Sumário:
As liquidações oficiosas de IVA, emitidas ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 88 do Código do IVA e assentes em rendimento presumido, não podem subsistir quando o sujeito passivo ilide a presunção em que se fundaram, demonstrando a ausência de operações tributáveis em sede de IVA, suscetíveis de originar imposto devido ao Estado.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Fernanda Maçãs (Árbitra Presidente), Luís Sequeira (Árbitro Adjunto) e Sónia Fernandes Martins (Árbitra Adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 09.01.2025, acordam no seguinte:
I. Relatório
A..., contribuinte fiscal n.º..., com domicílio em..., n.º ..., ...-... ..., na qualidade de responsável subsidiário da sociedade comercial “B..., LDA.” (doravante também designada por “Sociedade”), com o NIPC..., após ter sido citado enquanto responsável subsidiário por dívidas da supra identificada sociedade, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2019..., apresentou reclamação graciosa, à qual coube o n.º ...2023... – relativamente aos atos tributários adiante identificados – que constituem a quantia exequenda do versado processo executivo – a saber:
· Período 201901, liquidação n.º 2019..., no valor de € 19.495,87;
· Período 201902, liquidação n.º 2019..., no valor de € 19.495,87;
· Período 201903, liquidação n.º 2019..., no valor de € 19.495,87;
· Período 201904, liquidação n.º 2019..., no valor de € 19.495,87;
· Período 201905, liquidação n.º 2019..., no valor de € 19.495,87;
· Período 201906, liquidação n.º 2019..., no valor de € 7.403,99.
A reclamação graciosa veio a ser indeferida, pelo que veio o Requerente impugnar, através do Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA), que está na origem destes autos, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, bem assim, as respetivas liquidações supra melhor identificadas, as quais constituem o objeto mediato do versado meio gracioso de defesa.
É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, a qual doravante também se designará por “Requerida” e/ou “AT”.
a) Tramitação processual:
Por despacho do Tribunal Arbitral, de 20.02.2025, foi o Requerente notificado para indicar os pontos da matéria de facto sobre os quais pretendia fazer incidir a prova testemunhal e bem assim para proceder à junção do documento que no pedido menciona protestar juntar.
O Requerente veio a indicar os pontos a que pretendia a inquirição das testemunhas arroladas e a requerer mais 10 dias para a junção do documento em falta.
Por despacho de 08.03.2025, este Tribunal Arbitral decidiu agendar a reunião arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT, para as 14 horas de 24.03.2025.
Por despacho do Tribunal, de 15.03.2025, foi o Requerente notificado para, até à agendada reunião, juntar o documento 5 referido no PPA.
Na data agendada verificou-se a ausência da testemunha arrolada, pelo que ficou definida nova data – 31.03.2025.
Em 31.03.2025, veio a ter lugar a reunião arbitral – nas instalações do CAAD de Lisboa –, tendo a testemunha inquirida sido ouvida de forma telemática, a partir das instalações do CAAD do Porto.
Foi, nessa ocasião, o Requerente notificado para proceder à junção, no prazo de 10 dias, da documentação contabilística referida pela testemunha e, bem assim, ficaram notificadas as partes para, garantido o contraditório face a tal documentação a fazer chegar aos autos supervenientemente, formularem alegações escritas, querendo.
Em 10.04.2025, o Requerente apresentou a documentação em causa, da qual se notificou a Requerida.
Requerente e Requerida vieram a apresentar, em 16.04.2025 e 07.05.2025, respetivamente, as suas alegações escritas.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 04.11.2024.
As partes foram notificadas da designação dos árbitros nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído a 09.01.2025.
b) Posição do Requerente:
O Requerente alega, em primeiro lugar, a ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa por falta de fundamentação, em violação do artigo 77.º da LGT e do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a AT se limitou a afirmar genericamente que se mantinham os pressupostos das liquidações oficiosas, sem indicar os fundamentos concretos de facto e de direito, nem sequer identificando a norma aplicável (nomeadamente, o número e a alínea do artigo 88.º do CIVA).
