Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1352/2024-T
Data da decisão: 2025-07-10  IRC  
Valor do pedido: € 73.816,69
Tema: IRC. Derrama municipal. Âmbito de incidência. Rendimentos auferidos fora do território nacional.
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Sumário:

Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que corresponda à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município por sujeitos passivos residentes em território português, com exclusão de rendimentos provenientes de fonte estrangeira.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (árbitro-presidente), Dr. António Pragal Colaço e Dr. Nuno Miguel Morujão (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 25-02-2025, acordam no seguinte:

I- Relatório

 

1. A..., S.A., com o NIPC  ... adiante designada por “Requerente”, veio, ao abrigo da al. a) e b) do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 99.º e com o n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de tribunal arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”), com vista à pronúncia arbitral sobre pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ... e, consequentemente (e em termos finais), do ato de autoliquidação de IRC n.º 2022... referente ao período de tributação de 2020, ao qual corresponde um montante de imposto indevidamente liquidado no valor total de € 73.816,69.

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT, em 17-12-2024.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas da designação do árbitro em 5-2-2024, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

4. O Tribunal Arbitral foi constituído em 25-2-2025, sendo que ainda nesse dia foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta e remeter cópia do processo administrativo, e, querendo, solicitar a produção de prova adicional.

 

5. Em 2-4-2025 a Requerida apresentou resposta e juntou aos autos o processo administrativo.

 

6. A Requerente sustenta o pedido que formula alegando, em síntese:

 

a)  A Requerente é uma sociedade anónima, residente para efeitos fiscais em Portugal, e tem por objeto social o exercício da atividade de seguro direto e de resseguro do ramo Vida e dos ramos Não Vida de Acidentes Pessoais e de Doença.

b)  No cumprimento das suas obrigações declarativas, a 10-07-2021, a Requerente procedeu à entrega da sua Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC (“Declaração Modelo 22”), referente ao período de tributação de 2020, tendo posteriormente apresentado declaração de rendimentos de IRC Modelo 22 de substituição, a 11-07-2022.

c)  O montante de derrama municipal foi apurado com base no critério de repartição entre os diferentes municípios onde a Requerente desenvolve a sua atividade, em função da massa salarial por si suportada em cada um dos respetivos municípios, tal como resulta do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro.

d)  Sucede que o lucro tributável sobre o qual a derrama municipal incidiu (na proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município) encontra-se influenciado por rendimentos auferidos no estrangeiro, no montante total de € 1.750.895,27, dando origem a um montante de coleta de derrama municipal excessivo no valor de € 26.263,43.

e)  Sendo de referir desde logo a conclusão alcançada pelo STA no âmbito do processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021: “O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)” (além de jurisprudência arbitral diversa do CAAD, como os processos n.º 554/2021-T, 720/2021-T, 234/2022-T, 211/2023-T, 948/2023-T, 28/2024-T).

f)   Adicionalmente, são cumpridos os requisitos para aplicação da isenção de derrama municipal referente ao Município de Lisboa prevista no Ofício Circulado n.º 20229, de 16-02-2021, correspondente à quantia de € 47.553,26.

g)  Pelo que, a Requerente veio constatar que aquelas declarações incluíram um valor de derrama municipal que se revela excessivo.

h)  Neste contexto, em 28-5-2024, a Requerente apresentou revisão oficiosa, com vista à anulação parcial dos atos de autoliquidação de IRC, na parte respeitante à derrama municipal, com o consequente reembolso da derrama municipal excessivamente suportada, no montante total de € 73.816,69, tendo em 16-9-2024 sido notificada do indeferimento da revisão oficiosa.

i)   A autoliquidação de IRC relativa ao período de 2020, onde se incluem os valores de derrama municipal objeto da presente petição, encontram-se integralmente pagas. Pelo que, declarada a ilegalidade das liquidações aqui peticionadas, a Requerente tem direito não só ao respetivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), a juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento das liquidações anuladas, até ao integral reembolso do montante de € 73.816,69.

 

7. A Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”) ofereceu Resposta, acompanhada do Processo Administrativo, alegando, em síntese:

 

Por exceção:

 

a)    Da incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria.

b)    Da rejeição liminar do pedido de revisão oficiosa e da consequente inidoneidade do meio processual, inimpugnabilidade da autoliquidação, e caducidade do direito de ação.

 

Por impugnação:

 

c)    Quanto à aplicação da isenção da derrama municipal de Lisboa, com referência ao período de 2020, no montante de € 47.553,26 não foi objeto de análise de mérito em sede de procedimento de revisão oficiosa, tendo sido liminarmente indeferida e o procedimento arquivado. Pelo que tal matéria não deve ser objeto da presente impugnação arbitral. Sem conceder, não ficou demonstrada a criação e manutenção de postos de trabalho, nos termos estabelecidos na al. c) do n.º 2 do art.º 5.º do Regulamento de Benefícios Fiscais no Âmbito de Impostos Municipais do Município de Lisboa (aviso n.º 20988/2020, publicado na II série do Diário da República n.º 250, de 28 de dezembro de 2020).

