Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 144/2025-T
Data da decisão: 2025-06-27  IRS  
Valor do pedido: € 24.029,26
Tema: IRS. Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – Artigo 16.º do Código do IRS – Requisitos de aplicação do Regime dos Residentes Não Habituais.
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SUMÁRIO

A obrigação inscrição no registo dos residentes não habituais assume caráter meramente declarativo e não constitutivo do estatuto de Residente Não Habitual.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. A..., contribuinte fiscal número ..., residente em ..., ..., ... United Kingdom, doravante também designado por “Requerente”, veio, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por “RJAT”) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com designação de Árbitro pelo Conselho Deontológico do CAAD, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).

 

2. O Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade da decisão de indeferimento (tácito) da Reclamação Graciosa apresentada contra o ato de liquidação n.º 2024..., respeitante ao IRS de 2022, nos termos do qual foi apurado um montante de imposto a pagar de € 28.879,74, solicitando a anulação parcial dessa liquidação, com o consequente reembolso, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, contados desde a data em que ocorreu o respetivo pagamento até ao seu integral reembolso.

 

3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

 

4. O Conselho Deontológico designou a signatária como Árbitra do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.

 

5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 8.º do RJAT, e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

6. O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 22 de abril de 2025, tendo-o sido regularmente e é materialmente competente.

 

7. Por Despacho de 22 de abril de 2025, a AT foi notificada para, nos termos do artigo 17.º do RJAT, apresentar Resposta.

 

8. A AT apresentou a sua Resposta em 21 de maio de 2025, juntamente com o Processo Administrativo.

9. Em 22 de maio de 2025, proferiu este Tribunal Despacho a dispensar a reunião do Tribunal com as partes (artigo 18.º do RJAT), determinando-se que o processo prossiga com alegações escritas facultativas por um período de 10 dias, iniciando-se com a notificação do Despacho o prazo para alegações do Requerente e com a notificação da apresentação das alegações do Requerente ou da falta de apresentação das mesmas, o prazo para alegações da Autoridade Tributária e Aduaneira e indicando-se até ao dia 22 de setembro de 2025 o prazo para prolação da decisão arbitral. 

10. O Requerente apresentou alegações em 9 de junho de 2025.

 

11. A Requerida não apresentou alegações.

 

12. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e o Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

 

13. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

 

1.     O Requerente foi destacado pela sua entidade patronal, a B..., para exercer temporariamente funções de Finance Business Partner na congénere portuguesa daquela entidade, a C..., Lda. (cfr. Documentos n.ºs 3 e 6 juntos ao PPA).

2.     O Requerente foi residente em Portugal durante o período compreendido entre 9 de fevereiro de 2022 e 4 de fevereiro de 2023, constando, a partir desta última data, registado como não residente no nosso país (cfr. Documentos n.ºs 3, 4 e 5, juntos ao PPA).

3.     No período em que foi residente fiscal em Portugal, o Requerente procedeu à entrega da sua Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2022, na qual reportou os rendimentos auferidos nesse ano (cfr. Documento n.º 7, junto ao PPA).

4.     O Requerente não se encontrava, à data de entrega da referida Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS, inscrito como RNH no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes.

5.     O Requerente não apresentou o pedido de inscrição como RNH até ao dia 31 de março de 2023, nem preencheu o Anexo L, respeitante aos rendimentos auferidos em atividades de elevado valor acrescentado.

6.     O Requerente foi notificado da nota de liquidação de IRS n.º 2024...., nos termos da qual foi apurado um montante de imposto a pagar de € 28.879,74, o qual foi objeto de pagamento voluntário (cfr. Documento n.º 1, junto ao PPA).

7.     Parte do valor dos rendimentos da Categoria A declarados pelo Requerente, no Anexo J da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2022 - o montante de € 18.594,48, foi auferido por conta do trabalho prestado pelo Requerente no Reino Unido, antes da sua vinda para Portugal, tendo aí sido efetivamente tributado, no valor de € 3.642,86.

