SUMÁRIO
Para efeitos da aplicação do regime do art. 52.º do CIRS, na transmissão de mãe para filho de uma quota de uma sociedade, a AT tem uma obrigação especial de identificar com que fundamento entende que o valor real seja superior ao declarado, já que se trata de uma circunstância na qual é prática corrente – por motivos óbvios – que o valor real seja mais baixo do que o valor de mercado.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., residente na ..., ..., ..., CF..., veio requerer, ao abrigo do disposto no art. 10.º do DL 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos art.os 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3 a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre a liquidação adicional de IRS de 2021, emitida na sequência da Ordem de Serviço OI2023..., no montante de 43 196,02 € (correspondendo 38 880,71 € ao valor dessa liquidação adicional e o restante a juros).
2. É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.
3. Em 18.10.2024 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
4. De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
5. O tribunal arbitral ficou constituído em 24.12.2024.
6. Em 4.2.2025 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por impugnação, juntando o processo administrativo.
7. Em 7.3.2025 foi proferido despacho solicitando à Requerente que identificasse as testemunhas arroladas indicando a respectiva profissão, nos termos do art. 596.º do Código de Processo Civil (CPC) e indicando também os factos em relação aos quais pretendia que viesse a ser produzida prova testemunhal. A Requerente respondeu em 11.3, sendo que a Requerida veio aos autos insistir na desnecessidade da produção de prova testemunhal.
8. Em 20.6.2025 foi proferido despacho considerando ser essencialmente de Direito a questão colocada no processo e que a matéria de facto relevante para a decisão da causa podia ser fixada com base na prova documental, tornando-se, portanto, desnecessária a realização de outras diligências instrutórias. Dispensou-se ainda a reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime, bem como a apresentação de alegações escritas.
Posição da Requerente
9. A Requerente explica que em 17.2.2021 cedeu a sua quota na sociedade designada B... Unipessoal, Lda., pessoa colectiva ..., no valor de 4 950,00 €, ao seu filho, C..., pelo preço de 5 000.00 €, declarando subsequentemente essa operação para efeitos de IRS.
10. A AT veio, todavia, a considerar incorrecta aquela declaração, comunicando à Requerente uma divergência dos valores declarados, por entender que a mais valia realizada pela alienação da quota terá sido de 283.164,34 € e não de 5.000,00 €. Fixou, por isso, uma mais-valia adicional sujeita a imposto de 277.719,34 €, a qual resultou numa tributação de 38.880,71 € – como imposto corrigido a pagar pela requerente pela cessão de quotas – valor esse acrescido de juros, o que resultou num montante de 43.196,02 € a pagar, a título de IRS do ano de 2021.
11. A Requerente explica que, contando 72 anos de idade à data da cessão de quotas, pretendeu afastar-se de maiores responsabilidades e interesses na actividade comercial e societária, pelo que acordou com o seu filho, C..., passar-lhe a actividade e ceder-lhe uma quota da sociedade de que era sócia única, permanecendo apenas com uma quota simbólica de 50,00 €, renunciando à gerência.
12. Por arredondamento, o preço ajustado da cessão e efectivamente pago, foi satisfeito através de uma única transferência de 5.000,00 €.
13. Esse negócio foi devidamente formalizado de declarado fiscalmente.
14. Não existiu qualquer intuito de evitar o pagamento de impostos até porque a Requerente sempre poderia ter recorrido a uma doação, o que evitaria qualquer carga tributária.
15. Todos os actos descritos na operação estão devidamente comprovados documentalmente.
16. A Constituição (CRP) determina que a tributação deve pautar-se pelo princípio do rendimento real (art. 104.º), princípio esse que é expressão da capacidade contributiva, assente na capacidade de pagar de cada contribuinte, que só pode derivar do seu ganho.
17. Assim sendo, a AT está vinculada ao rendimento efectivamente obtido pelo contribuinte.
18. Por outro lado, o procedimento inspectivo tributário deve estrita observância ao princípio da verdade material, art. 5.º e 6.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA). Ora, corresponde àquela verdade material, a contraprestação que a contribuinte recebeu e, por conseguinte, que fielmente declarou (art. 44.º/1 f) do CIRS).
19. A Requerente não recebeu do seu filho a quantia de 277.719,34 € (que justificaria o adicional de IRS), até porque este não dispunha sequer de tal quantia.