Em segundo lugar, o Requerente invoca erro nos pressupostos de facto e de direito. Alega que as liquidações foram emitidas com base numa presunção legal de atividade tributável, mas que a sociedade, conforme resulta quer das declarações periódicas entretanto entregues, quer da Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa ao exercício de 2019, não desenvolveu qualquer atividade nesse ano, tendo a falta de entrega das declarações resultado exclusivamente da apreensão judicial da sua documentação contabilística no âmbito do processo-crime n.º 521/16.9T9STS. As declarações periódicas foram entregues em 17.03.2020 e demonstram um volume de negócios nulo.
A AT, ao recusar a anulação das liquidações com o fundamento de que a entrega das declarações não ocorreu dentro do prazo previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 88.º do CIVA, ignorou que, nos termos da alínea b) da mesma disposição, é possível proceder à anulação oficiosa das liquidações sempre que existam elementos que provem que os montantes liquidados não correspondem à realidade tributária. A prova documental junta, nomeadamente a IES e as declarações periódicas, demonstram inequivocamente a inatividade da sociedade e a inexistência de base tributável para os períodos em causa, motivo pelo qual as liquidações são materialmente inválidas.
A jurisprudência consolidada do Tribunal Central Administrativo Sul (v.g. Acórdão de 13.07.2017, proc. 08539/16) e do CAAD (v.g. decisões nos processos 191/2014-T e 302/2018-T) confirma que a presunção que sustenta as liquidações oficiosas pode ser ilidida com base em prova objetiva de inatividade, ainda que as declarações sejam entregues fora de prazo.
Por todo o exposto, o Requerente requer a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa e das liquidações impugnadas, por vício de forma (falta de fundamentação) e por erro nos pressupostos de facto e de direito.
Nas suas alegações finais, o Requerente, A..., gerente da Sociedade, invoca, por um lado, que a não entrega das declarações periódicas se ficou a dever à apreensão da documentação da Sociedade no âmbito de um processo-crime, o que impossibilitou o cumprimento atempado das obrigações declarativas. Por outro lado, defende que a decisão da AT que indeferiu a reclamação graciosa padece de falta de fundamentação legalmente exigida, por não indicar expressamente o fundamento normativo aplicável.
O Requerente sustenta ainda que as liquidações assentam em pressupostos errados, pois a Sociedade não teve qualquer atividade tributável em IVA no ano de 2019. Com base na IES, nos balancetes e no ficheiro e-Fatura, demonstra-se que não foram emitidas faturas nem registadas vendas ou prestações de serviços, encontrando-se a rubrica de vendas a “zeros”. Assim, conclui que as liquidações não têm suporte em qualquer facto tributário e devem ser anuladas por erro nos pressupostos de facto e de direito.
c) Posição da Requerida:
Na sua Resposta, a AT contesta o pedido arbitral apresentado pelo Requerente, na qualidade de revertido, relativamente às liquidações oficiosas de IVA referentes aos períodos de 201901 a 201906, no montante global de € 104.703,34, já supramelhor identificadas.
Em sede de matéria de facto, a Requerida confirma que as liquidações oficiosas foram emitidas na sequência da falta de entrega das declarações periódicas de IVA pela sociedade B..., Lda., no prazo legal.
Reconhece também que as referidas declarações foram entregues em 17.03.2020, mas sustenta que essa entrega ocorreu já depois de decorrido o prazo de 6 meses previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 88.º do CIVA, pelo que, nos termos estritos da lei, não poderia operar a substituição automática das liquidações oficiosas pelas declarações entregues.
A Requerida sustenta, assim, que não ocorreu qualquer ilegalidade ou vício de forma na emissão das liquidações, nem na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, porquanto a atuação da AT se baseou na lei vigente e seguiu os trâmites próprios, nomeadamente o regime previsto no artigo 88.º do CIVA e o disposto no artigo 45.º da LGT.
Rejeita que tenha existido violação do dever de fundamentação previsto no artigo 77.º da LGT, por entender que a decisão de indeferimento foi suficientemente clara quanto aos fundamentos legais e factuais que a sustentaram.
A Requerida defende ainda que a presunção de regularidade e veracidade dos atos administrativos tributários não foi ilidida pelo Requerente, na medida em que a Sociedade, ao não apresentar em tempo útil as declarações periódicas, inviabilizou a substituição das liquidações com base na sua própria iniciativa, não se verificando os requisitos legais da alínea a) nem da alínea b) do n.º 4 do artigo 88.º do CIVA.