8.      No ano de 2022, o Requerente obteve rendimentos de capitais no Brasil e no Reino Unido, no montante de global de € 2.663,36, bem como, rendimentos prediais no Brasil, no valor de € 1854,97, que declarou no Anexo J da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS.  

9.     Para o apuramento do montante da nota de liquidação de IRS n.º 2024... não foi tida em conta a taxa especial de tributação de 20%, aplicável aos sujeitos passivos detentores do estatuto de RNH, e que exerçam atividades de elevado valor acrescentado, mas antes as taxas gerais previstas no n.º 1 do artigo 68.º do Código do IRS, nem tampouco foram tidas em consideração as isenções contempladas nos n.ºs 4 e 5 do artigo 81.º do mesmo diploma (cfr. Documento n.º 2, junto ao PPA).

10.  O Requerente efetuou o pedido de inscrição como RNH com efeitos ao ano de 2023, através da sua página pessoal do Portal das Finanças (cfr. Documento n.º 9, junto ao PPA).

11.  O Requerente procedeu à apresentação da Reclamação Graciosa em 10 de Julho de 2024 (cfr. Documento n.º 11, junto ao PPA). 

12.  A Autoridade Tributária e Aduaneira não se pronunciou sobre a Reclamação Graciosa (cfr. Documento n.º 2, junto ao PPA).

 

B. Matéria de facto não-provada

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

 

1.     Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas Partes nos presentes autos, nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.

2.     Cabe ao Tribunal Arbitral selecionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigos. 596.º, n.º1 e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cf. artigos. 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do CPTA e artigos. 5.º, n.º 2 e 411.º, do CPC).

3.     Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas Partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cf. artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

4.     Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º, do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cf. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º1, alínea e), do RJAT).

 

III. Mérito da Causa

 

A. Posição da Requerente 

 

Tal como invoca, tendo o Requerente procedido à apresentação da Reclamação Graciosa em 10 de julho de 2024, esta presumiu-se tacitamente indeferida, em 10 de novembro de 2024, em face da ausência de qualquer decisão por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira. Ora, não se conforma com a referida decisão de indeferimento (tácito)e, nessa medida, com o ato de liquidação de IRS ora impugnado, uma vez que reflete uma errónea aplicação das normas que integram o regime do RNH, na redação em vigor à data dos factos, atentando, ainda, contra a jurisprudência uniforme, quer dos Tribunais Superiores, quer dos Tribunais que funcionam no Centro de Arbitragem Administrativa, sobre estas matérias.

O Requerente, sustenta, em suma, que, “43. Nos termos do disposto no n.º 9 do mesmo normativo, o direito a ser tributado como RNH perdura durante um período de 10 anos consecutivos, o que, no caso do Requerente, que exerceu uma atividade de elevado valor acrescentado, implicaria o direito a ser tributado à taxa especial de 20%, prevista no n.º 10 do artigo 72.º do Código do IRS.

44. Resulta, portanto, do regime exposto, que um determinado sujeito passivo de IRS adquire automaticamente o estatuto de RNH, com o preenchimento dos dois requisitos cumulativos previstos no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, a saber:

                                          i.         Ser residente em território português;

                                        ii.         Não ter sido residente em território português durante os últimos cinco anos.

45.Nesta senda, entende o Requerente que o seu direito a ser tributado como RNH, no ano de 2022, dependia, e depende, única e exclusivamente do preenchimento dos pressupostos (objetivos e subjetivos) supramencionados, nesse mesmo ano.

46.Ora, da mera análise dos Documentos n.ºs 4 e 5, que acima se juntaram, resulta por demais evidente que o Requerente apenas se tornou residente em Portugal, em 2022, tendo, nos 5 anos anteriores, residido fora de território nacional.