20. O valor declarado pela Requerente, foi rigorosamente o que foi pago e recebido pela cessão de quotas, correspondendo ao facto tributário real e, como tal, assim deverá manter-se no apuramento do imposto.
21. Se a AT suspeitava de algum outro ou diferente rendimento, caber-lhe-ia antes de mais fundamentar a justificação da suspeita da divergência, indagar, investigar e provar, o que não fez. Nesse sentido v. decisão do CAAD de 18.10.2022 no proc. 144/2022-T.
22. A AT, pelo contrário não justificou nem sequer solicitou à Requerente – ou ao beneficiário – quaisquer informações.
23. Sendo inexistente o facto tributário pretendido pela AT, será sempre inadmissível qualquer tributação sobre o mesmo (ac. STA de 22.6.2022, proc. 02131/11.2BELRS).
24. Sem prescindir, a Requerente informa ainda que solicitou uma avaliação da empresa objecto da cessão de quotas por sociedade de revisores oficiais de contas (D..., SROC, Lda), a qual considerou que, à data da mesma cessão, a sociedade tinha um valor económico nulo, já que o capital próprio da sociedade (286.024,50) – valor usado pela AT como referência para efeito do apuramento do valor real da cessão – não tem em conta as dívidas a trabalhadores (39.735,48 €), a necessidade de eventual devolução de apoios em projectos de investimento (139.737,81 €) e a natureza não liquidável de parte importante dos activos fixos tangíveis (228 260,52 €).
25. Assim, em caso de uma ficcionada liquidação dos activos da sociedade e de pagamento de todas as suas dívidas, o valor da importância residual que ficaria disponível para os sócios, atingiria já valores negativos (-119.709,21 €).
26. Insiste ainda a Requerente que os resultados positivos obtidos pela empresa até 2017, foram resultado de uma conjuntura económica e de oportunidades de negócio no sector agrícola que deixaram de existir, vindo a mesma a acumular prejuízos desde 2019 (os quais em 2023 se elevaram já a 196.587,74 €).
27. Os valores constantes dos autos da AT não fazem, portanto, qualquer sentido, nem podem servir de base para uma fixação presumida do valor da transacção.
Posição da Requerida
28. Na sua resposta, a AT insiste na correcção do Relatório de Inspecção Tributária (RIT), especificamente quando considerando fundadamente existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, recorreu à regra presuntiva prevista art. 52.º/3, do Código do IRS (CIRS) e aos valores do último Balanço da sociedade (2020 e 2021), com base nos quais se presumiu que o valor de alienação da quota ascendeu ao montante de 283.164,35 €, equivalente ao valor da Informação Económica Simplificada de 2020/21, Balança e Demonstração de Resultados de 2020/21 e Modelo 22 de 2020/21, da B..., devidamente actualizado o seu valor, após a respectiva aplicação de desvalorização da moeda – Portaria 220/2021, de 22.10.
29. A AT considera que a Requerente não prova aquilo que alega no ppa, sendo que esse ónus recaía sobre si (art. 342.º do Código Civil e art. 74.º/1 da Lei Geral Tributária - LGT).
30. De facto, a lei exige à AT a fundamentação da divergência de valores, não lhe impondo a prova do valor real da transmissão.
31. Ora, a AT considera que pode existir divergência entre o valor declarado e real da transmissão, fundamentando a sua posição, com base na análise evolutiva da empresa, no período compreendido entre a sua constituição (2008), e a venda das participações (2021), consolidada pelas declarações fiscais, pelos mapas contabilísticos, pelo aumento de património, pela crescente solidez dos capitais, pela elevada liquidez, que se consubstanciam numa completa disparidade entre o valor declarado e o valor de mercado, no momento da transmissão. Fundamenta ainda por referência ao capital próprio, enquanto indicador de património líquido da empresa, que se traduz pelo activo residual, deduzido do passivo.
32. Uma vez que nos saldos disponibilizados pela Requerente apenas é evidenciado a transferência do valor declarado de 5.000 € – sendo ocultados outros movimentos – assume a Requerida que possam ter sido transferidos outros valores. Considera, por isso, insuficiente a prova do valor real da transacção.
