SUMÁRIO:
Compete ao sujeito passivo o ónus de alegar e demonstrar que a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de locação financeira, o que não sucedendo, não permite a alteração da forma de cálculo assente em coeficiente de imputação específico cuja aplicação decorre dos n.º 2 e 3 do artigo 23º do CIVA.
Decisão Arbitral
O árbitro Luís Ricardo Farinha Sequeira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 29.10.2024, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A. SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante abreviadamente designada por "Requerente", com o número de identificação fiscal ... e com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa vem, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária doravante designado por "RJAT"), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista:
a) A Declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2024... e, bem assim, a ilegalidade e anulação parcial da autoliquidação de IVA referente ao mês de dezembro de 2021 (apurada pela declaração ...), na parte em que não considerou a dedução de IVA adicional de €42.833,44;
b) A condenação da AT ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esse valor, desde a data da entrega da declaração (21/02/2022) até à efetiva restituição do montante pago em excesso;
c) A título subsidiário, requer que o Tribunal Arbitral promova o reenvio prejudicial das questões que entenda suscitar para o tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), conforme previsto no artigo 19.º, n.º 3, alínea b), e no artigo 267.º, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira no cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada por “Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 26.08.2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 11.10.2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 29.10.2024.
Na sequência da prolação despacho arbitral foi designado o dia 12 de maio de 2025 para realização da reunião arbitral e inquirição da prova testemunhal arrolada pela Requerente, tendo através do mesmo sido prolatada, nos termos do n.º 2 do artigo 21º do RJAT, a prorrogação do prazo para a decisão arbitral, com os fundamentos aí expostos.
Em 12 de maio de 2025 foi a testemunha arrolada inquirida e notificadas as partes para, querendo, formularem alegações escritas simultâneas, o que estas vieram a fazer, nas quais e no essencial, secundaram as posições já manifestadas nos respetivos processados anteriores.
1. Posição da Requerente:
A Requerente fundamenta juridicamente o seu pedido na ilegalidade da autoliquidação de IVA referente a dezembro de 2021 e da respetiva decisão de indeferimento da reclamação graciosa sobre aquela deduzida, por entender que a percentagem de dedução aplicada ao imposto incorrido em recursos de utilização mista foi calculada de forma errónea, violando o regime jurídico nacional e comunitário do IVA.
Em causa está a orientação da AT, constante do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, que determinou a exclusão dos valores relativos às amortizações financeiras dos contratos de locação financeira do cálculo do pro rata de dedução, a qual levou à aplicação de uma percentagem de dedução de 9%, inferior à que efetivamente resultaria da inclusão dos referidos valores, a qual seria de 10%, originando um pagamento indevido de imposto no montante de €42.833,44.
A Requerente sustenta que esta interpretação da AT não tem respaldo legal, porquanto o artigo 23.º do Código do IVA, em conformidade com os artigos 173.º a 175.º da Diretiva 2006/112/CE (Diretiva IVA), estabelece que, na ausência de imputação direta ou de afetação real, a dedução em operações de utilização mista deve ser feita com base no volume de negócios, englobando, no numerador e denominador, todos os montantes relativos a operações com e sem direito à dedução, desde que estejam incluídos nas prestações efetivamente realizadas.
Mais adiante, a Requerente invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), com especial destaque para o Acórdão proferido no processo C-153/17 (Volkswagen Financial Services), o qual considera de aplicação direta ao caso sub judice.
Nesse acórdão, o TJUE reconheceu que, mesmo em contratos de leasing, os custos gerais (tais como despesas administrativas, informáticas, manutenção ou gestão contratual) têm uma ligação direta e imediata com a totalidade das operações realizadas — tanto tributadas como isentas — e devem, portanto, ser considerados para efeitos de dedução do IVA. O Tribunal foi claro ao afirmar que a mera afetação desses custos a operações isentas, como a cobrança de juros, não basta para afastar o direito à dedução, desde que os mesmos tenham sido incorridos, pelo menos em parte, para possibilitar a disponibilização dos bens locados, o que se verifica claramente na atividade de leasing da Requerente.
A Requerente refere ainda que, no ordenamento jurídico português, a renda dos contratos de locação financeira é, ao contrário do que sucede no Reino Unido (cujo regime esteve em causa no processo Volkswagen), totalmente sujeita a IVA, o que implica, por maioria de razão, um direito mais amplo à dedução. Assim, a exclusão das amortizações financeiras do cálculo do pro rata constitui uma violação do princípio da neutralidade fiscal, basilar no sistema comum do IVA, por resultar numa limitação ilegítima ao direito à dedução de imposto suportado em operações tributadas.
Além disso, é invocada jurisprudência arbitral nacional, nomeadamente a decisão proferida no processo n.º 844/2021-T, em que foi reconhecida a ilegalidade da metodologia de cálculo imposta pela AT com base no mesmo entendimento agora contestado. Essa decisão transitou em julgado e deve, por razões de segurança jurídica e coerência decisória, ser considerada relevante pelo tribunal arbitral que vier a apreciar o presente litígio.
Por fim, a Requerente aduz que, estando preenchidos todos os requisitos legais, tem direito à restituição do montante indevidamente entregue a título de IVA, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º da LGT e do artigo 61.º do CPPT. A responsabilidade pelo erro de interpretação é, segundo defende, imputável à AT, porquanto decorre da aplicação obrigatória de orientações internas contrárias à legislação e jurisprudência aplicável, não havendo qualquer comportamento culposo da Requerente.
Já em sede de alegações, a Requerente concluiu que, atenta a prova que considera produzida, está verificado o critério jurídico relevante, conforme jurisprudência do TJUE (v.g. Acórdão Volkswagen) e do Supremo Tribunal Administrativo, para que a totalidade da renda dos contratos de leasing — incluindo a componente das amortizações financeiras — seja considerada no cálculo do pro rata de dedução, pelo que impõe-a anulação parcial da autoliquidação e a restituição do valor de €42.833,44, acrescido de juros indemnizatórios, por se ter provado o erro de direito imputável à AT na restrição ilegítima ao direito à dedução do IVA.
