Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1113/2024-T
Data da decisão: 2025-06-27  Selo  
Valor do pedido: € 211.116,98
Tema: Imposto do Selo sobre comissões de comercialização de unidades de participação.
Versão em PDF

 

 

 

SUMÁRIO: 

O Imposto do Selo cobrado sobre “comissões de comercialização” de unidades de participação é ilegal, por incompatibilidade com o art.º 5.º, n.º 2 , al. a) da Diretiva 2008/7. 

 

 

Os Árbitros Guilherme W. d'Oliveira Martins, Marisa Isabel Almeida Araújo e António de Barros Lima Guerreiro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte: 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

     I.         RELATÓRIO

A..., S.A. S.G.I.I.C. (sociedade anteriormente designada «B..., S.G.I.I., S.A»), constituída ao abrigo da legislação espanhola, com o número de identificação fiscal espanhol ..., sediada na ... n.º ... doravante, “Requerente”), na sequência da formação de acto tácito de indeferimento do recurso hierárquico sobre a revisão oficiosa n.º ...2024..., ocorrido a 15 de julho de 2024, vem, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), bem como do artigo 95.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e d), da Lei Geral Tributária (doravante, “LGT”) e artigos 99.º, alínea a), e 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), apresentar PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos seguintes atos: (1) Indeferimento tácito do recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da revisão oficiosa, referente ao processo n.º ...2024...; (2) Decisão de indeferimento da revisão oficiosa referente ao processo n.º ...2024..., da autoria do Chefe da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, por subdelegação de competências (cfr. Documento n.º 1); (3) Liquidações de Imposto do Selo (doravante, “IS”) efetuadas entre maio de 2020 e setembro de 2020, no valor total de 211.116,98 Euros, a título de «comissões de comercialização» (cfr. Documento n.º 2) cobradas por intermediário financeiro.

É Requerida a AT.

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral Coletivo (TAC) foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à AT no dia 11 de outubro de 2024. 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.° e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.° do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários desta decisão, tendo sido notificadas as partes em 2 de dezembro de 2024, que não manifestaram vontade de recusar a designação, nos termos do artigo 11.º n.º1 alíneas a) e b) e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. 

O TAC encontra-se, desde 20 de dezembro de 2024, regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Notificada para o efeito, a Requerida, apresentou a sua resposta a 5 de fevereiro de 2025.

No dia 13 de fevereiro de 2025, este Tribunal proferiu o seguinte despacho:

“1. Notifique-se a Requerente para exercer, no prazo de 10 dias, o direito de resposta quanto à matéria da exceção invocada pela Requerida.

2. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e a prova produzida é meramente documental.

3. Por outro lado, estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença. 

4. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, no prazo de 10 dias a contar da presente notificação.

5. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.

Notifiquem-se as partes do presente despacho.”

 

 A Requerente respondeu às exceções.

 

 

 II.           DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS

II.1       Posição da Requerente

 

A Requerente fundamenta o seu pedido nos seguintes termos:

a)     A Requerente é uma sociedade pertencente ao Grupo C..., S.A., dedicada à atividade de gestão, administração e comercialização de fundos de investimento, no âmbito da qual faz uso de intermediários financeiros para comercializar as respetivas unidades de participação junto dos seus clientes (investidores).

b)    Atualmente, a Requerente designa-se por «A..., S.A. S.G.I.I.C.», designação que foi alterada recentemente por motivos de identidade de marca, assim substituindo a anterior designação «B..., S.G.I.I., S.A».

c)     Sendo uma sociedade constituída ao abrigo da legislação espanhola, a Requerente assume a forma jurídica de «Sociedad Gestora de Instituciones de Inversion Colectiva», o equivalente em Portugal à «Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo», tendo como atividade principal a gestão, administração e comercialização de «Instituciones de Inversion Colectiva», o equivalente em Portugal aos Organismos de Investimento Coletivo.

d)    A atividade desenvolvida pela Requerente é supervisionada pela «Comisión Nacional del Mercado de Valores» e encontra-se regulada pelo «Reglamento de Instituciones de Inversión Colectiva», concretamente pelo «Real Decreto 1082/2012, de 13 de julio, por el que se aprueba el Reglamento de desarrollo de la Ley 35/2003, de 4 de noviembre, de instituciones de inversión colectiva» (doravante, “Real Decreto 1082/2012), aí se prevendo as funções da sociedade gestora, bem como a forma como esta atividade deve ser remunerada.

e)     A este respeito, o artigo 94.º, n.º 2, alínea b) do Real Decreto 1082/2012 estabelece o conjunto de funções que a sociedade gestora está autorizada a desenvolver, das quais se destaca a comercialização das unidades de participação, função essa que, nos termos do artigo 95.º, n.º 2 do mesmo Diploma, pode ser realizada de forma indireta, através de agentes ou representantes.

f)     Note-se que, no caso da Requerente, a função de comercialização das unidades de participação é assegurada de forma indireta, na medida em que esta recorre à colaboração de intermediários financeiros.

g)    Nesse contexto, a Requerente decidiu recorrer ao D..., S.A. – Sucursal em Portugal (doravante, “D...”), enquanto entidade comercializadora das unidades de participação junto de investidores.

h)    A Requerente – à época ainda denominada «B..., SGIIC, S.A.» – e o D... formalizaram a relação supramencionada sob a forma de um contrato de subfornecimento de organismos de investimento coletivo estrangeiros, redigido originalmente em língua espanhola, que se junta, para efeitos de prova, com a respetiva tradução oficial em língua portuguesa (cfr. Documento n.º 5).