47.Assim, forço é concluir que, no ano de 2022, o Requerente reunia os dois requisitos previsto no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, tendo, por esse motivo, adquirido o estatuto de RNH nesse ano, bem como o direito a ser tributado de acordo com esse regime mais favorável.

48.Neste sentido, não poderá ser impedimento para beneficiar desse regime o facto de ter efetuado o pedido de inscrição no referido regime fora do prazo a que alude o n.º 10 do artigo 16.º o Código do IRS.”

Neste contexto invoca decisões arbitrais proferidas em situações similares à controvertida prolatadas, nomeadamente, nos Processos n.ºs 1041/2023-T, 705/2022-T, 605/2023-T, 777/2020-T, 262/2018-T, 350/2024-T, 769/2024-T, 666/2024-T e 926/2024-T.

Nas alegações apresentadas, vem, em suma invocar que não procedem as excepções de invocadas pela AT pelos motivos a que aderimos e expomos infra e reitera no demais o que já fundamentara.

 

B. Posição da Requerida 

 

Na sua resposta, a Requerida, para o efeito, começa por invocar que, “4.º É, assim, manifesto que a verdadeira pretensão do Requerente não se prende com a liquidação de IRS objeto dos autos, mas antes com o reconhecimento do estatuto de RNH.

5.º Salvo o devido respeito, e como se irá demonstrar de seguida, o aqui peticionado está votado ao insucesso, em primeiro lugar porque a questão controvertida não pode ser apreciada pelo CAAD, e, ainda que assim não fosse, como é, sempre se diria que o ato impugnado não padece da ilegalidade que lhe é apontada.

(…)

15.º “ (…) nos termos do n.º 7 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação em vigor à data do pedido, o direito a ser tributado como residente não habitual adquiria-se com a inscrição dessa qualidade no registo de contribuintes da AT; O que pressupõe a prática do ato administrativo correspondente e que é, necessariamente, estranho e independente do ato tributário de liquidação, tendo o Requerente sido notificado da possibilidade de reação desta decisão, através de ação administrativa nos termos do artigo 50º e artigo 58.º/1, al.b) do CPTA. Sendo, assim, o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de aplicação do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais aos rendimentos auferidos pelo Requerente que qualificam para o regime dos residentes não habituais arbitrais. Porquanto, como se disse e aqui se repete, se trata de questão tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação invocado”. 16.º “A impugnação da liquidação de IRS por desconsideração do estatuto de residente não habitual (…) não se apresenta como a via processual idónea à obtenção do reconhecimento jurisdicional dessa condição jurídico-fiscal de benefício pessoal nos termos do antigo art. 72.º, n.º 12, do CIRS, não estando abrangida pela justiça tributária fiscal delimitada pelo RJAT, nem sequer tal reconhecimento sendo legalmente viável em razão do caráter perentório do prazo que estava previsto no art. 16.º, n.º 10, do CIRS.

(…)

24.º A impropriedade do meio consubstancia uma exceção dilatória inominada, de utilização indevida de uma forma de processo desadequada à pretensão deduzida nos autos, que determina a absolvição da Requerida da instância, nos termos do estatuído no n.º 2 do artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.”

Mas, ainda que assim não o fosse, invoca em suma que, “tendo o pedido de inscrição no Regime dos Residentes Não Habituais sido apresentado em 2023-12-22 (cfr. documento 8 junto ao PPA e PA), apenas, poderá beneficiar do regime de RNH a partir do ano de 2023, não sendo o estatuto de residente não habitual aplicável ao ano de 2022”.

Como defende, “33.º Concluindo, o benefício fiscal só se concretiza anualmente se existir facto tributário (obtenção de rendimentos relevantes nesta situação) e desde que o contribuinte declare e proceda à opção pelo regime de tributação excecional, sendo a liquidação efetuada de acordo com as opções que em cada ano faz, e caso o sujeito passivo tenha obtido, a seu pedido, o reconhecimento administrativo da verificação dos dois outros pressupostos.”

