SUMÁRIO:
I. A Contribuição de Serviço Rodoviário é um imposto, pelo que um pedido de anulação de liquidações deste tributo encontra-se abrangido não apenas no âmbito da competência material dos tribunais arbitrais, definida pelo artigo 2.º do RJAT, como também no âmbito da vinculação prévia da Autoridade Tributária, estabelecida pela Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
II. No caso da CSR, por não existir uma repercussão legal, não existe um elo formal entre a transação, a repercussão e a liquidação, não sendo possível identificar os atos de liquidação correspondentes às transações de venda de combustível a partir das datas destas transações.
III. Assim sendo, não se identificando na petição inicial os atos de liquidação que se impugnam, a mesma é inepta por insuficiente identificação do objeto do pedido.
DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
a..., Lda., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., ..., Braga, titular do número de pessoa coletiva..., apresentou, em 02.08.2024, pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista à anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão dos atos de liquidação de CSR identificados no pedido, bem assim como a anulação dos atos de liquidação respetivos.
É Requerida no pedido a Autoridade Tributária.
Por decisão do Presidente do Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, foi a signatária designada para árbitro do processo, encargo que a mesma aceitou, vindo a ser nomeada em 24.09.2024, e o tribunal a ser constituído em 14.10.2024.
Por despacho do tribunal de 15.10.24, nos termos do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, a AT foi notificada para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta, e, no mesmo prazo, remeter ao Tribunal cópia do processo administrativo, o que aquela fez em 16.10.2024.
Em 12.11.24, o Requerente remeteu ao tribunal documento probatório, requerendo a sua junção ao processo.
Em 18.11.24, a Requerida remeteu ao tribunal requerimento, pronunciando-se sobre o documento junto pelo Requerente em 12.11.24, ao abrigo do direito ao contraditório.
Em 17.01.25, o Requerente remeteu ao tribunal três novos documentos probatórios, requerendo a sua junção ao processo.
Por despacho de 10.04.25, o tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e fixou às partes os prazos simultâneos de quinze dias para apresentação de alegações finais, o que a Requerida fez em 22.04.25. A Requerente não apresentou alegações escritas.
II – QUESTÕES A DECIDIR E POSIÇÕES DAS PARTES
São questões a decidir no presente processo arbitral, no que diz respeito ao mérito do pedido:
1) Julgar se se deve considerar provado que a Requerente suportou Contribuição de Serviço Rodoviário, por repercussão, ao adquirir combustível, no período de 1 de janeiro de 2020 a 31 de dezembro de 2022.
2) Saber se as liquidações de Contribuição de Serviço Rodoviário que se impugnam são ilegais, por incompatibilidade do respetivo regime jurídico com a Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo;
3) Saber se, tendo a Requerente suportado o imposto por repercussão, e sendo ilegais as liquidações, deve ser determinado pelo Tribunal arbitral o reembolso das quantias repercutidas.
São as seguintes, em síntese, as posições das Partes, no que diz respeito ao mérito da causa:
Quanto à Requerente:
A Requerente alega e propõe-se provar que suportou CSR na aquisição de combustível rodoviário, no período de 1 de janeiro de 2020 a 31 de dezembro de 2022. Além disso, alega que as liquidações de CSR que estão na base da CSR por si suportada são ilegais, por violação, por parte do regime legal da CSR, da Diretiva 2008/118/CE do Conselho. Finalmente, sendo as liquidações ilegais e devendo estas ser anuladas, a Requerente tem direito a que lhe seja restituído o imposto.
Quanto à Requerida:
Para além de suscitar várias exceções que, a julgarem-se procedentes, obstarão ao julgamento do mérito do pedido, e que serão adiante analisadas, a Requerida considera não provado que tenha a Requerente pagado e suportado integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão. E considera que a CSR não é um tributo ilegal, não sendo incompatível com a referida Diretiva 2008/118/CE do Conselho.
III - SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, de acordo com os artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT, e encontram-se devidamente representadas.
O processo não padece de vícios que o invalidem e não existem incidentes que importe decidir.
A Requerida AT suscita as exceções de incompetência material do tribunal arbitral, de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, de ineptidão da petição inicial e da caducidade do direito de ação, que se analisam em seguida.
Importa, desde já, proceder à apreciação das exceções suscitadas.
a) Exceção de incompetência material do tribunal arbitral
A Requerida sustenta a alegação de incompetência do tribunal arbitral em três argumentos distintos: i) ser a Contribuição de Serviço Rodoviário uma contribuição financeira, e não um imposto, o que exclui a apreciação das respetivas liquidações do âmbito da competência dos tribunais arbitrais: ii) impugnar a Requerente a totalidade do regime da CSR, não sendo a apreciação de regimes legais no seu todo um objeto que caiba na competência dos tribunais arbitrais tributários; e iii) o pedido implicar a apreciação da legalidade de atos de repercussão, o que também não cabe na competência dos tribunais arbitrais tributários.
Analisemos separadamente cada uma destas alegações.
i. Incompetência material do tribunal devida à natureza jurídica da CSR
A Requerida sustenta que as liquidações em causa se referem a um tributo que tem a qualificação de “contribuição financeira”, estando a apreciação da sua legalidade excluída da competência dos tribunais arbitrais, por força dos artigos 2.º e 3.º do RJAT, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro e do artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, pelas quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição.