d)    Assim, a questão subjacente ao presente pedido, prende-se em aferir se pode a derrama municipal incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento que inclua rendimentos gerados fora do território nacional.

e)    Em suporte ao entendimento veiculado pela Requerida e relativamente à determinação do valor da dedução à coleta referente ao crédito de imposto por dupla tributação internacional (ou seja, quando na matéria coletável tenham sido incluídos rendimentos obtidos no estrangeiro como ocorreu no caso em apreço), atente-se desde já ao teor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, proferido no Recurso n.º 172/20, 2ª Secção, também aludido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 10.11.2021 no Processo n.º 0255/17.1BESNT e que decidiu nos seguintes termos: “(…) O pagamento deste tributo [leia-se derrama municipal] deve ser "eliminado" por dedução de créditos por dupla tributação internacional sempre que a colecta de IRC, stricto sensu, não se mostre suficiente para os absorver na totalidade como acontece no caso. Assim é que na expressão "fração do IRC" constante da então al. B) do n.º 1 do Art.º 41 (hoje art.º 91.º) se deve incluir a colecta ad derrama. O mesmo é dizer que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da colecta de tal imposto [entenda-se derrama municipal] originado por rendimentos obtidos no estrangeiro”. Assim, entendeu o Tribunal Constitucional que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta da derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro, é porque e inequivocamente tais rendimentos obtidos no estrangeiro, estão sujeitos a derrama municipal.

f)     Por outro lado, importa considerar a seguinte questão: e se em vez de rendimentos obtidos no estrangeiro (no caso, juros de obrigações, dividendos e rendimentos decorrentes de unidades de participação pagos por fundos de investimento sedeados no estrangeiro, decorrentes da alienação de instrumentos financeiros, entre outros), tivessem resultados menos valias fiscais, perdas/prejuízos? Seriam de acrescer essas, esses prejuízos ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, para efeito de determinação da derrama municipal?

g)    Atente-se por outro lado, que a derrama municipal encontra-se prevista na Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, (Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais - RFALEI), o qual revogou a anterior Lei das Finanças Locais introduzida pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro.

h)    Este regime veio estabelecer a possibilidade de os municípios deliberarem lançar anualmente uma derrama aplicável às sociedades e outras pessoas coletivas, cuja sede ou estabelecimento se situem na sua área geográfica, por sujeitos passivos residentes em território que exerçam a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável messe território (artigo 18.º n.º 1 do RFALEI).

i)     A derrama visa assim financiar os Municípios, pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respetivos municípios de sociedades comerciais (infraestruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.). 

j)     Assim, importa realçar que o n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, determina que a derrama municipal incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, correspondendo à proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município, por sujeitos passivos residentes em território nacional, que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território. 

k)    Por conseguinte, entendemos que a derrama municipal recai também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro. 

l)     Aliás, conforme aludimos, o entendimento defendido pela Requerente acarreta graves dissonâncias, por um lado, considerando que o legislador integra no cálculo da "fração do IRC" nos termos do artigo 91.º n.º1, alínea b), do CIRC, para efeitos dedução à coleta, a derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro (cf. acórdão do STA de 10 de novembro de 2021 no Processo n.º 0255/17.1BESNT e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 603/2020, proferido no recurso n.º 172/20, 2ª secção) é porque os mesmos estão sujeitos a ela, e por outro, em caso de perdas resultantes de operações económicas realizadas no estrangeiro, teriam as mesmas de ser acrescidas da derrama municipal.

m)  Desde logo, e em primeiro lugar, analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação. 

n)    Analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verifica-se que, para além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável sujeito à derrama, bem como quanto à respetiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias, ou seja, verifica-se a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do estrangeiro estão excluídos de tributação. Logo, não podemos inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

o)    Finalmente, sublinhe-se que a Requerente pretende olvidar que o legislador determina que, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição da derrama pelos diferentes municípios nos termos do n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, a mesma é devida apenas em função da área da sede do sujeito passivo, tal como foi efetuado pela Requerente nas autoliquidações controvertidas e em estrito cumprimento desta lei.

p)    Acresce que, num segundo plano, e no que diz respeito à derrama municipal, a Requerida tem entendido que aquela se classifica como um imposto dependente. Na realidade, não obstante constituir uma receita dos municípios (art.º 14.º), a mesma tem em consideração o rendimento gerado na área geográfica de cada município, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, das entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (o que é o caso) e ainda sobre o lucro tributável das entidades não residentes com estabelecimento estável em Portugal, pelo que a formação da derrama possui a mesma origem que o IRC, apresentando, assim, a natureza de imposto dependente deste imposto principal.

q)    Nenhuma exceção é feita quanto a rendimentos provenientes do estrangeiro, pelo contrário, aquela norma inclui-os expressamente.

r)     Assim, e quanto à incidência da derrama, o entendimento da Requerida diverge da visão plasmada no Acórdão do STA de 13.01.2021, proferido no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, que sustenta a posição da Requerente. Em suma, o douto Acórdão concluiu que ao lucro tributável apurado deveriam ser expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro (e não o lucro tributável resultante desses rendimentos), porquanto tais rendimentos não possuíam qualquer ligação ao município em causa, aplicando ao valor encontrado a taxa da derrama:

s)     Finalmente, não se verificando, nos presentes autos, em nosso entender, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer indemnização, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT. A liquidação em causa não provém de qualquer erro dos serviços, mas decorrem diretamente da aplicação da lei.