 

IV. Fundamentação da Decisão

 

Estamos agora em condições de nos pronunciarmos sobre o mérito da causa.

 

Em suma, as questões que se colocam no presente caso consistem em saber se, por um lado, se verificam, as exceções invocadas e, por outro se, preenchendo o Requerente os requisitos cumulativos previstos no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, a saber, ser residente em território português e não ter sido residente em território português durante os últimos cinco anos, adquire automaticamente o estatuto de RNH, ou se para beneficiar desse regime o pedido de inscrição deve obrigatoriamente ser efetuado no prazo a que alude o n.º 10 do artigo 16.º do mesmo Código.

Importa assim analisar se a obrigação inscrição no registo dos residentes não habituais assume caráter meramente declarativo e não constitutivo do estatuto de RNH.

Vejamos.

 

1. Das exceções invocadas pela AT

 

Vem a AT invocar as exceções dilatórias de incompetência material do Tribunal Arbitral e de impropriedade do meio processual adotado pelo Requerente.

No tocante à primeira exceção da incompetência material do Tribunal “para conhecer dos vícios suscitados e/ou reconhecer o estatuto de residente não habitual (RNH)”, cumpre salientar que não está em causa nos presentes autos o reconhecimento do estatuto do Requerente como RNH, mas sim a anulação da decisão de indeferimento (tácito) que recaiu sobre a Reclamação Graciosa apresentada contra o ato de liquidação de IRS, referente ao ano de 2022, bem como a anulação parcial deste último.

O Requerente peticiona a anulação do ato de liquidação de IRS, referente ao ano de 2022, com fundamento, entre outros, na não aplicação dos benefícios fiscais associados ao regime dos RNH, nomeadamente no que concerne à não aplicação da isenção consagrada nos n.ºs 4 e 5 do artigo 81.º do Código do IRS, bem como da taxa de tributação reduzida prevista no artigo 72.º, n.º 10 do Código do IRS. 

Ora, a competência dos Tribunais Arbitrais para apreciar a legalidade de atos de liquidação de tributos decorre de forma expressa do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, pelo que inexistem quaisquer dúvidas quanto à competência do Tribunal Arbitral para apreciar a legalidade do ato de liquidação de IRS, referente ao ano de 2022. Neste sentido veja-se, nomeadamente, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 188/2020-T, de 24 de setembro de 2021 invocada pelo Requerente.

Já no referente à segunda exceção atinente ao facto de o meio processual adotado pelo Requerente ser impróprio, como nota o Requerente, os mesmos argumentos conduzem igualmente à improcedência da exceção de impropriedade do meio processual adotado, uma vez que também essa se encontra alicerçada no mesmo pressuposto: ou seja, o de que nos presentes autos se discute a legalidade da decisão administrativa que recaiu sobre o pedido de inscrição como RNH. Acresce que a decisão arbitral invocada pela AT proferida no Processo n.º 796/2022-T, de 11 de setembro de 2023, com uma situação fáctica distinta da ora sob análise, foi proferida no âmbito do regime dos RNH que se encontrava em vigor anteriormente às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, assim como o entendimento vertido no Acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional a que a AT faz referência, igualmente com uma situação fáctica distinta da controvertida.

Ora, como bem nota o Requerente, “ 37. Sucede que o paradigma vigente no anterior regime dos RNH alterou-se totalmente com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de Setembro, aplicável ao caso vertente, desde logo, porque o direito a ser tributado como RNH deixou de depender de um procedimento autónomo de reconhecimento, passando a adquirir-se, de forma automática, com o preenchimento dos pressupostos legais previstos no atual n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS.

38. À luz do atual regime dos RNH, o pedido de inscrição passou a configurar uma mera obrigação acessória, e já não uma condição para a aquisição dos benefícios associados a esse estatuto. 

