Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 918/2024-T
Data da decisão: 2025-06-05  IRS  
Valor do pedido: € 830.168,97
Tema: IRS; pagamentos a trabalhadores considerados como “ajudas de custo”, mas devendo ser qualificados como verdadeiras “remunerações”; tributação adicional em IRS a cargo do substituto tributário, que devia ter feito a retenção na fonte e não fez.
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SUMÁRIO

 

Considerando-se os valores pagos aos trabalhadores pela sua entidade patronal como verdadeiros “acréscimos remuneratórios”, não obstante a qualificação dada pela Requerente como “ajudas de custo”, a AT deve fazer a sua tributação em sede de IRS, valores que não foram retidos – como deviam ter sido – pela entidade patronal na sua posição de substituto tributária, sendo devedora por isso, conclusão a que se chega tendo por pressuposto a atribuição de valor probatório autónomo ao relatório de inspeção tributária realizado por o mesmo lograr fazer inverter o ónus da prova perante a inexatidões e omissões assacadas à entidade requerente quanto à prova documental analisada, nos termos do art. 75.º da LGT.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

O Tribunal Arbitral, composto pelos árbitros Professora Doutora Regina de Almeida Monteiro, (Presidente) Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia (Adjunto relator) e Dr. Ricardo Marques Candeias (Adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e constituído em 7 de julho de 2024, acorda no seguinte:

 

I.              RELATÓRIO

1.             A..., S. A., com o NIF ... e sede na Rua..., ..., ...-... Lisboa (doravante Requerente), veio solicitar, em 30 de julho de 2024, a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), apresentando um pedido de pronúncia arbitral tendo como objeto a declaração da ilegalidade da liquidação adicional de retenções na fonte IRS – trabalho dependente, relativa ao ano de 2019, no valor total de imposto (de 710.868,99€ (liquidação n.º 2023...), acrescido de liquidação de juros de 119.299,98€ no total de 830.168,97€, na sequência do indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2024... .

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (AT).

 

Toma-se a liberdade de transcrever o pedido na sua totalidade, segundo as palavras usadas pela Requerente:

- «a) A total procedência da ação arbitral;

- “b) Com a total anulação das liquidações de retenções na fonte IRS e juros compensatórios relativa ao ano de 2019, objeto desta ação arbitral (cfr. doc. 1 e artigo 2.º supra);

- “c) E reflexamente com a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa;

- “d) Com todas as consequências legais, nomeadamente com a devolução das quantias que houverem já sido pagas (imposto e juros), acrescidas de juros indemnizatórios, à taxa legal sobre esse valor, contados desde o pagamento até integral devolução.»

 

2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exm.º Senhor Presidente do CAAD, em 1 de agosto de 2024, em conformidade com o preceituado no art. 11.º, n.º 1, al. c), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66º-B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificado, nessa data, à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), ora Requerida.

3. O Conselho Deontológico da CAAD, em 19 de setembro de 2024, procedeu à nomeação dos árbitros ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 3, al. a), e do art. 11.º, n.º 1, al. b), do RJAT, que comunicaram, no prazo legalmente estipulado, a aceitação dos respetivos encargos.

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do art. 11.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.

5. Deste jeito, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído em 8 de outubro de 2024, com base no preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a Autoridade Tributária e Aduaneira, na pessoa da sua Diretora-Geral, para, querendo, apresentar resposta.

6. A Requerida apresentou a sua Resposta em 11 de novembro de 2024, impugnando a pronúncia apresentada, entendendo não haver razão para qualquer invalidação dos atos tributários praticados, opondo-se ainda à produção da prova testemunhal solicitada pela Requerente.

7. As partes apresentaram as alegações escritas, a Requerente em 18 de dezembro de 2024 e a Requerida em 19 de dezembro do mesmo ano.