i)      Através do contrato celebrado, o D... obrigou-se a comercializar as unidades de participação dos fundos geridos pela Requerente, tendo esta ficado vinculada ao pagamento “como contraprestação económica pela comercialização das ações ou participações objeto do contrato (…) [dos] valores das comissões detalhadas na tabela constante no presente Anexo I” (cfr. página 19 do Documento n.º 5), assim se evidenciando que a única contraprestação prevista no contrato, a cargo da Requerente, tem a natureza de comissão de comercialização e não qualquer outra.

j)      A listagem dos fundos de investimento cobertos pelo contrato acima mencionado, consta do próprio contrato (cfr. página 20 e seguintes do Documento n.º 5).

k)    Assim, no período que mediou entre maio de 2020 e setembro de 2020, o D... cobrou «comissões de comercialização» pelos serviços de comercialização prestados à Requerente, tendo erradamente liquidado IS sobre as mesmas, à taxa de 4%, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS (cfr. Documentos n.º 6 e n.º 7).

l)      No período a que respeita o presente pedido de pronúncia arbitral, o IS indevidamente liquidado sobre essas «comissões de comercialização» ascendeu a um total de 211.116,98 Euros, conforme detalhado na declaração emitida pelo D... (cfr. Documento n.º 2) e abaixo reproduzido:

 

Nº das faturas

Comissão de comercialização

IS (4%)

Nº da DMIS

Data de pagamento 

Documento

 

 
   

FT FA.SRV20/15

2.805.097,52

112.203,90

25-05-2020

Documento n.º 6

   

FT FA.SRV20/62

2.472.826,86

98.913,07

21-09-2020

Documento n.º 7

   

Total

5.277.924,38

211.116,98

 

 

 

   

 

m)   Pese embora o intermediário financeiro ter liquidado IS sobre as referidas «comissões de comercialização», a Requerente entende que tal tributo foi cobrado indevidamente, por considerar que a norma de incidência da verba n.º 17.3.4 da Tabela Geral do IS (doravante, “TGIS”) deve ser interpretada restritivamente, em conformidade com o Direito da União Europeia, em particular a Diretiva da Reunião de Capitais.

n)    Inclusive, este entendimento da Requerente já foi confirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante, “TJUE”) no Acórdão «IMGA» (cfr. processo C-656/21), estando já a ser integralmente seguido pela jurisprudência dos tribunais nacionais.

o)    Nesta sequência, por entender que o IS liquidado nos termos da tabela supra não era devido, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa em 12-01-2024, como de resto já referido anteriormente, peticionando o reembolso do montante total de 211.116,98 Euros.

p)    Porém, em sede de decisão final, em 04-04-2024, a AT rejeitou o pedido de revisão do ato tributário submetido pela Requerente e identificado com o número de processo ...2024... (cfr. Documento n.º 1), com fundamento em intempestividade do pedido por inexistência de erro imputável aos serviços ou injustiça grave ou notória, para efeitos do artigo 78.º da LGT.

q)    Por considerar infundado tal entendimento, a Requerente recorreu da decisão de indeferimento, para o superior hierárquico, no dia 16-05-2024 (cfr. Documento n.º 4), em cumprimento do prazo previsto no artigo 66.º, n.º 2 do CPPT, ainda hoje sem resposta.

r)     Não se podendo conformar com tal entendimento, vem a Requerente apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral, procurando demonstrar nesta sede a ilegalidade da sujeição a IS das «comissões de comercialização» cobradas por intermediários financeiros no âmbito de operações de reunião de capitais, à luz do Direito da União Europeia, nos termos de Direito que em seguida se desenvolve.

 

II.2. Posição da Requerida

 

Por seu turno, a Requerida fundamenta a sua posição nos seguintes termos:

POR EXCEPÇÃO

DA INCOMPETÊNCIA MATERIAL

a)     Como ponto prévio, desde já se salienta que, para que o douto tribunal se pudesse pronunciar acerca do pedido da Requerente era condição sine qua none que tivesse havido uma decisão de indeferimento expresso, com análise do mérito da causa, ou um indeferimento expresso. o que indubitavelmente não sucedeu!

b)    Com efeito, alega a Requerente no artigo 1º do douto ppa que a presente acção arbitral tem por fundamento: “O presente pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato o indeferimento tácito do recurso hierárquico e a decisão de indeferimento da revisão oficiosa sobre a qual foi interposto”

c)     ara no decurso do mesmo ppa, em concreto no ponto 8.º do mesmo, referir que: “Por outro lado, e apesar de o indeferimento tácito que ora se contesta ter por objeto a rejeição liminar, por parte da AT, do pedido de revisão oficiosa, a Requerente entende que se verificam os pressupostos de competência material do Tribunal Arbitral para a apreciação do presente pedido, nos termos do artigo 2.º do RJA”

d)    Ora, como se pode verificar estamos perante uma decisão de Rejeição Liminar e consequentemente Arquivamento do pedido de revisão oficiosa apresentada, ao invés de uma decisão de indeferimento da mesma.

e)     Pelo que, sem margem para dúvidas, quer da notificação efetuada à Requerente, quer, sobretudo, pelo conteúdo da decisão final do pedido de revisão oficiosa, estamos perante um ato de rejeição liminar, que NÃO comportou a apreciação da legalidade das liquidações, como pretende a Requerente.

