Sumário:
I.Os n.ºs 2 a 5 do artigo 9.º do Código do IMT estabelecem uma isenção de IMT para a primeira aquisição de prédio urbano destinado a habitação própria e permanente por sujeitos passivos até 35 anos de idade.
II.Uma vez que este benefício fiscal não estabelece critérios quantitativos associados ao rendimento ou património global dos sujeitos passivos e o seu objetivo é facilitar o acesso a habitação própria e permanente, impõe-se uma interpretação do n.º 3 do artigo 9.º do Código do IMT que tenha em conta a sua teleologia, no sentido de que o prédio urbano habitacional já propriedade dos sujeitos passivos na data de nova aquisição deverá ter consistido na sua habitação própria e permanente ou, pelo menos, ter tido condições para esse fim.
III.Assim, caso se comprove que o prédio urbano habitacional já propriedade dos sujeitos passivos consistia numa ruína, sem condições de habitabilidade, a isenção de IMT permanece aplicável (o mesmo sucedendo quanto à dedução à coleta de Imposto do Selo prevista no artigo 7.º-A do Código do Imposto do Selo).
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1.A..., titular do número de identificação fiscal ... e B..., titular do número de identificação fiscal ... (doravante, os“Requerentes”), vieram nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a anulação dos atos de liquidação do Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (doravante, “IMT”) com o n.º ..., emitido em 24 de setembro de 2024, da qual resultou um montante a pagar de € 7.827,58, e do Imposto de Selo, com o n.º..., emitido em 24 de setembro de 2024, da qual resultou um montante a pagar de € 2.040,00 e bem assim, que se determine a condenação da Requerida ao reembolso dos montantes pagos e juros indemnizatórios à taxa legal.
2.De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
3.O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 25 de fevereiro de 2025, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
4.Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e o processo administrativo em 2 de abril de 2025.
5.Em 24 de abril de 2025, o Tribunal arbitral proferiu despacho a dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a notificar as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que as partes dispensaram através de requerimento, dos Requerentes de 5 de maio de 2025, e da Requerida de dia 20 de maio de 2025.
6.A Requerente alega, em síntese, que:
-
a exclusão da isenção de IMT prevista no artigo 9.º, n.º 3, do Código do IMT, não se aplica aos Requerentes porque o segmento normativo “prédio urbano habitacional” deverá reportar-se apenas a prédios urbanos com afetação habitacional de facto, não abarcando o caso em litígio: o de um prédio urbano para fins habitacionais que se subsume a uma ruína inabitável. Ou seja, para a exclusão da isenção operar o prédio urbano habitacional teria de ter uma afetação habitacional real e presente.
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a AT incorreu na violação do princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente da tipicidade, por fazer uma integração analógica de normas que estabelecem um benefício fiscal, ao ter recorrido à interpretação das normas do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (daqui em diante, “Código do IMI”), designadamente do art.º 6.º n.º 2 e ao critério de “destino normal dos imóveis”.
c) as liquidações de IMT e Imposto do Selo contestadas violaram o artigo 9.º, n.ºs 2 e 3 do CIMT e o artigo 7.º-A do Código do Imposto de Selo, pelo que devem ser anuladas, e a AT condenada ao reembolso dos montantes pagos e juros indemnizatórios à taxa legal.
7. Por sua vez, a Requerida respondeu nos seguintes termos:
a) apesar de à data da aquisição da fração autónoma do prédio urbano que determinou a emissão das liquidações ora contestadas os Requerentes reunirem os pressupostos legais para beneficiar da isenção de IMT e de Imposto do Selo, aplica-se a exclusão da isenção prevista no artigo 9.º, n.º 3 do CIMT;
b) isto porque o prédio identificado com o artigo ... da freguesia de ..., concelho da Covilhã – de que os Requerentes são proprietários -, está inscrito na matriz como prédio urbano habitacional;
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não se pode afirmar que a AT tivesse recorrido a qualquer integração analógica de normas de isenção de imposto através do recurso às normas do CIMI, visto que é o próprio artigo 1.º, n.º 2 do CIMT que prevê expressamente que, para efeitos do IMT, o conceito de prédio é o definido no CIMI;
d) não se verificando nenhum erro imputável aos serviços - condição decorrente do artigo 43.º, n.º 1 da LGT -, não assiste razão aos Requerentes no pedido de juros indemnizatórios que apresentam.
