SUMÁRIO:
A apresentação tardia do pedido de inscrição como “residente não habitual” tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Rui Duarte Morais, André Festas da Silva e Francisco Nicolau Domingos designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., contribuinte n.º ..., residente fiscal na ..., ..., ..., ..., Madrid, Espanha, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (procedimento n.º ...2023...) e, mediatamente, contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2020..., no valor de € 61 557,72 (€ 61 029,37 de imposto e € 528,35 de juros compensatórios), por entender que são ilegais.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, apresentado em 18 de dezembro de 2024, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a)e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 6 de fevereiro de 2025, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
4. O Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 25 de fevereiro de 2025, sendo que na mesma data foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
5. Em 24 de março de 2025, a Requerida apresentou resposta, na qual defendeu a manutenção na ordem jurídica dos atos objeto desta ação arbitral.
6. O Tribunal Arbitral determinou, por despacho de 23 de maio de 2025, a dispensa da reunião a que o artigo 18.º do RJAT alude. De igual forma, considerou que as questões objeto do processo estão suficientemente debatidas nas peças processuais apresentadas pelas partes, pelo que, decidiu pela desnecessidade de alegações.
II. QUESTÕES PRÉVIAS E SANEAMENTO
7. A Requerida defende, na sua resposta, que se verificam três exceções dilatórias, mais concretamente, (i) incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer dos vícios suscitados e/ou reconhecer o estatuto de “residente não habitual”; (ii) inimpugnabilidade da liquidação face à verificação de caso decidido ou resolvido (caso julgado administrativo); e (iii) impropriedade do meio processual. Vejamos.
(i) Incompetência do Tribunal Arbitral para conhecer dos vícios suscitados e/ou reconhecer o estatuto de “residente não habitual”
A Requerida propugna que se verifica a exceção dilatória em epígrafe visto que, na realidade, o Requerente pretende com a presente lide o reconhecimento do estatuto de “residente não habitual”.
Alega, ainda, na referida linha, que o Requerente apenas pediu o estatuto em 2022 e que se conformou com o indeferimento tácito do referido pedido (de inscrição como “residente não habitual”).
A competência dos tribunais arbitrais está circunscrita às matérias indicadas no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT que prevê:
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.” (…)
Assim, no que interessa para a decisão a proferir nos autos, resulta da própria letra da lei que o Tribunal Arbitral é competente para a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta.
O Requerente peticiona, especificamente, a declaração de ilegalidade e a anulação do ato de liquidação de IRS do ano 2019, bem como o consequente reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios e não o reconhecimento do estatuto de “residente não habitual”. Ou seja, impugna mediatamente a liquidação e não o reconhecimento do estatuto de “residente não habitual”. É certo que o Requerente aborda a questão do estatuto de “residente não habitual” ao longo da sua petição, mas sempre tendo por base a ilegalidade da respetiva liquidação.
Em resumo, dúvidas não existem de que o objeto do presente processo não é a inscrição em concreto do Requerente como “residente não habitual”, mas, pelo contrário, a legalidade da liquidação de IRS (e do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa). Assim, tendo por consideração o pedido arbitral, tal como está formulado, em que se impugna ato de liquidação, conforme previsto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, como matéria de competência dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD, conclui-se pela improcedência da exceção de incompetência material suscitada pela Requerida.
(ii) Inimpugnabilidade da liquidação face à verificação de caso decidido ou caso resolvido (caso julgado administrativo)
A Requerida defende, a este propósito, que se verifica a inimpugnabilidade da liquidação perante a verificação de caso decidido, na medida em que o Requerente não reagiu contenciosamente contra o indeferimento tácito do pedido de inscrição como “residente não habitual”.
O Requerente defende, pelo contrário, que não se verificou qualquer indeferimento tácito do pedido de inscrição como “residente não habitual”, até porque foi notificado em 6 de fevereiro de 2025 da decisão de indeferimento expresso do pedido de inscrição, encontrando-se, assim, a correr (à data do exercício do contraditório quanto às exceções) o prazo para atacar contenciosamente a decisão.
A tese da Requerida funda-se, em primeiro lugar, no indeferimento tácito do pedido de inscrição como “residente não habitual”. Sucede, no entanto. que o Requerente, no exercício do contraditório relativamente às exceções, juntou um documento com a decisão de indeferimento expresso do pedido de inscrição como “residente não habitual”, datado de 6 de fevereiro de 2025 e passível de impugnação contenciosa.
A posição da Requerida improcede, desde logo, com o fundamento vertido no parágrafo anterior.