8. A 9 de abril de 2025, a Requerente juntou um requerimento aos autos.

9. Em 10-04-2025 o Tribunal Arbitral proferiu um despacho a convidar a Requerida a se pronunciar.

 

II.            SANEAMENTO

10. O Tribunal Arbitral foi devidamente constituído em 8 de outubro de 2024, em conformidade com o estabelecido na al. c) do n.º 1 do art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

11. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente patrocinadas, nos termos dos arts. 4.º e 10.º do RJAT e do art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

12. O processo não padece de vícios que o invalidem.

13. Cumpre apreciar e decidir.

 

III.         DOS FACTOS

14. A matéria factual relevante para a compreensão e decisão desta causa, após exame crítico da prova documental e testemunhal existente nos respetivos autos, fixa-se como segue:

 

A)           Ónus da prova

 

15. A dimensão probatória dos factos na presente ação arbitral revela-se especialmente árdua em atenção ao elevado volume de documentos que constam dos autos, os quais estão sob litígio, sendo certo que aqui apenas é de ponderar a prova documental.

14. Cumpre ver as regras aplicável de Direito Probatório, constantes da LGT, o qual repousa no princípio geral, conforme o seu art. 74.º, n.º 1, segundo o qual a prova incumbe, como ónus, a quem pretende fazer afirmar o seu direito: “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

16. Porém, pode haver regras que contenham presunções acerca da apreciação de elementos probatórios, como é aquela que se encontra no art. 75.º, n.º 1, da LGT: “1 – Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos”.

17. Esta presunção de veracidade acerca da prova documental encontra diversas exceções no n.º 2 do próprio art. 75.º, o qual, por sua vez, no seu n.º 1, in fine, ao afirmar essa presunção de veracidade, opera dentro dela uma delimitação interna negativa, sendo de transcrever tais preceitos do n.º 2 do art. 75.º da LGT: “2 – A presunção referida no número anterior não se verifica quando: a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo; b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações; c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objetivos da atividade de base técnico-científica previstos na presente lei. d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A”.

 

B)            Factos Provados

18. A Requerente é a A..., S. A., com o NIF ... e sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa.

19. A Requerente foi alvo de uma ação inspetiva, realizada pelos Serviços de Inspeção Tributária (IT) da Direção de Finanças de Viana do Castelo, com base na Ordem de Serviço n.º OI2022..., de 26/07/2022; (cfr. PA)

20. Esta ação inspetiva começou em 18/01/2023 e teve por fito aferir do cumprimento de obrigações fiscais do ano de 2019, tendo originado correções em sede de IRC, de IVA e de retenção na fonte de IRC e IRS, em razão de terem sido consideradas como fraudulentas a qualificação como ajudas de custo que seriam antes “salários encapotados”; (cfr. PA).

21. Na sequência disso, foi emitida uma correção relativa à Retenção na Fonte de IRS, do ano de 2019, da qual resultou a Liquidação n.º 2023..., no montante de € 710.868,99, e de Juros Compensatórios, no montante de € 119.299,98, no valor total de € 830.168,97, conforme o que consta da nota de cobrança n.º 2023...; (cfr. doc. 1 junto com o PPA).

 

No Relatório de Inspeção Tributária, pode ler-se nomeadamente o seguinte:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

B...

 

 

 

 

 

C...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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L...

 

K...

 

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H...

 

 

G...

 

F...

 

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D...

 

 

 

 

 

O...

 

N...

 

 

 

 

M...

 

 

 

 

 

O...

 

N...

 

 

 

 

M...

 

 

 

 

 

T...

 

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R...

 

Q...

 

P...

 

 

 

 

 

 

X...

 

W...

 

 

V...

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T...

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S...

 

R...

 

Q...

 

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HH...

 

 

 

GG...

 

FF...

 

 

EE...

 

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MM...

 

 

 

 

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22. A requerente reagiu a essa liquidação oficiosa e apresentou, em 22-02-2024, a Reclamação Graciosa com o n.º ...2024...; (cfr. PA).

Reclamação que foi indeferida por despacho de 22-05-2024, notificado por carta registada nessa data, e recebido pela Requerente em 23-05-2024 (cfr. doc. anexo ao PA).

 

C)           Factos não provados

23. Não existem factos com interesse para a decisão da causa que devam considerar-se como não provados.

 

D)           Fundamentação da matéria de facto 

24. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi invocado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

25. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito [cfr. o art. 596.º, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT].

26. Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos aos autos, bem como da força probatória alternativa, pelas razões de direito expostas, que se deu ao relatório de inspeção tributária, na sua parte decisória, e que a Requerente não conseguiu desmentir, apreciando toda a documentação junta.