Sobre esta questão se pronunciaram já várias decisões dos tribunais arbitrais tributários, das quais se toma como exemplo a prolatada no processo 304/2022-T, em que fomos relatora, e cuja fundamentação seguidamente reproduzimos. Diz-se nesse acórdão:
“Desde a revisão constitucional de 1997, que deu à alínea i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP a sua atual redação, não pode restar mais qualquer dúvida de que o sistema tributário português comporta três categorias de tributos: os impostos, as taxas e as “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (acórdãos TC n.º 365/2008, de 02.07.2008; e n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15).
Quanto à taxa, ela consiste numa prestação pecuniária, definitiva, sem caráter sancionatório, que forma o objeto de uma obrigação ex lege, e que se destina ao financiamento dos gastos públicos; esta espécie de tributo distingue-se do imposto pelo caráter bilateral, ou sinalagmático da relação jurídica da qual é o objeto, na medida em que o sujeito passivo da taxa tem um direito especificamente ligado ao seu pagamento, direito esse a que corresponde um dever jurídico por parte do sujeito ativo, sendo que um e outro se contêm na estrutura da relação jurídica tributária (vd. acórdãos do TC nº 20/2003, de 15.01.2003, proc. 327/02; n.º 461/87, de 16.12.1987, proc. 176/87; n.º 76/88, de 07/04/1988, proc. 2/87; n.º 67/90, de 14.03.1990, proc. 89/89; 297/2018, de 07/06/2018, proc. 1330/17, entre muitos outros).
Quanto ao imposto, ele consiste numa prestação pecuniária, que forma o objeto ou conteúdo material de uma obrigação ex lege, com caráter definitivo, mas sem caráter sancionatório, e que se destina “à satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” (acórdãos TC n.º 539/2015, de 21.10.2015, proc. 27/15; nº 437/2021, de 22.06.2021, proc. 82/21). O imposto caracteriza-se ainda por se inserir numa relação tributária unilateral, não sinalagmática, o que significa que não existe, pela parte do sujeito passivo, nenhum direito específico correlacionado com a obrigação tributária, nem da parte do sujeito ativo, nenhuma obrigação específica para com o primeiro, que tenha o caráter de contrapartida pelo pagamento do imposto (esta conceção do imposto encontra-se plenamente sancionada por uma vasta e consistente jurisprudência do Tribunal Constitucional, podendo citar-se os acórdãos nº 582/94, de 26.10.1994, proc. 596/93; n.º 583/94, de 26.10.1994, proc. 536/93; n.º 584/94, de 26.10.1994, proc. 540/93; n.º 1140/96, de 06.11.1996, proc. 569/96; n.º 274/2004, de 20.04.2004, proc. 295/03, entre muitos outros).
Dada a estrutura unilateral, não sinalagmática, da relação tributária que tem como objeto o imposto, a definição do respetivo quantum baseia-se na capacidade contributiva dos sujeitos passivos (acórdão TC n.º 437/2021, de 22.06.2021, proc. 82/21); já no caso da taxa, dada a estrutura bilateral ou sinalagmática da relação jurídica tributária da qual aquela é objeto, a definição do respetivo quantum baseia-se numa aproximação ou estimativa do valor da contraprestação (princípio da equivalência jurídica) (acórdão TC n.º 301/2021, de 13.05.2021, proc. 181/20), podendo esse valor ser definido pelo custo que a prestação tem para o sujeito ativo, pelo valor do benefício que o sujeito passivo obtém, ou ainda por outras grandezas sempre estreitamente correlacionadas com a prestação pública individualizada que integra o sinalagma.
Quanto à “contribuição financeira” (designemo-la assim, ficando entendido que nos referimos às “demais contribuições financeiras a favor de entidades públicas” referidas na al. i) do nº 1 do art.º 165.º da CRP, e salvaguardando que não se encontra doutrinal ou jurisprudencialmente encerrada a questão da designação, única ou plural, desta categoria de tributos bem como das espécies que ela possa comportar), o Tribunal Constitucional tem optado por não adotar uma definição fechada, recorrendo antes a vários contributos que vão sendo desenvolvidos pela doutrina.
No acórdão nº 7/2019 (de 13.05.2021, proc. 301/21, relator Almeida Ribeiro), o Tribunal Constitucional diz:
“Segundo Sérgio Vasques estes tributos situam-se no terreno intermédio que vai das taxas aos impostos, incluindo-se nesta categoria «não apenas as taxas de regulação económica, mas toda a parafiscalidade associativa, as contribuições para a segurança social, as contribuições especiais de melhoria, assim como o universo crescente dos tributos ambientais, todos eles com estrutura paracomutativa, dirigidos à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários» (...).”
No mesmo aresto o tribunal cita também Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:
“E de acordo com Suzana Tavares da Silva estes tributos podem «agrupar-se em três tipos fundamentais: 1) como instrumento de financiamento de novos serviços de interesse geral que ocasionam um benefício concreto imputável a alguns destinatários diferenciados (ex. prevenção de riscos naturais) - contribuições especiais financeiras; 2) como instrumento de financiamento de novas entidades administrativas cuja atividade beneficia um grupo homogéneo de destinatários (ex. taxas de financiamento das entidades reguladoras) — contribuições especiais parafiscais; e 3) como instrumentos de orientação de comportamentos (finalidades extrafiscais) — contribuições orientadoras de comportamentos ou (...) contribuições especiais extrafiscais» (...)”
Finalmente, no mesmo aresto, o Tribunal cita a sentença do tribunal a quo, nos seguintes termos:
“(...) [E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade /causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos, acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública — mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas - sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários.”