2. Posição da Requerida:
Respondeu a Autoridade Tributária e Aduaneira, defendendo a legalidade da autoliquidação do IVA referente a dezembro de 2021 efetuada pela Requerente, alegando que a percentagem de dedução utilizada por esta, se baseia nas instruções constantes do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, a qual está em conformidade com a legislação aplicável. Argumenta que a Requerente não demonstrou que os recursos de utilização mista tenham sido efetivamente afetos à realização de operações tributadas, como exige o n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA para justificar percentagens distintas de dedução.
A AT sustenta que a dedução do imposto deve ser feita, em princípio, com base no volume de negócios — método objetivo e proporcional — e que não está provado que os custos gerais invocados pela Requerente estejam relacionados exclusivamente com operações sujeitas a IVA.
Refere que os contratos de locação financeira envolvem uma operação complexa, onde coexistem componentes sujeitas e isentas, como o financiamento (normalmente isento) e a disponibilização do bem (sujeita), e que a simples alegação de que os recursos são consumidos na gestão ou disponibilização dos bens não é suficiente para justificar a alteração do pro rata legalmente determinado.
Além disso, a AT rejeita a aplicação ao caso do Acórdão Volkswagen Financial Services, por considerar que a situação fática da Requerente é distinta, já que a Requerente não apresentou elementos objetivos, mensuráveis e contabilísticos que permitam determinar uma afetação real ou justificar uma percentagem de dedução diferente daquela que resulta do volume de negócios. Afirma, por fim, que não há erro imputável à Administração que justifique o reembolso pretendido, nem base legal para o pagamento de juros indemnizatórios, pelo que deve ser mantida a autoliquidação efetuada e julgado totalmente improcedente o pedido arbitral.
Em alegações, a AT reitera a legalidade da autoliquidação de IVA efetuada pela Requerente, defendendo a plena validade da aplicação do Ofício-Circulado n.º 30108/2009 e a inadequação da metodologia de dedução pretendida, afirmando que a prova testemunhal demonstrou a impossibilidade da Requerente quantificar ou segregar os custos comuns às suas diversas atividades (leasing e crédito ao consumo), não tendo esta logrado demonstrar que os gastos gerais são maioritariamente afetos à disponibilização dos bens locados. Pelo contrário, a AT sustenta que os atos praticados durante a vigência dos contratos visam sobretudo proteger o financiamento concedido, revelando a verdadeira natureza do negócio: a concessão de crédito.
II. SANEAMENTO:
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades e não são suscitados obstáculos à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO:
1. Factos Provados:
a. A Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a atividade comercial prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
b. No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção constante do artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA (“CIVA”) – como as operações de financiamento e concessão de crédito e, bem assim, as operações associadas a pagamentos –, as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado;
c. Simultaneamente, a Requerente realiza operações que conferem o direito à dedução deste imposto nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, como sejam, entre outras, as operações de locação financeira mobiliária.
d. Quanto aos recursos indiferenciados afetos à sua atividade, a Requerente não dispõe de uma contabilidade analítica que lhe permita quantificar a parte afeta à atividade de locação financeira e às operações que a mesma compreende.
e. O Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, regulamenta as regras do direito à dedução do IVA incorrido pelas instituições de crédito na aquisição de bens e serviços de utilização mista (ou seja, utilizados para a realização de operações que conferem e que não conferem o direito à dedução), quando aquelas instituições desenvolvem simultaneamente atividades de leasing ou de ALD e de financiamento, tal como ocorre com a Requerente no caso dos vertentes autos.
f. Nos termos da referida instrução administrativa, no que para este processo entendemos importar, cita-se o seguinte:“5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente atividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.(…) 7. Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista. 8. (...) os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos (...). 9. (...) deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD.”
g. No concreto âmbito da atividade de locação financeira que a Requerente também desenvolve, desde 2018, inclusive, que todos os novos contratos de locação financeira mobiliária passaram a ser assegurados por uma sociedade do grupo da Requerente, denominada B... SA, pelo que a Requerente passou a ser responsável pela manutenção e gestão dos contratos ainda vigentes, isto é, contratos celebrados até 2017, inclusive.
h. Os contratos de locação financeira mobiliária celebrados pela Requerente têm uma vigência que pode variar entre os 3 e os 7 anos, tendo em média uma duração de 5 anos,
i. Em 2021, na carteira da Requerente, no que a contratos de locação financeira mobiliária concerne, têm preponderância quantitativa (embora se desconheça o número de contratos vigentes em 2021) os relativos a bens e equipamentos, que não viaturas, sendo estas últimas em número residual.
j. Os contratos de locação financeira mobiliária da Requerente pressupõem um maior número de diligências/tarefas, resultantes do facto de ser proprietária do bem locado, por comparação com os contratos de concessão de financiamento;
k. No âmbito da gestão dos contratos de locação financeira, a Requerente leva a efeito diversas tarefas, nomeadamente:
a) Verificação anual da validade e cobertura dos seguros obrigatórios sobre os bens locados;
b) Tratamento de multas associadas aos bens (no caso de viaturas), incluindo receção, análise, pagamento e subsequente imputação aos clientes;
c) Pagamento de impostos relacionados com os bens locados, como o IUC;
d) Gestão de avarias e sinistros, incluindo contacto com oficinas, seguradoras e, quando necessário, sucateiros;
e) Manutenção dos equipamentos e controlo da sua operacionalidade, de modo a garantir que o cliente não sofra interrupções na sua atividade;
f) Monitorização da vendabilidade e condição dos bens;
g) Alienação dos bens;
l. A gestão dos contratos é, por norma, assegurada por equipas internas, sem prejuízo de ocasional apoio jurídico externo – advogados e solicitadores - os quais são contratados especificamente para cada caso em que tal intervenção é tida por conveniente.
m. A Requerente dispõe de um colaborador afeto em exclusividade à atividade de locação financeira, na área das operações.
n. Em regime de não exclusividade, a Requerente tem alocados cerca de 15 colaboradores à atividade de locação financeira mobiliária, dispondo, no total, cerca de 350 colaboradores.
o. As tarefas da fase de gestão seguem normas internas e procedimentos padronizados, estabelecidos para garantir a uniformidade e conformidade legal da atividade -cfr. Doc. 3 da reclamação graciosa, junto com o PA instrutor.