33. A AT não aceita o argumento de que a Requerente, pretendendo evitar o pagamento de impostos, poderia ter recorrido à doação, por entender que, nessas circunstâncias, o valor nominal da quota seria actualizado para o valor apurado.
34. Estranha, por outro lado a AT que a quota tenha sido vendida por um valor apenas 50 € acima do valor nominal da subscrição, incluindo todos os direitos e obrigações inerentes à quota cedida.
35. Impugna também a afirmação da Requerente no sentido de que o seu filho, adquirente da quota, não tinha meios para suportar o valor apurado pela AT, por não apresentar qualquer prova de ausência de bens ou da pretendida insuficiência de rendimentos.
36. Considera ainda a AT o argumento da Requerente relativo ao incipiente valor dos activos ou das responsabilidades da empresa, por não estar em causa a dissolução da mesma.
37. Finalmente, em sede de impugnação, a AT considera que os resultados negativos da empresa nos anos subsequentes à cessão poderão ter a ver com a fusão da mesma com outra sociedade detida cessionário, pelo filho da Requerente.
38. Debruçando-se sobre a questão jurídica a AT explica que o art. 65.º do CIRS prevê expressamente a modificação dos rendimentos declarados pelo SP, sendo que o art. 52.º do mesmo diploma estabelece no seu n.º 1 que a AT, quando considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respectiva determinação. E acrescenta no n.º 3 que [q]uando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.
39. Ora, tendo sido a quota transferida por 5.000 €, esta corresponde a um capital próprio apurado em 2021 de 286.024,60 €.
40. A determinação pela AT do valor declarado a fim de que coincida com o valor real da transmissão fundou-se no art. 52.º/1 do CIRS, não cabendo à AT – tal como pretende a Requerente – demonstrar que o preço de realização declarado não corresponde ao preço real da transmissão.
41. à AT incumbia, apenas, estabelecer uma dúvida fundada sobre a divergência dos valores, o que fez.
42. O ónus da prova – ao contrário do que pretende a Requerente – era desta e não da AT (que, nos termos da lei, beneficia de uma presunção). Nesse sentido, cita as decisões do CAAD nos proc.os 156/2021-T e 411/2022-T.
II. Saneamento
43. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à anulação de um acto de liquidação adicional de IRS (v. art.os 2.º e 5.º do RJAT).
44. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º do RJAT.
45. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).
46. Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Matéria de facto
Factos provados
47. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
A. Em 17.2.2021 cedeu a sua quota na sociedade designada D... Unipessoal, Lda., pessoa colectiva..., no valor de 4 950,00 €, ao seu filho, C..., pelo preço de 5 000.00 €, declarando subsequentemente essa operação para efeitos de IRS.
B. A Requerente manteve uma quota simbólica de 50,00 €.
C. A AT veio a considerar incorrecta aquela declaração, comunicando à Requerente uma divergência dos valores declarados, por entender que a mais-valia realizada pela alienação da quota não terá sido de 5.000,00 € mas de 283.164,34 € (por se referir a uma quota de 4.950,00 € correspondente, no último balanço, a capitais próprios de 286.024,60 €). Fixou, por isso, uma mais-valia adicional sujeita a imposto de 277.719,34 €, a qual resultou numa tributação de 38.880,71 € – como imposto corrigido a pagar pela requerente pela cessão de quotas – valor esse acrescido de juros, o que resultou num montante de 43.196,02 € a pagar, a título de IRS do ano de 2021.
Factos não provados
48. Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.
49. O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.
50. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º/2 do CPPT e art.os 596.º/1 e 607.º/3 e 4 do Código de Processo Civil - CPC, aplicáveis ex viart. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA e art.os 5.º/2 e 411.º do CPC).
51. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência - cfr. art. 16.º e) do RJAT e art. 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.
52. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação - cfr. art. 607.º/5 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.
53. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
IV. Matéria de Direito
54. A questão objecto do presente processo é simples, podendo resumir-se no seguinte: havendo uma transmissão de quotas (de mãe para filho) e sendo declarado um valor inferior àquele que resulta do apurado no último balanço, deve a AT corrigir esse valor para efeitos de IRS, cabendo ao SP ilidir a presunção de que seja este o valor real da alienação?
55. É este o entendimento da AT. E funda-o do disposto nos art.os 65.º e 52.º do CIRS.