Não há, pois, dúvida de que a “contribuição financeira” é hoje entendida, consensualmente, como uma prestação pecuniária coativa definitiva e não sancionatória (um tributo, portanto) que forma o objeto de uma relação jurídica tributária com uma estrutura de “bilateralidade ou comutatividade coletiva ou grupal”, na medida em que a obrigação tributária impende individualmente sobre os membros de um grupo de sujeitos passivos, mas tendo essa obrigação uma contrapartida, a qual consiste numa prestação, de caráter público, a que está obrigado o sujeito ativo, não individualizada, mas coletiva, na medida em que a atividade é prestada de forma difusa ao grupo de sujeitos passivos.
Sendo, assim, a comutatividade coletiva o traço distintivo que caracteriza a contribuição financeira, a dificuldade está em concretizar em que se traduz essa comutatividade coletiva que não assenta, como na taxa, numa contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo.
O Supremo Tribunal Administrativo já por várias vezes analisou a questão e, sem em nenhum momento se afastar da jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem caraterizado o “nexo de bilateralidade ou comutatividade coletiva” nos seguintes termos (STA 2 Sec. ac. de 04.07.2018, proc. 01102/17, relator Casimiro Gonçalves):
“(...) quer os impostos, quer as contribuições, podem ter na sua origem prestações administrativas dirigidas a grupos mais ou menos alargados de sujeitos passivos, embora nenhum desses tributos tenha como pressuposto uma prestação administrativa de que o sujeito passivo seja efetivo e direto beneficiário; todavia, ao contrário dos impostos e, mesmo, das contribuições especiais, as contribuições financeiras têm como finalidade compensar prestações administrativas e realizadas, de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”
Baseando-nos em todas os anteriores contributos jurisprudenciais e doutrinários, mas sobretudo no último acórdão citado do STA, concluímos que não é o simples facto de um tributo ter, desde logo, a designação de “contribuição” (ac. TC nº 539/2015) e nem o facto de esse tributo ter a respetiva receita consignada (ac. TC nº 232/2022), que o qualifica automaticamente como “contribuição financeira”; antes é, para tal, necessário, como judicia o STA, que esse tributo tenha com finalidade compensar prestações administrativas realizadas de que o sujeito passivo seja presumidamente beneficiário.”
Com efeito, o sistema tributário comporta tributos que têm a designação de “contribuições” e são verdadeiros impostos, como se extrai, desde logo, do n.º 3 do art.º 4.º da LGT.
Por outro lado, o sistema tributário comporta igualmente impostos que, ao arrepio do princípio da não consignação da receita dos impostos (estabelecido no art.º 7.º da Lei de Enquadramento Orçamental ), têm a sua receita consignada (vg. ac. TC nº 369/99, de 16.06.1999, proc. 750/98).
Por conseguinte, nem o nomen juris “contribuição”, nem a afetação da receita a uma finalidade específica são suficientes para qualificar um tributo como “contribuição financeira”.
O elemento decisivo para essa qualificação é a existência de uma estrutura de comutatividade que se estabelece entre o ente beneficiário da receita e os sujeitos passivos do tributo.
A mesma conceção encontra-se plasmada no acórdão do TC nº 232/2022 (de 31.03.2022, proc. 105/22, relator J.E. Figueiredo Dias), em que o tribunal afirma:
“[E]sta linha divisória estabelece-se entre a existência ou não de um nexo de bilateralidade/causalidade entre o Estado e o sujeito passivo do tributo, ou seja, apenas se podem qualificar como contribuições financeiras a favor de entidades públicas os tributos que se possam reconduzir a uma prestação pecuniária coativa destinada a compensar prestações administrativas aproveitadas (bilateralidade) ou provocadas (causalidade) pelos respetivos sujeitos passivos (...)”
E o tribunal acrescenta nesse mesmo aresto, com particular importância para a questão que nos ocupa no presente processo:
“(...) acabando por se reconduzir à categoria de impostos de receita consignada as prestações pecuniárias coativas cobradas com o intuito de financiar despesa pública – mesmo que se trate de despesa pública concretamente identificada no âmbito da consignação das receitas – sempre que essa despesa se não possa reconduzir ao suporte financeiro de medidas ou atividades administrativas provocadas pelos sujeitos passivos ou de que estes sejam beneficiários”.
Ou seja, para que possamos afirmar estar-se perante uma “contribuição financeira”, é necessário que as prestações públicas que constituem a contrapartida coletiva do tributo beneficiem ou sejam causadas pelos respetivos sujeitos passivos.
Confrontemos esta construção, totalmente amparada na jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo, bem como na doutrina por estes citada, com o decidido no processo arbitral nº 629/2021-T (decisão de 03.08.2022, relator Vítor Calvete) sobre a mesma questão de que se ocupa o presente processo arbitral.
A decisão arbitral cita Filipe de Vasconcelos, nos seguintes termos:
“(...) [O] nexo bilateral que subjaz ao respetivo facto tributário [tem] caráter derivado, já que resulta de uma presunção de benefício ou utilidade na esfera dos sujeitos passivos, por pertencerem ou integrarem, num determinado intervalo de tempo, um grupo, tendencialmente homogéneo de interesses”, (...) “homogeneidade de interesses” e (...) “responsabilidade de grupo (…) que se deve ao facto de os sujeitos passivos deste tipo de tributo partilharem um ónus ou responsabilidade de custeamento ou suporte da atividade pública que não pode atribuir-se isoladamente, mas apenas em face daquela que é a respetiva inserção no grupo a que efetivamente pertencem.”