p. A Requerente cobra comissões por determinados serviços concretos, como decorre do Anexo I do documento contém o “Preçário Cliente Particular -C..., S.A.”, datado de julho de 2021 – constante em anexo à Reclamação Graciosa junta com o PA instrutor.
q. Este preçário inclui tabelas de comissões por vários serviços associados a contratos de locação financeira, tais como: emissão de 2ª via de documentos; abertura de processo de sinistro; requisição e pagamento de IUC; pagamento de portagens; identificação de condutor; adiantamento de valores (antecipações).
r. Estas comissões não estão necessariamente associadas diretamente aos custos gerais do banco (como eletricidade, economato, sistemas informáticos), sendo antes calculadas e aplicadas com base numa análise comparativa com os demais operadores concorrentes, de molde a garantir competitividade.
s. A remuneração dos custos operacionais da Requerente decorre, essencialmente, da componente de juros incluída nas rendas pagas pelos clientes.
t. A Requerente possui um registo informático, através do qual pode proceder à análise de e-mails e histórico de interações, dos contactos e intervenções efetuadas no âmbito dos contratos de locação financeira.
u. A Requerente consegue apurar retrospetivamente o número e natureza das intervenções realizadas por contrato.
v. A Requerente não possui mecanismos ou instrumentos que permitam aferir da alocação de custos por contrato, impossibilitando a identificação dos custos gerais associados a cada contrato de locação.
w. No apuramento do IVA dedutível referente ao período de dezembro de 2021 (declaração periódica com o n.º ...),, a Requerente aplicou o método previsto no Ofício-Circulado supra parcialmente citado, resultando numa dedução de 9% - € 385.000,95.
x. Esta dedução foi apurada considerando apenas os juros e outros encargos relativos à atividade de locação financeira prosseguida pela Requerente (ou seja, desconsiderando as amortizações financeiras - capital - incluídas nas rendas auferidas pela Requerente no âmbito desta atividade).
y. Inconformada, a Requerente apresentou, com registo de entrada de 20.02.2024, reclamação graciosa da autoliquidação de IVA n.º ...2024..., solicitando a respetiva correção da dedução de 9% para 10%, de modo a ser dedutível IVA no montante global de € 428.334,39, peticionando a ilegalidade do quantum em causa, o qual fixa em € 42.833,44. - cfr. Reclamação Graciosa junta com o PA, cujo teor se dá como reproduzido.
z. Por decisão de 08 de maio de 2024, veio a reclamação graciosa supra identificada a ser indeferida nos termos do despacho infra e em conformidade com o teor da informação da “Unidade de Grandes Contribuintes” que se dá aqui por integralmente reproduzida (vide PA):

aa. Notificada de tal decisão e com a mesma não se conformando, a Requerente, a 23 de agosto de 2024, apresentou junto do CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral, o qual deu origem aos presentes autos.
2. Factos Não Provados:
a. Não se provou, em termos quantitativos, a medida de utilização dos recursos de utilização mista com as operações de locação financeira e se tal afetação desses recursos comuns foi essencialmente determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira ou se, ao invés, foi predominantemente, determinada pela disponibilização dos veículos.
b. Não se provou e existência de uma predominante utilização pela Requerente de recursos de utilização mista em prestações relacionadas com a disponibilização dos bens objeto de locação.
3. Motivação quanto à decisão da matéria de facto:
Relativamente à matéria de facto, o tribunal arbitral não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).
Os factos dados como provados resultam da prova produzida nos autos e, ou, do acordo, expresso ou implícito (por não impugnação especificada), de Requerente e Requerida, livremente apreciados (nos termos do n.º 7 do artigo 110.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) à luz das regras de racionalidade, lógica e experiência comum, segundo juízos de normalidade e razoabilidade.
No âmbito da apreciação da prova produzida, a convicção deste tribunal arbitral fundou-se, essencialmente, na análise crítica, não só da prova documental como também da prova testemunhal – testemunha arrolada pela Requerente: Bruno Moreira - o qual era, à data dos factos que ora se discutem, gestor de produto na área dos contratos de locação financeira mobiliária.
A testemunha Bruno Moreira, gestor de produto da Requerente em 2021, demonstrou conhecimento direto e operacional dos procedimentos internos da instituição no que respeita à gestão de contratos de locação financeira mobiliária (leasing e ALD), assumindo funções no âmbito da segunda fase desses contratos — isto é, na fase de execução e acompanhamento, já após a formalização contratual.
Começou por esclarecer que, desde o ano de 2018, a formalização de novos contratos de leasing passou a ser centralizada numa entidade distinta do grupo (B... IFIC), ficando a Requerente responsável apenas pela gestão dos contratos anteriormente celebrados.
Esta informação permite concluir que, em 2021, a Requerente não interveio na celebração de novos contratos de locação financeira, nem na disponibilização inicial dos bens, sendo essa fase estranha à sua esfera de atuação.
No que se refere à gestão dos contratos em curso, a testemunha descreveu um conjunto de tarefas periódicas, relacionadas com a propriedade e operação dos bens e equipamentos dados em locação, nomeadamente: a verificação anual da validade e cobertura dos seguros obrigatórios, o tratamento de coimas e multas por infrações, bem como do pagamento de impostos, incluindo o IUC, a gestão de sinistros, o que implica contacto com seguradoras e, por vezes, sucateiros, a gestão da alienação dos bens no final do contrato, nos casos em que os clientes não exercem a opção de compra.
A testemunha sublinhou que a Requerente mantém a propriedade legal dos bens durante a vigência do contrato, o que acarreta deveres acrescidos de monitorização e manutenção, diferenciando esta atividade dos contratos de financiamento puro.
Contudo, da prova produzida – documental e testemunhal - nada se dilucidou sobre a quantidade de ocorrências ou vicissitudes (coimas, multas, IUC, sinistros, antecipações ou opções de compra não exercidas em 2021), que pudessem ser potencialmente geradoras de maior dispêndio de recursos indiferenciados, acrescendo inexistir qualquer elemento probatório que permita firmar o quantitativo do universo de contratos de locação financeira mobiliária à data vigentes – celebrados antes de 2018 - e cujo acompanhamento estava sob a alçada da Requerente.