56. A Requerente explica o ocorrido em termos credíveis: que, encontrando-se já com alguma idade, entendeu transferir para o filho a sociedade agrícola, mantendo apenas uma quota simbólica. Que não houve qualquer intuito de defraudar a fazenda na medida em que sempre poderia ter optado por uma doação, evitando quaisquer encargos de natureza fiscal.
57. Explica, por outro lado, que o valor real da empresa não era efectivamente o equivalente aos capitais próprios apurados em 2020 pois, por um lado, tratou-se de um exercício positivo pontual (que foi seguido por sucessivos exercícios negativos), a empresa tinha dívidas substanciais e o valor real do património (o valor de mercado em caso de liquidação) era muito inferior.
58. Acrescenta que o cessionário, seu filho, nem sequer disporia de meios para pagar o valor presumido pela AT.
59. Neste ponto da análise, constata-se que, efectivamente, a questão de Direito essencial versa sobre o alcance do regime estabelecido pelo art. 52.º do CIRS. Pergunta-se, assim, como entender esta norma quando dispõe no n.º 1 que, quando a AT considere fundamente existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão tem a faculdade de proceder à determinação (deste)?
60. A AT socorre-se do disposto no n.º 3 do mesmo artigo que indica que quando se trate de quotas, presume-se que o valor da alienação é o que àquele corresponda, apurado no último balanço, para aparentemente daqui retirar dois efeitos: por um lado, o fundamento da correcção (considerando que a mera divergência entre estes dois valores constitui fundamento bastante para efectuar a correcção) e, por outro, a inversão do ónus da prova (assumindo que, a partir daí, cabe ao SP provar, se assim o entender, que o valor real da transmissão foi outro).
61. Este entendimento pode parecer resultar da mera aplicação dos termos legais. No entanto, não apenas não é verdade que seja assim que devam ser interpretados esses termos, como seria expectável que a sua aplicação não ignorasse a ratio legis e o enquadramento de facto da situação em apreço.
62. Senão vejamos:
63. Importa começar por salientar que a regra legal aplicável (o art, 52.º/1 CIRS) coloca um requisito essencial: a existência de fundamento concreto para que se considere existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.
64. A presunção (de que o valor da alienação é o que àquele corresponda, apurado no último balanço - cf. art. 52.º/3) apenas funciona, nesse pressuposto - de que existe fundamento para a AT assumir uma divergência entre o valor declarado e o valor real - o qual terá, portanto, de ser devidamente identificado por esta, como requisito da correcção (cf. Decisão de 19.1.2021, proc. 812/2019-T).
65. A AT reconhece que a lei lhe exige a fundamentação da divergência de valores, mas, na prática, essa fundamentação acaba por coincidir com o critério presuntivo, na medida em que essa fundamentação assentará (genericamente, já que não é apresentada uma análise efectiva) nas declarações fiscais do SP, mapas contabilísticos, património da empresa e capital próprio. Insiste fundamentalmente neste último, o qual, na falta da referida análise parece constituir o único critério objectivo.
66. Assume, depois, que estabelecida a dúvida, caberá ao contribuinte provar a coincidência entre o valor declarado e o valor real – o que supostamente não acontecerá.
67. Ainda antes de se conferir a questão probatória, importa, para uma correcta avaliação da situação, conferir a ratio legis da norma (art. 52.º CIRS).
68. Não é necessária uma verificação aprofundada da norma para se alcançar que o intuito do legislador foi evitar que a simulação no preço da transacção prejudicasse a Fazenda Pública ao diminuir o montante de imposto a pagar (por gerar uma liquidação inferior ao valor real).
69. De facto, o princípio geral da liberdade contratual (art. 405.º CC) permite que as partes estabeleçam livremente os termos dos negócios que estabeleçam entre si, pelo que sempre teremos de aceitar que a compra e venda de uma quota se faça tal como estas entendam.
70. A regra do art. 52.º CIRS não surge como uma excepção a esse princípio. Apenas pretende acautelar eventuais simulações com prejuízo para a Fazenda Pública, especificando, para efeitos de IRS, o princípio estabelecido no art. 39.º/1 da LGT e dispensando a prova dos respectivos requisitos através da inversão do ónus probatório.