Em segundo lugar, o objeto dos presentes autos encontra-se na pronúncia quanto à (i)legalidade da liquidação de IRS e não na inscrição como “ residente não habitual”, pelo que não existe coincidência entre estes autos e aqueles que respeitam à inscrição como “residente não habitual”.
Improcede, assim, também esta exceção dilatória.
(iii) Impropriedade do meio processual
A Requerida sustenta, em defesa desta exceção, que o regime jurídico do “residente não habitual” só pode ser peticionado junto de um tribunal tributário através da ação administrativa especial prevista e regulada no Código de Processo dos Tribunais Administrativos (“CPTA”).
O Requerente pretende, insiste-se, com o pedido de pronúncia arbitral sindicar a legalidade do ato de liquidação por, no seu juízo padecer do vício de violação de lei.
Por isso, como sustenta a jurisprudência[1]:
II - Quando o pedido formulado é de que seja anulada uma liquidação de imposto, não há como não considerar a impugnação judicial como meio processual próprio [cfr. art. 97.º, n.º 1, alínea a), do CPPT].
Ou seja, quando o pedido formulado respeita à anulação de ato de liquidação não há como não considerar que a impugnação judicial (incluindo a arbitral) como o meio próprio processual adequado.
Improcede, também, por isso, a exceção dilatória de impropriedade do meio processual.
8. O Tribunal Arbitral coletivo foi regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer do pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT. O processo não enferma de nulidades, nem existem outras exceções ou questões prévias que cumpram conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
9. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Requerente aceitou, em 2019, uma proposta de destacamento junto da “B..., Lda., para, em Portugal, desempenhar as funções de Cluster Managing Director.
(Facto não controvertido)
b) O Requerente tem nacionalidade australiana.
(Facto não controvertido)
c) O Requerente alterou, no dia 15 de outubro de 2019, a sua residência para Portugal, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2019.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 3, com o pedido de pronúncia arbitral)
d) O Requerente submeteu, a 17 de setembro de 2020, a declaração modelo 3 n.º..., tendo assinalado no quadro 4A, do anexo A, as quantias de € 294 349,52, € 58 863,00, € 10 410,36, a título de rendimentos, retenções na fonte e contribuições para a segurança social.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 1, com o pedido de pronúncia arbitral)
e) A AT procedeu à liquidação de IRS n.º 2020... do Requerente, respeitante, ao ano de 2019, no valor de € 61 557,72 (€ 61 029,37 de imposto e € 528,35 de juros compensatórios), sem o estatuto de “residente não habitual”.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 1, com o pedido de pronúncia arbitral)
f) O Requerente solicitou, em 15 de novembro de 2022, a sua inscrição no regime de “residente não habitual” junto da Direção de Serviços de Registo dos Contribuintes.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 4, com o pedido de pronúncia arbitral)
g) O Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da inscrição como “residente não habitual”, por intermédio de ofício datado de 6 de fevereiro de 2025.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 1, com exercício do contraditório relativamente às exceções dilatórias)
h) O Requerente deduziu, em 12 de outubro de 2023, pedido de revisão oficiosa contra o ato de liquidação n.º 2020..., relativo ao ano de 2019, no valor de € 61 557,72.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 5, com o pedido de pronúncia arbitral)
i) O pedido de revisão oficiosa (procedimento n.º ... 2023...) foi indeferido em 13 de setembro de 2024, tendo a Requerida procedido à notificação da decisão, por carta registada, no dia 17 de setembro de 2024, com os seguintes fundamentos:
(…)
62. De facto, é necessário determinar o estatuto do sujeito passivo – i.e., como residente, não residente ou RNH, o que determinará quais as taxas, deduções e isenções a aplicar ao caso.
63.Portanto, caso estivesse pendente de apreciação, por um prazo alargado, esse pressuposto, seria previsível a necessidade de correção e revisão dos atos tributários que viessem a ser emitidos, o que não é concebível sob a perspetiva da operacionalidade do sistema.
64. Conclusão bastante para conferir a improcedência à pretensão em juízo.
65. Além disso, e como já se explanou na presente informação, sendo a inscrição como RNH um requisito prévio necessário à aquisição do direito ao regime de benefício fiscal de RNH, e não tendo este sido concedido, não se verifica qualquer ilegalidade da liquidação contestada.
(…)
79. É manifesto que a aplicação do preceituado no artigo 72.º, n.º 10, do CIRS, pressupõe que os rendimentos da categoria A, advenham da remuneração pelo desempenho de atividade de elevado valor acrescentado.
80. Justamente, o contribuinte não demonstra o exercício de qualquer atividade dessa natureza.
(…)
82. Com efeito o impetrante assevera que teria desempenhado as funções de “Cluster Managing Director”.
83. Para além desta mera menção, padecer de uma evidente indefinição acerca do conteúdo funcional das funções aqui prosseguidas pelo requerente.
