SUMÁRIO:
1. O valor atribuído aos sócios, pessoas singulares, em resultado da partilha do património societário, que não deva ser qualificado como rendimento empresarial e profissional, de capitais ou prediais, constitui ganho sujeito a mais-valias, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b) – 3, do Código do IRS, calculado pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais e considera-se obtido no momento da partilha (n.º 4, alínea a) e n.º 3, do artigo 10.º, do Código do IRS, respetivamente).
2. Nem a norma de incidência (artigo 10.º, do Código do IRS), nem a norma de determinação da matéria tributável (artigo 48.º, do Código do IRS) legitimam que, no apuramento do ganho sujeito a mais-valias, seja deduzido ao valor histórico de aquisição o valor de qualquer eventual compensação recebida pelos sócios, por redução do capital social.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, José Poças Falcão (árbitro presidente), Mariana Vargas e Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Coletivo constituído em 4 de fevereiro de 2025, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., com o NIF ... e domicílio fiscal na ... n.º ..., ..., ...-... Porto, e B..., com o NIF ... e domicílio fiscal na Rua ..., n.º...–..., ...-... Porto, (doravante designadas conjuntamente por Requerentes e individualmente por primeira Requerente e segunda Requerente), vêm, em coligação, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1 e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), não tendo utilizado a faculdade de designar árbitro.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mº Senhor Presidente do CAAD em 28 de novembro de 2024 e automaticamente notificado à AT, e, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das Partes.
A. Objeto do pedido:
As Requerentes pretendem a declaração de ilegalidade e a consequente anulação das liquidações adicionais de IRS referentes ao ano de 2020, consubstanciadas, quanto à primeira Requerente, na nota de “Acerto de Contas” n.º 2024..., de que resultou o valor a pagar da quantia de € 379 719,76, até 31.08.2024 e, quanto à segunda Requerente, na nota de “Acerto de Contas” n.º 2024..., no valor de 379 469,47, com data limite de pagamento em 31.08.2024
Mais peticionam as Requerentes a condenação da Requerida no reembolso das quantias pagas, acrescidas de juros indemnizatórios a contabilizar desde a data do pagamento indevido, até ao processamento das correspondentes notas de crédito.
Síntese da posição das Partes
a) Das Requerentes:
· As Requerentes, conjuntamente com os seus outros irmãos, constituíram, em 1998, uma sociedade anónima, para a qual contribuíram com entradas em espécie e em dinheiro, perfazendo cada uma o valor global de 360 000 000$00 (€ 1 795 672,43);
· A cada uma das Impugnantes coube inicialmente 240 000 ações ordinárias, correspondendo a um valor unitário de aquisição de € 7,4819 por ação, tendo o capital social da sociedade ficado distribuído por um total 1 200 000 ações ordinárias com o valor nominal unitário de 1 000$00 (€ 5,00);
· O capital social da sociedade viria a ser reduzido em 2012, para um valor nominal unitário de € 0,40 por ação, assim se mantendo até à data da sua extinção em 2020, sem que as respetivas ações tivessem alguma vez estado cotadas em mercado regulamentado ou na bolsa de valores;
· Para além das ações inicialmente subscritas, cada uma das Requerentes adquiriu em 2001, em 2002 e em 2004, novos lotes de ações da mesma sociedade, passando cada uma a deter 275 000 ações;
· Ambas as Requerentes transmitiram a terceiros, em 2012, parte das ações que então detinham e que, por força do disposto no art. 43.º, n.º 8, alínea d), do CIRS, que acolhe a regra “First-In-First-Out” (critério FIFO), devem ser imputadas nas ações adquiridas originariamente, aquando da constituição da sociedade;
· Em 2020, a assembleia geral da sociedade deliberou, por unanimidade, proceder à sua dissolução seguida de partilha imediata do ativo social e consequente extinção da sociedade, tendo na partilha dos haveres sociais sido atribuído a cada uma das Requerentes o valor equivalente à sua quota-parte, uma parte em dinheiro e outra, em bens e direitos em espécie;
· À data da dissolução da sociedade, cada uma das Requerentes detinha 247 500 ações, sendo:
o — 212.500 ações adquiridas originariamente na constituição da sociedade;
o — 20.000 ações adquiridas em 2001 por compra-e-venda;
o — 10.000 ações adquiridas em 2002 por compra-e-venda;
o — 5.000 ações adquiridas em 2004 por compra-e-venda.