Importa realçar que alguns dos encargos mencionados pela testemunha, como os gastos com a área jurídica externalizada, assumem natureza específica e exclusiva da atividade de locação, não configurando sequer recursos de utilização mista, isto é, não simultaneamente afetos à atividade de locação financeira e de concessão de crédito/financiamento, encontrando-se assim fora do âmbito da discussão jurídica que o presente pleito suscita, o qual se insere no regime do artigo 23.º do Código do IVA.
Mais referiu inexistir contabilidade analítica na Requerente que permita determinar, mesmo de forma aproximada, que fração do tempo ou dos recursos destes colaboradores (cerca de 15) é efetivamente consumida pela gestão dos contratos de locação financeira mobiliária.
A intensidade da afetação dependeria das situações concretas e da necessidade de intervenção em cada momento, não sendo suscetível de quantificação objetiva ou constante.
Deste modo, resulta do depoimento da testemunha não ser possível, com base nos elementos disponíveis, apurar a proporção de recursos humanos utilizados pela Requerente especificamente na atividade de locação financeira, nem tão pouco aferir da proporção que a fase do financiamento e da gestão contratual da locação tem no consumo de recursos indiferenciado, quando comparado com idênticos consumos mistos com a disponibilização dos bens em locação.
Ante a prova produzida, não ficou demonstrado que a área da locação financeira mobiliária implique maior dispêndio de recursos indiferenciados, ou seja, não se provou a verificação de uma utilização mais intensiva de bens e serviços comuns à atividade tributada do que aquela que terá sido alocada às atividades isentas.
Tal asserção encontra, de resto, respaldo e decorre da circunstância dos encargos mencionados pela testemunha se reportarem igualmente a gastos específicos da atividade de locação e não a custos comuns.
A respeito de eventuais vicissitudes ou ocorrências (de qualquer ordem, como por exemplo, coimas; ou problemas de funcionamento nos bens ou equipamentos locados) que possam ocorrer no âmbito da vigência de um contrato de locação, a prova produzida foi a este respeito, nula, dado não ter sido possível colher qualquer factualidade concretizada (leia-se, quantificada) sobre essas eventuais ocorrências, não obstante a Requerente ter meios para, querendo, apurar quantitativamente essas ocorrências e a sua respetiva natureza, conforme resulta do depoimento da testemunha.
Adicionalmente, a testemunha confirmou que a maioria dos contratos geridos pela Requerente respeitavam a bens/equipamentos e não a viaturas, sendo estas últimas residuais ou pouco expressivas, pelo que a relevância do depoimento quanto à exemplificação de diligências com IUC’s, sinistros e multas (coimas rodoviárias), entre outros, não poderá deixar de ser sopesada na medida dessa reduzida expressão que tal segmento apresenta na carteira da Requerente.
A testemunha foi questionada quanto à existência de contabilidade analítica ou mecanismos de alocação de custos por contrato, tendo referido a inexistência de tais instrumentos, impossibilitando a identificação dos custos gerais associados a cada contrato de locação.
Foi ainda reconhecido que as comissões cobradas pela Requerente (ex. por tratamento de multas, entre outras) são estabelecidas com base na prática do mercado e critérios de concorrência, não refletindo os custos efetivamente suportados com a gestão dos contratos, sendo os custos operacionais comuns, em parte, absorvidos pela componente de juros incluída nas rendas.
Em síntese, da prova produzida não se demonstrou a alegação da Requerente de que os recursos indiferenciados foram consumidos sobretudo pela atividade de locação financeira mobiliária, nem que, dentro desta específica atividade, tais consumos mistos tenham sido determinados predominantemente pela disponibilização do veículo e não pelo financiamento e gestão do respetivo contrato de locação financeira.
Com pertinência para a decisão inexistem outros factos alegados que devam considerar-se provados ou não provados, em conformidade com o supra alinhado.
IV - DIREITO:
1. Ilegalidade da liquidação de IVA (e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa)
O tema central que se impõe apreciar e decidir nos presentes autos arbitrais consiste em saber se a Requerente tem direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista relativos à atividades de locação financeira (leasing e ALD) por si prosseguida, passando a considerar no cálculo da percentagem de dedução referente ao ano 2021, os valores relativos às amortizações financeiras dos contratos de locação financeira por si celebrados.
Tenha-se, antes de mais, presente o enquadramento jurídico entendido por pertinente para a versada dilucidação da questão supra identificada.
Os artigos 168.º, 173.º e 174.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelecem o seguinte:
Artigo 168.º
Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efectua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:
a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;
b) O IVA devido em relação a operações assimiladas a entregas de bens e a prestações de serviços, em conformidade com a alínea a) do artigo 18.º e o artigo 27.º;
c) O IVA devido em relação às aquisições intracomunitárias de bens, em conformidade com o artigo 2.o, n.º 1, alínea b), subalínea i);
d) O IVA devido em relação a operações assimiladas a aquisições intracomunitárias, em conformidade com os artigos 21.º e 22.º;
e) O IVA devido ou pago em relação a bens importados para esse Estado–Membro.
Artigo 173.º
1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.
O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo.
2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:
a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;
b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;
c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;
d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;
e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respectivo montante for insignificante. Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;
Artigo 174.º
1. O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes:
a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º;
b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.
Os Estados–Membros podem incluir no denominador o montante das subvenções que não sejam as directamente ligadas ao preço das entregas de bens ou das prestações de serviços referidas no artigo 73.º.
2. Em derrogação do disposto no n.º 1, no cálculo do pro rata de dedução não são tomados em consideração os seguintes montantes:
a) O montante do volume de negócios relativo às entregas de bens de investimento utilizados pelo sujeito passivo na sua empresa;
b) O montante do volume de negócios relativo às operações acessórias imobiliárias e financeiras;
c) O montante do volume de negócios relativo às operações referidas nas alíneas b) a g) do n.º 1 do artigo 135.º, se se tratar de operações acessórias.
3. Quando façam uso da faculdade prevista no artigo 191.º de não exigir a regularização em relação aos bens de investimento, os Estados–Membros podem incluir o produto da cessão desses bens no cálculo do pro rata de dedução.
Os artigos 16.º, 19.º, 20.º e 23.º do CIVA estabelecem o seguinte, no que está em causa no presente processo:
Artigo 16.º
Valor tributável nas operações internas
1 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 10, o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto é o valor da contraprestação obtida ou a obter do adquirente, do destinatário ou de um terceiro.