 

7. Por despacho arbitral, de 30-04-2025, notificaram-se as partes da dispensa a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT).

 

II- Saneamento

 

8. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e legitimidade processual (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e o Requerente juntou procuração, encontrando-se, assim, as Partes devidamente representadas.

Em conformidade com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro), o Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Na Resposta da AT foram suscitadas questões prévias, que cumpre apreciar.

 

Incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria

 

9. A Requerida entende que o tribunal arbitral é incompetente para conhecer do pedido, com base no disposto no artigo 2.º da Portaria nº 112/2011, de 22 de março, que estabelece o objeto da vinculação a Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, e, em especial, na alínea a) do n.º 1 desse artigo que, na parte que interessa considerar, é do seguinte teor:

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes: 

   a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

[…].

Para assim concluir, a Requerida sustenta que foi apresentado um pedido de revisão oficiosa contra o ato de autoliquidação sem que tenha sido desencadeado precedentemente o procedimento de reclamação graciosa a que se refere o artigo 131.º do CPPT, situação esta que está fora da vinculação da Autoridade Tributária à arbitragem tributária. Acrescentando ainda que a Requerente não recorreu, em tempo, à reclamação graciosa, deixando precludir o prazo de dois anos aí previsto, e, por outro lado, o procedimento revisão oficiosa não pode substituir a reclamação graciosa para que remete o falado artigo 131.º do CPPT.

Tal como vem colocada, a questão não respeita à competência do tribunal arbitral, mas à possível inimpugnabilidade do ato tributário de autoliquidação.

Com efeito, a Requerente veio impugnar, perante o tribunal arbitral, a legalidade da autoliquidação de IRC n.º 2022 ... referente ao período de tributação de 2020, na componente da derrama municipal, bem como a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzido.  

Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a competência dos tribunais arbitrais abrange, entre outras pretensões, a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.

O pedido de declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação integra, deste modo, o âmbito de competência dos tribunais arbitrais, no quadro da arbitragem tributária, independentemente de a impugnação judicial se encontrar sujeita a prévia impugnação administrativa necessária, nos termos da transcrita norma regulamentar. Em todo o caso, essa é uma questão procedimental que poderá conduzir à inimpugnabilidade e não à incompetência do tribunal.  

De resto, o objeto imediato do pedido arbitral é o próprio ato tributário de autoliquidação em IRC, enquanto a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui o objeto mediato do pedido, que só será anulada contenciosamente em decorrência  da eventual anulação do ato de autoliquidação, tratando-se, por conseguinte, de uma anulação meramente consequencial.

Não pode, por conseguinte, deixar de reconhecer-se que o tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido arbitral, sendo improcedente a exceção dilatória de incompetência do tribunal que vem alegada pela Requerida.

Alega, no entanto, a Requerida que a interpretação segundo a qual o pedido de revisão oficiosa é equivalente ao procedimento de reclamação graciosa viola os princípios constitucionais do estado de direito e da separação de poderes, na medida em que amplia a vinculação da Administração Tributária à jurisdição arbitral para além do que está fixado na lei.

 

A este propósito cabe esclarecer o seguinte. 

 

É ao tribunal arbitral que cabe definir o direito e, para o efeito, interpretar as normas aplicáveis ao caso. Ao efetuar essa interpretação de acordo os critérios dos critérios de hermenêutica jurídica, independentemente do resultado obtido, o tribunal arbitral está a exercer o seu poder jurisdicional, definido constitucionalmente (artigos 202.º, n.º 1, e 209.º, n.º 32, da Constituição). E não está a invadir as competências do poder legislativo ou do poder executivo, e, mantendo-se, por conseguinte, no exercício da competência própria da administração da justiça, não pode estar a violar, como é evidente, os princípios constitucionais do estado de direito e da separação de poderes.

 

Inimpugnabilidade dos atos tributários de autoliquidação. Inidoneidade do meio processual. Caducidade do direito de ação.

 

10. A Requerida invoca ainda a intempestividade do pedido de revisão oficiosa, com a consequente inimpugnabilidade da autoliquidação, inidoneidade do meio processual e caducidade do direito de ação.

 

São estas as questões que cabe agora analisar.

 

Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), da Portaria 112-A/2011, os serviços e organismos que integram a Administração Tributária vinculam-se à jurisdição arbitral no tocante a qualquer dos tipos de pretensões identificadas o n.º 1 do artigo 2.º desse RJAT, com exceção das relativas à “declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário” (CPPT).

 

No caso de impugnação de autoliquidação, o n.º 1 do artigo 131.º do CPPT estatui o seguinte:

 

Em caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração.

 

Essa disposição tem o sentido inequívoco de tornar exigível a prévia impugnação administrativa do ato tributário como condição de acesso à via jurisdicional, e constitui um requisito de impugnabilidade contenciosa.