II. SANEAMENTO
8.O Tribunal Arbitral singular foi regularmente constituído e é materialmente competente para apreciar o pedido, que foi tempestivamente apresentado nos termos do previsto nos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo arbitral não enferma de nulidades.
III. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
9. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) Os Requerentes são pessoas singulares, ambos com idade inferior a 35 anos à data dos factos tributários que originaram as liquidações de IMT e de Imposto do Selo contestadas (cf. documento n.º 1 junto pelos Requerentes);
b) Em 14 de agosto de 2020, os Requerentes adquiriram a C..., D... e E... um prédio urbano sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e um prédio rústico sito no mesmo local, descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o n.º..., inscrito na matriz sob o artigo ... (cf. documento n.º 5 junto pelos Requerentes);
c) O prédio urbano referido na alínea anterior foi construído antes de 7 de agosto de 1951 e não foi objeto de obras de construção, reconstrução, ampliação ou melhoramentos posteriores a essa data, tendo os Requerentes aceitado que o prédio urbano se destina exclusivamente a habitação (cf. documento n.º 5 junto pelos Requerentes);
d) A caderneta predial urbana do artigo matricial..., freguesia de ..., identifica que o prédio tem afetação habitacional (cf. documento n.º 5 junto pelos Requerentes);
e) De acordo com a escritura pública celebrada em 14 de agosto de 2020, foi exibida a declaração de ruína n.º SCE..., emitida a 30 de agosto de 2018 (cf. documento n.º 5 junto pelos Requerentes);
f) Em 22 de setembro de 2020, no âmbito do processo n.º 171/20DIV, foi emitida Certidão pela Câmara Municipal da Covilhã que declara que “(…) o prédio urbano sito em Rua ..., ..., na freguesia de..., deste concelho, inscrito na matriz urbana da freguesia de ... sob o artigo....º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o n.º ...-..., foi construído antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de agosto de 1951” (cf. documento n.º 6 junto pelos Requerentes);
g) Em 15 de junho de 2020 foi emitido Parecer pela Chefe de Divisão do Gabinete de Fiscalização Municipal que reconhece que “(…) o edifício detém características de uma construção/implantação bastante antiga, tendo em conta a espessura das paredes em pedra e a estrutura da cobertura em madeira (…)” e, ainda, que “(…) a edificação não tem condições de habitabilidade, uma vez que a nível da cobertura e uma parte da edificação encontra-se em ruínas” (cf. documento n.º 6 junto pelos Requerentes).
h) Em 28 de agosto de 2024, os Requerentes apresentaram um pedido de informação vinculativa à AT com o objetivo de confirmar se o facto de, à data da aquisição da primeira habitação própria e permanente, serem proprietários de um prédio rústico que contempla uma ruína, os permitia beneficiar da isenção de IMT e da isenção de Imposto do Selo introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 48-A/2024, de 25 de julho (cf. documento n.º 2 junto pelos Requerentes);
i) A AT respondeu a esse pedido no sentido de que constando a “ruína” na matriz como prédio urbano com afetação habitacional, não é possível aplicar as isenções de IMT e de Imposto do Selo, na medida em que os Requerentes já são titulares de um prédio urbano habitacional o que, de acordo com o n.º 3 do artigo 9.º do Código do IMT, obsta à aplicação da isenção (cf. documento n.º 2 junto pelos Requerentes);
j) Em 24 de setembro de 2024 foi apresentada, pela representante dos Requerentes, uma declaração Modelo 1 de IMT, registo n.º ..., onde foi declarada a aquisição do direito de propriedade plena de um prédio urbano, destinado a habitação, com o artigo 615.º - Fração “B”, pelo valor de € 255.000,00 (cf. processo administrativo junto pela Requerida);
k) Foi emitido, nesta sequência, o DUC n.º ..., no montante de
€ 7.827,58, em sede de IMT, e o DUC n.º ..., no montante de
€ 2.040,00, em sede de IS – verba 1.1 da TGIS (documento n.º 3 junto pelos Requerentes);
l) Esta declaração de IMT deu origem à liquidação de IMT n.º ... e à liquidação de IS – verba 1.1 n.º ..., ambas de 24 de setembro de 2024, as quais geraram as notas de cobrança n.º 2024... e n.º 2024..., respetivamente, com a mesma data, no montante acima mencionado, pagas em 25 de setembro de 2024 (documento n.º 3 junto pelos Requerentes);
m) Em 25 de setembro de 2024, os Requerentes adquiriram à sociedade F..., LDA, NIPC..., pelo valor de € 255.000,00, a fração autónoma “B” do prédio urbano inscrito na União das Freguesias da ... e ..., concelho da Covilhã (...), sob o artigo ... (documento n.º 4 junto pelos Requerentes);
n) No documento particular autenticado de compra e venda, os Requerentes declararam que o imóvel se destinava exclusivamente à habitação própria e permanente (documento n.º 4 junto pelos Requerentes).