Quanto à alegada inatividade da sociedade no ano de 2019, a Requerida argumenta que essa matéria foi suscitada de forma genérica e desprovida de prova objetiva, e que o simples envio extemporâneo das declarações periódicas, por si só, não ilide a presunção de que houve atividade tributável nos períodos visados. Conclui, por isso, que a emissão das liquidações oficiosas foi legal, proporcional e adequada, e que não se demonstraram fundamentos bastantes para a sua anulação.
A AT conclui, requerendo que o pedido arbitral seja julgado totalmente improcedente, por não se verificarem os vícios alegados quanto à ilegalidade das liquidações impugnadas, nem qualquer preterição de formalidade legal essencial.
Em sede de alegações, a Requerida veio reiterar a legalidade das liquidações oficiosas, emitidas ao abrigo do artigo 88.º, n.º 1, do CIVA, perante a falta de entrega das declarações periódicas.
Alega que as liquidações se consolidaram pela omissão do sujeito passivo e que não foi apresentada prova bastante para afastar a presunção de veracidade subjacente.
Considera ainda que o despacho de indeferimento da reclamação graciosa cumpre os requisitos legais de fundamentação e que os elementos juntos pelo Requerente não bastam para demonstrar a inexistência de atividade tributável. Termina requerendo a improcedência do pedido arbitral.
II. Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo
diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e estão devidamente representadas.
A cumulação de pedidos, relativos a diferentes atos de liquidação de IVA de diversos períodos de 2019, é admissível porquanto a cumulação destes depende, essencialmente, da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, verificando-se assim subsunção à previsão estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT.
O Requerente, enquanto revertido, tem legitimidade para impugnar as liquidações que constituem a dívida exequenda, por força do n.º 5 do artigo 22.º da LGT.
As partes estão devidamente representadas e o processo não padece de qualquer nulidade, não tendo sido invocadas exceções que possam conduzir à absolvição da instância, estando o tribunal em condições de apreciar desde já o mérito da causa.
Cumpre apreciar e decidir.
III. Matéria de Facto
a) Factos Provados:
Estão provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
1. No âmbito do presente processo arbitral, encontram-se arbitralmente impugnadas as seguintes liquidações oficiosas de IVA emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira à sociedade B..., Lda., respeitantes aos períodos mensais de janeiro a junho de 2019, num valor global de € 104.703,34 (cento e quatro mil, setecentos e três euros e trinta e quatro cêntimos), com a seguinte identificação:
o Liquidação n.º 2019 ..., referente ao período 201901, no valor de € 19.495,87
o Liquidação n.º 2019 ..., referente ao período 201902, no valor de € 19.495,87
o Liquidação n.º 2019 ..., referente ao período 201903, no valor de € 19.495,87
o Liquidação n.º 2019 ..., referente ao período 201904, no valor de € 11.019,99
o Liquidação n.º 2019 ..., referente ao período 201905, no valor de € 17.547,38
o Liquidação n.º 2019 ..., referente ao período 201906, no valor de € 17.648,36
– cfr. Doc. 1 junto com o PPA.
2. A Sociedade, não obstante notificada pela AT para proceder à regularização da situação declarativa, não apresentou as declarações periódicas de IVA relativas aos referidos períodos – cfr. Doc. 1 junto com a Resposta.
3. Pelo que, a AT procedeu à emissão das liquidações oficiosas referidas em 1., ao abrigo do artigo 88.º do Código do IVA, em virtude da não entrega pela Sociedade, nos prazos legais, das declarações periódicas de IVA relativas aos períodos de janeiro a junho de 2019.
4. Em 17.03.2020, veio a Sociedade a apresentar as declarações periódicas relativas aos períodos mensais de janeiro a junho de 2019, das quais não consta a inscrição de qualquer valor, dos campos 1 a 6 – cfr. Doc. 6 junto com o PPA.
5. Igualmente, do teor de tais declarações periódicas relativas a janeiro a junho de 2019, os campos 7 a 9 (aquisições intracomunitárias), o campo 17 (serviços de não residentes) e o campo 21 (inversão do sujeito passivo) não têm qualquer valor inscrito.