 

IV.          DO DIREITO

Valor probatório do Relatório de Inspeção Tributária (RIT) e a não impugnação da sua veracidade

27. Quanto ao valor probatório do RIT é de referir o decidido no Acórdão do TCAN de 21-11-2019, proferido no processo n.º 01625/16.8BEPRT:

“I) A força probatória das informações oficiais da AT encontra-se especialmente regulada pelo artigo 76.º, n.º 1 da LGT, em termos em tudo idênticos aos previstos para os documentos autênticos, pelo que as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei.

(...)

Em primeiro lugar porque, de conformidade com o disposto no artigo 76º, n.º 1 da LGT, as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei. A força probatória das informações oficiais da AT encontra-se, pois, especialmente regulada em termos em tudo idênticos aos previstos para os documentos autênticos.

Como na anotação 3 ao referido artigo referem Diogo Leite Campos e outros, «Relativamente a factos a […] força probatória [das informações oficiais] existe quanto aos afirmados como sendo praticados pela administração tributária ou com base na percepção dos seus órgãos ou agentes, ou factos determinados a partir dessa percepção com base em critérios objectivos. // No que concerne aos factos afirmados com base em juízos formulados pela administração tributária a partir dos factos materiais apurados que não sejam determinados com base em critérios objectivos não existe aquela especial força probatória, valendo as informações como elementos sujeitos à livre apreciação da entidade competente para a decisão.// É este o regime geral previsto para a força probatória dos documentos autênticos (art. 371.º, n.º 1, do CC), aqui já estendido aos factos determinados segundo critérios objectivos, e não seria congruente com a opção legislativa e ele subjacente, a atribuição de um estatuto probatório privilegiado às informações prestadas pela administração tributária, que nem sequer está funcionalmente colocada no procedimento tributário numa situação de alheamento em relação ao sentido da decisão, que é uma garantia de isenção da prestação de informações.» (cfr. Lei Geral Tributária anotada e comentada, encontro da escrita editora, 4.ª edição 2012, pág. 670 e 671; no mesmo sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, volume II, 6.ª edição, 2011, áreas Editores, pág. 261, anotação 5). Contudo, «Para terem a força probatória referida, as informações oficiais têm de ser fundamentadas e basearem-se em critérios objectivos (…)» - cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, volume II, 6.ª edição, 2011, áreas Editores, pág. 261, anotação 11. Assim, conforme resulta do acórdão do TCAS nº 02800/08 de 13-04-2010 «2. O relatório da acção inspectiva é um documento autêntico, com força probatória plena, apenas ilidível nos termos da lei, no que concerne às circunstâncias objectivas, nele atestadas, com base na percepção directa do seu autor.»

28. No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do TCAN de 12-01-2021 proferido no Processo 00250/15.3BEPRT.

 

29. Entende este Tribunal, sem prejuízo de tudo o que antecede e que determina desde logo a total improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral, que a Requerente não fez prova da inveracidade do constante no RIT, não tendo provado que, como alega, que os valores pagos aos funcionários o foram enquanto ajudas de custo.

 

Valores considerados como “remunerações”, e não “ajudas de custo”

30. A apreciação da documentação carreada para os autos, considerando as regras probatórias ali recordadas, leva à conclusão de que são considerados como rendimentos tributáveis em sede de IRS, na categoria A, nos termos do art. 2.º, n.º 3, al. d), do CIRS, “As ajudas de custo e as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em serviço da entidade patronal, na parte em que ambas excedam os limites legais ou quando não sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado e as verbas para despesas de deslocação, viagens ou representação de que não tenham sido prestadas contas até ao termo do exercício”.

31. Estas regras remetem para legislação específica que, sendo primariamente atinente à função pública, é aqui relevante, que são o Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de abril, e o Decreto-Lei n.º 192/95, de 28 de julho:

- o art. 1.º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 106/98, diz que “1 – Os trabalhadores que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público dos órgãos e serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação objetivo da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, quando deslocados do seu domicílio necessário por motivo de serviço público, têm direito ao abono de ajudas de custo e transporte, conforme as tabelas em vigor e de acordo com o disposto no presente diploma”;

- o art. 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/95, de 28 de julho: “1 – O presente decreto-lei regula a atribuição de ajudas de custo por deslocações em serviço público ao estrangeiro e no estrangeiro pelo pessoal a que se refere o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de Abril”.