· No anexo G às declarações modelo 3 de IRS para o ano de 2020, cada uma das Requerentes declarou quer os valores unitários de realização, quer os valores unitários de aquisição das ações em cada um dos anos já mencionados;
· Ambas as Requerentes foram posteriormente notificadas da abertura de procedimentos inspetivos pela Unidade dos Grandes Contribuintes, no âmbito do qual terão sido apurados valores de aquisição das referidas ações diferentes dos declarados, face às sucessivas alterações na estrutura do capital social da sociedade;
· Instadas pela AT, ambas as Requerentes apresentaram declarações de substituição, em cujos anexos G inscreveram os valores constantes das notificações emitidas;
· Nesta sequência, a AT remeteu às Impugnantes Demonstrações de Acerto de Contas, que incluíam as correspondentes notas de cobrança, nos montantes de € 379 719,76 e de € 379 469,47, respetivamente, com data limite de pagamento em 31 de agosto de 2024;
· Em 2 de setembro de 2024 a AT procedeu, de forma automática, ao débito direto dos valores correspondentes, nas contas bancárias da titularidade de cada uma das Requerentes;
· As liquidações adicionais de IRS emitidas em nome das Requerentes, por referência aos rendimentos do ano de 2020, padecem de várias ilegalidades;
· Desde logo, as Requerentes não foram notificadas previamente da instauração de qualquer procedimento inspetivo conducente às correções a que foram intimadas através dos ofícios em que a AT indicou os valores a corrigir;
· Tal omissão consubstancia preterição de formalidade essencial prescrita na lei, impeditiva de que as Impugnantes pudessem participar na fase instrutória desses procedimentos inspetivos, assim como inviabilizou que durante a fase de instrução procedimental pudessem de motu proprio carrear para os autos os elementos probatórios que considerassem pertinentes ou úteis à descoberta da verdade material;
· Ficando, assim, igualmente prejudicado o princípio da participação dos interessados na formação das decisões administrativas que lhes digam respeito, princípio estruturante do direito administrativo português, expressamente recebido pelo artigo 267.º, n.º 5, da CRP;
· As Impugnantes foram totalmente colhidas de surpresa com o envio de duas notificações através das quais a AT as informou de que tinha detetado valores “indevidamente declarados” no quadro 9 do Anexo G das declarações fiscais apresentadas e foram admoestadas a proceder, no prazo de 15 dias, à retificação dos elementos constantes das declarações de rendimentos por si apresentadas para o ano de 2020 mediante a apresentação de declarações de substituição;
· Através das referidas notificações, a AT procedeu à comunicação das decisões finais e definitivas que tinha formado acerca da situação jurídico-fiscal das Impugnantes relativa a um concreto facto tributário ocorrido no ano de 2020, sem que, alguma vez tivessem sido ouvidas acerca da intenção de proferir tais decisões nem do objeto sobre que incidiram, nem tão-pouco admitidas a participar no procedimento relativo à formação dessas mesmas decisões;
· As sobreditas notificações/intimações foram dirigidas às Requerentes pela Divisão de Pessoas Singulares da Unidade dos Grandes Contribuintes (DPS-UGC) da AT;
· Porém, nos termos do artigo 16.º, do RCPITA, a Unidade dos Grandes Contribuintes e qualquer uma suas divisões e demais subunidades, apenas é competente para a instauração de procedimentos inspetivos e, de um modo geral, de quaisquer procedimentos tributários que visem apenas contribuintes integrados no cadastro dos grandes contribuintes, o que não é o caso nem da sociedade, nem das Requerentes, que nunca estiveram integradas no cadastro dos grandes contribuintes ou sujeitas ao acompanhamento por parte da Unidade dos Grandes Contribuintes;
· Ora, inexiste qualquer norma atributiva de competência que consentisse a qualquer órgão ou agente da Unidade dos Grandes Contribuintes, por intermédio de alguma das suas divisões ou subunidades, instaurar procedimentos inspetivos dirigidos quer a qualquer uma das Impugnantes, quer à sociedade C..., precisamente por não estarem qualificados como “grandes contribuintes,” nem nunca terem sido integrados no correspondente cadastro especial;
· Daí que toda a atuação da DPS-UGC, no âmbito dos procedimentos inspetivos que motivaram a entrega de declarações de substituição e as consequentes liquidações adicionais de IRS que se impugnam, esteja ferida de vício de incompetência, pois foi na sequência da instauração daquelas ações inspetivas, e em consequência do que as referidas notificações expressamente intimaram às Impugnantes, que estas procederam à entrega das declarações de substituição;
· Destarte, o vício de incompetência das referidas notificações, projeta-se, por via do princípio da impugnação unitária, na invalidade destes atos de liquidação, que deverão ser, assim, anulados;
· Mas os atos de liquidação impugnados padecem ainda de ilegalidade decorrente de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito;
· Em 17 de novembro de 2020 cada uma das Impugnantes procedeu à alienação onerosa (por efeito da dissolução, liquidação e partilha da sociedade emitente) das 247 500 ações que cada uma delas detinha no capital da sociedade;
· As referidas 247 500 ações alienadas por cada uma das Impugnantes foram adquiridas nos seguintes quatro momentos:
o — 212 500 ações foram adquiridas originariamente aquando da constituição da sociedade;
o — 20.000 foram adquiridas por compra a um irmão em 31 de maio de 2001;
o — 10.000 foram adquiridas por compra a um irmão em 30 de setembro de 2002;
o — 5.000 foram adquiridas por compra a um irmão em 15 de setembro de 2004;
· O valor unitário de € 29,36677721 por cada ação foi declarado nas declarações modelo 3 de IRS do ano de 2020, entregues por cada uma das Requerentes e não foi colocado em causa pela AT;
· Como valor de aquisição das 212 500 ações iniciais, cada uma das Impugnantes declarou o valor de € 7,4819 por ação, correspondente ao valor unitário por ação das entradas que realizaram aquando da constituição da sociedade;
· Como valor de aquisição das restantes 35 000 ações, adquiridas por compra entre 2001 e 2004, através de contratos verbais, cada uma das Impugnantes declarou o valor de € 5,00 correspondente ao valor nominal dessas ações à data das correspondentes transações aquisitivas;
· Relativamente às ações adquiridas originariamente aquando da constituição da sociedade em 1998 (212 500 ações adquiridas por cada Impugnante) a DPS-UGC intimou a que declarassem, como valor de aquisição, o valor unitário de € 0,3819, com o argumento de que, tendo-se realizado em 2012 uma redução do capital social mediante entrega aos acionistas de um montante correspondente a € 7,10 por cada ação detida, esse montante deveria ser considerado negativamente no valor de aquisição dessas mesmas ações;
· Em relação às ações adquiridas por compra entre 2001 e 2004 (35 000 ações adquiridas por cada Impugnante) a DPS-UGC intimou a que declarassem, como valor de aquisição, o valor unitário de € 0,40, com o pretexto de que era esse o valor nominal das ações à data da sua alienação (isto é, à data da liquidação e partilha da sociedade);
· No entanto, nas notificações enviadas às Requerentes, a própria AT reconhece que a sociedade foi constituída em 1998 e que cada uma das Requerentes subscreveu 240 000 ações, pelo valor unitário de 7,4819 €, tal como estas indicaram nas primeiras declarações apresentadas;
· A AT pretende, contudo, que ao custo de aquisição documentalmente comprovado dessas ações sejam deduzidos os montantes que foram distribuídos às Impugnantes em resultado de uma operação de redução do capital social realizada em 2012 — isto é, cerca de 15 anos depois da constituição da sociedade e da data da aquisição dessas ações;
· Pretende ainda a AT que o custo de aquisição das ações adquiridas por compra entre 2001 e 2004 seja determinado por referência valor nominal dessas ações vigente à data da sua alienação, e não aquele vigente à data em que foram adquiridas;
· Ora, o custo documentalmente provado da aquisição das ações em causa nos presentes autos é aquele que se encontra vertido na escritura pública de constituição da sociedade, determinando o artigo 48.º, alínea b), do CIRS, que o custo documentalmente provado da aquisição de partes sociais deve ser o custo verificado à data dessa aquisição e comprovado através de documento contemporâneo e coevo dessa mesma aquisição;
· O artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, prevê expressamente que, no apuramento das mais-valias sujeitas a IRC, ao valor de aquisição das participações sociais deve ser deduzido, até à sua concorrência, o montante que tiver sido entregue aos sócios em resultado de operações de redução do capital social, o que não tem paralelo no Código do IRS, nem pode ser aplicado analogicamente na tributação das pessoas singulares, porquanto expressamente proibido pelo artigo 11.º, n.º 4, da LGT;
· Como bem anteviu o legislador do Código do IRC, as entradas sociais realizadas pelos sócios não têm necessariamente como destino a formação do capital social, podendo, no caso específico das sociedades anónimas, destinar-se a cobrir prémios de emissão das ações, que não são incorporados no capital social, nem fazem parte deste;
· Como aliás aconteceu no caso vertente, em que, na constituição da sociedade .as Requerentes realizaram entradas em espécie e dinheiro avaliados por um total de 360 000000$00 (€ 1 795 672,43), mas receberam em troca 240 000 ações com um valor nominal unitário de 1 000$00 (€ 4,99), não havendo, portanto, uma correspondência entre o custo da aquisição originária das ações e a fração do capital social representado pelas ações assim adquiridas;
· Embora numa leitura apressada e pouco rigorosa possa parecer que, na redução do capital social mediante entrega direta de fundos sociais aos sócios, estes estariam a ser reembolsados do investimento inicial que realizaram para a aquisição das correspondentes participações sociais, na realidade não é isso que sucede;
· De acordo com o Código das Sociedades Comerciais, só é possível realizar uma operação de redução do capital social quando a sociedade tenha já disponíveis reservas sociais, pois nas operações de redução do capital social aquilo que na realidade se está a libertar da cifra do capital social não são as entradas realizadas pelos sócios, mas sim as reservas sociais entretanto geradas pela atividade da sociedade;