2 - Nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é:
(...)
h) Para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário.
Artigo 19.º
Direito à dedução
1 - Para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzem, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as operações tributáveis que efectuaram:
a) O imposto devido ou pago pela aquisição de bens e serviços a outros sujeitos passivos;
Artigo 20.º
Operações que conferem o direito à dedução
1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:
a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;
Artigo 23.º
Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista
1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:
a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;
b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.
2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.
3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.
Nos termos do disposto no artigo 168.º, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE, e do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA (CIVA), assiste à Requerente, em princípio, o direito à dedução do IVA suportado a montante na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de operações tributadas.
Em conformidade com a alínea h) do n.º 1 do artigo 16.º do CIVA, a atividade de locação financeira mobiliária é, em Portugal, integralmente sujeita a IVA e não beneficiando de isenção, o que implica que uma entidade que se dedique exclusivamente a essa atividade pode exercer o direito à dedução plena do imposto suportado, na medida em que tal imposto seja imputável à realização dessa atividade tributada.
Todavia, sendo a Requerente uma instituição de crédito que, exerce atividades tributadas e não isentas, como a locação financeira e o aluguer de longa duração e bem assim leva a efeito operações isentas, designadamente operações de financiamento e concessão de crédito, as quais se encontram a coberto da isenção prevista no artigo 9.º, n.º 27, do CIVA.
Destarte, relativamente aos bens e serviços utilizados simultaneamente em operações com e sem direito à dedução, a dedução apenas é admissível na proporção correspondente ao montante relativo às primeiras – isto é, às operações que conferem direito à dedução – conforme estabelecido no artigo 173.º, n.º 1, da Diretiva 2006/112/CE e no artigo 23.º, n.º 1, alínea b), do CIVA.
A determinação dessa proporção – designada pro rata de dedução – é efetuada com base numa fração em que se inclui, no numerador, o volume de negócios anual, líquido de IVA, respeitante às operações que conferem direito à dedução, e, no denominador, o volume de negócios anual, igualmente líquido de IVA, respeitante tanto às operações incluídas no numerador como àquelas que não conferem tal direito, nos termos do artigo 174.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Diretiva 2006/112/CE.
Aplicando este regime, e sendo certo que, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, alínea h), do CIVA, a atividade de locação financeira é tributada quanto à totalidade do valor das rendas, resulta que o montante total dessas rendas deve ser incluído integralmente no numerador da referida fração, por se tratar de operações que conferem direito à dedução.
Sucede, porém, que as regras gerais de determinação da percentagem de dedução - pro rata -relativas às atividades económicas podem ser afastadas nos casos previstos no n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva 2006/112/CE, norma que contempla a possibilidade de as autoridades fiscais “autorizarem ou obrigarem o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e serviços”.
É neste enquadramento que se compreende, eventualmente, a emissão do Ofício-Circulado n.º 30108, o qual encontra correspondência, em parte, nos n.ºs 2 e 3, alínea b), do artigo 23.º do CIVA. Esta instrução administrativa veio assim recortar um regime especial aplicável às instituições que, como a Requerente, exercem cumulativamente atividades de locação financeira, integralmente tributadas, e outras atividades isentas, como seja a concessão de crédito.
Entendeu assim a AT que a aplicação do método geral de dedução previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA era suscetível de conduzir a resultados desproporcionados, por falta de coerência entre as variáveis utilizadas, originando “vantagens ou prejuízos injustificados” e podendo dar origem a “distorções significativas na tributação” (cfr. ponto 8 do referido Ofício).
Assim, este regime especial assenta, num primeiro plano, na imposição da aplicação do método da afetação real, previsto no n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, determinando que a dedução do IVA incidente sobre bens e serviços de utilização mista seja efetuada com base em “critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades”.
Em caso de se verificar inviável a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, o Ofício-Circulado estabelece, no seu ponto 9, uma segunda via para concretizar a afetação real: a utilização de um “coeficiente de imputação específico”, calculado com base apenas no montante anual correspondente aos juros e outros encargos associados à atividade de locação financeira ou de ALD, afastando-se assim do critério mais amplo constante do n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, que atenderia a “todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma atividade económica”.
Em suma, o regime delineado no Ofício-Circulado n.º 30108, ancorado no n.º 3 do artigo 23º do Código do IVA, impõe, para este tipo específico de sujeitos passivos, a aplicação da afetação real, a qual deverá ser efetuada, preferencialmente, mediante a utilização de critérios objetivos de imputação que reflitam o grau de utilização dos bens e serviços nas diferentes atividades.
E, subsidiariamente, não sendo viável recorrer a estes critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, que apenas considere, no cálculo da percentagem de dedução, os montantes anuais correspondentes aos juros e outros encargos associados à atividade de leasing ou de ALD, excluindo-se, assim, as amortizações financeiras do numerador e denominador da fração (ponto 9 do Ofício-Circulado).
Ora, nos vertentes autos inexiste dissídio sobre a inviabilidade de aplicação do método de afetação real com base em critérios objetivos, pelo que constitui ponto assente entre as partes que a solução para o apuramento do IVA dedutível quanto aos custos comuns se há-de encontrar no âmbito da regra subsidiária consubstanciada no coeficiente de imputação específico.
No caso que ora nos atém, a Requerente adotou na liquidação previamente reclamada, o coeficiente específico previsto no ponto 9 do referido Ofício, isto é, excluindo do cálculo da percentagem de dedução as amortizações financeiras (capital) relativas aos contratos de locação financeira.
No entanto, veio em tal meio de defesa gracioso e na presente instância a sustentar a ilegalidade de tal coeficiente porquanto, no seu caso concreto, a utilização dos bens e serviços de utilização comum se encontrariam maioritariamente associados à disponibilização dos bens locados e não à contratualização do financiamento e gestão do respetivo contrato de locação, defendendo que deve ser incluída, no cálculo da percentagem de dedução, a totalidade das rendas de locação financeira, invocando, inter alia, a jurisprudência que dimana do processo C-153/17 - Volkswagen Financial Services - e não apenas os juros e encargos financeiros, como previsto no método imposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Assim e em termos sintéticos, poder-se-á concluir que o dissídio nestes autos repousa em saber se é conforme às normas já citadas da Diretiva IVA e à interpretação que das mesmas tem sido efetuada pelo TJUE, a interpretação decorrente do ponto 9 do referido Ofício-Circulado 30108, em densificação do disposto no n.º 2 do artigo 23º do CIVA, o qual admite para efeitos de cálculo da percentagem de dedução (coeficiente de imputação específico), a consideração do “…montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD…” mas já não a componente de amortização de capital dos bens objeto de tal atividade económica.