39. Por conseguinte, à luz do atual regime dos RNH, o ato de liquidação de IRS pode ser diretamente impugnável, com fundamento no excesso de quantificação de imposto decorrente da não consideração do regime mais favorável de tributação previsto para os RNH, independentemente da eventual decisão que possa ter recaído sobre o pedido de inscrição como RNH.

Veja-se nesse contexto, nomeadamente, a decisão arbitral proferida no Processo n.º 656/2023-T, de 27 de maio de 2024, bem como a decisão arbitral proferida no Processo n.º 319/2022-T, de 2 de dezembro de 2022, invocadas pelo Requerente.

Termos em que deverão as referidas exceções de incompetência material do tribunal arbitral e de impropriedade do meio processual ser julgadas improcedentes.

 

2. Da aplicação do Regime dos Residentes Não Habituais

 

Apesar de o regime do RNH ter sido extinto pela Lei n.º 82/2023, de 29 de dezembro, os factos ora em análise reportam-se ao ano de 2022, devendo, consequentemente, ser analisados à luz do regime em vigor nessa data.

Nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, dispunha-se que: “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

A inscrição como residente não habitual tem de ser solicitada por via eletrónica, posteriormente à inscrição como residente fiscal ou, em momento ulterior, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte aquele em que se tornou residente em Portugal, conforme estabelece o n.º 10 artigo 16.º do CIRS.

No tocante às taxas aplicáveis, estipula o n.º 10 do artigo 72.º do Código do IRS que “os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %.”

Como a própria AT reconhece e resulta provado, o Requente tornou-se residente em Portugal no ano de 2022, tendo entregado o pedido de inscrição no Regime dos Residentes Não Habituais em 22 de dezembro de 2023.

Contudo, o certo é que, tal como resulta provado dos Documentos n.ºs 4 e 5, o Requerente desde o ano de 2022 que preenchia ambos os requisitos de aplicação do RNH, tendo, nos 5 anos anteriores, residido fora de território nacional.

Note-se que, tal como resulta provado, durante o período em que residiu em Portugal, o Requerente desenvolveu funções de Finance Business Partner na C..., Lda. (cfr. Documentos n.ºs 3 e 6), atividade que compreende as funções inerentes à atividade com o código 1211.0 – Diretores Financeiros, a qual, de acordo com a Portaria 230/2019, de 23 de julho, é qualificada como atividade de elevado valor acrescentado (cfr. Documento n.º 6).

Ora, é nosso entendimento que, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional-, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento.

Tal como invoca o Requerente, a jurisprudência tem entendido que a obrigação inscrição no registo dos residentes não habituais assume caráter meramente declarativo e não constitutivo do estatuto de RNH, nomeadamente a decisão arbitral prolatada no Processo n.º 705/2022-T, de 30 de julho de 2023, nos termos da qual, “Pois bem, em face do assim disposto, julga-se que não é possível reputar a inscrição no registo dos contribuintes como residente não habitual como requisito necessário e constitutivo do direito à aplicação do regime respetivo e dos benefícios fiscais dele emergentes.

Como já foi observado, por exemplo, no processo n.º 777/2020-T e acolhido no processo n.º 550/2022-T, a redação aplicável dos n.ºs 8 e 9 do art. 16.º do CIRS depõe claramente no sentido de que se trata, nessa inscrição no cadastro dos contribuintes, de um registo declarativo, cuja não realização não obvia à aplicação, verificados os pressupostos materiais exigidos, dos benefícios fiscais em causa.

É que, se o n.º 9 do art. 16.º do CIRS estabelece que: “O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português”, com o que faz depender a aquisição do direito a ser tributado como residente não habitual de o sujeito passivo ser considerado residente não habitual, o n.º 8 do mesmo artigo é expresso e taxativo em declarar que: “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.ºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores”.