· Ou seja, não se está a “reembolsar” o “investimento” inicial que os sócios realizaram aquando da constituição da sociedade: está-se sim a distribuir parte do excedente líquido entretanto gerado pela atividade societária; está-se, portanto, a distribuir lucros ou resultados transitados;
· É, assim, totalmente equivocada a conclusão, perfilhada pela AT nas ações inspetivas que estão na base das liquidações impugnadas, de que os montantes atribuídos aos sócios nas operações de redução do capital social de uma sociedade corresponderiam a uma espécie reembolso ou restituição das entradas por eles realizadas aquando da constituição dessa mesma sociedade e que, nessa medida, teriam de ser deduzidos ao valor de aquisição das correspondentes participações sociais;
· Quanto ao valor de aquisição das 35 000 ações que cada uma das Requerentes adquiriu por contratos verbais de compra e venda em 31 de maio de 2001 (20 000 ações), em 30 de setembro de 2002 (10 000 ações) e em 15 de setembro de 2004 (5 000 ações), todas com o valor nominal unitário de € 5,00, deve ser este o valor a considerar na respetiva aquisição, nos termos do artigo 48.º, alínea b) – in fine, do Código do IRS, dada a inexistência de prova documental do preço de transmissão ajustado entre as partes nos diversos contratos que celebraram;
· Entende a AT, porém, mas sem razão, que a referência ao valor nominal constante do referido preceito legal diz respeito ao valor nominal das ações à data da sua alienação e não ao valor nominal que vigorava na data em que foram adquiridas;
· O que releva é o valor de aquisição à data em que a mesma ocorreu, e não à data da realização, pois, de outro modo, não se compreenderia a aplicação dos coeficientes de correção monetária, prevista no artigo 50.º, n.º 1, do CIRS, também em relação às ações não cotadas quando não houvesse prova documental do custo da sua aquisição;
· Por outro lado, o artigo 50.º, n.º 2, do CIRS prevê também que “a data da aquisição é a que constar do título aquisitivo”, o que sempre indicia que a referência ao valor nominal na alínea b) do artigo 48.º se reportará, também ela, à data correspondente ao título aquisitivo e não à data da alienação;
· As liquidações impugnadas padecem ainda de erro nos seus pressupostos de facto, quanto ao número de ações subscritas por cada uma das Impugnantes nos anos de 2002 e de 2004;
· Ao tomarem como base como base factual uma realidade inexistente, os atos de liquidação impugnados estão feridos de vício de violação de lei decorrente de erro nos pressupostos de facto, sendo ilegais e anuláveis;
· A ilegalidade dos atos de liquidação de IRS impugnados nos presentes autos, terá por efeito a ilegalidade consequente das liquidações de juros compensatórios, obrigação acessória da obrigação de imposto;
· Porém, as liquidações de juros compensatórios correspondentes àqueles atos padecem de vício próprio que geram a sua ilegalidade autónoma e independente da ilegalidade das liquidações de imposto, uma vez que a AT não alega nem demonstra em sede de os factos suscetíveis de preencherem o requisito de culpa de que dependem tais liquidações, nos termos do n.º 1 do artigo 35.º, da LGT.
b. Da Requerida:
Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, em 9 de março de 2025 a AT apresentou resposta e remeteu o processo administrativo instrutor, defendendo a manutenção das liquidações impugnadas, com os seguintes fundamentos:
· Quanto à factualidade que considera relevante, aduz a Requerida que os procedimentos inspetivos abertos em nome das Requerentes o foram na sequência de um outro procedimento aberto a outro acionista da mesma sociedade, integrado no cadastro dos grandes contribuintes, para controlo dos valores declarados a título de mais-valias mobiliárias e que, tendo-se concluído que os valores de aquisição declarados não eram os corretos, foram aquelas notificadas para, querendo, regularizarem a situação mediante entrega de declarações de substituição;
· As liquidações de IRS do ano de 2020 impugnadas nos autos não resultaram de nenhum ato ou correção cometido ou praticado pela UGC (DPS) em sede de procedimento inspetivo, com ou sem competência, como aduzem as Requerentes, mas sim das declarações de substituição por estas entregues de forma voluntária, não carecendo de audição prévia, nem de notificação prévia do procedimento de inspeção, conforme previsto na a) do nº 1 do artigo 50.º do RCPITA;
· Não se verifica, assim, qualquer ilegalidade procedimental ou vício de incompetência da UGC (DPS);
· Quanto ao alegado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, entende a Requerida que o mesmo se não verifica, designadamente quanto ao valor de aquisição das ações da sociedade dissolvida;
· Com efeito, a sociedade foi constituída em 1998, tendo nessa data, cada uma das Requerentes subscrito 240 000 ações, pelo valor unitário de € 7,4819;
· Posteriormente, entre 2001 e 2004 adquiriram ambas mais 35 000 ações, declaradas como tendo por valor de aquisição o seu valor nominal (€ 5,00 cada), passando cada uma das Requerentes a ser titular de 275 000 ações;
· Em 2012-11-02, ambas as Requerentes alienaram 27 500 ações, pelo que, à data da partilha da sociedade, era cada uma, titular de 247 500 ações, das quais 212 500 subscritas em 1998, pelo valor unitário de € 7,4819 e 20 000, 5 000 e 10 000 ações adquiridas em 2001, 2002 e 2004, respetivamente, pelo valor unitário de € 5,00.