 

Esse, aliás, é o princípio geral que resulta do artigo 185.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), subsidiariamente aplicável no processo arbitral, segundo o qual, “as reclamações e os recursos são necessários ou facultativos, conforme dependa, ou não, da sua prévia utilização a possibilidade de acesso aos meios contencioso de impugnação e de condenação à prática de ato devido”.

 

Por outro lado, a exigência legal de uma impugnação administrativa necessária tem em vista obter, por via de um procedimento de segundo grau, a reapreciação da legalidade do ato impugnado, permitindo que a Administração possa ainda tomar uma posição definitiva sobre a questão antes de o interessado poder ser suscitar um litígio judicial.

 

É ainda de fazer notar que a lei permite que o sujeito passivo, por sua iniciativa, possa solicitar a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou dentro do prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade (artigo 78.º, n.º 1, da LGT).

 

O pedido de revisão constitui igualmente um procedimento de segundo grau, que tem o mesmo efeito jurídico da reclamação necessária a que se refere o artigo 131.º, n.º 1, do CPPT, na medida em que permite o reconhecimento pela Administração da existência de ilegalidade na prática do ato tributário, e que pode ser deduzido no mesmo prazo e desencadear, em idênticos termos, em caso de indeferimento, o recurso à via contenciosa.

Conferindo a lei ao interessado dois meios alternativos de reação administrativa contra o ato tributário, com idênticos efeitos de direito, nenhum motivo existe para que não possa estabelecer-se a equiparação entre esses meios para o efeito de sujeitar o litígio à arbitragem.

A questão em análise foi já dirimida nesse mesmo sentido por jurisprudência amplamente maioritária dos tribunais arbitrais (entre muitos, os acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 617/2015-T, 429/2020-T, 840/2021-T e 778/2023-T, e veio a ser sufragada pelo acórdão de 27 de abril de 2017 do TCA Sul, no Processo n.º 08599/17).

Tendo sido apresentado, no caso vertente, um pedido revisão oficiosa contra atos de autoliquidação, e sendo esse um meio administrativo equiparável à reclamação graciosa, a questão está na limitação que a lei estabelece quanto aos prazos que resulta dos dois segmentos normativos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT: o sujeito passivo, por sua iniciativa, pode solicitar a revisão dos atos tributários pela entidade que os praticou dentro do prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1, primeira parte); a Administração Tributária, por sua iniciativa, pode proceder à revisão oficiosa no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, possibilidade que se torna extensiva ao contribuinte por força do n.º 7 do artigo 78.º da LGT.

No entanto, ainda que se atribua ao pedido de revisão oficiosa o mesmo efeito jurídico da reclamação graciosa, essa equivalência apenas pode ser reconhecida quando o pedido de revisão oficiosa tenha sido apresentado dentro do prazo previsto para aquela forma de impugnação administrativa, isto é, dentro do prazo de dois anos - artigo 131.º, n.º 1, do CPPT (cfr., neste sentido, os citados acórdãos proferidos nos Processos n.ºs 840/2021-T, 778/2023-T, 1000/2023-T e acórdão do STA de 22/1/2025, Processo n.º. 0117/24 na situação similar de impugnação no caso de erro na autoliquidação).

Ou seja, havendo lugar a prévia impugnação administrativa necessária para efeito de poder ser deduzida a impugnação judicial dos atos de retenção na fonte, o pedido de revisão oficiosa apenas pode ser entendido como preenchendo esse requisito procedimental se for apresentado no prazo de dois anos legalmente previsto para a reclamação graciosa.   

No caso em análise, e como resulta da matéria de facto dada como assente, o que se constata é que a Requerente, no cumprimento das suas obrigações declarativas, relativamente ao exercício de 2020, apresentou a declaração de rendimentos Modelo 22 em 10/07/2021, e, posteriormente, ao abrigo do disposto no artigo 122.º, n.º 2, do CIRC, em 11/07/2022, em referência ao mesmo exercício, apresentou uma declaração de substituição. O pedido de revisão oficiosa relativo à autoliquidação de IRC, na parte respeitante à derrama municipal, foi, entretanto, apresentado em 28/05/2024.

Nos termos do n.º 2 do artigo 122.º do CIRC, tendo como epígrafe “Declaração de substituição”, “a autoliquidação de que tenha resultado imposto superior ao devido ou prejuízo fiscal inferior ao efetivo pode ser corrigida por meio de declaração de substituição a apresentar no prazo de um ano a contar do termo do prazo legal.”    