f)     A ser como é, atenta a referida rejeição liminar, o Tribunal arbitral é materialmente incompetente para apreciar a decisão que considerou intempestivo o pedido de revisão oficiosa apresentado, bem como, e em consequência a legalidade dos atos tributários de autoliquidação de Imposto do Selo relativos ao período compreendido entre maio a setembro de 2020, pois que, quanto a estas autoliquidações considera-se precludido o direito da sua contestação na presente ação arbitral, pois foi rejeitada a apreciação da legalidade daqueles atos tributários de liquidação postos em crise com fundamento em intempestividade.

g)    Pelo que, não se pode deixar de considerar que, uma vez que foi rejeitada a apreciação da legalidade dos atos tributários de liquidação de IS, estamos perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do ato de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT.

h)    E assim o sendo, consequentemente, também não o poderá ser por via arbitral, meio de resolução de litígios alternativo àquele.

 

DA INIDONEIDADE DO MEIO PROCESSUAL

a)     Por uma questão e economicidade processual escusamo-nos a repetir o anteriormente referido quanto ao meio próprio de que dispunha a Requerente para reagir à decisão de rejeição liminar que recaiu sobre o pedido de revisão oficiosa apresentados – ação administrativa.

b)    Mais uma vez se reafirma, que o meio judicial adequado para contestar aquelas decisões era, não o presente ppa, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT – disposição legal que legitima a impugnação de atos de liquidação e subsequentes indeferimentos sobre os meios de reação administrativa eventualmente acionados sobre eles – mas antes a ação administrativa, a que se referem os artigos 50.º e 58.º do CPTA, conforme constava expressamente d notificação da decisão da revisão oficiosa remetida à Requerente.

c)     Efetivamente, a ação administrativa é o meio contencioso adequado para contestar os atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade de atos de liquidação, de acordo com o disposto com a alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, o que é o caso da decisão de rejeição liminar proferida em sede de revisão oficiosa.

d)    Do anteriormente exposto resulta que, o presente meio não consubstancia o meio processual adequado com vista à apreciação da legalidade do ato de Rejeição Liminar do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, verificando-se impropriedade do meio processual utilizado.

e)     Ora, a impropriedade do meio processual consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 577.º e 278.º/1 ambos do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT.

 

POR IMPUGNAÇÃO

a)     Ainda que por absurdo se entenda que o pedido de pronúncia arbitral constitui o meio processual adequado face ao objeto da ação e que o Tribunal Arbitral é competente para dele conhecer, sempre se dirá que, ainda assim, não estão reunidos os pressupostos para obter uma decisão de mérito, como de imediato se passará a demonstrar.

b)    Como se sabe, estão excluídas da jurisdição do CAAD as pretensões relativas à ilegalidade de autoliquidações que não tenham sido precedidas de recurso à via administrativa [artigo 2.º/1-a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de março].

c)     Pese embora parte da doutrina equipare o procedimento de revisão oficiosa ao procedimento de Reclamação Graciosa, para efeitos de verificação do cumprimento do ónus de reclamação necessária previsto no artigo 131.º do CPPT.

d)    Tal doutrina pressupõe que no procedimento de revisão oficiosa a AT se tenha pronunciado quanto à legalidade da autoliquidação. O que não se verificou no caso concreto, porquanto o predito pedido de revisão foi liminarmente rejeitado com fundamento na sua intempestividade.

e)     Não se podendo considerar dessa forma cumprido o ónus de reclamação prévia necessária.

f)     Repare-se que este caso não é diferente do caso de um sujeito passivo que deduza reclamação graciosa contra autoliquidação e tal reclamação graciosa seja indeferida liminarmente por incompetência ou extemporaneidade. Nessa situação, não há qualquer dúvida de que o sujeito passivo apenas poderá impugnar aquela autoliquidação depois de discutir, em sede de ação administrativa, a verificação em concreto dos pressupostos da reclamação graciosa, designadamente de que o serviço era competente para decidi-la ou que a mesma era tempestiva.

g)    Ora, o mesmo se verifica no presente caso, em que o pedido de revisão oficiosa foi liminarmente indeferido, não tendo o CAAD competência para analisar da legalidade dos fundamentos invocados pela AT na decisão de indeferimento liminar.

h)    No caso dos presentes autos, tal como no exemplo da reclamação graciosa intempestiva, não se tem por verificado o ónus de reclamação necessária, o que torna os atos de autoliquidação em dissidio inimpugnáveis, retirando-os outrossim do âmbito de competências do Tribunal Arbitral, por via do artigo 2.º/1-a) da Portaria 112-A/2011, de 22 de março.

i)      De resto, não é despiciendo notar que o pedido de revisão oficiosa em apreço foi apresentado muito depois do prazo de dois anos previsto para a reclamação administrativa.

j)      Ou seja, à data da apresentação do pedido de revisão oficiosa - apresentado em 15-01-2024 – há muito, que se encontravam consolidadas na ordem jurídica as autoliquidações em apreço, não mais sendo passível a sua discussão na presente instância, sob pena de fraude à lei, pois ‘tempus regit actum’.