Cita ainda Suzana Tavares da Silva, nos seguintes termos:
“(...) [A] A. recorre, para a delimitação dos contornos das contribuições financeiras, aos critérios desenvolvidos pelo Tribunal Constitucional Alemão: “1) incidir sobre um grupo homogéneo; 2) manter uma proximidade com a obrigação tributária e as suas finalidades; 3) corresponder a uma relação encargo/benefício capaz de demonstrar que as receitas geradas são fruídas pelos membros do grupo” (p. 91).”
Concluindo o Tribunal:
“(...) o nexo grupal – que faria das contribuições financeiras uma espécie de taxas coletivas – não se estabelece com os sujeitos passivos da CSR, mas sim com terceiros não participantes na relação tributária.”
A conclusão a que chegámos acima, com base na jurisprudência quer do Tribunal Constitucional quer do Supremo Tribunal Administrativo, mostra-se plenamente coincidente com a decisão arbitral citada.
Entendemos, assim, que o que distingue uma “contribuição financeira” de um imposto de receita consignada é a necessária circunstância, de, na primeira, a atividade da entidade pública titular da receita tributária ter um vínculo direto e especial com os sujeitos passivos da contribuição. Tal vínculo pode consistir no benefício que os sujeitos passivos, em particular, retiram da atividade da entidade pública, ou pode consistir num nexo de causalidade entre a atividade dos sujeitos passivos e a necessidade da atividade administrativa da entidade pública.
A Contribuição de Serviço Rodoviário não cabe em nenhuma destas hipóteses. Desde logo, a CSR não tem como pressuposto uma prestação, a favor de um grupo de sujeitos passivos, por parte de uma pessoa coletiva. A contribuição é estabelecida a favor da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007), sendo essa mesma entidade a titular da receita correspondente (art.º 6º). No entanto, os sujeitos passivos da contribuição (as empresas comercializadoras de produtos combustíveis rodoviários) não são os destinatários da atividade da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., a qual consiste na “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento” da rede de estradas (art. 3º, nº 2 da Lei n.º 55/2007).
Em segundo lugar, também não se encontra base legal alguma para afirmar que a responsabilidade pelo financiamento da tarefa administrativa em causa – que no caso será a “conceção, projeto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas” – é imputável aos sujeitos passivos da contribuição, que são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários. Pelo contrário, o art.º 2.º da Lei n.º 55/2007 diz expressamente que o “financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP - Estradas de Portugal, E.P. E., (...), é assegurado pelos respetivos utilizadores e, subsidiariamente, pelo Estado, nos termos da lei e do contrato de concessão aplicável.”
Portanto, apesar de ser visível, de forma clara, o elemento de afetação da contribuição para financiar a atividade de uma entidade pública não territorial – a EP - Estradas de Portugal, E. P. E. – não é de modo algum evidente a existência, pelo contrário, afigura-se inexistir um “nexo de comutatividade coletiva” entre os sujeitos passivos e a responsabilidade pelo financiamento da respetiva atividade, ou entre os sujeitos passivos e os benefícios retirados dessa atividade.
A Contribuição de Serviço Rodoviário visa financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E. (art.º 1º da Lei 55/2007). O financiamento da rede rodoviária nacional a cargo da EP — Estradas de Portugal, E. P. E., é assegurado pelos respetivos utilizadores (art.º 2º). São, estes, como se conclui, os sujeitos que têm um vínculo com a atividade da entidade titular da contribuição e com a atividade pública financiada pelo tributo; são eles os beneficiários, e são eles os responsáveis pelo seu financiamento.
No entanto, a contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, que, nos termos do art.º 4º n.º 1, al. a) do CIEC, são os “depositários autorizados” e os “destinatários registados”, não existindo qualquer nexo específico entre o benefício emanado da atividade da entidade pública titular da contribuição e o grupo dos respetivos sujeitos passivos.
Embora a Autoridade Tributária afirme que a posição dos revendedores de produtos petrolíferos é a de uma “espécie de substituição tributária”, não entendemos assim, pois tal entendimento não tem apoio na lei.
Nos termos do nº 1 do art.º 20.º da LGT, “a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte”.
Para que estivéssemos, no caso presente, perante uma situação de substituição tributária, era necessário que os consumidores que pagam o preço dos combustíveis aos revendedores estivessem na posição de “contribuintes”.
Sobre o conceito de contribuintes, o nº 3 do art.º 18.º diz que “o sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.” De onde se retira que o contribuinte é uma das espécies da categoria “sujeitos passivos” e estes são as pessoas (ou entidades) que estão obrigadas ao pagamento da prestação tributária, o que não acontece com os consumidores dos combustíveis.
Concluímos, assim, que não estamos perante uma situação de substituição, pelo que os sujeitos passivos da CSR são igualmente os respetivos contribuintes diretos.
Ainda poderia acrescentar-se que o universo de entidades que beneficiam ou dão causa à atividade financiada pela CSR não é um grupo delimitado de pessoas, mas é toda a população de um modo geral. E que o efetivo sacrifício fiscal, suportado através de uma repercussão meramente económica, não é suportado apenas pelos que efetivamente utilizam a rede de estradas a cargo da Infraestruturas de Portugal S.A., mas também pelos que utilizam vias rodoviárias que não se incluem nessa rede.
Por conseguinte, conclui também este tribunal que a Contribuição de Serviço Rodoviário, apesar do seu nomen juris e de a sua receita se destinar a financiar uma atividade pública específica, não tem o caráter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou coletiva que é necessária à contribuição financeira.