Cumpre, em primeiro lugar, clarificar o posicionamento do TJUE (o qual é, ao nível interno, secundado pelo Supremo Tribunal Administrativo), nos termos do qual se concluiu pela compatibilidade do disposto nos artigos 173º e 174º da Diretiva do IVA com o disposto no n.º 2 do artigo 23º do CIVA, o qual, quando “ conjugada com o artigo 23.°, n.° 3, do CIVA, no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados (...) reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.°, n.° 5, primeiro parágrafo, e 19.°, n.° 1, dessa diretiva” e considerou, como se referiu acima, ser compatível com o direito europeu o regime que se encontra espelhado no Ofício-Circulado n.º 30108 (parágrafos 17, 18 e 35, do acórdão proferido em 10.07.2014, no processo n.º C-183/13 – Banco Mais[1]).
Neste mesmo sentido, veio o STA[2], em acórdão uniformizador de jurisprudência, a secundar tal entendimento de compatibilidade da solução a que se refere o ponto 9 do versado ofício circulado, o qual conclui que: “Assim, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia, no denominado acórdão «Banco Mais» (acórdão de 10 de julho de 2014, tirado no processo C-183/13), veio reconhecer que a referida regra reproduz em substância a referida disposição comunitária e constitui a transposição da mesma para o direito interno, veio reafirmar apenas o que já se sabia e que não era controvertido.
A questão que ficava era a de saber se o método previsto no ponto 9 do oficio circulado n.º 30108, do Gabinete do Subdiretor-Geral da Área de Gestão Tributária do IVA era ainda um método adequado a atender à intensidade real e efetiva da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações para os efeitos da Sexta Diretiva e da alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º em particular.
E foi a esta questão que, no fundo, o Tribunal de Justiça respondeu afirmativamente.
(…)
O que o Tribunal de Justiça concedeu suceder na maioria dos casos em que estas atividades são exercidas por bancos. Porque são entidades que, na essência, se dedicam à atividade de concessão de créditos e gestão de contratos de financiamento.
Não é verdade, por isso, que o Tribunal de Justiça tivesse interpretado o direito interno português. Na parte em que se referiu ao artigo 23.º do Código do IVA, limitou-se a reconhecer a semelhança e a quase sobreposição entre a redação do seu n.º 2 (no segmento acima assinalado) e a disposição comunitária correspondente.
Todavia, ao decidir que o método proposto pela Administração Tributária do Estado português se conformava com a lei comunitária, também permitiu que se concluísse que se conformava com aquele segmento do dispositivo nacional sem necessidade de considerandos adicionais. Precisamente porque essa parte do dispositivo nacional constituía a transposição para o direito interno da disposição comunitária.”
Dúvidas não subsistem assim quanto à resposta afirmativa que se impõe ser dada à questão da conformidade legal da solução preconizada pela AT na referida instrução administrativa face à disciplina da Diretiva do IVA.
Quanto à questão da inclusão ou não do valor relativo às amortizações financeiras para efeitos de cálculo da percentagem de dedução do IVA incorrido em custos transversais a atividade tributada e a atividade isenta, igualmente se pronunciou o TJUE no já identificado aresto, em situação similar à destes autos, relativa a uma instituição bancária portuguesa que desenvolvia atividades de locação financeira que conferiam direito à dedução e outras atividades financeiras – concessão de crédito - que não conferiam tal direito e em que estava igualmente em causa a aplicação do coeficiente de imputação especifico previsto na referida instrução administrativa.
Veio o já identificado aresto do TJUE, no processo “Banco Mais” a clarificar que, “embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o setor automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos”.
Pelo que, “nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel” – tudo conforme resulta dos parágrafos 33 e 34 do supra versado aresto.
Conclui-se assim, no acórdão proferido em 10.07.2014, no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, que: “os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.
O TJUE afirma, em síntese, que os Estados-Membros podem exigir que um banco que realiza atividade de locação financeira calcule o pro rata de dedução do IVA tendo em conta apenas a parte das rendas que corresponde aos juros, e não o valor total das rendas, se for esse o componente (juros) que melhor reflete a utilização real dos bens e serviços comuns, isto é, de utilização mista.
Contudo, na ótica do TJUE, cabe aos tribunais nacionais verificarem se, em cada caso concreto, essa utilização de bens e serviços comuns é, de facto, determinada principalmente pelas atividades de financiamento e de gestão contratual - ou seja, se são essas as funções que mais consomem os recursos partilhados.
Importa igualmente realçar que, a este propósito, ao nível da jurisprudência interna, designadamente do Supremo Tribunal Administrativo[3] (STA), o mesmo tem-se mostrado reiteradamente alinhado o posicionamento dimanado do parcialmente citado aresto do TJUE,
Entende, igualmente, a Requerente que a aplicação ao seu caso concreto, quanto à forma de cálculo da percentagem dedutível nos termos do versado ponto 9 do instrumento circulatório em apreço e concomitantemente do disposto nos n.º 2 e 3 do artigo 23º do CIVA, isto é considerando apenas a parcela referente aos juros e encargos e já não o capital (amortizações financeiras) relativas ao bem em locação, é contrária à interpretação que dimana do acórdão C-153/17 – processo Volkswagen Financial Services (WFS) – proferido pelo TJUE, na medida em que este haveria de certa forma revertido a solução preconizada pelo processo “Banco Mais” já supra parcialmente citado.
Tudo, porquanto naquele se defender que a consideração apenas dos juros e encargos cobrados no âmbito da locação financeira, isto é, excluindo o valor do bem aquando da sua disponibilização não ser suscetível de ser aplicada genericamente a todo o tipo de operações semelhantes para o setor automóvel, por tal método de repartição poder não garantir uma repartição mais precisa do que a decorreria da aplicação do critério de repartição fundado no volume de negócios, isto é, que levasse em consideração, o valor do bem aquando da sua entrega.