 

 III.         SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vide artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

 IV.         FUNDAMENTAÇÃO

IV.1.     Matéria de facto

 

Factos dados como provados

Considera-se como provada a seguinte matéria de facto:

a)     A Requerente é uma sociedade pertencente ao Grupo C... a, S.A., dedicada à atividade de gestão, administração e comercialização de fundos de investimento, no âmbito da qual faz uso de intermediários financeiros para comercializar as respetivas unidades de participação junto dos seus clientes (investidores).

b)    Atualmente, a Requerente designa-se por «A..., S.A. S.G.I.I.C.», designação que foi alterada recentemente por motivos de identidade de marca, assim substituindo a anterior designação «B..., S.G.I.I., S.A».

c)     Sendo uma sociedade constituída ao abrigo da legislação espanhola, a Requerente assume a forma jurídica de «Sociedad Gestora de Instituciones de Inversion Colectiva», o equivalente em Portugal à «Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo», tendo como atividade principal a gestão, administração e comercialização de «Instituciones de Inversion Colectiva», o equivalente em Portugal aos Organismos de Investimento Coletivo.

d)    A atividade desenvolvida pela Requerente é supervisionada pela «Comisión Nacional del Mercado de Valores» e encontra-se regulada pelo «Reglamento de Instituciones de Inversión Colectiva», concretamente pelo «Real Decreto 1082/2012, de 13 de julio, por el que se aprueba el Reglamento de desarrollo de la Ley 35/2003, de 4 de noviembre, de instituciones de inversión colectiva» (doravante, “Real Decreto 1082/2012), aí se prevendo as funções da sociedade gestora, bem como a forma como esta atividade deve ser remunerada.

e)     A este respeito, o artigo 94.º, n.º 2, alínea b) do Real Decreto 1082/2012 estabelece o conjunto de funções que a sociedade gestora está autorizada a desenvolver, das quais se destaca a comercialização das unidades de participação, função essa que, nos termos do artigo 95.º, n.º 2 do mesmo Diploma, pode ser realizada de forma indireta, através de agentes ou representantes.

f)     Note-se que, no caso da Requerente, a função de comercialização das unidades de participação é assegurada de forma indireta, na medida em que esta recorre à colaboração de intermediários financeiros.

g)    Nesse contexto, a Requerente decidiu recorrer ao D..., S.A. – Sucursal em Portugal (doravante, “D...”), enquanto entidade comercializadora das unidades de participação junto de investidores.

h)    A Requerente – à época ainda denominada «B..., SGIIC, S.A.» – e o D... formalizaram a relação supramencionada sob a forma de um contrato de subfornecimento de organismos de investimento coletivo estrangeiros, redigido originalmente em língua espanhola, que se junta, para efeitos de prova, com a respetiva tradução oficial em língua portuguesa (cfr. Documento n.º 5).

i)      Através do contrato celebrado, o D... obrigou-se a comercializar as unidades de participação dos fundos geridos pela Requerente, tendo esta ficado vinculada ao pagamento “como contraprestação económica pela comercialização das ações ou participações objeto do contrato (…) [dos] valores das comissões detalhadas na tabela constante no presente Anexo I” (cfr. página 19 do Documento n.º 5), assim se evidenciando que a única contraprestação prevista no contrato, a cargo da Requerente, tem a natureza de comissão de comercialização e não qualquer outra.

j)      A listagem dos fundos de investimento cobertos pelo contrato acima mencionado, consta do próprio contrato (cfr. página 20 e seguintes do Documento n.º 5).

k)    Assim, no período que mediou entre maio de 2020 e setembro de 2020, o D... cobrou «comissões de comercialização» pelos serviços de comercialização prestados à Requerente, tendo erradamente liquidado IS sobre as mesmas, à taxa de 4%, ao abrigo da verba 17.3.4 da TGIS (cfr. Documentos n.º 6 e n.º 7).

l)      No período a que respeita o presente pedido de pronúncia arbitral, o IS indevidamente liquidado sobre essas «comissões de comercialização» ascendeu a um total de 211.116,98 Euros, conforme detalhado na declaração emitida pelo D...  (cfr. Documento n.º 2) e abaixo reproduzido:

 

Nº das faturas

Comissão de comercialização

IS (4%)

Nº da DMIS

Data de pagamento 

Documento

 

 
   

FT FA.SRV20/15

2.805.097,52

112.203,90

25-05-2020

Documento n.º 6

   

FT FA.SRV20/62

2.472.826,86

98.913,07

21-09-2020

Documento n.º 7

   

Total

5.277.924,38

211.116,98

 

 

 

   

m)   Nesta sequência, por entender que o IS liquidado nos termos da tabela supra não era devido, a Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa em 12-01-2024, como de resto já referido anteriormente, peticionando o reembolso do montante total de 211.116,98 Euros.

n)    Porém, em sede de decisão final, em 04-04-2024, a AT rejeitou o pedido de revisão do ato tributário submetido pela Requerente e identificado com o número de processo ...2024... (cfr. Documento n.º 1), com fundamento em intempestividade do pedido por inexistência de erro imputável aos serviços ou injustiça grave ou notória, para efeitos do artigo 78.º da LGT.

o)    Por considerar infundado tal entendimento, a Requerente recorreu da decisão de indeferimento, para o superior hierárquico, no dia 16-05-2024 (cfr. Documento n.º 4), em cumprimento do prazo previsto no artigo 66.º, n.º 2 do CPPT, ainda hoje sem resposta.

 

Factos dados como não provados

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, e em factos não questionados pelas partes.

 

Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este TAC e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos e a audiência realizada, tendo admitido, ao abrigo da livre condução do processo, todos os documentos pertinentes ao apuramento da verdade material, garantindo o pleno contraditório às partes.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, cfr. n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, cfr. n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo n.º 07148/13[1]“o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

IV. 2. Matéria de Direito

 

 

IV.2.A. Quanto às exceções invocadas

 

a)    Quanto à incompetência material do tribunal arbitral e quanto à inidoneidade do meio processual

No entender da Administração Tributária, existe incompetência material e consequente inidoneidade do meio processual utilizado pelas Requerentes na medida em que o objeto imediato destes autos é uma decisão de rejeição liminar (e não de indeferimento expresso) do pedido de revisão oficiosa. Não podemos concordar.