É ainda relevante a posição do Tribunal de Contas, na Conta Geral do Estado de 2008, onde se lê:
“Face ao conteúdo normativo das disposições legais aplicáveis aos vários aspectos de que se reveste a problemática da contribuição de serviço rodoviário e tendo em conta os artigos 103.º, 105.º e 106.º da Constituição, a Lei de enquadramento orçamental e a legislação fiscal aplicável, o Tribunal de Contas considera que a contribuição de serviço rodoviário tem as características de um verdadeiro imposto ou, pelo menos, que dada a sua natureza não pode deixar de ser tratada como imposto pelo que, sendo considerada como receita do Estado, não pode deixar de estar inscrita no Orçamento do Estado, única forma de o Governo obter autorização anual para a sua cobrança.
Com efeito, a contribuição de serviço rodoviário é devida ao Estado, na medida em que é este o sujeito activo da respectiva relação jurídica tributária, pelo que os princípios constitucionais e legais da universalidade e da plenitude impõem a inscrição da previsão da cobrança da sua receita na Lei do Orçamento do Estado de cada ano.
(...)
Face ao exposto, não se antevê suporte legal bastante, face à Constituição e à lei, para a contribuição de serviço rodoviário ser paga directamente a uma sociedade anónima, sem passar pelo Orçamento do Estado. Para além disso, o Tribunal de Contas não pode deixar de assinalar que esta situação leva a uma saída de receitas e despesas da esfera orçamental e, por consequência, da sua execução, o que conduz à degradação, nesta sede, do âmbito do controlo das receitas e despesas públicas.”
A posição do Tribunal de Contas apenas reforça a conclusão do Tribunal, já anteriormente enunciada, de que a CSR é um imposto de receita consignada.
A interpretação que adotamos é igualmente corroborada por Casalta Nabais, J., Estudos sobre a Tributação dos Transportes e do Petróleo, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 42-43, em que o Autor afirma que “estarmos perante tributos que, atenta a sua estrutura unilateral, se configuram como efectivos impostos, muito embora dada a titularidade activa das correspondentes relações tributárias (e o destino da sua receita), tenham clara natureza parafiscal.”
Logo, não procede a alegada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral em virtude da natureza do tributo, uma vez que a competência dos tribunais arbitrais abrange a apreciação das pretensões dos sujeitos passivos referentes a qualquer espécie de tributo, nos termos do art.º 2.º do RJAT; e também não se verifica a falta de vinculação prévia da Autoridade Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais no presente processo, por força do art.º 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, que limita essa vinculação prévia às “pretensões relativas a impostos”.”
No presente processo, por se verificar plena identidade de objeto e de circunstâncias, e por se concordar inteiramente com a argumentação exposta, acolhemos a posição descrita, julgando, pois, improcedente, a exceção de incompetência material do tribunal arbitral, com base na natureza jurídica do tributo em causa, por estarmos perante um pedido de anulação de liquidação de um imposto.
ii. Incompetência material do tribunal por estar em causa a apreciação da legalidade de um regime legal no seu todo.
Também quanto a este ponto iremos seguir a fundamentação do acórdão anteriormente citado (acórdão prolatado no processo arbitral n.º 309/2022-T, de 5 de janeiro de 2023, em que se diz:
Conforme indica na sua petição inicial, a Requerente requereu a constituição de tribunal arbitral “para se pronunciar sobre a ilegalidade do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa formulado pela Requerente, proferido a 11 de Abril de 2022, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”), no âmbito do processo n.º ...2022... e, consequentemente, sobre os atos de liquidação – melhor identificados infra – que englobam o Imposto sobre Produtos Petrolíferos (“ISP”), a Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”) e outros tributos que são objeto daquele pedido, referentes ao período decorrido entre Janeiro e Dezembro de 2018, apenas na parte que respeita ao montante total de € 5.457.168,27 liquidado a título de CSR, nos termos e com os fundamentos que se expõem de seguida”.
No final da sua petição inicial, a Requerente formula o seu pedido nos seguintes termos:
“Termos em que se requer a V. Exa. que o presente pedido de pronúncia arbitral seja julgado procedente e, em consequência:
a) Seja declarada a ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa referente aos atos de liquidação acima melhor identificados;
b) E, bem assim, seja declarada a ilegalidade dos atos de liquidação impugnados no presente pedido no que respeita ao montante liquidado a título de CSR;
c) E, consequentemente, seja a AT condenada a reembolsar a Requerente pelo valor total de CSR indevidamente pago, relativamente aos atos de liquidação juntos aos autos, no montante de € 5.457.168,27 acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, à taxa legal em vigor.
Não fica qualquer dúvida de que a pretensão da Requerente consiste em que o tribunal arbitral:
Declare a ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa referente aos atos de liquidação em causa;
Declare a ilegalidade dos atos de liquidação impugnados.
A Requerente não pede ao Tribunal que declare a ilegalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto nem que decrete a sua ineficácia.
A Requerente pede, sim, que o Tribunal declare (mediatamente) a ilegalidade dos atos de liquidação, a qual, na sua opinião, é consequência da desconformidade da Lei n.º 55/2007 com o direito comunitário, nomeadamente o n.º 2 do art. 1º Diretiva 2008/118/CE, de 16/12/2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo.
Estamos aqui perante o que se designa por “ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação”, que se distingue da “ilegalidade em concreto” por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação (STA 2 Sec., ac. de 20.03.2019, proc. 0558/15.0BEMDL 0176/18, relator Aragão Seia). Na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado (Lopes de Sousa, J., Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 5ª ed., II vol., pág. 323).
Nos termos do corpo do art.º 99.º do CPPT, “constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade”, entendendo-se que aqui se inclui a ilegalidade abstrata da liquidação (CAAD, decisão arbitral de 31.01.2018, proc. nº 104/2017-T).