            32. Compulsando os autos, importa considerar o valor autónomo que a legislação confere ao Relatório da Inspeção Tributária, o qual serviu de base à tributação adicional que foi determinada em sede de IRS, em relação ao qual importa considerar que a Requerente nunca chegou a apresentar, conforme havia sido solicitado, no âmbito das 12 pastas A4 com os recibos e boletins itinerários dos funcionários, e as 6 pastas com contratos de trabalho entregues, “…a relação de trabalhadores em exercício de funções em 2019, identificando as respetivas funções e o local efetivo de prestação de serviços, e, quando aplicável, as obras em que laboraram”, nem logrou (…) identificar as obras em execução, quer em Portugal quer no estrangeiro, e respetivos clientes e contratos celebrados”.

            Eis uma situação em que parece claro que competia à Requerente, num caso de inversão do ónus da prova, a demonstração de que a conclusão que a Requerida alcançou não estaria em conformidade com os factos plasmados na prova documental referenciada.

33. O Tribunal Arbitral entende que a Requerida tem razão quando categoriza da seguinte forma a comprovação das conclusões acerca da existência de verdadeiras “remunerações”, e não “ajudas de custo” pagas pela Requerente:

“i. quando se refere a trabalhadores colocados/a trabalhar no estrangeiro, não indica a localidade da obra, apenas indicando o país e o cliente; e, nos casos que constam alguns dias com indicação de deslocação em viatura própria, por vezes, é indicada as cidade/localidade onde eventualmente se inicia e termina a deslocação, desconhecendo o motivo subjacente a tal “deslocação”, e que, atendendo à distância indicada como percorrida, não parece credível, indicando número de Kms diferentes para o mesmo suposto percurso, outras vezes também indicando apenas o país e o cliente, desconhecendo qual o percurso, conforme Anexo 8 do relatório;”

- “ii. para os trabalhadores com ajudas de custo em Portugal, não é indicado o efetivo serviço efetuado que motivou a suposta deslocação, as localidades dos percursos e/ou local das obras/serviços, apenas são atribuídos valores a título de compensação por utilização de viatura própria, não se indicando o serviço que motivou a deslocação, a hora de início e de regresso; em muitos casos, não há indicação da matrícula do veículo utilizado ou são indicadas matrículas de ciclomotores para viagens longas, ou de veículos que só posteriormente ao ano em causa é que são adquiridos pelo trabalhador, ou que naquele ano já não lhe pertencem”.

            Tudo isto considerando que nem sequer foi apresentada, quanto a 2019, a relação dos seus trabalhadores.

 

34. O Tribunal Arbitral, observando minuciosamente o Relatório da Inspeção Tributária (RIT), bem como os correspondentes anexos, concorda com a conclusão a que chegou a Requerida, na sua parte decisória, que se transcreve, para cujo documento se remetem as demais informações, com base na conclusão de que os “…pagamentos efetuados a título de ajudas de custos e/ou compensação por deslocação em viatura própria, são efetivas remunerações, rendimento sujeito a IRS, não existindo justificação para a atribuição das referidas ajudas de custo e/ou compensações”.

Mas ainda se conclui o seguinte:

“14. A tributação, em sede de IRS, dos rendimentos indevidamente considerados como ajudas de custo, na esfera da ora reclamante, encontra-se fundamentada no ponto 17, página 38 do RIT;

- “15. Os valores das retenções não efetuadas, por trabalhador e por mês, encontram-se no Anexo 20, e foram resumidas no quadro que consta a página 40 do RIT, totalizando 708.459,00€.

 

A tributação dos valores recebidos como “remunerações” efetivas em sede de IRS dos trabalhadores

35. A conclusão acerca da qualificação dos valores em crise como verdadeiras “remunerações”, e não como “ajudas de custo”, tem a consequência de as mesmas se sujeitarem a IRS, devendo o correspondente valor ter sido retido pela entidade patronal na sua posição de substituto tributário, pelo que não tem razão a Requerente.