· No entanto, entre 1998 e 2012, ocorreram as seguintes alterações na estrutura do capital social:
o Em 2012-05-21 foi aprovado um aumento do capital social, no montante de € 3 000 000,00, por incorporação de prémios de emissão (€ 2 992 787,38) e por incorporação de Reserva legal (€ 7 212,62), pelo que o capital social passou de € 6 000 000,00, para € 9 000 000,00 e o valor nominal da ação passou de € 5,00 para € 7,50;
o Em 2012-10-24 foi aprovada uma redução do capital social no valor de € 8 520 000,00 passando de € 9 000 000,00 para € 480 000,00, através da redução do valor nominal das ações, o qual passou de € 7,50 para € 0,40, tendo como finalidade "a libertação de excesso de capital", conforme ata n.º 25 da Assembleia Geral;
o No âmbito da operação de redução de capital, cada Requerente teve direito a receber o montante de € 1 952 500,00, pago em 2012-11-12 e que corresponde ao valor de € 7,10 multiplicado pelo número de ações de que era titular à data da redução (275 000 ações * € 7,10).
· Uma vez que na categoria G do IRS, cabe a declaração de rendimentos irregulares e ganhos fortuitos, razão pela qual o CIRS prevê que o valor de aquisição corresponda ao custo documental que se comprova à data da transmissão/partilha do ativo;
· Encontrando-se documentalmente provado, que, do preço de subscrição e do preço de compra das ações, inicialmente suportados, que constava em seu poder, à data da partilha, já havia sido recebido, via redução de capital, uma parte substancial desse custo inicial, esse valor anteriormente recebido, não pode continuar a configurar, a final, como um custo dessas ações, para efeitos da alínea b) do artigo 48.º do CIRS, à data da partilha da sociedade;
· Donde, no aferir do custo das correspondentes partes sociais, ter-se-á de atender, necessariamente, ao valor inicialmente subscrito, deduzido da sua redução, ou seja, deduzido daquele valor que já recebeu em 2012, aquando da operação de redução de capital e, como tal, não se pode continuar a compreender no seu custo;
· Tal entendimento é corroborado pela Ficha Doutrinária correspondente ao Processo n.º 4341/2017, sancionado por despacho da Subdiretora-Geral do IR, de 2019-12-30;
· Assim, o valor de aquisição a considerar relativamente às 212 500 ações subscritas em 1998 deverá corresponder à diferença entre o valor de subscrição e o valor da redução de capital, ou seja, deverá ser de € 81 153,75, montante que resulta da multiplicação do n.º de ações (212 500 ações), pelo custo unitário documentalmente comprovado (€ 7,4819- € 7,10).
· Quanto ao valor de aquisição unitário das ações adquiridas em 2001, 2002 e 2004, este deverá corresponder aos montantes de € 8 000,00, € 2 000,00 e € 4 000,00, respetivamente, valores que resultam da multiplicação de n.º de ações adquiridas em cada um dos anos, pelo valor nominal das mesmas após a redução de capital que se concretizou em 2012, e que se verificava no momento em que ocorreu a partilha, o qual se cifra em € 0,40, por ação;
· No apuramento dos valores antes referidos, a Requerida cumpriu o ónus da prova que lhe competia, “nos termos do nº 1 do Art-º 78º da LGT, demonstrando que os valores de aquisição declarados pelas Requerentes no quadro 9 do Anexo G das declarações mod.3 do IRS relativas ao ano de 2020, não estavam corretos, e consequentemente, as declarações apresentadas não poderiam beneficiar da presunção de veracidade, prevista no nº 1 do Artº 75º da LGT”,
· Conclui a Requerida que, nos termos expostos, os valores de aquisição foram corretamente apurados, e consequentemente, as liquidações não padecem de qualquer ilegalidade, nomeadamente, violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito;
· As liquidações de juros compensatórios não enfermam de ilegalidade, por se verificarem os requisitos exigíveis para que as mesmas se mostrem devidamente fundamentadas, uma vez que da demonstração de liquidação dos juros compensatórios resultam expressamente os períodos de tributação, o valor base, o período de cálculo, a taxa aplicável e os montantes apurados, estando assim cumpridos os requisitos previstos nos n.ºs 3, 8, 9 e 10 do artigo 35.º da LGT.
*
Em 12 de março de 2025, foi proferido despacho arbitral, nos termos do qual, à luz do disposto no artigo 16º-c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, considerando (i) tratar-se, no caso, de processo não passível duma definição de trâmites processuais específicos, diferentes dos comummente seguidos pelo CAAD na generalidade dos processos arbitrais e (ii) que não haver exceções ou questões prévias a debater e decidir, sendo as Partes convidadas à apresentação de alegações escritas, no prazo simultâneo de 15 (quinze) dias e notificadas as Requerentes para, no mesmo prazo, procederem ao pagamento da taxa arbitral subsequente, com indicação de que a decisão arbitral seria, previsivelmente, proferida em 30 de junho de 2025.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas no prazo designado.
II. SANEAMENTO
1. O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 4 de fevereiro de 2025, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.
2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
3. A cumulação de pedidos e a coligação de autores são expressamente admissíveis pelo artigo 3.º, do RJAT, quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, como ocorre nos presentes autos.