De facto, a Administração Tributária pronunciou-se expressamente sobre a conformidade do atos tributários – in casu, autoliquidações de imposto –, afirmando expressamente que, na Decisão final de indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa, melhor identificado com n.º ...2024..., a AT pronunciou- se quanto à legalidade do ato de liquidação de Imposto do Selo sobre as comissões de comercialização, conforme demonstrado no PPA, antes de concluir, erradamente, pela inexistência de erro imputável aos serviços e, consequentemente, pela intempestividade.

Assim, da primeira conclusão – inexistência de erro - extraiu a segunda conclusão – a de que teria sido ultrapassado o prazo legal do pedido.

Portanto, em termos lógicos é certo e seguro que a AT não se limitou  rejeitar o pedido do requerente por este ter excedido um prazo.

Significa isto que, continua a Requerente, que a Administração Tributária foi além da apreciação meramente formal dos pressupostos de admissibilidade do pedido de revisão oficiosa, tendo igualmente apreciado a legalidade dos atos tributários na sua origem. 

Ora, como resulta da jurisprudência dos tribunais superiores, sempre que a Administração Tributária, em sede de procedimento tributário, se pronuncie (ainda que parcamente) sobre a legalidade dos atos tributários, independentemente da designação formal que atribua à sua decisão – i.e., ao ato administrativo em matéria tributária por si emitido –, o meio de reação adequado será a impugnação judicial (ou o pedido de pronúncia arbitral) e não a ação administrativa – cfr. a título meramente exemplificativo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de maio de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 01958/13, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de janeiro de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 01412/15, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de dezembro de 2019, proferido no âmbito do processo n.º 0959/12.5BEAVR e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de outubro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 0674/18. 

É, assim, evidente, à luz da jurisprudência dos tribunais superiores, numa situação como a presente – em que foi apreciada em sede de revisão oficiosa, ainda que parcamente, a legalidade dos atos tributários, embora sob a capa de uma decisão de rejeição liminar –, a adequação do pedido de pronúncia arbitral, o que se invoca para os devidos efeitos legais.

Ainda que assim não se entendesse e se considerasse não ter a Autoridade Tributária emitido efetiva pronúncia sobre o mérito dos argumentos das Requerentes – o que se concebe por mera cautela de patrocínio, sem conceder –, resulta da jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Administrativo ser a impugnação judicial (e, por maioria de razão, o pedido de pronúncia arbitral) o meio adequado de reação perante a rejeição liminar de um meio gracioso no qual se peticione a anulação de um ato tributário – neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de novembro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 0608/13.4BEALM e Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo n.º 0129/18.9BEAVR.

Em face do exposto, não pode senão concluir-se pela total improcedência, sem mais delongas, das duas exceções dilatória invocada pela Administração Tributária, atinente à pretensa inadequação do presente meio processual.

 

IV.2.B. Quanto ao Thema Decidendum – Questão da compatibilidade das liquidações de imposto do selo impugnadas com a Diretiva 2008/7/CE[2]

  

No acórdão proferido pelo TJUE, em 22.12.2022, no caso C-656/21, invocado pela Requerente, em conexão com o qual foi suspensa a instância do processo n.º 680/2021-T, estava em causa uma situação muito semelhante à que se encontra em apreciação nos presentes autos.

A Requerente pedia, tal como no presente caso, a anulação de liquidações de Imposto do Selo cobrado por vários bancos a si própria, sobre comissões pagas por si aos referidos bancos, como contrapartida pela comercialização de unidades dos fundos de investimento geridos, no momento da respetiva emissão.

Além disso, a anulação de liquidações de Imposto do Selo cobrado por si própria aos fundos por si administrados, sobre comissões cobradas aos mesmos, mas apenas na parcela dessas comissões referentes à repercussão, sobre os fundos, das comissões pagas aos bancos.

Sobre a primeira questão, disse o TJUE:

“(21) Com as suas duas questões, que devem ser examinadas em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo, por um lado, sobre a remuneração que uma instituição financeira recebe de uma sociedade de gestão de fundos comuns de investimento pela prestação de serviços de comercialização para efeitos de novas entradas de capital destinadas à subscrição de participações de fundos recentemente emitidas e, por outro, sobre os montantes que essa sociedade de gestão recebe dos fundos comuns de investimento na medida em que esses montantes incluam a remuneração que a referida sociedade de gestão pagou às instituições financeiras por esses serviços de comercialização.

(22) A título preliminar, importa recordar que, segundo o seu artigo 1.°, alínea a), a Diretiva 2008/7 regulamenta a aplicação de impostos indiretos sobre as entradas de capital nas sociedades de capitais. Entre esses impostos indiretos figuram o imposto do selo sobre os títulos e os outros impostos indiretos com características idênticas às do imposto do selo sobre os títulos.

(23) O artigo 2.°, n.º 2, da referida diretiva prevê, por outro lado, que qualquer sociedade, associação ou pessoa coletiva com fins lucrativos que não pertença às categorias de sociedades de capitais mencionadas no n.º 1 do mesmo artigo é equiparada a uma sociedade de capitais.

