julga, pois, este Tribunal não ser ao caso aplicável a restrição interpretativa efetuada ao disposto no artigo 61.º do CPPT, efetuada  pelo Acórdão do Pleno do STA proferido em 29-06-2022, no processo 093/21.7BALSB, pois este refere-se a situações em que a questão das ilegalidades que afetam os atos praticados chegam ao conhecimento da AT por meios acionados pelos contribuintes, obrigatórios ou facultativos, como no caso das reclamações sobre quantias retidas na fonte ou pedidos de revisão oficiosa.

              Em conclusão, a procedência do PPA, tem como consequência a devolução do imposto retido acrescido dopagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento das importâncias a anular, e demais consequências legais daí decorrentes.

 

VI. DECISÃO

              Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral coletivo: 

a)              Julgar parcialmente procedente o Pedido de Pronúncia Arbitral, tendo em conta que não se considerou procedente a autonomamente invocada ilegalidade da liquidação de juros compensatórios nos termos do n.º 6 do artigo 38.º da LGT, embora sem efeitos na responsabilidade pelas custas; 

b)             Declarar a ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de reclamação graciosa apresentada, com a sua consequente anulação; 

c)              Declarar a ilegalidade dos atos tributários impugnados, com a sua consequente anulação; 

d)             Condenar a AT a restituir ao Requerente o valor de imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do título VII desta Decisão; 

e)              Condenar a Requerida nas custas judiciais. 

 

VALOR DA CAUSA

              A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.667.128,023, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa

 

CUSTAS

              Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 22.032,00, que fica a cargo da Requerida.

 

              Notifique.

 

              Lisboa, 2 de Setembro de 2025

   

 

O Presidente do Tribunal Arbitral,

 

Carlos Fernandes Cadilha

(Com voto de vencido)

 

O Árbitro vogal,

 

 

Pedro Galego

(Relator por vencimento)

 

O Árbitro vogal,

 

Manuel Faustino

 

Declaração de voto

Votei vencido por entender que a vantagem fiscal ilícita que justificou a aplicação da disposição antiabuso traduziu-se na evitação do pagamento do imposto relativamente à alienação de partes sociais que, normalmente, seria objeto de tributação nos termos do artigo 15.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo, e veio a ser tributado segundo o disposto no artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do mesmo diploma, e que foi alcançada através de um conjunto de operações societárias.

Como se pode constatar, os sócios originários, ora Requerentes, procederam à transformação da sociedade C... em sociedade anónima já de terem celebrado um contato de promessa de venda do capital a uma outra sociedade, quando a empresa se encontrava constituída sob  aforma de sociedade por quotas, e ainda antes  da doação das participações sociais aos seus filhos, que, poucos dias, vieram a alienar  a totalidade das suas participações, permitindo concluir que a transformação em sociedade anónima não teve qualquer efeito económico visou apenas permitir que o valor tributável fosse determinado pelo artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do Código do Imposto do Selo, e não pelo artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma, aplicável à quotas.

Subsistem, em todo este contexto, factos indiciários suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objetivo que se torne justificável no plano da racionalidade e da atividade empresarial, teve o único propósito de obstar à à tributação em mais-valias em sede de IRS, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral antiabuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

 



[1] O art. 26.º, n.º 6, al. f) determina que, quando aplicável, na determinação do valor tributável, a fórmula prevista na al. a) do n.º 3 do artigo 15.º, sejam juntos à relação de bens transmitidos o "último balanço" e os restantes dados necessários à sua aplicação.

[2] Conforme o entendimento da AT divulgado pela Circular 11/2007, de 18/10.

[3] Fonte: Taxas de juros oficiais do Banco Central Europeu, disponível no site www.bportugal.pt

[4] In Os impostos sobre o Património Imobiliário e O Imposto do Selo, Anotados e Comentados, J. SILVÉRIO MATEUS e L. CORVELO DE FREITAS, Engifisco, Lisboa, 2005. E estes Autores deixam transparecer que a manutenção desta fórmula de determinação do fator suscita dúvidas, quando escrevem (pp. 625): "parece-nos que tal critério, caso não venha a ser modificado, poderá continuar a ser utilizado, considerando-se agora a taxa de juro aplicada pelo BCE às suas principais operações de refinanciamento". Para a doutrina mais recente, tal nem sequer é posto em dúvida - vide ANTÓNIO SANTOS ROCHA e EDUARDO JOSÉ MARTINS BRÁS, Tributação do Património, IMI, IMT e Imposto do Selo (Anotados e Comentados), 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pp. 805.

[5] Certamente porque a aquisição das quotas era posterior a 1 de janeiro de 1989 e não poderiam aproveitar da não sujeição consagrada no artigo 5.º do Decreto-Lei que aprovou o CIRS.

[6] O caso teve origem numa operação de fusão. No entanto, verifica-se aqui o a identidade do conceito.