6. As declarações periódicas entregues pela Sociedade e a que se reportam os pontos 4.e 5. não foram objeto de liquidação pela AT.
7. Em 14.11.2023, veio a Sociedade a proceder à regularização contabilística, isto é, a entregar a Informação Empresarial Simplificada (IES) dos exercícios de 2019 a 2023, o que fez através dos serviços do Contabilista Certificado C... – testemunha nestes autos.
8. Do teor da IES de 2019 resulta não terem sido realizadas quaisquer vendas ou prestações de serviços nesse ano, constando sem valor o campo “A5001 – Vendas e serviços prestados” – e bem assim os campos relativos a rendimentos “A5002” a “A5005” – cfr. DOC. 7 junto com o PPA.
9. O campo “A5007 – Fornecimentos e serviços externos” da mesma IES de 2019 apresenta um valor de € 42.285,08, – cfr. Doc. 7 do PPA.
10. O campo “A5008 – Gastos com o pessoal” da mesma IES de 2019 apresenta um valor de € 4.404,80, revelando que a sociedade teve encargos com pessoal nesse exercício, apesar de não ter gerado proveitos – cfr. Doc. 7 do PPA.
11. O resultado líquido do exercício de 2019 declarado pela Sociedade foi negativo, no valor de € 102.437,21, não tendo sido declarada qualquer receita operacional – cfr. DOC. 7 do PPA.
12. Em 11.11.2023, a Sociedade veio a entregar a declaração Modelo 22 relativa ao exercício de 2019, na qual apresenta um resultado líquido do exercício de 2019 negativo, no montante de € 102.437,21 – cfr. Doc. 4 junto com requerimento do Requerente em 07.11.2024.
13. Da análise ao ficheiro e-Fatura referente a 2019, revela-se a existência de diversas faturas emitidas a favor da Sociedade, com destaque para despesas significativas com combustíveis (BP PORTUGAL SA), serviços bancários (BANCO SANTANDER SA, MONTEPIO GERAL, NORGARANTE, NOVO BANCO e BCP) e outros fornecimentos (VODAFONE, MEO, CITaST, INDAQUA, ÁGUAS DO NORTE, SA).
14. Da análise ao E-Fatura não resulta a emissão de qualquer fatura pela Sociedade, quer no ano de 2019, quer nos anos subsequentes (até 2023) – cfr. Doc. 3 junto com o PPA.
15. Do balancete do exercício de 2019 e do respetivo extrato da conta 243, não se encontra menção, pelo que nenhum valor aí consta relevado, relativamente à conta “2433 -IVA LIQUIDADO”, sendo que a conta “2436 – IVA A PAGAR” se encontra sem valor, apresentando, no entanto, a conta “2432 - IVA DEDUTÍVEL”, o montante de € 687,29 relativo a aquisições de outros bens e serviços em território nacional – cfr. Doc. 2 junto em 10.04.2025 e Doc. 4 do requerimento do Requerente de 07.11.2024.
16. Em 12.12.2018, a Sociedade foi alvo de buscas e apreensão, as quais decorreram nas instalações desta, tendo sido apreendida diversa documentação, tal como consta do teor do Doc. 5 junto pelo Requerente em 31.03.2025.
17. O Requerente, A..., foi citado na qualidade de responsável subsidiário – gerente – da Sociedade, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2019... .
18. Tal processo de execução fiscal, objeto de reversão contra o Requerente, visa o pagamento das liquidações oficiosas de IVA melhor identificadas em 1.
19. Inconformado, em 15.02.2023, o Requerente procedeu à apresentação da reclamação graciosa, à qual coube o n.º ...2023...– e que tinha por objeto os atos tributários identificados em 1. e bem assim os valores de IRC oficiosamente liquidados referentes aos exercícios de 2018 a 2021.
20. No que às liquidações de IVA de janeiro a junho de 2019 concerne, a AT veio a indeferir a referida reclamação graciosa, por despacho de 30 de julho de 2024, mantendo as liquidações, assente na seguinte fundamentação que precedeu o aludido despacho decisório:

21. Não se conformando com a decisão de indeferimento quanto às liquidações de IVA de janeiro a junho de 2019, veio o Requerente, em 30.10.2024, a apresentar o PPA que está na origem destes autos, pedido esse que veio a ser aceite em 04.11.2024.
b) Fundamentação da matéria de facto dada como provada:
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).