No entanto, a situação do acórdão WFS não se afigura transponível para o caso aqui em apreciação, uma vez que, no ordenamento jurídico português, o IVA incide sobre a totalidade da renda (nos termos do artigo 16.º, n.º 2, alínea h), do CIVA), abrangendo tanto a componente de capital como a de juro.
Diversamente, no regime fiscal vigente no Reino Unido à data do referido processo, as rendas de locação financeira eram obrigatoriamente desagregadas em duas operações distintas: a componente de juro, isenta de IVA, e a parte correspondente à amortização do capital, sujeita a tributação. Nesse contexto, as autoridades fiscais britânicas excluíam do cálculo do pro rata a componente de amortização e não consideravam, para efeitos de dedução, as despesas relativas a bens e serviços afetos à parte dos juros.
Por outro lado, as conclusões do Tribunal de Justiça no processo C-153/17 assentaram no pressuposto de que o órgão jurisdicional de reenvio havia previamente dado a conhecer ao TJUE de que, no caso concreto, os encargos gerais apresentavam uma conexão direta e imediata com a globalidade das atividades exercidas pelo sujeito passivo, no tocante à disponibilização dos veículos, a qual foi qualificada como uma operação autónoma, o que não se verificou no caso do Banco Mais, em que o TJUE remeteu para o tribunal nacional a questão de verificar se a utilização dos recursos também denominados (na doutrina italiana) de “promíscuos”, teriam sido determinados, predominantemente, pelo financiamento e pela gestão desses contratos ou pela disponibilização do bem.
Acresce ainda que, a respeito desta temática, foi já o STA[4] chamado a pronunciar-se sobre um suposto “recuo” na posição do TJUE tirada da decisão “Banco Mais” face à decisão prolatada no processo” WFS”: “Como decorre do seu parágrafo 56, o Tribunal de Justiça da União Europeia não pretendeu ali reformular o entendimento firmado no acórdão “Banco-Mais”, mas sublinhar que aquela jurisprudência não podia ser aplicada de maneira geral, abrangendo todos os tipos de operações de locação financeira para o setor automóvel. Incluindo aquelas em que a aplicação de um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando na sua entrega não seja adequada a garantir uma repartição mais precisa do que a baseada no volume de negócios. O que sucedia naquele caso específico porque havia uma afetação real e significativa dos custos gerais a operações que conferiam o direito à dedução (§ 57). Porque esses custos eram efetuados tendo em vista a disponibilização de veículos (§ 44) e eram, apesar disso, imputados aos próprios custos de financiamento, em vez de serem imputados ao valor inicial do veículo aquando da sua entrega (§ 13). Em lado algum se conclui que, no caso dos autos, também havia uma afetação significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos […]. Pelo que a invocação da jurisprudência firmada no acórdão C-153/17 não se nos afigura pertinente nem acrescenta nada ao juízo ali fornecido sobre a legalidade da liquidação.”.
Perante o exposto, conclui-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-153/17, não pretendeu afastar ou reformular a jurisprudência consolidada no acórdão “Banco Mais”, mas apenas delimitar o seu âmbito de aplicação. Sublinhou, em concreto, que essa jurisprudência não podia ser automaticamente estendida a todas as situações de locação financeira no setor automóvel, designadamente àquelas em que a afetação dos custos gerais não estivesse primacialmente ligada à disponibilização dos veículos. No caso WFS, a especificidade residia no facto de o tribunal nacional ter identificado uma afetação real e predominante dos custos gerais a operações que conferiam o direito à dedução, e, não obstante, tais custos estarem a ser imputados à componente financeira (juros), em vez de serem associados ao valor do bem entregue.
Ora, no caso em apreciação pelo STA, não foi feita prova de que os custos comuns estivessem predominantemente afetos à operação de disponibilização dos bens locados, nem se demonstrou que tal afetação real justificasse um desvio ao critério de imputação definido pelas normas aplicáveis, razão pela qual a jurisprudência do acórdão C-153/17 não teve aplicação direta ao caso daqueles autos, por não assentar em factualidade-base similar, a saber, uma utilização predominante dos recursos comuns no âmbito da disponibilização dos bens locados.
O Supremo Tribunal Administrativo[5] tem entendido que a aferição da conformidade legal de tal método de cálculo da percentagem relativa ao coeficiente de imputação específico através de um apuramento casuístico da utilização real conferida aos bens e serviços de utilização comum, o que no entender de tal tribunal superior tem lugar quando ”… sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos”.
Secundando-se o entendimento dos arestos ora vindos de parcialmente citar, fica assim clarificado que, ante aquele que vem sendo o posicionamento da jurisprudência não só do STA, como e, com especial relevo, daquela que dimana do TJUE, com enfoque para as decisões “Banco Mais” e “WFS”, importa assim formular um juízo de facto e dilucidar se, no caso que nos atém, os bens e serviços (inputs) de utilização mista, foram predominantemente determinados pela área do financiamento e da gestão dos respetivos contratos ou pela disponibilização dos bens objeto de locação.
A Requerente sustenta que as amortizações financeiras relativas aos bens objeto de locação deverão ser consideradas, em derrogação do método de cálculo decorrente do ponto 9 do ofício circulado 30108/2009, porquanto resultar demonstrado que a utilização de recursos comuns foi predominantemente determinada pela disponibilização dos bens locados.
Do cotejo da matéria de facto provada nos presentes autos não resulta demonstrado que os recursos de utilização mista tenham sido predominantemente determinados, desde logo e em primeira linha, pela área dos contratos de locação financeira e ainda que assim fosse de admitir, não provou a Requerente que tais consumos mistos fossem determinados pela disponibilização dos bens locados, em detrimento do financiamento e da gestão desses mesmos contratos de locação financeira.
Por um lado, alguns desses exemplos não se referem sequer a recursos de utilização mista, mas antes a recursos específicos e exclusivos da atividade de locação, como é o caso da subcontratação de serviços jurídicos, os quais não relevam para o presente litígio, o qual se centra no consumo de recursos comuns ao financiamento e gestão dos contratos e bem assim à disponibilização do bem objeto de locação.