 

36. Assim é nos termos do art. 2.º, n.º 3, al. d), do CIRS, no qual se preceitua que “As ajudas de custo e as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em serviço da entidade patronal, na parte em que ambas excedam os limites legais ou quando não sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado e as verbas para despesas de deslocação, viagens ou representação de que não tenham sido prestadas contas até ao termo do exercício”.

 

É, pois, de concluir que as despesas correspondentes, feitas pela Requerente aos trabalhadores em causa, deviam ter sido submetidas a tributação em sede do IRS de cada um deles, com a consequência de tais valores deverem ter sido retidos na fonte, o que não sucedeu.  

 

A correta fundamentação da qualificação efetuada pela Requerida no RIT

37. A apreciação dos autos leva também o Tribunal Arbitral a concluir que não há qualquer violação de lei no tocante à falta ou deficiente fundamentação no trabalho desenvolvido pela Requerida quando chegou à conclusão de que se estaria, na verdade, perante remunerações, e não ajudas de custo.

A leitura cuidadosa dos autos, sobretudo do RIT e dos seus anexos, mostra rigor na observação realizada pela Requerida, pelo que são bastantes os cuidados que a este propósito se registam em matéria de facto e de direito, considerando a análise que foi feita de cada um dos documentos juntos aos autos nos seus diversos anexos, não assistindo assim razão à Requerente, pelo que se devem manter na ordem jurídica o despacho de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa com o n.º com o n.º ...2024...e as liquidações adicionais que lhe estão subjacentes e objeto deste PPA.

 

38. Ora, é isso mesmo o que a legislação fiscal estabelece, não impondo sequer um dever de fundamentação exaustiva, podendo a mesma ser feita por remissão para outros documentos ou textos.

Atente-se no art. 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT: “1 – A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”; “2 – A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

 

O reembolso dos valores pagos e juros indemnizatórios para ressarcir os danos associados à pendência da caução prestada pela Requerente no processo executivo

39. A Requerente pediu também a condenação da Requerida no reembolso dos valores indevidamente cobrados e no pagamento de juros indemnizatórios relacionados com os danos relativos ao facto de ter pago prestações de uma dívida de IRS que não lhe competia pagar.

40. Nos termos do art. 24.º, n.º 5, do RJAT, “…é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, tal implicando o pagamento de juros indemnizatórios segundo os arts. 43.º, n.º 1, da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT.

 

41. Não tendo o Tribunal Arbitral invalidado o ato tributário da liquidação, pois que a liquidação oficiosa foi correta, não são devidos juros indemnizatórios, pois que não há danos provocados por qualquer ilegalidade.

 

V.            DECISÃO

42. Termos em que o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral e em consequência:

a)             Absolver a Requerida do pedido mantendo na ordem jurídica o despacho de indeferimento que recaiu sobre a Reclamação Graciosa com o n.º com o n.º ...2024... e a liquidação adicional de retenções na fonte IRS – trabalho dependente, relativa ao ano de 2019, no valor total de imposto de 710.868,99 € (liquidação n.º 2023...), acrescido de liquidação de juros de 119.299,98 € no total de 830.168,97 €;

b)             Absolver a Requerida do reembolso dos valores cobrados e do pagamento de juros indemnizatórios;

c)             Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

43. De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, art. 97.º-A, n.º 1, al. a), do CPPT ex vi art. 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 3.º, n.º 2, do RCPAT, fixa-se ao processo o valor de € 830.168,97 (oitocentos e trinta mil, cento e sessenta e oito euros e noventa e sete cêntimos), correspondente ao valor de imposto que a Requerente considera como tendo sido indevidamente liquidado, o qual é o valor do pedido de pronúncia arbitral, não tendo o mesmo sido objeto de contestação.

 

VII.        CUSTAS

44. Custas a cargo da Requerente, de acordo com o art. 12.º, n.º 2, do RJAT, do art. 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 11.934,00 (onze mil, novecentos e trinta e quatro euros), em virtude de a Requerida ter sido absolvida da totalidade do pedido.

Notifique-se.

 

Lisboa, 5 de junho de 2025.

 

Os Árbitros

 

 

(Regina de Almeida Monteiro – Presidente)

 

 

 

(Jorge Bacelar Gouveia – Adjunto e Relator)

 

 

(Ricardo Marques Candeias – Adjunto)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art. 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.