Portanto, pretendendo a Requerente a declaração da ilegalidade dos atos de liquidação, sendo a ilegalidade abstrata das liquidações fundamento de impugnação dos atos tributários, sendo os tribunais arbitrais competentes para apreciar a legalidade da liquidação e de, sendo o caso, declarar a sua ilegalidade, não se verifica procedente a exceção de incompetência material do tribunal arbitral em virtude da natureza do pedido.
Ora, no caso dos presentes autos, também a Requerente pede inequivocamente que o Tribunal se pronuncie sobre a legalidade das liquidações do imposto, o que fica evidente no pedido final, que formula nos seguintes termos:
Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exa., deve o presente Pedido de Constituição Arbitral e de Pronúncia Arbitral ser totalmente procedente, determinando-se em consequência disso: A anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão dos atos de liquidação de CSR sindicados, respeitantes ao montante pago a título de CSR por referência ao período supra indicado, bem assim como a anulação dos atos de liquidação aqui em causa por serem considerados como ilegais;
Acolhendo a posição expressa no acórdão citado, consideramos também nesta instância que o objeto do pedido não é a apreciação da legalidade de um regime legal na sua totalidade, mas sim a declaração de ilegalidade de atos de liquidação, pelo que não se verifica, também por esta via, a incompetência material do tribunal arbitral.
iii. Incompetência do tribunal para apreciar atos de repercussão
No seu pedido final, a Requerente pede “A anulação do ato de indeferimento tácito do pedido de revisão dos atos de liquidação de CSR sindicados, respeitantes ao montante pago a título de CSR por referência ao período supra indicado, bem assim como a anulação dos atos de liquidação aqui em causa por serem considerados como ilegais”.
Fica claro que a Requerente pede a declaração de ilegalidade e a anulação de atos de liquidação de CSR, e não a declaração de ilegalidade de atos de repercussão.
Assim sendo, não se verifica o fundamento alegado nesta parte da reposta da AT.
b) Exceção de ilegitimidade processual e substantiva da Requerente
Quanto à falta de legitimidade da Requerente, a Requerida começa por dizer que apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respetivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago; que os sujeitos passivos são as entidades responsáveis pela introdução no consumo; e que são estas que podem identificar tais atos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (artigos 15.º e 16.º do CIEC).
Com efeito, o n.º 2 do artigo 15.º do CIEC diz que “podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”
Não há dúvida de que a Requerente não é um sujeito passivo de CSR, o que resulta do próprio conceito de relação jurídica tributária, mas resultaria igualmente do n.º 4 do artigo 18.º da LGT.
Contudo, o artigo 65º da LGT determina que têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido. A mesma norma encontra-se no artigo 9.º do CPPT, que determina que “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.”
O conceito de interesse legalmente protegido encontra-se bem definido no Direito administrativo português, e nomeadamente na jurisprudência dos tribunais administrativos e fiscais. De acordo com a mesma, estaremos perante um interesse legalmente protegido quando a lei não protege diretamente um interesse particular, mas um interesse público que, se for corretamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual (acórdão do STA de 18-05-2004, pleno da secção do contencioso administrativo, proc. n.º 0269/02).
No caso vertente, na perspetiva da Requerente, a CSR é um imposto ilegal, por ser incompatível com a Diretiva 2008/118, [1] na medida em que não prossegue “motivos específicos”. No pressuposto de que a ilegalidade alegada se verifica, a aplicação correta da lei impediria a sua liquidação aos sujeitos passivos que introduziram os produtos no consumo e que, consequentemente, a repercutiram à Requerente, pelo que o interesse individual desta ficaria satisfeito com o cumprimento da lei. Não há dúvida, pois, de que a Requerente se encontra em posição de poder invocar um “interesse legalmente protegido”, para efeitos dos artigos 65.º da LGT e 9.º do CPPT.
Não existindo a alegada ilegalidade, então a Requerente não será titular de um interesse legalmente protegido, mas a tal conclusão só será possível chegar após a apreciação do mérito do pedido.
Faltaria ainda, todavia, analisar se o n.º 2 do artigo 15.º do CIEC, ao dispor que “podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto,” deve ser tomada como uma derrogação daquela norma geral.
No entender do Tribunal, o dispositivo legal citado não deve ser interpretado assim, por força de vários princípios que convergem no sentido contrário de tal interpretação.
O primeiro princípio que convocaríamos seria o do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no n.º 4 do artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa. Se a CRP faculta aos titulares de meros interesses legalmente protegidos o direito à tutela jurisdicional, fá-lo a fim de instituir “uma proteção jurisdicional administrativa sem lacunas” (Gomes Canotilho, J. J. & Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora, 1993, p. 942). Por outro lado, entendemos que o acesso aos meios de impugnação administrativa constitui também uma peça do sistema de uma proteção jurisdicional administrativa sem lacunas, pelo que os titulares de interesses legalmente protegidos têm que poder lançar mão de tais meios, até por aplicação do princípio a maiori ad maius. Ou seja, se os titulares de interesses legalmente protegidos podem recorrer aos meios de impugnação contenciosa dos atos administrativos conexos com esses interesses, então também hão de poder lançar mão dos meios de impugnação não contenciosa, que são instrumentais dos primeiros e constituem a primeira linha de tutela dos direitos dos administrados.