A.2. Factos dados como não provados
Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
10.Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
11.Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
12.Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
13. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. DO DIREITO
A.Enquadramento jurídico
14.O Decreto-Lei n.º 48-A/2024, de 25 de julho, estabelece uma isenção de IMT e uma dedução à coleta de Imposto do Selo para a primeira aquisição de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, por sujeitos passivos que tenham até 35 anos de idade.
15.No seu preâmbulo, refere-se que “Uma das maiores dificuldades na definição de um projeto de vida é a de compra de casa, numa fase em que a poupança acumulada é escassa ou nula, os rendimentos são baixos e a situação profissional precária” e que “a aquisição de casa implica uma disponibilidade financeira redobrada, já que, além do pagamento da entrada - não abrangida pelos créditos habitação - é ainda necessário o pagamento dos impostos que incidem sobre a totalidade do valor dessa transação”. Concluindo-se que o objetivo do Decreto-Lei é, em linha com o que consta do Programa de Governo, “isentar os jovens de uma dessas duas "entradas", facilitando o acesso à primeira habitação por parte de jovens até aos 35 anos, em cumprimento do Programa do XXIV Governo Constitucional, que prevê a eliminação do "IMT e imposto de selo para compra de habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos”.
16.No que ora releva, foram aditados os números 2 e 3 ao artigo 9.º do Código do IMT pelo Decreto-Lei n.º 48-A/2024, de 25 de julho, que dispõem o seguinte:
“2 - É isenta do IMT a primeira aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente cujo valor que serviria de base à liquidação não exceda o valor máximo do 1.º escalão a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º, por sujeitos passivos que tenham idade igual ou inferior a 35 anos de idade à data da transmissão, e que, no ano da transmissão, não sejam considerados dependentes para efeitos do artigo 13.º do Código do IRS.
3 - Ficam excluídos da isenção prevista no número anterior os sujeitos passivos que sejam titulares de direito de propriedade, ou de figura parcelar desse direito, sobre prédio urbano habitacional, à data da transmissão ou em qualquer momento nos três anos anteriores.”
Foi igualmente aditado no Código do Imposto do Selo o artigo 7.º-A, destacando-se o seu n.º 1:
“As aquisições onerosas de imóveis previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 9.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º do Código do IMT beneficiam de uma dedução à coleta da verba 1.1 da TGIS, até à sua concorrência, com o limite resultante da aplicação da referida verba ao limite superior do 1.º escalão da tabela prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º do Código do IMT”.
17.Sublinha-se, também, a alteração promovida pelo referido Decreto-Lei ao artigo 11.º do Código do IMT, em particular a alteração ao seu n.º 8, alínea a), que estabelece as condições para a caducidade da isenção prevista no artigo 9.º do mesmo Código, do seguinte modo:
“8 - Deixam de beneficiar igualmente de isenção e de redução de taxas previstas no artigo 9.º e nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 17.º as seguintes situações:
a) Quando aos bens for dado destino diferente daquele em que assentou o benefício no prazo de seis anos a contar da data da aquisição, salvo nos seguintes casos:
i) Venda;
ii) Alteração da composição do respetivo agregado familiar, por motivo de casamento ou união de facto, dissolução do casamento ou união de facto ou aumento do número de dependentes, considerando-se como tal aqueles que constituem o agregado familiar dos sujeitos passivos para efeitos de IRS, nos termos do artigo 13.º do Código do IRS, desde que o prédio se mantenha destinado exclusivamente a habitação;
iii) Alteração do local de trabalho para uma distância superior a 100 km do prédio, desde que o prédio se mantenha destinado exclusivamente a habitação.”
O que evidencia que o relevante para a aplicação do benefício fiscal é o destino conferido ao bem.
18.O Decreto-Lei n.º 48-A/2024, de 25 de julho, foi aprovado no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 1.º da Lei n.º 30-A/2024, de 20 de junho.