84. O que, só por si, exclui a possibilidade de enquadramento no elenco preconizado na Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho;
85. O sujeito passivo não providencia qualquer elemento probatório, que permita compulsar as tarefas desempenhadas.
(Documento junto pelo Requerente, sob o número 1, com o pedido de pronúncia arbitral)
j) Em 18 de dezembro de 2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.
(Sistema informático do CAAD)
§2 – Factos não provados
10. Que o Requerente tenha procedido ao pagamento do valor inscrito na liquidação de IRS n.º 2020... .
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
11. O Tribunal Arbitral tem o dever de selecionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
12. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
13. Os factos dados como provados resultaram da análise da prova produzida no presente processo, i.e., da prova documental junta aos autos pelo Requerente, que foi apreciada pelo Tribunal Arbitral de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e tendo presente a ausência da sua contestação especificada pelas partes, conforme decorre do artigo 16.º, alínea e), do RJAT, e do artigo 607.º, números 4 e 5, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
14. Quanto ao concreto facto dado como não provado, resulta da ausência de junção de documento que ateste o pagamento do valor da liquidação de IRS.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
§1 – Posições das partes
O dissídio encontra-se no acesso ao estatuto de “residente não habitual” pelo Requerente, isto é, se a aplicação do referido regime deve ter efeitos retroativos, visto que este só o adquiriu em 2022. Ou, dito de outro modo, se o estatuto deve ser aplicável à liquidação de IRS respeitante ao ano de 2019.
E, em segundo lugar, se as funções de “Cluster Managing Director” devem ser consideradas uma “atividade de valor acrescentado” para acesso ao estatuto de “residente não habitual”.
O Requerente defende que a liquidação de IRS é ilegal, na medida em que:
a. O regime de “residente não habitual” é similar a outros benefícios que, embora de natureza automática, são sujeitos a uma forma de comunicação à AT ou outras entidades competentes;
b. O direito a ser tributado como “residente não habitual” é atribuído ope legis com a verificação dos requisitos materiais do regime e a inscrição como sujeito passivo residente em território português;
c. A inscrição em cadastro corresponde a um mero dever acessório de natureza instrumental, a ausência daquela inscrição não pode afastar o direito a ser tributado como tal;
d. Preenche, desde 2019, os requisitos materiais para ser considerado “residente não habitual, pois: (i) tornou-se fiscalmente residente em território português no referido ano (artigo 16.º, n.º 1 e 2, do CIRS); e (ii) não foi residente fiscal nos cinco anos anteriores;
e. As funções de “Cluster Managing Director” exigem uma elevada capacidade técnica e de responsabilidade e, por isso, deve ser considerado “quadro superior de empresa” para efeitos do estatuto de “residente não habitual”;
f. Deve ser aplicada a taxa de 20% aos rendimentos do exercício de 2019.
Já a AT defende que:
a. O benefício fiscal de “residente não habitual” só se concretiza anualmente se existir facto tributário (obtenção de rendimentos relevantes) e desde que o contribuinte declare e proceda à opção pelo regime de tributação excecional, sendo a liquidação efetuada de acordo com as opções que em cada ano faz, e caso o sujeito tenha obtido, a seu pedido, o reconhecimento administrativo da verificação dos dois outros pressupostos;
b. Respeitando a liquidação de IRS em crise ao ano de 2019 e tendo em consideração que o pedido de inscrição como “residente não habitual” só foi apresentado em novembro de 2022, não pode a tributação como “residente não habitual” retroagir a 2019, mas a 2023, como resulta da mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo;
c. É o próprio Requerente que confessa que é, pelo menos, desde 2022, residente fiscal em Espanha, o que inviabiliza o direito a ser tributado como “residente não habitual” de 2019 a 2028;
d. Sendo a inscrição como “residente não habitual” um requisito prévio necessário à concessão do estatuto e não tendo o mesmo sido solicitado e reconhecido previamente à liquidação, não se verifica qualquer ilegalidade;
e. O Requerente não prova que a atividade que alega que veio desenvolver em Portugal, a partir de 2019 é de “valor acrescentado” e, também, por aqui a liquidação em crise dever-se-á manter na ordem jurídica;
f. Para além do mais, sendo a liquidação legal não deve existir reembolso e condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
§2– Questão da aplicação do estatuto de “residente não habitual”
O Requerente alega que é residente fiscal em Portugal, desde 2019, que desenvolve uma “atividade de elevado valor acrescentado” e, que, assim deve ser tributado como “residente não habitual” no referido ano. Vejamos.