A declaração de substituição veio sobrepor-se, por conseguinte, à declaração de rendimentos inicial. Tendo a Requerente apresentado um pedido de revisão oficiosa em 28/05/2024 em relação à declaração de substituição de 11/07/2022, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado tempestivamente, para efeito de poder ser considerado como correspondendo à impugnação administrativa a que se refere o artigo 131.º, n.º 2, do CPPT, pelo que não se verifica a inimpugnabilidade do ato tributário que constitui do pedido arbitral e, consequentemente, também não ocorre a caducidade do direito de ação

11. A Autoridade Tributária suscita ainda as exceções dilatórias da incompetência material do tribunal arbitral e da inidoneidade do meio processual utilizado, por considerar que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa não se pronunciou sobre o mérito do pedido, mas limitou-se a rejeitar liminarmente o pedido com fundamento em intempestividade. Neste contexto, entende que as questões tributárias que constituem o objeto do pedido não comportam a apreciação da legalidade da liquidação, pelo que o tribunal arbitral é materialmente incompetente e o meio judicial adequado é a ação administrativa a que se refere a alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT.

 

Tal como vem colocada, a questão prende-se com a distinção, no âmbito do processo judicial tributário, entre a impugnação judicial e a ação administrativa segundo a nomenclatura que resulta do artigo 97.º do CPPT.

 

Nos termos do artigo 95.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária “o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o ato lesivo dos seus direitos e interesses legalmente protegidos segundo as formas de processo prescritas na lei”. Por sua vez, o artigo 97.º, n.º 1, do CPPT distingue entre a impugnação judicial e a ação administrativa de acordo com o objecto do processo, considerando impugnáveis “os atos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação” (alínea d)), e reservando a ação administrativa para “atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem a apreciação da legalidade do ato de liquidação” (alínea p)).

 

  Entretanto, o n.º 2 desse artigo 97.º esclarece que recurso contencioso dos atos administrativos em matéria tributária que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação é regulado pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos, o que remete para o disposto no artigo 191.º do CPTA. Determina este preceito que “as remissões que, em lei especial, são feitas para o regime do recurso contencioso de anulação de atos administrativos consideram-se feitas para o regime da ação administrativa”, o que significa que a remissão efetuada pelo artigo 97.º, n.º 1, alínea p), do CPPT se considera agora feita para a forma de processo que lhe corresponde no CPTA.   Ora, a Requerente deduziu um pedido de constituição de tribunal arbitral para a apreciação da legalidade de ato de autoliquidação de IRC, e, precedentemente, deduziu um pedido de revisão oficiosa contra o mesmo ato de autoliquidação, visando obter a sua anulação pela via administrativa. 

 

O efeito útil e relevante do indeferimento do pedido de revisão oficiosa traduz-se portanto, como já referido, na manutenção na ordem jurídica do ato tributário de autoliquidação, pelo que é esse mesmo indeferimento que torna justificável e necessário o recurso à jurisdição arbitral, visto não ter sido possível obter a anulação administrativa ainda na fase pré-judicial. A decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui, neste contexto, o objeto mediato do pedido e tem em vista assegurar a eliminação da ordem jurídica dessa decisão, caso se venha a concluir pela ilegalidade do ato tributário de autoliquidação.

 

Nestes termos, a invocada exceção da incompetência do tribunal arbitral mostra-se ser improcedente, e o meio processual adotado em vista à anulação das liquidações é o próprio.

 

Não tendo sido suscitadas questões adicionais nem havendo questões de conhecimento oficioso, que obstem à apreciação do mérito da causa, cumpre apreciar e decidir.

 

III - Fundamentação

 Matéria de facto

12. Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas quanto ao mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

a)      A Requerente é uma sociedade anónima, residente para efeitos fiscais em Portugal, e tem por objeto social o exercício da atividade de seguro direto e de resseguro do ramo Vida e dos ramos Não Vida de Acidentes Pessoais e de Doença, para os quais obteve as devidas autorizações da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (“ASF”).

b)      No cumprimento das suas obrigações declarativas, a 10-7-2021, a Requerente procedeu à entrega da sua Declaração de Rendimentos Modelo 22 do IRC (“Declaração Modelo 22”), à qual foi atribuído o número de identificação..., referente ao período de tributação de 2020 (Doc. n.º 1).

c)      Conforme resulta daquela declaração, a Requerente apurou lucro tributável no período de tributação de 2020, o qual ascendeu ao montante de € 7.481.368,73, tendo pago a título de derrama municipal o montante de € 112.220,53, conforme demonstração de liquidação de IRC n.º 2021... (Doc. n.º 2).

d)      Posteriormente, ao abrigo do n.º 2 do artigo 122.º do Código do IRC, a Requerente apresentou declaração de rendimentos de IRC Modelo 22 de substituição, referente ao período de tributação de 2020, com número de identificação ..., submetida a 11-7-2022 (Doc. n.º 3).

e)      Na sequência da submissão da referida declaração, a Requerente apurou lucro tributável, com referência o período de tributação de 2020, no montante de € 7.295.906,35, tendo pago a título de derrama municipal o montante de € 109.438,60, conforme nota de liquidação de IRC n.º 2022.. (Doc. n.º 4).

f)       O montante de derrama municipal ora em causa foi apurado com base no critério de repartição entre os diferentes municípios onde a Requerente desenvolve a sua atividade, em função da massa salarial por si suportada em cada um dos respetivos municípios (cf. n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro) (cf. artigo 10.º PPA, não contraditado).