19.Quanto ao sentido e extensão da autorização legislativa concedida ao Governo, prevista no artigo 2.º da Lei n.º 30-A/2024, de 20 de junho, destaca-se que nos termos da respetiva alínea b) o objetivo da isenção de IMT para jovens até aos 35 anos é que aquela seja “aplicável somente à primeira aquisição para habitação própria e permanente”(sublinhado nosso).
20.Aliás, tal conceito – habitação própria e permanente – é o que se encontra no Programa de Governo, sendo uma das medidas quanto à aposta e apoio aos jovens “Eliminar o IMT e Imposto de Selo para compra de habitação própria e permanente por jovens até aos 35 anos”.
21.De acordo com o artigo 6.º do Código do IMI, os prédios urbanos dividem-se em habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços, terrenos para construção e outros. Sendo que os prédios urbanos habitacionais são definidos como “(…) os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins” (cf. n.º 2 do artigo 6.º do Código do IMI). Esta classificação de prédios urbanos “(…) é feita em função da sua afetação que, por sua vez, depende, em regra, de um requisito de natureza formal que é o seu licenciamento” (cf. J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, “Os Impostos sobre o Património Imobiliário / O Imposto do Selo – Anotados e Comentados”, Engifisco, 1.ª Edição, 2005, p. 116).
22.Ou seja, podem existir prédios urbanos registados para fins habitacionais que não são utilizados para habitação própria e permanente. Como decorre da jurisprudência tributária, entende-se que “O pressuposto «habitação própria e permanente» é a situação de facto que condiciona a isenção do IMI. O requisito da permanência na “habitação” (a lei não utiliza o termo “residência”), deve ser entendido no sentido de habitualidade e normalidade e não propriamente no sentido cronológico absoluto de estadia sem qualquer solução de continuidade” (cf. entre outros, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 24 de janeiro de 2024, processo n.º 1282/10.5BELRS).
23.Uma vez que o primeiro imóvel adquirido pelos Requerentes em 2020 foi reconhecido pela Câmara Municipal da Covilhã como uma “ruína” (cf. documento n.º 6 junto pelos Requerentes), releva trazer à colação o disposto tanto no Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto, como no Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro, que substituiu o primeiro.
24.Ambos os diplomas têm como objeto assegurar e promover a melhoria do desempenho energético dos edifícios e contêm uma definição semelhante de “Edifício em ruínas”:
i) “o edifício existente com tal degradação da sua envolvente que, para efeitos do presente diploma, fica prejudicada, total ou parcialmente, a sua utilização para o fim a que se destina, tal como comprovado por declaração da câmara municipal respetiva ou pelo perito qualificado, cumprindo a este proceder ao respetivo registo no SCE” (cf. alínea r) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 118/2013, de 20 de agosto); e
ii) “o edifício existente cujo nível de degradação da sua envolvente prejudica a utilização a que se destina, tal como comprovado por declaração da respetiva câmara municipal ou da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, no âmbito das respetivas atribuições, ou, no âmbito exclusivo da certificação energética, por declaração provisória do SCE emitida pelo PQ nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 20.º” (cf. alínea g) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 101-D/2020, de 7 de dezembro).
25.Assim, o estado do edifício e o seu reconhecimento como estando “em ruínas” deve ser atestado por declaração da Câmara Municipal. Invalidando a sua utilização para o fim a que se destina. Portanto, um prédio urbano habitacional em ruínas não pode, naturalmente, ser utilizado para habitação, muito menos para habitação própria e permanente.
B.Subsunção do direito aos factos
26.Os Requerentes começam por invocar erro sobre os pressupostos de facto que pode resumir-se à errónea avaliação efetuada pela AT do imóvel adquirido em 2020. Com efeito, a AT sustenta que tal imóvel é um prédio urbano habitacional, cujo destino é a habitação própria e permanente (cf. documento n.º 2 da p.i.), enquanto os Requerentes alegam que tal imóvel é um prédio rústico com uma pequena ruína inabitável que não pode, pelo seu estado de conservação, ser afeto à habitação.