O direito a uma tutela jurisdicional efetiva é, sem dúvida, o princípio por trás da ampla norma de legitimidade contida quer no artigo 65.º da LGT, quer no artigo 9.º do CPPT. E se esta norma, embora contida numa lei ordinária, encontra o seu fundamento num princípio constitucional, então não se deverá, se possível – como no caso nos parece ser possível – interpretar uma norma de uma lei ordinária, ainda que especial, no sentido de uma derrogação daquele princípio. Ora, parece-nos não resultar do teor literal do nº 2 do artigo 15º do CIEC que o legislador tenha tido a intenção (objetivamente interpretada) de afastar a possibilidade de recorrer à revisão no caso de titulares de interesses legalmente protegidos, mas sim, apenas, o de esclarecer sobre uma categoria de sujeitos que têm esse direito.
Depois, a norma sobre legitimidade que se encontra no artigo 65.º da LGT e no artigo 9.º do CPPT inscreve-se na categoria dos direitos e garantias dos contribuintes, o que também milita a favor de uma interpretação não restritiva, ou seja, a favor do efeito não derrogatório da norma do CIEC, pois que mal se compreenderia que o legislador pudesse simplesmente afastar uma norma de garantia dos contribuintes, sem qualquer motivo explícito ou implícito evidente, para um conjunto de impostos.
E finalmente, mas não menos importante, contra o alcance derrogatório da norma do CIEC também concorrerá o importante princípio pro actione, o qual postula que, “ao nível dos pressupostos processuais, se privilegie a interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva e que se pode traduzir na fórmula in dubio pro habilitate instantiae” (Ac. do TCAS, CT, de 30-04-2025, proc. n.º 647/22.4BELRS, numa questão similar à presente).
Em vista de todas estas razões, consideramos que à Requerente, enquanto titular, na sua perspetiva, de um interesse legalmente protegido conexo com as liquidações impugnadas, não podia ser negado o direito de lançar mão do pedido de revisão, pelo que tem a mesma legitimidade substantiva.
Já quanto à sua legitimidade processual, pelos mesmos motivos, com base nas mesmas normas e preceitos legais, e não havendo, além do mais, qualquer norma que, à semelhança do nº 2 do artigo 15º, pudesse ser interpretada como limitativa dessa legitimidade, não há como a negar.
Pelo que se julga, também, improcedente, a exceção de ilegitimidade tanto substantiva como processual da Requerente.
c) Ineptidão da petição inicial
A Requerida invoca ainda a questão da ineptidão da petição inicial, alegando que a Requerente não identifica, em nenhum lado do seu pedido de pronúncia arbitral, qualquer ato tributário que a Requerente pretenda ver apreciado.
Vejamos:
O artigo 98º, n.º 1, alínea a) do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT, indica como uma das nulidades insanáveis do processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial.
Por seu turno, sobre o que se considera constituir ineptidão da petição inicial, dispõe o artigo 186º, n.º 1 do CPC, também subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário por força do artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT, que se diz inepta a petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
No caso vertente estão à partida excluídas as causas das alíneas b) e c), pelo que haverá que averiguar se se verifica a situação prevista na al. a): falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir.
O pedido existe. A Requerente pede que o Tribunal arbitral declare a ilegalidade das liquidações de CSR efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira correspondentes ao combustível vendido à Requerente.
A causa de pedir reside na ilegalidade da própria CSR, por violação do Direito da União Europeia, nomeadamente da Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008, relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo, por não prosseguir “motivos específicos”, e ainda no facto de ter existido repercussão desse imposto ilegal no preço do combustível cobrado à Requerente. A causa de pedir é, pois, claramente inteligível.
Quanto à inteligibilidade do pedido, consideramos que esta pode ter várias dimensões. Uma delas é a da formulação do pedido em termos jurídicos, linguísticos e lógicos inteligíveis. Essa inteligibilidade não está em causa no caso dos autos. Mas uma outra vertente é a identificação do objeto do pedido.
Como já se disse no acórdão arbitral emanado no processo 604/2023-T, para a inteligibilidade do pedido “não basta que o pedido seja claro em abstrato na sua formulação, mas é ainda necessário que ele seja suficientemente concretizado para poder servir de base ao processo, ie., para que o tribunal possa efetivamente conhecer o objeto do processo.” E concretizar o pedido, no caso do contencioso de anulação de atos administrativos, “significa necessariamente identificar os atos cuja anulação se pretende, como, aliás decorre do artigo 108.º do CPPT, quando estipula que “[A] impugnação será formulada em petição articulada, dirigida ao juiz do tribunal competente, em que se identifiquem o ato impugnado e a entidade que o praticou e se exponham os factos e as razões de direito que fundamentam o pedido”.
Importa, pois, ver se estão identificados os atos de liquidação impugnados e se, a verificar-se falta dessa identificação, esta compromete irremediavelmente a inteligibilidade do pedido.
Desde logo, efetivamente, não encontramos no pedido de pronúncia arbitral a identificação dos atos de liquidação de CSR cuja anulação é pedida.
A Requerente pede a declaração de ilegalidade “das liquidações de CSR, referentes ao período compreendido entre janeiro de 2020 e dezembro de 2022, por se considerar que as mesmas se encontram em desconformidade com o Direito Europeu sendo, consequentemente, ilegais, tal como adiante se demonstrará.”
A Requerente detalha em seguida que, no âmbito da sua atividade, suportou um montante total de 40.721,35 euros (quarenta mil, setecentos e vinte e um euros e trinta e cinco cêntimos) a título de CSR, correspondente aos atos de liquidação relativos ao período compreendido entre janeiro de 2020 e dezembro de 2022, inclusive; e que tal montante encontra-se devidamente suportado através de detalhe contendo os litros de combustíveis adquiridos pela Requerente, por fatura e tipo de combustível, bem como a correspondente CSR indevidamente suportada pela Requerente entre janeiro de 2020 e dezembro de 2022, inclusive.