(24) No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que o imposto em causa no processo principal constitui um imposto do selo cobrado sobre a remuneração dos bancos a título dos serviços de comercialização de novas subscrições de participações de fundos comuns de investimento. Daqui resulta igualmente que, em direito português, o conceito de «fundo de investimento» visa uma massa de património, sem personalidade jurídica, que pertence aos participantes segundo o regime geral de comunhão.

(25) Ora, o Tribunal de Justiça já declarou que um agrupamento de pessoas sem personalidade jurídica, cujos membros entram com capitais para um património separado para atingir um fim lucrativo, deve ser considerado uma «associação com fins lucrativos» na aceção do artigo 2.°, n.° 2, da Diretiva 2008/7, pelo que, em aplicação desta última disposição, é equiparado a uma sociedade de capitais para efeitos desta diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 12 de novembro de 1987, Amro Aandelen Fonds, 112/86, EU:C:1987:488, n.° 13).

(26) Decorre destas considerações que fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, devem ser equiparados a sociedades de capitais e, por conseguinte, são abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2008/7.

(27) Feitas estas observações preliminares, há que recordar que o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 proíbe os Estados‑Membros de sujeitarem a qualquer forma de imposto indireto a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, bem como de certificados representativos desses títulos, independentemente de quem os emitiu.

(28) Todavia, tendo em conta o objetivo prosseguido por esta diretiva, o artigo 5.° da mesma deve ser objeto de uma interpretação latu sensu, para evitar que as proibições que prevê sejam privadas de efeito útil. Assim, a proibição da imposição das operações de reunião de capitais aplica‑se igualmente às operações que não estão expressamente referidas nesta proibição, uma vez que essa imposição equivale a tributar uma operação que faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16, EU:C:2017:772, n.os 31 e 32 e jurisprudência referida).

(29) Assim, o Tribunal de Justiça declarou que, uma vez que uma emissão de títulos só tem sentido a partir do momento em que esses mesmos títulos são adquiridos, uma taxa sobre a primeira aquisição de títulos de uma nova emissão tributaria, na realidade, a própria emissão dos títulos, na medida em que ela faz parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais. O objetivo de preservar o efeito útil do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 implica assim que a «emissão», na aceção desta disposição, inclua a primeira aquisição dos títulos efetuada no quadro da sua emissão (v., por analogia, Acórdão de 15 de julho de 2004, Comissão/Bélgica, C‑415/02, EU:C:2004:450, n.os 32 e 33).

(30) Do mesmo modo, o Tribunal de Justiça considerou que a transmissão de titularidade, apenas para efeitos de uma operação de admissão dessas ações na Bolsa e sem consequências sobre a sua propriedade efetiva, deve ser vista apenas como uma operação acessória, integrada nessa operação de admissão, a qual, em conformidade com o artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, não pode ser sujeita a qualquer imposição, seja de que forma for (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16, EU:C:2017:772, n.os 35 e 36).

(31) Ora, uma vez que serviços de comercialização de participações em fundos comuns de investimento, como os que estão em causa no processo principal, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devem ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais.

(32) Com efeito, sob reserva de uma verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, esses fundos estão abrangidos pelo âmbito de aplicação da Diretiva 2009/65, por força do seu artigo 1.°, n.os 1 a 3. A este respeito, o pagamento do preço correspondente às participações adquiridas, único objetivo de uma operação de comercialização, está ligado à substância da reunião de capitais e é, como resulta do artigo 87.° da Diretiva 2009/65, uma condição que deve ser preenchida para que as participações de fundos em causa sejam emitidas.

(33) Daqui resulta que o facto de dar a conhecer junto do público a existência de instrumentos de investimento de modo a promover a subscrição de participações de fundos comuns de investimento constitui uma diligência comercial necessária e que, a esse título, deve ser considerada uma operação acessória, integrada na operação de emissão e de colocação em circulação de participações nos referidos fundos.

(34) Além disso, uma vez que a aplicação do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7 depende da ligação estreita dos serviços de comercialização com essas operações de emissão e de colocação em circulação, é indiferente, para efeitos dessa aplicação, que se tenha optado por confiar essas operações de comercialização a terceiros em vez de as efetuar diretamente.

(35) A este respeito, há que recordar que, por um lado, esta disposição não faz depender a obrigação de os Estados‑Membros isentarem as operações de reunião de capitais de nenhuma condição relativa à qualidade da entidade encarregada de realizar essas operações. Por outro lado, a existência ou não de uma obrigação legal de contratar os serviços de um terceiro não é uma condição pertinente quando se trata de determinar se uma operação deve ser considerada parte integrante de uma operação global do ponto de vista da reunião de capitais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de outubro de 2017, Air Berlin, C‑573/16, EU:C:2017:772, n.° 37).

(36) Daqui resulta que serviços de comercialização como os que estão em causa no processo principal fazem parte integrante de uma operação de reunião de capitais, pelo que o facto de os onerar com um imposto do selo está abrangido pela proibição prevista no artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7.

Em resumo, o Tribunal considera que o Imposto do Selo sobre os títulos (verba 17.3.4 da TGIS) é um imposto indireto enquadrável na al. a) do art.º 1.º da Diretiva 7/2008; que os fundos de investimento são equiparáveis a uma sociedade de capitais para efeitos da mesma; e que os serviços de comercialização das unidades de participação, prestados pelos bancos, apresentam uma ligação estreita com as operações de emissão e de colocação em circulação de partes sociais, na aceção do artigo 5.°, n.° 2, alínea a), da Diretiva 2008/7, devendo ser considerados parte integrante de uma operação global à luz da reunião de capitais.