g)      O lucro tributável sobre o qual a derrama municipal incidiu (na proporção do rendimento gerado na área geográfica de cada município) encontra-se influenciado por rendimentos auferidos no estrangeiro, no montante total de € 1.750.895,27 (cf. artigo 11.º PPA, não contraditado).

h)      Adicionalmente, encontravam-se cumpridos os requisitos para aplicação da isenção de derrama municipal referente ao Município de Lisboa prevista no Ofício Circulado n.º 20229, de 16-2-2021, pela quantia de € 47.553,26 (cf. artigo 12.º PPA, não contraditado).

i)       No dia 28-5-2024, a Requerente apresentou revisão oficiosa com vista à anulação parcial dos atos de autoliquidação de IRC, na parte respeitante à derrama municipal, com o consequente reembolso da derrama municipal excessivamente suportada, no montante total de € 73.816,69 (Doc. n.º 5).

j)       A Requerente foi notificada, no dia 16/9/2024, da decisão final de indeferimento da revisão oficiosa (Doc. n.º 7).

k)      Nos termos dessa decisão da revisão oficiosa (§ VI. DA CONCLUSÃO, Doc. n.º 7):

“Em conformidade com o anteriormente exposto e compulsados todos os elementos para os autos (…) considera-se que o pedido referente à isenção da derrama municipal de Lisboa deve ser rejeitado liminarmente, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 109.º do CPA, ex vi da al. d) do artigo 2.º do CPPT, promovendo-se o seu arquivamento. 

Por sua vez, considera-se que o pedido de revisão do ato tributário referente à desconsideração de rendimentos obtidos no estrangeiro da base tributável da derrama municipal seja indeferido (…), com todas as consequências legais”.

l)       Não se conformando com o indeferimento da revisão oficiosa, a Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral, para ver a sua situação tributária corrigida: reembolso de derrama municipal referente aos rendimentos obtidos no estrangeiro no montante total de € 26.263,43, aos quais acrescem € 47.553,26 respeitantes à isenção de derrama municipal referente ao município de Lisboa (cf. artigo 30.º PPA, não contraditado).

 

 Factos não provados

 

Inexistem factos que se considerem não provados, com relevo para a boa decisão deste pleito, exceto a demonstração de terem sido, pela Requerente, criados e mantidos postos de trabalho.

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, o PPA e a Resposta junto aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 Matéria de Direito

 Âmbito de incidência da derrama municipal

 

13. A única questão em debate consiste em saber se a derrama municipal, prevista no artigo 18.º do Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais, aprovado pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, incide sobre o lucro tributável das pessoas coletivas em sede de IRC, gerado na área geográfica em que tenham a sua sede em território português ou também sobre o lucro tributável que resulte do exercício da sua atividade económica em Estado terceiro.

 

Defende a Requerente que o âmbito de incidência da derrama municipal se encontra limitado ao lucro tributável queseja imputável a rendimentos gerados em cada um dos municípios existentes em território nacional e nos quais o sujeitopassivo exerça a sua atividade. Ao passo que a Requerida entende que a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, a qual resulta da soma dos rendimentos obtidos em território português ou no estrangeiro, de acordo com princípio da universalidade previsto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do IRC.

 

É esta a questão que cabe dirimir.

 

Deve começar por delinear-se, em função do elemento histórico de interpretação, a evolução do instituto da derrama municipal nas diferentes leis de finanças locais publicadas após o Código Administrativo.  

 

A derrama municipal veio a ser instituída em novos moldes pela Lei de Finanças Locais aprovada pela Lei n.º 1/79, de 2 de janeiro, que consagrou a autonomia financeira das autarquias locais, e, através do seu artigo 12.º, conferia aos municípios a faculdade de lançar derramas sobre a coleta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo cobrados na área do respetivo município, com uma taxa não superior a 10% da coleta liquidada, e cujo produto devia destinar-se à realização de melhoramentos urgentes a efetuar na área da respetiva autarquia.

 

Esse regime foi essencialmente mantido pelo artigo 5.º da Lei n.º 1/87, de 6 de janeiro, que estipulava que a derrama incidia sobre “as coletas liquidadas na respetiva área em contribuição predial rústica e urbana e em contribuição industrial” (n.º 1) e tinha carácter excecional, só podendo ser aprovada “para ocorrer ao financiamento de investimentos urgentes e ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro” (n.º 2).

 

A Lei n.º 42/98, de 6 de agosto, no seu artigo 18.º, alterou o âmbito de incidência objetiva, ao consignar que a derrama municipal recai “sobre a coleta do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas”, o que terá ficado a dever-se à reformulação geral da tributação do rendimento, mediante a introdução do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas que veio substituir a contribuição industrial. A norma explicita que a derrama incide “sobre a coleta do IRC que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na sua área geográfica (do município) por sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola” (n.º 1) e manteve a sua conexão genérica ao financiamento dos municípios, ao estabelecer, no seu n.º 2, que “[A] derrama pode ser lançada para reforçar a capacidade financeira ou no âmbito da celebração de contratos de reequilíbrio financeiro”.