A convicção deste Tribunal Arbitral quanto aos factos dados como provados resultou da conjugação da prova documental constante dos autos e bem assim do depoimento prestado pela testemunha C..., Contabilista Certificado da Sociedade, o qual foi contactado pelos responsáveis da Sociedade para regularizar a situação contabilística e fiscal da sociedade, até então paralisada.
O depoente demonstrou conhecimento direto sobre a temática da regularização contabilística e fiscal, tendo adotado uma postura de resposta direta e franca, tendo relatado que a Sociedade se encontrava sem atividade – leia-se sem quaisquer proveitos – vendas ou prestações de serviços em 2019, sendo que não tinha a sua contabilidade organizada, nem documentos de suporte que permitissem a elaboração e entrega das declarações fiscais obrigatórias.
Confirmou que a documentação da Sociedade havia sido apreendida no âmbito de processo judicial em 2018, circunstância que terá inviabilizado a realização tempestiva da contabilidade e a respetiva entrega das prestações de contas e demais obrigações fiscais dos anos subsequentes (2019 a 2023).
A credibilidade do teor do testemunho prestado encontra respaldo nos elementos documentais juntos aos autos, designadamente:
– Nas declarações periódicas de IVA entregues fora do prazo, nas quais não se inscreveu qualquer valor em campos relativos a operações tributáveis (campos 1 a 6, 7 a 9, 17 e 21);
– Na IES de 2019, onde se encontra a rubrica “A5001 – Vendas e serviços prestados sem valor;
– Na declaração Modelo 22, que confirma resultado líquido negativo sem receita tributável;
– Na inexistência de faturas emitidas em 2019 e anos seguintes, verificada no ficheiro e-Fatura;
– No balancete de 2019, onde a conta 2433 – IVA liquidado se apresenta sem movimento, tal como a conta 2436 – IVA a pagar, existindo apenas registo na conta 2432 – IVA dedutível (associado a faturas recebidas).
O testemunho do Contabilista Certificado em causa foi igualmente esclarecedor ao afirmar que a regularização contabilística da Sociedade só foi possível mais tarde, após a obtenção dos saldos finais de 2018, encerrados pelo contabilista anterior.
As declarações fiscais de 2019 em diante foram maioritariamente entregues no decurso do ano de 2023, sempre com base na ausência de atividade – outputs – ou seja, assumindo a inexistência de faturação pela Sociedade.
A consistência entre os diversos meios de prova – declarações fiscais, IES, e-Fatura, balancete, e depoimento da testemunha – permite concluir, com segurança, que a Sociedade não desenvolveu qualquer atividade tributável em sede de IVA no ano de 2019.
A ausência de operações ativas é confirmada pelo próprio contabilista responsável pela regularização da situação da empresa e validada pela documentação fiscal apresentada.
Deste modo, os factos elencados foram dados como provados por resultarem de prova documental objetiva e corroborada por depoimento direto e esclarecedor, sendo, em conjunto, idóneos para demonstrar a inatividade operacional da sociedade, durante o ano de 2019, no tocante a operações ativas (outputs) subsumíveis a vendas ou prestações de serviços e bem assim a ausência de operações passivas (inputs) que pudessem relevar para efeitos da obrigação de entrega de IVA a favor do Estado, aquisições intracomunitárias ou outras aquisições em que se verifique a inversão do sujeito passivo.
c) Factos não Provados:
Inexistem facto não provados com relevo para a decisão.
IV. Matéria de Direito
a) Thema decidendum e ordem de conhecimento dos vícios:
A questão central a dirimir no presente processo consiste na apreciação do vício de violação de lei – erro sobre os pressupostos de facto e de direito – imputado pelo Requerente às liquidações oficiosas de IVA, o que, consequentemente, inquina de ilegalidade a decisão da reclamação graciosa que a não reconheceu; e bem assim sustenta um outro vício: o da falta (insuficiente) de fundamentação dessa mesma decisão de indeferimento do meio gracioso de defesa.
O Requerente imputa assim dois distintos tipos de vícios aos atos sob contenda, entre os quais não estabeleceu uma relação de subsidiariedade.