4. O processo não padece de vícios que o invalidem.
5. Não foram suscitadas exceções que caiba apreciar, nada obstando ao conhecimento do mérito da causa.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1 MATÉRIA DE FACTO
Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e ao processo administrativo (PA), fixa-se como segue:
A. Factos Provados:
1. Em 15 de maio de 1998, no Cartório Notarial da Maia, foi celebrado entre as Requerentes e seus três irmãos, contrato de constituição da sociedade comercial “C... SGPS, SA”, com o capital social de mil e duzentos milhões de escudos, àquela data integralmente realizado e representado por 1 200 000 ações nominativas com o valor nominal de 1 000$00 (Doc. n.º 1 junto ao PPA);
2. Cada um dos sócios entrou para a sociedade com 252 600 ações da sociedade anónima “GRUPO D... SGPS, SA, com o valor nominal de 1 000$00 e avaliadas em 1 414$00 cada, e com a subscrição de 2 823 600$00 em dinheiro, somando o valor de 360 000 000$00 (€ 1 795 672,43) – (Doc. n.º 1 junto ao PPA);
3. Cada um dos sócios ficou titular de 240 000 ações, a que correspondeu o valor unitário de aquisição de € 7,4819 (Doc. n.º 1 junto ao PPA);
4. Em 31 de maio de 2001, a Requerente A... adquiriu ao seu irmão E... 20 000 ações da “C... SGPS, SA”, representadas pelos títulos n.ºs 1 000 001 a 1 010 000 e n.ºs 1 010 001 a 1 020 000, com o valor nominal de 1 000$00 (redenominado para € 5,00) – (Doc. n.º 2 junto ao PPA);
5. Na mesma data anterior, a Requerente B... adquiriu ao seu irmão E... 20 000 ações da “C... SGPS, SA”, representadas pelos títulos n.ºs 980 001 a 990 000 e n.ºs 990 001 a 1 000 000, com o valor nominal de € 5,00 (Doc. n.º 3 junto ao PPA);
6. Em 30 de setembro de 2002, a Requerente A... adquiriu ao seu irmão E... 10 000 ações da “C... SGPS, SA”, representadas pelos títulos n.ºs 1 040 001 a 1 050 000, com o valor nominal de € 5,00 (Doc. n.º 4 junto ao PPA);
7. Naquela mesma data, a Requerente B... adquiriu ao seu irmão E... 10 000 ações da “C... SGPS, SA”, representadas pelos títulos n.ºs 1 030 001 a 1 040 000, com o valor nominal de € 5,00 (Doc. n.º 5 junto ao PPA);
8. Em 5 de setembro de 2004, a Impugnante A... adquiriu ao seu irmão E... 5 000 ações da “C... SGPS, SA”, representadas pelos títulos n.ºs 1 195 001 a 1 200 000, com o valor nominal de € 5,00 (Doc. n.º 6 junto ao PPA);
9. Em 5 de setembro de 2004, a Impugnante B... adquiriu ao seu irmão E... 5 000 ações da “ C..., SA”, representadas pelos títulos n.ºs 1 190 001 a 1 195 000, com o valor nominal de € 5,00 (Doc. n.º 7 junto ao PPA);
10. Em 21 de maio de 2012, foi aprovado um aumento do capital social da “C... SGPS, SA”, no montante de € 3 000 000, 00, por incorporação de prémios de emissão (€ 2 992 787, 38 €) e por incorporação de Reserva legal (7 212, 62 €), tendo o capita social passado de € 6 000 000,00 para € 9 000 000,00 e o valor nominal das ações, de € 5,00 para € 7,50 (Resposta e PA; facto não controvertido);
11. Em 24 de maio de 2012, foi aprovada uma redução do capital social no valor de € 8 520 000,00, passando de € 9 000 000, 00 C para € 480 000, 00 €, através da redução do valor nominal das ações, o qual passou de € 7,50 para € 0,40, tendo como finalidade a libertação de excesso de capital (Resposta e PA; facto não controvertido);
12. Em 2 de novembro de 2012 cada uma das Impugnantes transmitiu a terceiros 27 500 ações da “C... SGPS, SA” (facto não controvertido);
13. Em 17 de novembro de 2020, foi aprovada a dissolução da “C... SGPS, SA” e de partilha imediata dos haveres sociais (Doc. n.º 8 junto ao PPA);
14. As ações da “C... SGPS, SA” nunca estiveram cotadas em mercado regulamentado ou em bolsa de valores (facto não contestado);
15. À data da dissolução e partilha dos bens da “C... SGPS, SA”, cada uma das Requerentes era detentora de 247 500 ações (facto não controvertido);
16. Na partilha dos bens sociais, coube a cada uma das Requerentes o montante de € 7 268 277,36, sendo € 6 320 392,56 em dinheiro e € 947 884,80 em espécie (Doc. n.º 8 junto ao PPA);
17. A primeira Requerente apresentou a declaração modelo 3 de IRS identificada sob o n.º..., referente aos rendimentos do ano de 2020, em 24 de junho de 2021, em cujo quadro 9 do respetivo anexo G, fez relevar (Mais-Valias e outros Incrementos Patrimoniais) os seguintes valores e datas, referentes à partilha da “C... SGPS, SA” (Doc. n.º 9 junto ao PPA):


18. A segunda Requerente apresentou, a declaração n.º..., em 22 de junho de 2021, tendo inscrito no quadro 9 do respetivo anexo G, fez relevar (Mais-Valias e outros Incrementos Patrimoniais) os seguintes valores e datas, referentes à partilha da “C... SGPS, SA” (Doc. n.º 10 junto ao PPA):

19. A Divisão de Pessoas Singulares da Unidade dos Grandes Contribuintes, dirigiu às Requerentes, em 13 de maio de 2024, os ofícios n.ºs ... e ..., respetivamente, cujo teor parcialmente se transcreve (Doc.s n.ºs 12 e 13 juntos ao PPA e PA):
“(…)

(…)


(…)

(…)

(…)”
20. Não obstante a discordância com o teor dos referidos ofícios, ambas as Requerentes apresentaram declarações de substituição em 5 de junho de 2024, a declaração n.º ... e a declaração n.º..., respetivamente, tendo inscrito nos respetivos anexos G os valores constantes dos ofícios n.ºs ... e ... da DPS/UGC, de 13 de maio de 2024 (Docs. n.ºs 16 e 17 juntos ao PPA);