71. O prejuízo para a Fazenda Pública surge, portanto, como um requisito implícito.
72. Ora, no caso, a Requerente demonstra não ter qualquer intuito de se subtrair ao pagamento de impostos já que, se, em vez de vender a quota em causa por 5.000 €, a tivesse doado, esse negócio não daria origem ao pagamento de qualquer imposto, por se tratar de uma doação a um filho.
73. De facto, inexplicavelmente a AT ignora o facto de se tratar de um negócio entre mãe e filho para se concentrar apenas no valor do capital próprio da empresa. É certo que refere que, se a Requerente tivesse efectuado uma doação o valor nominal da quota seria actualizado para o valor apurado. Isso não constituiria, todavia, um encargo comparável com o encargo resultante do aumento do rendimento tributável no ano em causa resultante da venda da quota.
74. Repare-se que mesmo as decisões invocadas pela AT em defesa das suas afirmações (e da interpretação pretendida do art 52.º IRS) não se referem a vendas de quotas entre pais e filhos mas, antes, a vendas tipo – no sentido em que serão negócios em que as partes têm interesses distintos (nomeadamente porque o vendedor pretende obter o preço mais elevado possível enquanto o comprador pretende pagar o preço mais reduzido possível).
75. Nestes contratos de compra e venda é frequente que o vendedor pretenda evitar encargos fiscais (nomeadamente os resultantes do acréscimo de rendimento decorrente da venda) declarando no contrato – com o acordo do comprador – um valor inferior ao valor real, completando o pagamento da diferença com a entrega de numerário ou por outra transferência. A detecção destas operações mostra-se particularmente difícil pelo que o legislador introduziu uma presunção, impondo ao vendedor a demonstração de que o valor declarado correspondeu com o valor real.
76. No caso, todavia, a operação em causa é uma venda entre uma mãe e um filho, a qual, provavelmente só não recorreu à doação por pretender manter uma quota simbólica.
77. É que, quando os pais vendem aos filhos, as mais das vezes, fazem-no por preços muito inferiores ao valor real dos bens transaccionados. Essa circunstância impõe à AT uma obrigação especial de conferir se, de facto, aquilo que possa parecer uma venda abaixo do valor real envolve (ou, pelo menos, pode envolver) uma simulação.
78. A AT não apresenta qualquer tipo de conferência. Pelo contrário, agarrando-se a uma prerrogativa que encara em termos irremediavelmente formais, mesmo quando chamada à atenção para os factos justificativos, prefere ignorá-los ou desconsiderá-los por entender que a prova sempre caberia à Requerente.
79. O momento em essa atitude é mais evidente será quando – no ponto 15 do relatório de inspecção (transcrito no art. 13 da Resposta) – a AT considera irrelevante, por não provada, a afirmação de que o adquirente não dispunha (sequer) de meios para pagar a quantia em causa.
80. A AT será seguramente quem, além do próprio, dispõe de melhores meios de aferição do património do adquirente. Nem por isso curou de conferir, ainda que superficialmente se este teria razoavelmente capacidade para pagar à mãe quase 300.000 €.
81. E não o fez (não conferiu) porque preferiu entender que o ónus da prova era da Requerente. Esqueceu, desde logo, que isso era relevante para efeitos de fundamentação da dúvida relativa à existência de um valor declarado inferior ao valor real (era, portanto, requisito para que beneficiasse da presunção).
82. E esqueceu ainda que, por definição, a prova de factos negativos é potencialmente impossível. Para além das declarações de IRS - que certamente a AT sempre consideraria insuficientes para provar essa indisponibilidade financeira -, através de que elementos poderia demonstrá-lo?
83. A leitura extensiva da prerrogativa probatória afastou a AT da procura da verdade material que lhe competia (art. 58.º da LGT).
84. Improcede, portanto, a argumentação da AT, por se considerar que não demonstrou o fundamento necessário relativamente à existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.
V. Decisão
Em face do supra exposto, decide-se
1. Julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação adicional de IRS;
2. Condenar a AT no pagamento integral das custas do presente processo.
VI. Valor do processo
A Requerente indicou como valor da causa o montante de 43 196.02 €, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação adicional a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 2.142 €, a pagar pela Requerida, nos termos dos art.os12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 24 de Junho de 2025
O Árbitro
Rui M. Marrana
Texto elaborado em computador.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.