Por um lado, invoca um vício formal, consubstanciado na falta de fundamentação e por outro erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por entender não terem sido efetuadas operações tributáveis que pudessem conduzir aos atos tributários ora arbitralmente sindicados.
O artigo 124.º do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, estatui que o tribunal deve apreciar prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, seguidamente, os vícios que conduzam à sua anulação (n.º 1).
No concernente aos vícios que consubstanciem inexistência ou nulidade, o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o seu prudente critério, a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
No tocante aos vícios que constituam anulabilidade, é estabelecido o mesmo critério, que só não será aplicável se o impugnante tiver estabelecido uma relação de subsidiariedade entre os vícios imputados ao ato – o que é permitido pelo artigo 101.º do CPPT – pois nesse caso é dada primazia à sua vontade (desde que o Ministério Público não tenha arguido outros vícios) (n.º 2).
As regras emanadas desta norma legal sobre a ordem de conhecimento de vícios destinam-se a tutelar o interesse do impugnante com a máxima economia processual, omitindo pronúncia sobre vícios invocados quando o vício ou vícios já reconhecidos impedem a renovação do ato com o mesmo sentido.
Efetivamente, o estabelecimento desta ordem de conhecimento dos vícios pressupõe que, conhecendo de um vício que conduza à eliminação jurídica do ato impugnado, o tribunal deixará de conhecer dos restantes, pois, se o julgador tivesse de conhecer de todos os vícios imputados ao ato, seria indiferente a ordem de conhecimento. Isto significa, pois, que o reconhecimento da existência de um vício implica que se considere prejudicado o conhecimento dos restantes vícios.
A tutela dos interesses ofendidos é mais estável quando a decisão impede a renovação do ato lesivo dos interesses do impugnante e será mais eficaz quando permitir ao interessado, em execução de julgado, obter uma melhor satisfação dos seus interesses, ofendidos pelo ato anulado.
Volvendo ao caso concreto e visando fornecer uma tutela mais estável e eficaz aos interesses do Requerente, iniciar-se-á pela apreciação dos vícios de ordem material e, neste conspecto, pela apreciação do alegado erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o qual, a verificar-se, afastará, definitivamente, a possibilidade de impor ao Requerente novos atos tributários praticados nos mesmos moldes dos atos arbitralmente impugnados.
Posteriormente, caso se revele necessário à resolução do litígio, na exata medida do não provimento de tal vício material, proceder-se-á à apreciação do invocado vício formal.
b) Ilegalidade das liquidações oficiosas de IVA por erro nos pressupostos:
Nos exatos termos em que os autos foram delimitados pelas partes no PPA e na respetiva Resposta da AT, o thema decidendum nos presentes autos consiste, em primeira linha, em perscrutar se as liquidações oficiosas emitidas à Sociedade foram efetuadas, assentes em erro sobre os pressupostos de facto, por inexistência de atividade tributável em sede de IVA, se podem manter na ordem jurídico-tributária.
Afigura-se evidente constatar que no caso dos autos as liquidações oficiosas decorrem do incumprimento do dever de colaboração imputável à Sociedade, conforme resulta do artigo 59.º, n.º 4, da LGT, em que, após o incumprimento de obrigações declarativas legalmente estabelecidas – entrega de declarações periódicas previstas no artigo 41.º do Código do IVA –, a Sociedade, notificada para proceder à regularização da sua situação declarativa, nada diligenciou, levando a que a AT desse cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 88.º do CIVA.
Destarte, a quantificação da matéria tributável ao abrigo do artigo 88.º do CIVA apurada pela AT não era merecedora de censura, uma vez que, face à total ausência de resposta e consequente falta de colaboração da Sociedade, a Autoridade Tributária e Aduaneira encontrava-se legalmente habilitada a proceder à emissão de liquidações oficiosas com base nos dados anteriormente disponíveis.
Sem prejuízo do anteriormente exposto, a sujeição a IVA depende da verificação de pressupostos objetivos legalmente definidos, nomeadamente a realização de transmissões de bens ou prestações de serviços tributáveis, nos termos dos artigos 1.º, 3.º, n.º 1, e 4.º, n.º 1, do CIVA.