27.Da prova produzida nos presentes autos resulta que o imóvel adquirido em 2020 é, efetivamente, uma ruína inabitável. Tal circunstância foi, inclusive, atestada pela Câmara Municipal da Covilhã na Certidão emitida em 22 de setembro de 2020, no âmbito do processo n.º .../20DIV, que declara que “(…) o prédio urbano sito em Rua..., ..., na freguesia ..., deste concelho, inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Covilhã sob o n.º ...-..., foi construído antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de agosto de 1951” (cf. documento n.º 6 junto pelos Requerentes) e no Parecer emitido em 15 de junho de 2020 pela Chefe de Divisão do Gabinete de Fiscalização Municipal que reconhece que “(…) o edifício detém características de uma construção/implantação bastante antiga, tendo em conta a espessura das paredes em pedra e a estrutura da cobertura em madeira (…)” e, ainda, que “(…) a edificação não tem condições de habitabilidade, uma vez que a nível da cobertura e uma parte da edificação encontra-se em ruínas” (cf. documento n.º 6 junto pelos Requerentes).
28.A documentação da Câmara Municipal da Covilhã está instruída com fotografias do imóvel que evidenciam o seu estado de ruína. Com efeito, é possível identificar o mau estado da construção, principalmente da sua cobertura que se encontra parcialmente destruída e obsta à sua habitabilidade.
29.Ao que acresce que, em obediência ao princípio da substância sobre a forma e ao princípio da verdade material, não é pelo simples facto de o registo do imóvel na matriz estar como prédio urbano habitacional que se deve considerar tal circunstância como verdadeira. Pelo contrário, deverá prevalecer a realidade sobre elementos formais, como seja o registo. Para mais estando no âmbito de um benefício fiscal que quer promover a compra de casa (o que pressupõe a sua habitabilidade, bem como a inexistência de imóvel com idêntica possibilidade em condições normais).
30.Neste mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul no Acórdão de 11 de julho de 2019, no âmbito do processo n.º 1284/13.0BELRS, ainda que a propósito da aplicação da antiga verba 28.1 da TGIS, mas cujo entendimento é inteiramente subsumível à situação sub judice.
31.No referido aresto, o Tribunal reconheceu que «(…) no caso concreto em análise, e tal como decorre do ponto 6 dos factos provados (o qual não foi impugnado), em 30/10/2012, por despacho do Vereador da Camara Municipal de Lisboa, foi declarado totalmente devoluto o prédio em questão; tal prédio encontra-se em ruínas. Significa isto que, à data do facto tributário, o imóvel em causa era insusceptível de, efectivamente, ser afecto à habitação, já que um prédio devoluto e em ruínas não apresenta funcionalidade (para a habitação) real e presente, independentemente da afectação futura ou expectável e/ou da afectação pretérita. Diga-se, ainda, que, nos termos do artigo 46º (Valor patrimonial tributário dos prédios da espécie «Outros»), nº4, do CIMI, “O valor patrimonial tributário dos prédios urbanos em ruínas é determinado como se de terreno para construção se tratasse, de acordo com deliberação da câmara municipal”, o que nos afasta, e muito, da ideia de prédio urbano habitacional e nos remete para o entendimento da jurisprudência já citada a propósito da verba 28.1 da TGIS e dos terrenos para construção. A este propósito, como defende a Recorrida, mal se perceberia, aliás, que “se os prédios em ruínas não são susceptíveis de ser qualificados, para efeitos de IMI, como prédios habitacionais” …pudessem “ser havidos como prédios com afectação habitacional para efeitos de tributação em sede de Imposto do Selo”.
Como tal, em face de tudo quanto ficou dito, e como a sentença concluiu, entende-se que o prédio em questão – devoluto e em ruínas - não pode ser considerado como prédio “com afectação habitacional”, para efeitos do disposto na verba 28.1 da TGIS, na redacção que aqui vem sendo considerada» (sublinhado nosso).
32.Para concluir que «(…) como bem evidencia o EMMP, no parecer de fls. 237 dos autos, “inexiste norma no CIS, ou por remissão, no CIMI, que defina como prédios com afectação habitacional os que como tal se encontrem inscritos na matriz, pelo que não pode relevar-se, positivamente, a forma sobre a substância”.