Em consonância com estas assunções, o Tribunal julga, a final, que o artigo 5.°, n.º 2, alínea a), da Diretiva 7/2008 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo sobre as comissões pagas pela entidade gestora dos fundos de investimento a bancos, pela colocação no mercado das respetivas unidades de participação.

Sendo o caso dos presentes autos totalmente idêntico ao decidido pelo TJUE no caso C-656/21, e não vendo o Tribunal Arbitral qualquer razão para divergir do entendimento do tribunal europeu, também nestes autos se conclui que o Imposto do Selo cobrado pelo banco à Requerente sobre as “comissões de comercialização” é ilegal, por incompatibilidade com o art.º 5.º, n.º 2, al. a) da Diretiva 2008/7.

 

IV. 2. C. Quanto ao reembolso do imposto liquidado e juros indemnizatórios

 

A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.

Relativamente ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, rege o artigo 43.º da LGT, nos termos de cujo número 1 se define que “1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” No presente caso, não foi apresentada impugnação judicial nem reclamação graciosa, mas sim:

a)     A Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa em 12-01-2024, peticionando o reembolso do montante total de 211.116,98 Euros.

b)    Em sede de decisão final, em 04-04-2024, a AT rejeitou o pedido de revisão do ato tributário submetido pela Requerente e identificado com o número de processo ...2024... (cfr. Documento n.º 1), com fundamento em intempestividade do pedido por inexistência de erro imputável aos serviços ou injustiça grave ou notória, para efeitos do artigo 78.º da LGT.

c)     Por considerar infundado tal entendimento, a Requerente recorreu da decisão de indeferimento, para o superior hierárquico, no dia 16-05-2024, em cumprimento do prazo previsto no artigo 66.º, n.º 2 do CPPT, ainda hoje sem resposta.

 

Ora, a revisão oficiosa dos atos tributários é um instituto distinto do da reclamação graciosa e do da impugnação judicial, não podendo, pois, o presente caso, ser integrado no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas sim, na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, nos termos da qual são devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”. In casu, não chegou a decorrer o ano previsto na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT como condição para o pagamento de juros indemnizatórios em caso de revisão oficiosa, pelo que se indefere o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

   V.         DECISÃO

 

Em face do supra exposto, o Tribunal Arbitral decide:

a)    Julgar totalmente procedente o presente pedido arbitral, com as legais consequências;

b)    Condenar a Requerida ao pagamento das custas.

 

 VI.         VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 211.116,98, nos termos do disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

VII.         CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 4.284,00, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 27 de maio de 2025

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

(Guilherme W. d’Oliveira Martins)

 


(Marisa Isabel Almeida Araújo)

 

 

(António de Barros Lima Guerreiro)
 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

 

Em minha opinião, a    Decisão  Arbitral, ao invalidar o ato impugnado alegando fundamento que o próprio  autor desse ato, ao qual indevidamente ela  se substituiu,   não invocou, no caso,   uma errada  interpretação da verba 17.3.4. da Tabela Geral do  Imposto de Selo,  que colidiria com a Diretiva nº 7/2008/CEE, do Conselho,  e ao não apreciar o fundamento do ato impugnado  que ao Tribunal Arbitral  caberia apreciar, ou seja, a intempestividade do pedido de revisão  do ato de liquidação, por ultrapassado o prazo de reclamação da autoliquidação, previsto no nº 1 do art. 131º do CPPT, viola nitidamente a alínea c) do nº 1 do art. 29º do RJAT. Essa violação ocorre quer por excesso de pronúncia, quer por omissão de pronúncia.

O acórdão do TJUE  no proc. C-656/21, consideraria o nº 2 do art.  5º dessa Diretiva de acordo com o  qual os  Estados-Membros não devem sujeitar a qualquer forma de imposto indireto a criação, emissão, admissão à cotação em bolsa, colocação em circulação ou negociação de ações, de partes sociais ou de outros títulos da mesma natureza, dever ser objeto de uma interpretação extensiva de acordo com a qual essa norma  se opõe a uma legislação nacional que prevê a incidência de um imposto do selo sobre as comissões pagas pela entidade gestora dos fundos de investimento a bancos, pela colocação no mercado das respetivas unidades de participação. Em consequência, a verba 17.3.4. da Tabela Geral , que recai sobre as comissões ou outras contraprestações por serviços financeiros, á luz dessa jurisprudência,  deveria ser interpretada restritivamente no sentido de não abranger os impostos indiretos abrangidos por esse nº 2 do art. 5º 

Essa jurisprudência não é contestada pela  Requerida, como resulta de uma leitura atenta dos fundamentos do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, o ato impugnado,  constante da Informação 96-ISCPS1/2024, em que esse indeferimento se  baseou. A interpretação extensiva do nº 2 do art- 5º da Diretiva 7/2008/CEE e consequente interpretação restritiva da verba 17.3.4. da Tabela Geral não são em momento algum questionadas nessa Informação. 

O erro que justifica  a anulação dos atos impugnados, caso estiverem reunidos os respetivos pressupostos processuais, não é, assim , uma erro do legislador nacional , resultante de uma incorreta transposição da Diretiva 7/20087CEE  mas de interpretação e aplicação da lei do direito comunitário e nacional da parte do substituto tributário.