De resto, decorre da própria letra da alínea b) do n.º 4 do artigo 88.º do Código do IVA que as liquidações devem ficar sem efeito e ser corrigidas caso os elementos recolhidos em procedimento de inspeção tributária ou outros ao dispor dos serviços indicarem que é devida a correção das liquidações.
A jurisprudência dos tribunais superiores[1] é muito clara nesta matéria, dispondo que as liquidações oficiosas de IVA, assentes em rendimento presumido, não podem subsistir quando o contribuinte logre ilidir a presunção em que tais liquidações assentaram.
No caso dos presentes autos, ficou demonstrado, através da prova documental apresentada pelo Requerente, designadamente, declarações periódicas de substituição, IES, balancetes e E-fatura, tudo relativamente a 2019, cujo teor é congruente com o depoimento do Contabilista Certificado que procedeu à regularização contabilístico-fiscal, que a Sociedade não teve qualquer atividade operacional em 2019 ao nível de vendas ou prestação de serviços (outputs), suscetível de apurar IVA nem quaisquer operações passivas (inputs) que dessem lugar à entrega de IVA, tudo conforme decorre da matéria de facto provada.
Em face da ausência de operações tributáveis em sede de IVA, que importassem a entrega de imposto a favor do Estado, não tendo sido registada qualquer faturação durante o ano de 2019, ou sequer existam indícios de aquisições intracomunitárias ou de factualidade que desse lugar à inversão do sujeito passivo (nos termos do artigo 6.º do Código do IVA), impõem os princípios da verdade material e da legalidade, consagrados nos artigos 58.º e 99.º da LGT, 13.º e 69.º, alínea e), do CPPT, bem como nos artigos 103.º, n.º 3, e 266.º, n.º 2, da CRP, que essa realidade seja tida em conta, mesmo que a sua prova se tenha verificado tardiamente, desde que ainda estejam disponíveis os meios graciosos e contenciosos para a sua apreciação, como acaba por suceder nos autos em apreciação.
À luz do exposto, com base no acervo probatório – de base documental, suportada no testemunho do Contabilista Certificado que procedeu à regularização da escrita da Sociedade – logrou o Requerente satisfazer o ónus probatório que sobre si recaía, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, inelutável se tornando reconhecer a existência de erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que não se demonstrou a realização de qualquer operação tributável – nos períodos de janeiro a junho de 2019 – que permita sustentar a quantificação que dimana dos atos tributários objeto da presente lide.
Destarte, não poderá deixar de se fazer recair um labelo de ilegalidade sobre as liquidações oficiosas aqui em apreciação e, bem assim, sobre a respetiva decisão administrativa que a similar conclusão não chegou, anulando-as.
c) Questões de conhecimento prejudicado:
Em face da procedência do pedido de pronúncia arbitral por vício que assegura eficaz e de forma estável a tutela dos interesses do Requerente, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento do restante vício – falta de fundamentação – imputado à decisão de indeferimento da reclamação graciosa (nos termos do disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
V. Decisão:
Em face do exposto, considera-se totalmente procedente o pedido formulado pelo Requerente e, em consequência, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar ilegais e, consequentemente, anular os atos de liquidação de IVA melhor identificados em 1. dos “Factos Provados”;
b) Julgar ilegal e, consequentemente, anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., apresentada pelo Requerente contra os atos tributários identificados em 1. dos “Factos Provados”;
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais deste processo.
VI. Valor do Processo:
De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2, do CPC, do artigo 97.º-A n.º 1, al. a), do CPPT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 104.703,34 (cento e quatro mil, setecentos e três euros e trinta e quatro cêntimos).
VII. Custas:
De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.os 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 3.060,00 (três mil e sessenta euros), a cargo da Requerida.
Notifique.
Lisboa, 04 de julho de 2025.
O Tribunal Arbitral,
(Maria Fernanda Maçãs, Árbitra Presidente)
(Luís Sequeira, Árbitro Adjunto)
(Sónia Fernandes Martins, Árbitra Adjunta)
[1] vide acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, nos processos n.os 1565/07.1BELSB de 14.01.2021, 476/11.0BELRS de 08.07.2021 e 476/11.0BEL 51/13.5BEALM de 28.10.2021, disponíveis em www.dgsi.pt.