 

Por outro lado, nos termos do n.º 4 desse artigo 18.º, “sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional” (n.º 2), entendendo-se por massa salarial o “valor das despesas efetuadas com o pessoal e escrituradas no exercício a título de remunerações, ordenados ou salários” (n.º 6).

 

Esclarecendo o n.º 5 do mesmo artigo, que, nos casos em que a atividade do sujeito passivo se não desenvolva em mais do que um município, o rendimento considera-se gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável.

 

Por efeito do disposto no artigo 18.º, n.º 4, da Lei n.º 42/98, o lançamento da derrama deixou de caber em exclusivo ao município em que se verifique a liquidação do IRC ou se encontre localizada a sede da empresa, para passar a caber a todos os municípios em que uma empresa possua estabelecimento estável ou representação local. A referência à massa salarial como critério de imputação dos lucros visa constituir um indicador aproximado do rendimento tributável e assegurar uma partilha proporcional da receita da derrama quando estejam em causa empresas com atividade em municípios diversos (cfr. sobre estes aspetos, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 191-192).

 

A Lei das Finanças Locais aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro, através do seu artigo 14.º, introduziu, entretanto, outras alterações significativas no regime jurídico da derrama municipal.

 

Para além de ter mantido a partilha da receita quando uma empresa tenha a sua atividade localizada em diferentes municípios (n.º 2), a derrama passou a incidir, não já sobre a coleta, mas sobre o “lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português”. E, por outro lado, o campo de aplicação alargou-se a “não residentes com estabelecimento estável nesse território” (n.º 1, in fine). 

 

Deste modo, a derrama deixou de ser um adicional ao IRC para constituir um adicionamento, na medida em que incide não já sobre a coleta mas sobre a matéria tributável do imposto principal, assumindo a natureza de um imposto acessório (neste sentido, Casalta Nabais, Direito Fiscal, 11.ª edição, Coimbra, págs. 79-80, e o acórdão do STA de 2 de fevereiro de 2011, Processo n.º 0909/10).

 

Por fim, a Lei de Finanças Locais atualmente vigente, aplicável à situação do caso, aprovada pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, manteve o regime definido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, limitando-se a definir uma nova fórmula de repartição da derrama nos casos de plurilocalização da atividade das empresas, com base na ponderação de diversos fatores, e que tem em vista assegurar uma mais justa imputação territorial dos lucros (n.º 7).

 

Também nesse quadro legal, a derrama incide sobre o “lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português e não residentes com estabelecimento estável nesse território” (n.º 1). Mantendo-se, no mais, a tributação proporcional relativamente a sujeitos passivos que tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais do que um município (n.º 2), bem como o princípio, já constante do artigo 18.º, n.º 5, da Lei n.º 42/98 e do artigo 14.º, n.º 5, da Lei n.º 2/2007, segundo o qual, não havendo desconcentração da atividade económica, o rendimento se considera gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo, ou no município em que se situa o estabelecimento estável de sujeitos passivos não residentes (n.º 5).

 

A partir de Lei das Finanças Locais de 2007, deixou de fazer-se referência à finalidade específica da derrama municipal e ao seu carácter excecional, relacionada com a necessidade de reforço da capacidade financeira das autarquias, o que revela que a derrama passou a ser considerada como um imposto autónomo dos municípios, que apenas se encontra condicionado, na sua incidência, pelo lucro tributável apurado pelos sujeitos passivos em sede de IRC. Em todo o caso, não pode deixar de entender-se que a delimitação da derrama municipal por referência à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município tem em vista assegurar que a autarquia possa dispor dos meios financeiros suficientes para o desempenho das suas atribuições, mormente por via da receita fiscal proveniente dos operadores económicos que atuam na área da sua circunscrição.

  

14. Face ao regime sucintamente descrito e à sua evolução legislativa, é possível extrair alguns princípios básicos.

 

A derrama começou por incidir sobre a coleta do imposto cobrada na área do respetivo município, encontrando-se destinada à realização de investimentos na autarquia ou ao reforço da capacidade financeira do município

 

No âmbito da Lei n.º 42/98, a derrama passou a incidir sobre a coleta do IRC que proporcionalmente corresponda ao rendimento gerado na área geográfica do município pelos sujeitos passivos, sendo essa a formulação igualmente adotada pela Lei n.º 2/2007 e pela Lei n.º 73/2013 quando a derrama passou a ser lançada, não já sobre a coleta, mas sobre o lucro tributável em IRC.

 

Também no que se refere à repartição da derrama entre vários municípios, no caso de plurilocalização da atividade económica das empresas, o lucro tributável que serve de base ao apuramento da derrama é o imputável à circunscrição de cada município.

 

E tratando-se de sujeitos passivos não residentes com estabelecimento estável em território nacional, o rendimento considera-se gerado no município em que se situa o estabelecimento e esteja centralizada a contabilidade.