Assim, para que o sujeito passivo seja “considerado residente não habitual” e adquira o direito a ser tributado como tal, a lei não inclui a inscrição no registo como residente não habitual, que surge no n.º 10 do mesmo artigo apenas como um dever do sujeito passivo (“deve solicitar a inscrição”), não como um requisito constitutivo dessa condição e do direito à correspondente situação tributária vantajosa.

A facti species constitutiva da situação tributária de residente não habitual e dos correspondentes benefícios fiscais em sede de IRS é, portanto, a verificação dos dois pressupostos materiais atinentes à residência fiscal em certo ano em território português e à não residência fiscal pretérita nos cinco anos anteriores nesse território. O pedido de inscrição como residente não habitual imposto pelo n.º 10 do art. 16.º do CIRS deve, então, reputar-se um dever acessório do contribuinte (art. 31.º, n.º 2 da LGT) que serve a finalidade de facilitação da fiscalização da situação tributária do contribuinte e da aplicação do benefício fiscal, de modo a que a AT proceda ao controlo dos registos do contribuinte no seu cadastro, bem como dos demais elementos em seu poder, solicite eventuais elementos adicionais para verificar que o interessado foi considerado como residente fiscal noutra jurisdição e valide o cumprimento dos requisitos legalmente previstos, sendo, porém, da verificação destes requisitos, e não da solicitação ou realização daquela inscrição no registo, que depende a constituição do direito a ser tributado, de modo desagravado, como residente não habitual.

Assim, como dever acessório, o seu incumprimento pode gerar uma contraordenação tributária (cfr. art. 117.º do Regime Geral das Infrações Tributárias), mas não interfere com o direito à redução ou isenção tributária adveniente do regime do residente não habitual, que assenta estritamente na satisfação das condições materiais legalmente previstas e não pressupõe, como requisito formal autónomo, a inscrição cadastral como tal.

Conclui-se, pois, que a aplicação do regime dos residentes não habituais exige a verificação dos requisitos de o sujeito passivo se ter tornado fiscalmente residente em território português e não ter sido nele residente em qualquer dos cinco anos anteriores, mas não depende da inscrição correspondente no cadastro. Como tal, a falta ou intempestividade da inscrição como residente não habitual não determina, por si mesma, a exclusão do regime correspondente.” 

Tratando-se de uma norma de caráter procedimental não pode ter como efeito a preclusão do direito do Requerente a ser tributado como RNH, no ano de 2022 e seguintes, pelo que, reunindo o Requerente, no ano de 2022, os dois requisitos previsto no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS para esse efeito, adquiriu nesse ano o estatuto de RNH, bem como o direito a ser tributado de acordo com esse regime, à taxa especial de 20%, nos termos do disposto no artigo 72.º, n.º 10, do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos.

Por outro lado, os n.ºs 4 e 5 do artigo 81.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, preveem expressamente uma isenção dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos de capitais e prediais auferidos pelos RNH, nos seguintes termos:

4 - Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria A aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer das condições previstas nas alíneas seguintes:
a) Sejam tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; ou
b) Sejam tributados no outro país, território ou região, nos casos em que não exista convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, desde que os rendimentos, pelos critérios previstos no n.º 1 do artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português.

5 - Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:
a) Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; ou
b) Possam ser tributados no outro país, território ou região, em conformidade com o modelo de convenção fiscal sobre o rendimento e o património da OCDE, interpretado de acordo com as observações e reservas formuladas por Portugal, nos casos em que não exista convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, desde que aqueles não constem de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, relativa a regimes de tributação privilegiada, claramente mais favoráveis e, bem assim, desde que os rendimentos, pelos critérios previstos no artigo 18.º, não sejam de considerar obtidos em território português.
” 

Tal como igualmente resulta provado, parte do valor dos rendimentos da Categoria A declarados pelo Requerente, no Anexo J da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS referente ao ano de 2022 - o montante de € 18.594,48, foi auferido por conta do trabalho  que prestou no Reino Unido, antes da sua vinda para Portugal, tendo aí sido efetivamente tributado, no valor de € 3.642,86.