21. Com base na declaração de substituição apresentada pela primeira Requerente, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2024 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., referentes ao ano de 2020, conforme a “Demonstração de Acerto de Contas” n.º 2024..., de que resultou o valor a pagar de € 379 719,76 (Doc. n.º 18 junto ao PPA);
22. Tendo por base a declaração de substituição entregue pela segunda Requerente por referência aos rendimentos do ano de 2020, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2024... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2024... incluídas na “Demonstração de Acerto de Contas” n.º 2024..., de que resultou o valor a pagar de € 379 469,47 (Doc. n.º 19 junto ao PPA);
23. Ambas as liquidações de IRS e juros compensatórios emitidas em nome das Requerentes foram pagas em 2 de setembro de 2024, por débito direto nas contas bancárias da respetiva titularidade (Docs. 20 e 21 juntos ao PPA).
B. Factos não provados:
Não se provou que na operação de redução de capital realizada pela sociedade “C... SGPS, SA”, em 2012, tenha sido entregue a cada uma das Requerentes a quantia de € 7,10 por cada ação detida àquela data, no valor total de € 1 952 500,00.
C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Os factos dados como provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA, bem como das posições assumidas pelas Partes nos respetivos articulados.
O facto não provado advém da ausência de meio probatório bastante, vindo o valor de € 1 952 500,00 referido pela Requerida em sede de Resposta e na Informação n.º 83-DPS/2024, da Unidade dos Grandes Contribuintes, de 3 de setembro de 2024, que constitui o processo administrativo, mas sem qualquer suporte documental.
III.2 DO DIREITO
1. A questão decidenda
O litígio que emerge da posição das Partes, gravita em torno do valor de aquisição das ações de uma sociedade cujo capital social foi objeto de redução, para efeitos de determinação dos rendimentos de mais-valias na esfera dos sócios, pessoas singulares aquando da dissolução e partilha dos haveres sociais.
A Requerida defende, em suma, que o valor da alegada compensação recebida pelos acionistas em função da redução do capital social deve ser abatido ao valor de aquisição das partes sociais.
Por seu turno, as Requerentes alegam que as liquidações que ora impugnam padecem de diversos vícios, quer procedimentais, quer materiais, mormente do vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
2. Ordem de apreciação dos vícios
De harmonia com o disposto no artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, não sendo imputados à liquidação impugnada vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade, nem vindo indicada entre os vícios imputados uma relação de subsidiariedade, a ordem de apreciação dos vícios deve ser a que segundo o prudente critério do julgador, assegure mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.
Não tendo sido expressamente estabelecida pelas Requerentes qualquer relação de subsidiariedade entre os vícios arguidos, passar-se-á à apreciação do vício de violação de lei, por ser este o que, a verificar-se, garantirá a mais eficaz tutela dos direitos invocados.
3. Do valor de aquisição a título oneroso de partes sociais
O valor atribuído aos sócios, pessoas singulares, em resultado da partilha do património societário, que não deva ser qualificado como rendimento empresarial e profissional, de capitais ou prediais, constitui ganho sujeito a mais-valias, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b) – 3, do Código do IRS, calculado pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, considerando-se obtido no momento da partilha (n.º 4, alínea a) e n.º 3, do artigo 10.º, do Código do IRS, respetivamente).
Não contestando a AT o valor de realização declarado pelas Requerentes, mas tão somente o valor de aquisição das ações da sociedade dissolvida, necessário se torna convocar a norma do artigo 48.º, alínea b), do Código do IRS, na redação à data dos factos, que estatui:
“Artigo 48.º - Valor de aquisição a título oneroso de partes sociais e de outros valores mobiliários
No caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:
(…)
b) Tratando-se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 10.º ou de outros valores mobiliários não cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal;
(…)”
Ora, tudo indica que o valor de aquisição seja um valor histórico, reportado, precisamente, ao momento da aquisição e não ao momento da alienação, como advoga a Requerida, pois, de outro modo, nada justificaria que o n.º 1 do artigo 50.º, do Código do IRS, determinasse que “ 1 - O valor de aquisição (…) de partes sociais no caso da alínea b) do referido número, é corrigido pela aplicação de coeficientes para o efeito aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, sempre que tenham decorrido mais de 24 meses entre a data da aquisição e a data da alienação ou afetação.”.