 

Ao considerar que a derrama tem por base o lucro tributável que corresponda à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município ou, no caso de partilha de receita, o lucro tributável que seja imputável à circunscrição de cada município, o legislador tem presente que o município apenas beneficia da derrama incidente sobre a parte do rendimento gerado na sua própria área geográfica. O que significa que não pode ser alocado a um município a derrama proveniente de rendimentos realizados numa outra área territorial .                                                                                                                                      

 

O mesmo princípio é aplicável, pelo argumento de maioria de razão, relativamente a rendimentos que um mesmo sujeito passivo tenha auferido em resultado da atividade desenvolvida em país estrangeiro. Com efeito, se a lei contempla, para efeito do lançamento da derrama em cada município, a exclusão de rendimentos obtidos num outro município, com base num critério de territorialidade, há de forçosamente pretender excluir outros rendimentos que, com mais fortes motivos, exigem ou justificam esse mesmo regime, como é o caso de rendimentos que são gerados fora do território português (cfr., quanto ao argumento a fortiori, Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 186).

 

   O Código do IRC estabelece, no artigo 4.º, n.º 1, o princípio da universalidade, segundo o qual as entidades residentes são tributadas numa base universal, com a totalidade dos rendimentos que concorrem para o lucro tributável, independentemente de serem obtidos em Portugal ou no estrangeiro. Ao contrário, os não residentes sem estabelecimento estável ficam sujeitos a imposto exclusivamente segundo uma base territorial, apenas sendo fiscalmente relevados os rendimentos alcançados no território português, que corresponde ao princípio da territorialidade (cfr. sobre este ponto, Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, Coimbra, 2019, págs. 40-41).

 

No entanto, mesmo que, segundo o referido princípio da universalidade, as pessoas coletivas e entidades com sede e direção efetiva em território português se encontrem sujeitas a IRC relativamente à totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território, nada permite considerar, numa interpretação literal e consentânea com a unidade do sistema jurídico, que os rendimentos auferidos no exterior relevem para o apuramento da derrama, quando esta se encontra - como se deixou evidenciado - diretamente correlacionada com os rendimentos gerados na área geográfica do município. 

 

Ou seja, se a tributação apenas incide sobre a proporção do rendimento realizado pelos sujeitos passivos na respetiva circunscrição municipal, não tem qualquer cabimento que devam ser também considerados os rendimentos provenientes de fonte estrangeira, ainda que estes concorram para a formação do lucro tributável, uma vez que, em qualquer caso, não se trata de rendimentos gerados na área do município.

 

Aliás, a interpretação veiculada pela Administração Tributária, para além de não ter correspondência com as regras de hermenêutica jurídica, depara-se com outra dificuldade.

 

Tendo em consideração o critério de repartição de receita relativamente a sujeitos passivos com estabelecimento estável ou representação local em mais de um município, que resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 73/2013, e assenta no lucro tributável imputável à circunscrição de cada município, será de perguntar como seria possível efetuar a partilha entre municípios relativamente aos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo no estrangeiro, quando a norma é clara ao estabelecer um critério de imputação a cada município com base num princípio de proporcionalidade no âmbito do território nacional.

 

Resta considerar que no sentido da desconsideração, para o apuramento da derrama municipal, dos rendimentos obtidos fora do território nacional, tal como se propugna na presente decisão arbitral, se pronunciou o acórdão do STA de 13 de janeiro de 2021, no Processo n.º 03652/15. 

 

Por conseguinte, o pedido arbitral mostra-se ser procedente.

 

Isenção da derrama municipal no município de Lisboa

 

15. Paralelamente, baseando-se no  Regulamento dos Benefícios Fiscais no Âmbito de Impostos Municipais do Município de Lisboa, a Requerente alega que foram definidas isenções de derrama municipal para (i) os sujeitos passivos cujo volume de negócios no período de tributação anterior não tenha ultrapassado os € 150.000,00, (ii) os sujeitos passivos cujo volume de negócios no período anterior não ultrapasse os € 1.200.000, dos ramos de negócio correspondentes a determinados CAE (Grupos 471, 472, 474, 475, 476, 477, 478, 479, 561 e 563), e (iii) as empresas que tenham criado ou criem e mantenham durante o período de 3 anos, no mínimo, 5 novos postos de trabalho.

Não se encontra provado, no entanto, que a Requerente tenha criado e mantidos postos de trabalho no período em referência, pelo que, independentemente de outras considerações, não pode dar-se como verificada a referida isenção de derrama municipal.

 

 Reembolso do imposto liquidado e juros indemnizatórios

16. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito. 

 

Nos casos de pedido de revisão oficiosa, em face do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada, constituindo esse o entendimento jurisprudencial corrente (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 24-01-2024, Processo n.º 0129/23.7BALSB)

 

No caso, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 28-05-2024, pelo que são devidos juros indemnizatórios desde 29-5-2025, ou seja, a partir de um ano depois da apresentação do pedido de revisão oficiosa, até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

IV – Decisão

0Termos em que se decide:

 

a)    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular os atos autoliquidação de derrama municipalreferente ao período de tributação de 2020, no montante global de € 73.816,69, bem como a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzido;

b)    Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios desde 29-5-2025 até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

 

V – Valor da causa

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 73.816,69, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

VI – Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerida.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 10 de julho de 2025

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

 

António Pragal Colaço

 

 

O Árbitro vogal

 

                                                   

                                                         Nuno Morujão