Tal erro  foi , não da administração fiscal, mas da Requerente e  das entidades em que delegou a função de comercialização dos organismos de investimento coletivo (OICs), . Essas entidades , que direta ou  indiretamente repercutiram o encargo do imposto nos titulares das unidades de participação nesses OICs, que direta ou indiretamente representam, liquidaram indevidamente o  imposto de selo repercutido .

O imposto de selo, como esclarece o acórdão do STA de 5/2/2014, proc. nº 0895, é um imposto de autoliquidação, já que a liquidação do imposto é efetuada pelo próprio sujeito passivo, em declaração apresentada aos serviços da administração fiscal  e não de mero registo contabilístico.  Tal autoliquidação pode ser reclamada ou impugnada não apenas pelo sujeito passivo, como , nos termos da alínea a) do nº 4 do art. 18º da LGT , pelos titulares das unidades de participação representados pela sociedade gestora dos OICs.

O fundamento do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, como evidencia a documentação junta aos autos, foi apenas a sua extemporaneidade, dado à pretensão da Requerente não ser aplicável o prazo de 4 anos previsto no nº 1 do art. 78º da LGT, mas o prazo de  dois anos do nº 1 do art. 131º do CPPT, que se permitiu ultrapassar.

Com efeito, as autoliquidações impugnadas datam de 5/5/2020 e  21/9/2020 não tendo a Requerente reclamado graciosamente no prazo de dois anos referidos no nº 1 do art. 131º do  CPPT, condição da impugnação judicial com esse fundamento, tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado apenas a 15/1/2024 .

Por outro lado, o nº 2 do art. 78º da LGT que, sem prejuízo do ónus legal de reclamação ou impugnação equiparava a erro imputável aos serviços o erro na autoliquidação, foi expressamente revogado pelo nº 1 do art. 215º da Lei nº 7-A/2026, de 30/3(OE 2016).

A partir da entrada em vigor dessa Lei, a revisão da autoliquidação apenas passou a ser possível no prazo de dois anos previsto nesse nº 1 do art. 131º ,

O acórdão do STA de 2/10/2024, proc. 01917/21.4BELRS, consideraria, a meu corretamente  , que a circunstância de a administração tributária poder rever e corrigir o ato de autoliquidação apresentado pelo contribuinte no prazo de quatro anos, sem que tal dependa de um qualquer “erro imputável aos serviços”, quando o contribuinte apenas o pode fazer dentro desse prazo em caso de “erro imputável aos serviços”,  não colidir com os princípios constitucionais  da legalidade, da igualdade, da justiça e da a proporcionalidade, bem como do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.

Ao admitir que as autoliquidações possam ser impugnadas no prazo de quatro anos, ainda que se não verifique a condição de erro imputável aos serviços,  a doutrina desta Decisão Arbitral transforma, assim,  a revogação do nº 2 do art. 78º da   LGT num exercício platónico e fútil. Ignora pura e simplesmente a revogação do nº 2 do art. 78º da LGT operada pela Lei nº 7-A/2016, continuando  a aplicar a norma revogada que teria sobrevivido à sua expressa eliminação 

Sendo o erro do substituto tributário, não pode ser imputado aos serviços, que apenas lhes poderia ser eventualmente  assacado caso a rejeição do pedido de revisão oficiosa , momento a partir do qual tiveram intervenção no processo. tivesse outros fundamentos que não a extemporaneidade. 

Sucede, no entanto, que, nos anos de 2021, 2022 e 2023 a Requerente se desinteressou, ainda que temporariamente, de acionar os meios legais de que dispunha para obter a revisão dos atos tributários. Estão em causa, não qualquer violação do nº 2 do art. 5º da Diretiva nº 7/2008/CEE, mas as consequências dessa inércia.

Com efeito, não havia qualquer obstáculo constitucional ou legal para que a Requerente exercesse o direito de reclamação no prazo normal do nº 1 do art. 131º do  CPPT. O princípio do efeito direto das diretivas pode, com efeito, ser invocado não só perante os tribunais nacionais como perante toda a administração pública nacional que está obrigada, não apenas a aplicar as normas do direito da EU como a utilizá-las como padrão de interpretação do direito nacional( nº 31 do acórdão do  TJUE nº 103/88), independentemente da posição que o autor da decisão definitiva ocupe na cadeia hierárquica do Estado ou demais entes públicos.

A contrariedade da norma de direito interno com diretivas comunitárias, nos casos em que estas tiverem efeito direto, implica apenas a desaplicação da norma de direito interno incompatível (sanção da ineficácia) e não qualquer juízo sobre a sua constitucionalidade ou legalidade que impeça a sua  aplicação( ver o acórdão do TC nº 198/2023 e jurisprudência aí referida, que   exclui expressamente dessa desaplicação o controlo do TC ).

Como refere a fundamentação da decisão impugnada, aliás, a administração  fiscal  nunca se pronunciou através de circulares ou outras orientações administrativas, bem como de informações vinculativas, sobre a legalidade da interpretação do imposto de selo da verba 17.3.4. da Tabela Geral seguida pela Requerente, pela qual é integralmente responsável o sujeito passivo do imposto, enquanto entidade responsável pela sua liquidação e cobrança.

Assim , a presente Decisão Arbitral , cujas referências  legais, doutrinárias e jurisprudenciais estão manifestamente ultrapassadas, limita-se a reconhecer o que hoje é óbvio para as partes, o efeito direto do nº 2 do art. 5º da Diretiva nº 7/2008 /CEE, mas  não responde à exceção da extemporaneidade, a meu ver manifesta.

 

 

(António Lima Guerreiro) 

 

 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.