Por outro, como se deixou exposto a propósito da motivação da matéria de facto, a testemunha inquirida limitou-se, no essencial, a exemplificar algumas situações típicas de ocorrências ao longo da gestão de contratos de locação financeira, sendo que de tais exemplos, se focou em diligências típicas do universo de locação de viaturas, dada a referência ao tratamento de impostos, (IUC’s), de multas (coimas rodoviárias) e de sinistros.
Ora, sucede que não só a Requerente não logrou quantificar sequer estas ocorrências em particular, como tinha em carteira, predominantemente, contratos de locação sobre bens e equipamentos, que não viaturas, pelo que tais alusões se afiguram de escassa relevância, considerando a composição da carteira de bens objeto de locação financeira.
Ademais e de forma transversal, a Requerente, quer documental, quer testemunhalmente, não se mostrou capaz de quantificar por natureza ou fase do contrato de locação financeiras as diligências, interações, vicissitudes ou ocorrências que tenham existido com recurso a bens e serviços comuns no ano em análise, quer para o caso de locação de viaturas, quer para os demais bens e equipamentos.
Muito menos o tendo efetuado em termos que permitam comparativamente sopesar a proporção da utilização de recursos comuns entre aquelas ocorrências que o tenham sido por determinação da disponibilização do bem locado e aquelas que tenham sido determinadas pela contratualização do financiamento e/ou pela gestão de tais contratos de locação.
É que a circunstância, perfeitamente razoável e compreensível que o contrato de locação financeira possa, em abstrato, ser geradora de mais diligências, quando comparado com um contrato de concessão de crédito, tal em nada demonstra de per se essa predominância, quando desacompanhada de elementos objetivos que suportem tal asserção de princípio.
E muito menos tal ponto de partida é apto a inferir e concluir que dentro do âmbito do contrato de locação financeira esses consumos comuns o foram por determinação de uma ou oura componente – financiamento e gestão do contrato de locação vs. disponibilização do bem locado.
Ora, no caso em apreciação, a prova produzida não permitiu determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que foram utilizados em razão de cada uma das duas referidas áreas no âmbito dos contratos de locação financeira, nem logrando a Requerente comprovar que o consumo de recursos gerais tenha sido primordialmente determinado pela disponibilização dos bens face aos gastos comuns relacionados com a contratação do financiamento e concomitante gestão dos respetivos contratos de locação financeira.
À míngua da apresentação de quaisquer dados objetivamente mensuráveis que sustentem a consistência da sua pretensão e a ausência de contabilidade analítica, a qual seria suscetível de identificar com rigor e fiabilidade a afetação dos consumos mistos quer quanto às suas diversas áreas de atividade (locação e concessão de crédito), quer no concreto âmbito dos contratos de locação financeira. não podem deixar de acarretar consequências no domínio probatório.
Consubstanciando-se a pretensão da Requerente em ver revista a percentagem de dedução inicialmente aplicada por via da liquidação por esta calculada e submetida, sobre ela recaía o ónus de provar os factos que fundamentam tal forma de cálculo, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, competindo-lhe, portanto, demonstrar, em contraste com os elementos constantes da declaração de autoliquidação de IVA, os factos que justificariam o aumento da percentagem de imposto dedutível de 9% para 10% (por via da inclusão das amortizações financeiras), o que passava por probatoriamente evidenciar que a utilização dos bens e serviços de utilização mista não haviam sido maioritariamente determinados pela gestão e financiamento dos contratos de locação financeira, mas antes pela disponibilização dos bens aos clientes.
Neste conspecto, é forçoso concluir que a Requerente não logrou satisfazer o ónus probatório que sobre esta recaía, pelo que não pode proceder o pedido de ilegalidade imputado à liquidação de IVA arbitralmente impugnada, o que consequentemente se estende à decisão administrativa de indeferimento da reclamação graciosa que constitui o objeto imediato da presente lide.
2. Pedido de Reenvio prejudicial
A título subsidiário, a Requerente suscita a questão atinente ao reenvio prejudicial, na medida em que possa não resultar claro para este tribunal o alcance das normas da Diretiva do IVA que possam interferir com a boa solução para os autos, que se promova o reenvio prejudicial relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira do cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista.
Como se deixou explicitado, a questão fundamental discutida nos autos e que constitui ratio decidendi do juízo supra firmado foi já clarificada pelo próprio TJUE no caso “ Banco Mais” atrás referido e encontra-se também consolidada na jurisprudência do STA, que por diversas vezes se vem pronunciando sobre a matéria.
Por estes motivos, considera-se desnecessário o reenvio prejudicial, indeferindo-se o requerido.
3. Dos Juros indemnizatórios e da restituição do IVA indevidamente pago:
Face à decisão de improcedência do pedido arbitral, improcede também, consequentemente, o pedido de restituição do IVA invocadamente, pago em excesso e bem assim o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, pedidos estes que da procedência de tal pedido quanto à ilegalidade e anulação parcial do ato tributário de liquidação absolutamente dependiam.
V- Decisão:
Face ao exposto, decide este tribunal arbitral:
a) Julgar improcedente o pedido de anulação parcial da autoliquidação de IVA respeitante a dezembro de 2021 (apurada pela declaração...) e, bem assim, julgar improcedente o pedido de anulação da respetiva decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024..., mantendo-se assim na ordem jurídica o ato tributário de liquidação e a decisão de indeferimento do meio gracioso vindos de identificar;
b) Indeferir o pedido de reenvio prejudicial;
c) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios e de restituição do valor invocadamente tido pela Requerente como indevidamente pago;
d) Condenar a Requerente nas custas do processo, nos termos infra determinados.
Valor do processo:
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 42.833,44.
Custas:
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento
Lisboa, 27 de junho de 2025
O Árbitro
(Luís Ricardo Farinha Sequeira)
[2] Processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20.01.2021, disponível em www.dgsi.pt
[3] processos n.º 0101/19.1BALSB, de 20.01.2021 e n.º 087/20.0BALSB, de 24.03.2021 (acórdãos de uniformização de jurisprudência), disponíveis em www.dgsi.pt
[4] Processo n.º 0101/19.1BALSB, de 20.01.2021, disponível em www.dgsi.pt
[5] acórdão uniformizador n.º 3/21, de 24-03-2021, proferido no processo n.º 87/20.0BALSB, publicado Diário da República, I Série, de 18-11-2021, disponível em www.dre.pt