Com efeito, não se nos afigura, para efeitos de aplicação da norma/verba em questão, que a circunstância de o prédio se encontrar inscrito na matriz predial como prédio com afectação habitacional seja impeditiva da demonstração – que aqui foi feita – da sua situação real e actual não condizente com a habitação, como acontece com um prédio em ruínas e, consequentemente, devoluto. No caso, demonstrou-se, tal como resulta do ponto 6 do probatório, uma realidade substantiva/material diversa da que consta da matriz predial urbana, não podendo tal verdade material deixar de prevalecer, o que aqui expressamente deverá ser evidenciado. Aliás, o entendimento da Recorrente parece ter pressuposta a atribuição de força probatória plena às matrizes prediais, quando, na realidade, não apenas o sujeito passivo, a câmara municipal e a junta de freguesia podem, a todo o tempo, reclamar de qualquer incorrecção nas inscrições matriciais (nº3 do artigo 130º do CIMI), como, também, “o chefe do serviço de finanças competente pode, a todo o tempo, promover a rectificação de qualquer incorrecção nas inscrições matriciais, salvo as que impliquem alteração do valor patrimonial tributário resultante de avaliação directa com o fundamento previsto na alínea a) do n.º 3”. E note-se que, nos termos do nº 15 do artigo 112º do CIM, na redacção em vigor em 2012, “para efeitos da aplicação da taxa do IMI prevista no n.º 3, a identificação dos prédios ou fracções autónomas em ruínas compete às câmaras municipais e deve ser comunicada à Direcção-Geral dos Impostos, nos termos e prazos referidos no n.º 13”, donde resulta que o mecanismo para fazer a identificação, e posterior comunicação, dos prédios na condição de “ruínas” está previsto e ao alcance da AT. Em suma, e sobre este esteio do recurso, dir-se-á, em síntese útil, que, conforme resulta do probatório, provou-se uma realidade substantiva divergente daquela que consta da matriz predial urbana, circunstancialismo que não pode ser ignorado, independentemente de o contribuinte não ter lançado mão do mecanismo previsto no artigo 130º, nº 3 do CIMI» (sublinhado nosso).
33.Em face do exposto, reconhece-se o erro sobre os pressupostos de facto em que incorreu a AT.
A isto acresce que,
34.Os Requerentes invocaram erro sobre os pressupostos de direito quanto à interpretação efetuada pela AT do n.º 3 do artigo 9.º do Código do IMT.
35.Com efeito, uma vez que os Requerentes adquiriram, em 2020, um prédio urbano habitacional, mas prédio esse que, como ficou provado nos presentes autos, não tem condições de habitabilidade porque se consubstancia numa ruína e nunca foi, nem poderia ter sido, utilizado como habitação própria e permanente dos Requerentes, a questão a decidir é se a isenção de IMT prevista no n.º 2 do artigo 9.º do respetivo Código é aplicável ou não, ficando excluída pelo n.º 3 do mesmo artigo 9.º.
36.Tanto os Requerentes como a AT estão de acordo quanto à aplicação no caso concreto do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IMT. Isto porque os Requerentes têm idade inferior a 35 anos, não são considerados dependentes para efeitos do artigo 13.º do Código do IRS e está em causa a aquisição, em 2024, de um prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, de valor inferior a € 324.058,00.
37.O litígio prende-se com a aplicação – ou não – do n.º 3 do artigo 9.º do Código do IMT. Esta norma afasta a isenção de IMT caso os sujeitos passivos sejam titulares de direito de propriedade sobre prédio urbano habitacional à data da transmissão ou em qualquer momento nos três anos anteriores.
38.O benefício fiscal em apreço não tem critérios quantitativos associados ao rendimento ou património global dos sujeitos passivos – ou seja, a exclusão do benefício não tem a ver com a sua situação patrimonial ou riqueza, como em abstrato o legislador poderia ter desenhado esta norma, como faz noutros casos. Aqui, o seu objetivo é facilitar o acesso a habitação própria e permanente (cf. n.º 2 do artigo 9.º do Código do IMT e alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 30-A/2024, de 20 de junho). Assim, devem adotar-se os mesmos critérios estabelecidos pelo legislador, norteados pelo respetivo objetivo extrafiscal, o que determina uma interpretação que olhe à teleologia do n.º 3 do artigo 9.º do Código do IMT, no sentido de que o prédio urbano habitacional já propriedade dos sujeitos passivos na data da aquisição deve ser a sua habitação própria e permanente ou, pelo menos, ter condições para isso. Neste mesmo sentido, ensina J. L. SALDANHA SANCHES que «É correta a posição que tem sido tomada em alguns acórdãos do STA ao aplicar benefícios fiscais a situações não claramente abrangidas pelo texto da norma e invocando o princípio de que “as normas que estabelecem benefícios fiscais não são suscetíveis de interpretação analógica, mas admitem interpretação extensiva” – não tanto pela necessidade de beneficiar o contribuinte, como parecia pensar ingenuamente o legislador fiscal, mas, sim, porque, consistindo o benefício fiscal numa norma de direito económico destinada a obter um certo efeito económico, deverá ser aplicado levando em conta a teleologia substancial da política económica que corporiza. Isto, porque o interesse público que justifica a isenção – o de estimular um certo comportamento do sujeito passivo – se sobrepõe, aqui, ao da correcta distribuição dos encargos tributários segundo a capacidade contributiva. Neste caso, as regras de interpretação a utilizar são as que podem contribuir para atingir uma dessas finalidades» (cf. J. L. SALDANHA SANCHES, “Manual de Direito Fiscal”, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 2007, pp.135 e 136; sublinhado nosso).