O artigo 16.º do CIRS previa, em 2019, o seguinte:
1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;
b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;
c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;
d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.
(…)
8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.
9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.
10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.
11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.
12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.
E o artigo 72.º, n.º 10, do CIRS consagrava o seguinte:
Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %.
O acesso à referida taxa de tributação exigia que o sujeito passivo desenvolvesse à data do facto tributário uma “atividade de elevado valor acrescentado”. O Anexo à Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro dispunha o seguinte:
8 - Investidores, administradores e gestores:
(…)
802 - Quadros superiores de empresas.
O regime dos “residentes não habituais” exige, assim, o cumprimento dos seguintes requisitos: que (o sujeito passivo) se torne fiscalmente residente em território português, de acordo com qualquer um dos critérios estabelecidos nos números 1 e 2, do artigo 16.º, do CIRS e, em segundo lugar, não o tenha sido nos últimos 5 anos.
Já no que tange aos requisitos necessários para a qualificação de um sujeito como “residente em território português”, o artigo 16.º, n.º 1, alínea a), do CIRS exige a presença física em Portugal, de modo automático, por um período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados. Por seu turno, a alínea b) do mesmo normativo exige uma ligação física, menos qualificada, isto é, “[i]mpõe uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva com o território. Esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado de uma perspetiva objetiva, ou seja, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados”[2].
A aplicação do regime em dissídio tem sido fonte de litigância. Aqui está em caus a discussão sobre a natureza (constitutiva ou declarativa) da obrigação de inscrição como “residente não habitual”. Isto é, apurar se aqueles que solicitam a sua inscrição como “residentes não habituais” depois de 31 de março do ano seguinte da mudança para Portugal têm, ou não, direito ao benefício fiscal
A este respeito a jurisprudência arbitral tem concluído que a inscrição no registo de “residentes não habituais” tem natureza meramente declarativa[3], pois o acesso ao regime depende do preenchimento dos requisitos do artigo 16.º, n.º 10, do CIRS e da inscrição, como residente, em território português. Ou seja, o direito a ser tributado com o estatuto não ficaria condicionado à inscrição como “residente não habitual”.
Contudo, o Supremo Tribunal Administrativo, em dois (recentes) acórdãos[4], proferiu jurisprudência que conclui que o atraso na inscrição como “residente não habitual” tem como consequência que o direito a ser tributado como tal apenas se aplicaria para o futuro.
A referida posição jurisprudencial tem, nomeadamente, a seguinte fundamentação[5]:
Atento o mencionado, a questão que ora se coloca é a de saber quais são as consequências do incumprimento de tal obrigação acessória e qual o seu âmbito, nomeadamente, saber se essas consequências têm efeito preclusivo sobre o exercício do direito em determinado período fiscal anual, que não a exclusão do regime em geral, contrariamente ao defendido pelo apelante.
Nesta sede, a partir do momento em que estão reunidos os requisitos para a concessão do estatuto de residente não habitual previstos no artº.16, nº.8, do C.I.R.S., os quais, conforme aludido supra, são aferidos em função do ano de inscrição como residente (no caso 2020 - cfr.nºs.1, 2 e 4 do probatório supra), a apresentação do pedido de inscrição como residente não habitual, fora do prazo previsto no nº.10, do preceito, tem como consequência que o regime só será aplicável para o futuro (nosso sublinhado), ou seja, só é aplicável a partir do ano de inscrição como residente não habitual (cfr.artº.12, do C.Civil). Tal equivale a dizer que nada obsta à inscrição, em 2022, da ora autora/recorrida como residente não habitual, ainda que a sua inscrição como residente tenha sido feita em 2020 (cfr.ac. S.T. A-2ª.Secção, 29/05/2024, rec.0843/23.9BESNT).
Assim, a inscrição tardia do contribuinte como “residente não habitual” inviabilizaria a aplicação retroativa do estatuto, devendo a sua aplicação iniciar-se no ano em que o contribuinte procedeu ao pedido de inscrição. Ou, dito de outro modo, aplicar-se-ia para o futuro.
A referida posição nos sobreditos arestos não afasta o facto de se reconhecer que o direito a ser tributado como “residente não habitual” depende do preenchimento dos seguintes requisitos: (i) tornar-se residente em Portugal e (ii) não o ter sido nos cinco anos anteriores, pelo que é forçoso concluir que a inscrição prevista no n.º 10 daquele artigo tem natureza declarativa, e não constitutiva, não podendo, portanto, inviabilizar a aplicação do estatuto de “residentes não habituais”.