A Requerente acrescenta que, “por forma a demonstrar os encargos suportados, (..) juntou ao Pedido de Revisão Oficiosa cópia de todas as faturas relativamente aos gastos incorridos com a aquisição de produtos petrolíferos, designadamente gasóleo rodoviário, gasolina e GPL auto, através da qual se comprova que a Requerente suportou efetivamente o encargo económico da CSR por via da sua repercussão pelo sujeito passivo, e cuja AT se encontra obrigada a remeter ao tribunal arbitral nos termos do n.º 2 do artigo 17.º do RJAT.
Portanto, a Requerente identifica compras de combustível e propõe-se provar que suportou, por repercussão, CSR nessas compras.
Acontece que não é possível ao Tribunal identificar, com rigor, as liquidações de CSR que a Requerente quer ver anuladas, através das faturas relativas às compras de combustível, pelo facto de não existir um ato de repercussão formal.
Ao contrário do que acontece no IVA, em que os atos de repercussão do imposto (no preço cobrado ao adquirente), efetuados anteriormente à liquidação de IVA propriamente dita, estão ligados a uma venda que por sua vez está ligada a uma determinada liquidação de imposto, no caso da CSR, mesmo admitindo, a priori, que existem atos de repercussão, estes não estão formalmente ligados ao ato de liquidação.
Os atos de repercussão - a existirem, ressalva-se de novo - não estão formalmente ligados ao ato de liquidação nem podem estar, pela própria mecânica do imposto. No IVA, a obrigação de imposto nasce quando ocorre uma venda ou prestação de serviços. Mais uma vez, é a transação entre o sujeito passivo e o seu cliente que determina o nascimento da obrigação do próprio imposto. Por esse motivo, existe um elo formal entre a transação, a repercussão e a liquidação. No caso da CSR, é a introdução no consumo que faz nascer a obrigação tributária (art.º 8.º do CIEC, aplicável à CSR por remissão do art.º 5.º da Lei que estabelece o regime daquele imposto), podendo a repercussão do imposto ter lugar em qualquer data dentro de um intervalo de tempo indeterminado. Deste modo, o facto gerador da CSR ocorre sem qualquer conexão com a transação em que a mesma possa ser repercutida.
Ou seja, ao não estarmos perante uma repercussão formalizada, não é possível, nem ao Tribunal, nem à Autoridade Tributária, identificar as liquidações de CSR às quais corresponderiam – a existir repercussão – as vendas de combustível. Só as entidades fornecedoras, na melhor das hipóteses, poderiam efetuar a correspondência entre as faturas emitidas e as liquidações de CSR. Mas tal correspondência não foi realizada, pois não foram indicadas as liquidações de CSR impugnadas.
A Requerente pede que o Tribunal anule todas as liquidações de um determinado período - entre janeiro de 2020 e dezembro de 2022. Só que esta correspondência temporal é meramente aproximada. Para ilustrar com um exemplo, é perfeitamente possível que o fornecedor X tenha vendido à Requerente, em janeiro de 2020, combustível que introduziu no consumo em dezembro de 2019.
A propósito da impossibilidade de a Requerida identificar os atos de liquidação a partir das faturas, tenha-se em conta que a própria Autoridade Tributária já alega, na sua contestação, que não lhe é possível estabelecer correspondência entre as faturas e quaisquer liquidações de imposto e que não lhe pode ser exigida essa prova.
Ora, a identificação dos atos de liquidação é imprescindível para que o Tribunal possa anular esses atos. Por outro lado, ainda que o tribunal viesse, numa apreciação do mérito da causa, a dar como provado que nas faturas da compra do combustível foi repercutida CSR, ainda assim não seria possível ao Tribunal, devido à configuração do processo contencioso de anulação, condenar a Requerida ao reembolso do imposto, por ventura indevido, sem, primeiro, anular as liquidações de CSR. Pelo que, sem a identificação destas liquidações, não é possível satisfazer o interesse da Requerente.
Importa ainda referir que a ineptidão foi invocada pela Requerida e foi dada a possibilidade à Requerente de sobre a mesma se pronunciar, não tendo esta suprido a omissão da identificação dos atos de liquidação.
Assim sendo, verifica-se efetivamente uma falta de concretização do pedido, por falta de identificação dos atos de liquidação da CSR, que o torna ininteligível, na parte referente à identificação do objeto, verificando-se igualmente, em consequência, a ineptidão da petição inicial, a qual é uma exceção dilatória que conduz à impossibilidade de conhecimento do mérito da causa e à absolvição da Requerida da instância, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil (Ac. TRC, de 18.10.2016, proc. 203848/14.2YIPRT.C. Rel: Manuel Capelo).
Considerada inepta a petição inicial, fica prejudicado o conhecimento das restantes exceções, bem do mérito da causa.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal Arbitral julga procedente a invocada ineptidão da petição inicial com fundamento em insuficiente identificação do objeto do pedido e, em consequência, determina-se a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, nos termos dos arts.186.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
V - VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do CPC e 97.ºA do CPPT, e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do pedido é fixado em 40.721,35 € (quarenta mil, setecentos e vinte e um euros e trinta e cinco cêntimos).
VI - CUSTAS ARBITRAIS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.142,00 euros, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.
Registe-se e notifique-se.
Porto, 29 de maio de 2025
O Árbitro
(Nina Aguiar)
[1] Diretiva 2008/118/CE do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008 , relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo e que revoga a Diretiva 92/12/CEE.