Encontrando-se documentado o valor de subscrição das ações no momento da constituição da sociedade, é esse, para efeitos de determinação do ganho de mais-valias, o valor de aquisição das ações inicialmente subscritas e ainda da titularidade de cada uma das Requerentes à data da partilha dos haveres sociais, como estas inscreveram nos anexos G das suas declarações de IRS do ano de 2020.
No que respeita às ações adquiridas pelas Requerentes em 2001, 2002 e 2004, não se encontrando documentalmente provado o custo de aquisição, releva o respetivo valor nominal, como estabelece o segmento final da alínea b) do artigo 48.º, do Código do IRS e foi pelas Requerentes declarado.
Em face de quanto vem de dizer-se, conclui-se que nem a norma de incidência (artigo 10.º, do Código do IRS), nem a norma de determinação da matéria tributável (artigo 48.º, do Código do IRS) legitimam que, no apuramento do ganho sujeito a mais-valias, seja deduzido ao valor histórico de aquisição o valor de qualquer eventual compensação recebida pelos sócios, por redução do capital social.
A existir tal compensação, que a Requerida alega ter sido paga às Requerentes aquando da redução do capital da sociedade, em 2012, pela quantia de € 1 952 500,00, sem que faça a prova que, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º, da Lei Geral Tributária, lhe competia, nunca a mesma poderia ser qualificada, face ao princípio da realização, como rendimento de mais-valias.
Efetivamente, consideram as Requerentes que a quantia recebida pelos sócios quando da redução do capital social resultaria do excedente líquido entretanto gerado pela atividade societária, traduzindo-se uma distribuição de lucros ou resultados transitados, mas nunca como reembolso do investimento inicial que os sócios realizaram aquando da constituição da sociedade.
Contudo, nunca a Requerida, para além de não fazer prova da quantia que tenha sido paga às Requerentes em 2012, qualifica tal quantia como rendimento de aplicação de capitais, definido pelo n.º 1 do artigo 5.º, do Código do IRS, como sendo “os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias”.
Pelos motivos que antecedem, deverá considerar-se verificado o vício de violação de lei de que enfermam as liquidações de IRS do ano de 2020 impugnadas nos presentes autos, por errada interpretação das normas legais aplicáveis, pelo que não poderão as mesmas manter-se na ordem jurídica, devendo ser determinada a sua anulação, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.
Entende o Tribunal Arbitral ter tomado conhecimento e apreciado as questões relevantes para a decisão da causa, mas não aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada à questão relativa ao valor de aquisição a título oneroso de partes sociais.
4. Dos pedidos de restituição do indevido e juros indemnizatórios
O processo arbitral tributário foi concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (cfr. a autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º, n.º 2 – primeira parte, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – Lei do Orçamento do Estado para 2010), devendo entender-se incluídos na competência dos tribunais arbitrais que funcionam sob a égide do CAAD os poderes que, na impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, entre os quais o de apreciar pedidos de juros indemnizatórios.
Em consequência da procedência do pedido de anulação dos atos tributários, fica a AT vinculada, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º, do RJAT, e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, a “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que inclui, para além da restituição do indevido, “o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário.”.
De igual modo, o n.º 1 do artigo 100.º, da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que “1 - A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”
O regime dos juros indemnizatórios consta do artigo 43.º, da LGT, que fixa o momento a partir do qual os mesmos são devidos, por erro imputável aos serviços (n.ºs 1 e 2) ou por “outras circunstâncias” (n.º 3), bem como a respetiva taxa (n.º 4) e a consequência do atraso na execução da sentença transitada em julgado (n.º 5).
Como resulta de quanto antecede e, antecipando a decisão final, dir-se-á que o pedido de pronúncia arbitral é inteiramente procedente, o que determina a anulação das liquidações impugnadas, motivadas por erro da AT quanto aos pressupostos em que assentaram, o que determina a restituição da prestação tributária indevidamente paga pelas Requerentes, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT.
IV. DECISÃO
Com base nos fundamentos enunciados supra, julgando totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, decide o Tribunal Arbitral:
a) Anular a liquidação de IRS n.º 2024 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2024..., referentes ao ano de 2020, emitidas em nome da primeira Requerente, pelo valor global de € 379 719,76;
b) Anular a liquidação de IRS n.º 2024 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2024 ..., referentes ao ano de 2020, emitidas em nome da segunda Requerente, no valor global de € 379 469,47;
c) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira na restituição da prestação indevidamente paga por cada uma das Requerentes, acrescida de juros indemnizatórios a computar desde a data do pagamento indevido até ao processamento da respetiva nota de crédito.
VALOR DO PROCESSO:
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 759 189,23 (setecentos e cinquenta e nove mil, cento e oitenta e nove euros e vinte e três cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 11 016,00 (onze mil e dezasseis euros), a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de junho de 2025.
Os Árbitros,
José Poças Falcão
(Presidente)
Mariana Vargas
(Vogal e Relatora)
Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho
(Vogal)
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.