A segurança jurídica subjacente à uniformização da jurisprudência garante aos cidadãos e às empresas, através da previsibilidade das soluções jurídicas emergentes da pronúncia, a certeza na aplicação do direito. Impõe-se, por isso, aplicar, ao caso sub iudice, igualmente os fundamentos jurídicos do referido acórdão.
O supra vertido é bastante para que se conclua pela improcedência do pedido de anulação da liquidação de IRS em crise.
Vejamos, ainda assim, se o Requerente ao ter sido contratado como “Cluster Managing Director” desenvolve, ou não, uma “atividade de elevado valor acrescentado”.
As “atividades de elevado valor acrescentado” encontravam-se definidas pela Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro, até à alteração pela Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho. Em conformidade com o regime transitório da Portaria n.º 230/2019, de 23 de julho, os “residentes não habituais” inscritos ou com inscrição suspensa no regime até 1 de janeiro de 2020, poderiam continuar a optar pelas atividades consagradas na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro.
A atividade de “quadro superior de empresa” estava prevista na Portaria n.º 12/2010, de 7 de janeiro. A AT, no número 7, alínea c), da Circular n.º 2/2010, de 6 de maio, indicava que “os quadros superiores de empresas (Código 802), são as pessoas com cargo de direção e poderes de vinculação da pessoa coletiva”. Ou seja, quando na esfera funcional se integre o poder diretivo e o (poder) de vinculação.
O conceito de “quadro superior de empresa” deve ser aferido em função da solução interpretativa que emane do Direito do Trabalho. Por exemplo, no processo n.º 573/2021-T, de 18 de julho de 2022, entendeu-se que um cidadão contratado para gerir mercados externos de uma empresa (envolvendo dezenas, senão centenas de lojas), reportando diretamente à administradora única da empresa, e auferindo um salário mais de dez vezes superior ao salário mínimo nacional, é um “quadro superior da empresa”, para efeitos do benefício fiscal.
No caso sub iudice, o Requerente juntou um contrato (com o exercício da audiência no pedido de revisão oficiosa) no qual consta que é contratado como “Cluster Managing Director”, embora reportando ao “Emea Diretor”.
Observa a jurisprudência (processo n.º 505/2018-T, de 18 de junho de 2019): [o] que releva para que alguém se qualifique como quadro superior é não só o exercício de funções de maior complexidade técnica, mas também o que pressupõe uma elevada confiança, mais elevado grau de responsabilidade ou mais especial qualificação.
Sucede que no caso sub iudice o Requerente não prova a complexidade técnica associada à função “Cluster Managing Director”. Isto é, não prova os factos que operam como suporte da pretensão e direito que invoca.
Em resumo, sempre improcederia, também por esta razão, o pedido de anulação do despacho de indeferimento da revisão oficiosa e, mediatamente, da liquidação de IRS n.º 2020... .
§2 – Questões de conhecimento prejudicado
O Requerente pediu ainda a restituição do imposto e a condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
Ora, tendo em consideração que se julgou improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, em virtude de não se imputar qualquer ilegalidade aos atos tributários impugnados, não se pode considerar que ocorreu um qualquer erro imputável aos serviços que justifique a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido praticado o ato de liquidação nos termos anteriormente referidos. Assim sendo, os atos tributários impugnados são legais, não ocorrendo erro imputável à AT, pois não foi pago qualquer montante de imposto que deva ser reembolsado, não assistindo igualmente ao Requerente o direito ao recebimento de quaisquer juros indemnizatórios.
V. DECISÃO
Termos em que se decide:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência,
b) Manter a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (procedimento n.º ...2023...) na ordem jurídica.
c) Manter a liquidação de IRS n.º 2020... na ordem jurídica.
d) Condenar o Requerente nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), fixa-se ao processo o valor de € 61 557,72.
VII. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 2448,00, a suportar pelo Requerente, conforme o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
23 de junho de 2025
Os Árbitros
Rui Duarte Morais
André Festas da Silva
Francisco Nicolau Domingos (relator)
[1] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de março de 2018, proferido no processo n.º
01263/16.
[2] Decisão arbitral n.º 332/2016-T, de 31 de janeiro de 2017.
[3] V., nomeadamente as decisões arbitrais números 188/2020-T, de 24 de setembro de 2021; 777/2020-T, de 15 de dezembro de 2021;e 815/2021-T, de 29 de agosto de 2022.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29 de maio de 2024, proferido no âmbito do processo 0842/23.9BESNT e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de janeiro de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 01750/22.6BEPRT
[5] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15 de janeiro de 2025, proferido no âmbito do processo n.º 01750/22.6BEPRT.