Resulta igualmente provado que no ano de 2022, o Requerente também obteve rendimentos de capitais no Brasil e no Reino Unido, no montante de global de € 2.663,36, bem como, rendimentos prediais no Brasil, no valor de € 1854,97, que declarou no Anexo J da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS.  

Assim, e em conformidade com os n.ºs 4 e 5 do artigo 81.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, deveriam os referidos montantes de € 18.594,48 (Categoria A) e de € 4.518,33 (Categorias E e F) ter sido considerados como rendimentos isentos de IRS.

Desta forma, o montante de imposto refletido na liquidação de IRS, do ano de 2022, revela-se superior ao que resultaria se tivessem sido aplicadas as regras do regime do RNH (cfr. Documento n.º 1, junto ao PPA), pelo que a liquidação de IRS n.º 2024... deve ser parcialmente anulada na parte correspondente à diferença entre o montante de imposto apurado pela AT e o montante de imposto que resultaria da aplicação do referido regime, que ascende ao montante de € 24.029,26.

 

3. Do pagamento de juros indemnizatórios

 

No que se reporta ao pagamento de juros indemnizatórios, preconiza a jurisprudência dos nossos tribunais superiores que deve encontrar-se preenchido o pressuposto do “erro imputável aos serviços” que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, reclama para o nascimento da obrigação de juros indemnizatórios. Como se refere no Acórdão do STA, no Processo n.º 049/16, de 10 de Maio, que acompanhamos: “Foi esta a solução sustentada pelo citado acórdão de 02-12-2015, do Pleno desta Seção, Proc. 01524. Como se escreveu no acórdão deste STA, de 30-05-2012, proc. 410: “Diz o n.º 1 do art. 43.º da LGT, ao abrigo da qual foi proferida a condenação ora recorrida: «São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Ou seja, quando um acto de liquidação de um tributo for declarado em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial viciado por erro imputável aos serviços e do qual tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, há direito a juros indemnizatórios, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Como salienta JORGE LOPES DE SOUSA, «[a] utilização da expressão «erro» e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito.

Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» tem um âmbito mais restrito do que a expressão «vício». Por outro lado, é usual utilizar-se a expressão «vícios» quando se pretende aludir genericamente a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença) ambos do CPTT. Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro» tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume I, anotação 5 ao art. 61.º, pág. 531..) O mesmo Autor explica as razões por que a LGT restringiu o direito a juros indemnizatórios aos casos de anulação por vício substancial e já não o reconheceu relativamente aos vícios de forma ou incompetência que determinem a anulação do acto: o reconhecimento de um vício destes últimos tipos «não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu. Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito. Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele.” 

Neste contexto, entendemos igualmente que deve proceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios por se encontrarem verificados os respetivos requisitos

Deste modo, sendo anulado o ato de liquidação de imposto objeto do presente pedido, deve o montante indevidamente pago ser restituído ao Requerente, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, contados desde a data em que ocorreu o respetivo pagamento até ao seu integral reembolso.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

a)     Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)    Anular parcialmente a liquidação de IRS de 2022 n.º 2023... e a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosacontra o referido ato de liquidação de IRS, devendo a AT proceder à restituição do imposto pago em excesso;

c)     Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, contados desde a data em que ocorreu o respetivo pagamento até ao seu integral reembolso.

d)    Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo. 

 

 

VI. Valor do processo

 

Fixa-se, assim, o valor do processo em € 24.029,26 (vinte e quatro mil e vinte e nove euros e vinte e seis cêntimos), nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, 1, a), do RJAT e artigo 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VII. Custas

 

Custas no montante de € 1530,00 (mil, quinhentos e trinta euros) a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 27 de junho de 2025

 

A Árbitra

 

 

Clotilde Celorico Palma