39.No caso concreto em apreço, está provado que i) os sujeitos passivos eram proprietários de um prédio urbano habitacional, mas ii) esse prédio urbano habitacional era uma ruína, sem condições de habitabilidade. Deste modo, o n.º 3 do artigo 9.º do Código do IMT não é aplicável, prevalecendo a regra de isenção de IMT (prevista no respetivo n.º 2) quanto à aquisição do prédio em 2024. O que significa que a liquidação de IMT contestada é ilegal e deve ser anulada, com as demais consequências legais, nomeadamente o reembolso do montante indevidamente pago.
40.O mesmo sucede quanto à dedução à coleta da verba 1.1. da TGIS. Aplicando-se a isenção do n.º 2 do artigo 9.º do Código do IMT, prescreve o n.º 1 do artigo 7.º-A do Código do Imposto do Selo uma dedução à coleta da verba 1.1. da TGIS com o limite máximo de
€ 324.058,00. Ora, uma vez que o prédio foi adquirido por € 255.000,00, não deveria ter sido liquidado Imposto do Selo, pelo que a liquidação contestada é ilegal e deve ser anulada, com as demais consequências legais, nomeadamente o reembolso do montante indevidamente pago.
41.Neste contexto, dão-se por prejudicadas as demais questões suscitadas.
42.No que concerne, em particular à questão suscitada pela AT de que os Requerentes terão beneficiado das taxas dos prédios habitacionais quanto ao prédio adquirido em 2020, em sede de IMI, em vez da taxa agravada caso o imóvel fosse considerado uma ruína, refira-se que tal não é objeto do pedido, motivo pelo qual não cabe ao Tribunal pronunciar-se sobre a legalidade ou ilegalidade daqueles atos tributários de IMI. O que o Fisco pode, e deve, estando em tempo, tentar corrigir.
C.Do direito a juros indemnizatórios
43.Os Requerentes peticionam, também, o pagamento de juros indemnizatórios por parte da Requerida.
44.A LGT estabelece, no seu artigo 43.º, n.º 1, que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
45.Assim, o direito ao recebimento de juros indemnizatórios assenta num conjunto de pressupostos de verificação cumulativa, quais sejam, a existência de um erro imputável aos serviços, em função do qual resulte pagamento de imposto em montante superior ao devido, sendo esse erro analisado em sede de reclamação ou impugnação judicial (encontrando-se hoje estabilizada a jurisprudência segundo a qual tal avaliação pode ser efetuada, também, em sede arbitral – cf. n.º 5 do artigo 24.º do RJAT).
46.Como decorre da fundamentação que se expendeu acima, afigura-se patente que o erro de direito que inquina os atos contestados é imputável à AT porquanto os contribuintes seguiram a informação vinculativa prestada pela AT (cf. documento n.º 2 junto pelos Requerentes).
47.Nessa medida, reconhece-se aos Requerentes o direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos e para os efeitos dos artigos 43.º e 100.º da LGT e 61.º do CPPT, contados desde a data do pagamento do IMT e do Imposto do Selo indevidamente liquidados, até respetivo processamento da respetiva nota de crédito.
V. DA DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
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julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IMT n.º ... e de IS n.º ..., relativos ao ano de 2024, nos montantes de € 7.827,58 e de € 2.040,00, respetivamente, determinando-se o respetivo reembolso dos montantes indevidamente pagos aos Requerentes;
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julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios; e
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condenar a Requerida nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 9.867,58 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VII. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 27 de junho de 2025
O Árbitro,
João Taborda da Gama