SUMÁRIO:
I. A Contribuição do Serviço Rodoviário é um tributo que contraria a Diretiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece, na medida em que não existe uma relação direta entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
II. O tribunal arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos atos tributários de liquidação da Contribuição do Serviço Rodoviário uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da atividade pública do titular da contribuição e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira
III. É inepta a petição arbitral se não se comprovam, alegam ou identificam os atos de liquidação da CSR e o efetivo pagamento desse tributo, por repercussão.
IV. O repercutido económico ou de facto, carece de legitimidade para efeitos da revisão prevista na alínea a) do n.º 4, do artigo 18.º, da LGT porquanto só os repercutidos legais, embora não sendo sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e/ou formular pedido arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam os árbitros que integram este Tribunal Coletivo:
I – Relatório
A Requerente, A..., SA, titular do número de identificação de pessoa coletiva (NIPC) ..., com sede na Rua ..., ...-... ..., (doravante designada também como “Requerente”), apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da decisão tácita de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (i) da liquidação, que engloba ISP, CSR e outros tributos cuja anulação se peticionou no pedido dessa revisão oficiosa apresentado (cujo indeferimento tácito constitui o objeto imediato da presente ação arbitral), relativa a 9-1-2024, pedido de revisão a que foi atribuído o número ...2024... [Doc. 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral (PPA)]
Formula a Requerente, mais concretamente o seguinte pedido:
“a) ser declarada a ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa referente aos atos de liquidação em causa;
b) ser declarada a ilegalidade dos atos de liquidação impugnados no que respeita ao montante liquidado a título de CSR;
c) ser a requerida condenada a reembolsar a requerente pelo valor total de CSR indevidamente pago, relativamente aos atos de liquidação juntos aos autos, no montante de € 200.451,80 (duzentos mil quatrocentos e cinquenta e um euros e oitenta cêntimos), com as demais cominações legais;
d) ser a requerida condenada ao pagamento das custas processuais e demais encargos.”
A fundamentar este pedido alega, no essencial e em síntese:
· Na qualidade de consumidora de combustíveis, suportou na íntegra a CSR por via da respetiva repercussão no preço dos combustíveis que adquiriu;
· Verificam-se desconformidades entre a Lei nº 55/2007 e a Diretiva 2008/118/CE e das normas internas que instituíram a CSR e o Direito da União Europeia;
· Ocorreu erro imputável aos serviços da AT e
· Há o dever de anulação dos atos tributários objeto do pedido e o consequente direito da Requerente ao reembolso dos montantes pagos a título de CSR;
· O sobredito pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 9-1-2024 sendo que sobre ele não tinha incidido qualquer despacho na data em que apresentou o presente PPA (11-6-2024);
· A Requerente “atua na área da construção civil e obras públicas, entre outras” e para a prossecução da sua atividade adquiriu e adquire produtos petrolíferos, nomeadamente gasóleo para abastecer a frota e máquinas;
· No ano de 2020 adquiriu gasóleo no montante de € 1.895.160, 71 (Docs 2 a 64, do PPA), dando origem a atos de liquidação conjunta de ISP, CSR e outros tributos;
· A título de CSR foi cobrado o montante de €200.451,80 aos sujeitos passivos do ISP;
· Sendo o ISP um imposto especial sobre o consumo (IEC), os sujeitos passivos entregaram-no ao Estado mas foi a Requerente, como consumidora final que suportou decorrente da repercussão (económica) do mesmo;
· Tanto o TJUE como o Tribunal Arbitral, têm entendido que o sujeito passivo da relação tributária de CSR tem legitimidade processual ativa para contestar as respetivas liquidações da CSR;
· A requerente, como repercutida desse tributo tem legitimidade processual para, por si só, contestar as liquidações de CSR com o objetivo de obter a sua anulação e o consequente reembolso;.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados árbitros os signatários, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.
O Tribunal Arbitral foi constituído em 21-8-2024
Resposta da AT
A AT – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, alegando, em síntese:
A - Por exceção: a incompetência material do Tribunal
· Alega a incompetência material do Tribunal Arbitral considerando que a CSR não é um imposto mas uma contribuição e, como tal, não pode ser sindicável pelos Tribunais Arbitrais constituídos no âmbito do CAAD por força do disposto nos artigos 2.º e 3.º do RJAT e artigo 2.º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março, pelos quais a vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos;
· As matérias sobre a CSR encontram-se excluídas da arbitragem tributária, por ausência de enquadramento legal;
· Ou seja, independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica da CSR, a verdade é que não é, por definição, um imposto e, portanto, o CAAD não tem competência para decidir sobre esta matéria;
· Por outro lado, resulta do teor do pedido de pronúncia arbitral, e sua fundamentação, que o que a Requerente suscita junto desta instância arbitral é a legalidade do regime da CSR, no seu todo;
· De facto, ao sustentar o seu pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de CSR, não obstante com fundamento na sua desconformidade face ao direito europeu, a Requerente vem questionar todo o regime jurídico desta contribuição;
· Em rigor, pretende a Requerente a não aplicação de diplomas legislativos aprovados por Lei da Assembleia da República, decorrentes do exercício da função legislativa, visando, com a presente ação, suspender a eficácia de atos legislativos;
· Ora, conforme decorre do RJAT, a instância arbitral constitui um contencioso de mera anulação que não consente nem o escrutínio sobre a integridade de normas emanadas no exercício da função político-legislativa do Estado, nem a pronúncia sobre a restituição de valores/montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação (o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão) – vide artigo 2.º do RJAT;
· Não sendo da competência do tribunal arbitral nem a fiscalização da legalidade de normas em abstrato, sem enquadramento processual impugnatório de ato concreto de liquidação, nem a execução de sentenças/decisões;
· É inconstitucional uma interpretação que determine que o artigo 2.º do RJAT inclui a apreciação dos pedidos aqui formulados pela Requerente, quando a letra e o espírito da norma não o permitem;
· O tribunal arbitral já se pronunciou amiúde sobre a sua competência mormente nas decisões proferidas nos Processos n.º 212/2020-T, n.º 707/2019-T, n.º 131/2019-T e n.º 117/2021-T;
· E os tribunais superiores também já se pronunciaram, embora no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, em ações administrativas, sobre a impugnação de atos legislativos, designadamente nos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 01-10-2018 (Proc. 01390/17 - ISV), n.º 0637/15, de 07-02-2015, e Acórdão de 21-04-2016, do TCA Norte (Proc. 00502/15.4BEPRT);
· Ainda que se considerasse a competência do tribunal arbitral para a apreciação da ilegalidade dos atos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia o tribunal arbitral pronunciar-se sobre atos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos atos de liquidação de ISP/CSR, que não são atos de tributários e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
· Este é o entendimento que tem sido uniformemente defendido pela jurisprudência que se pronunciou sobre o tema, concretamente pelos Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas âmbito dos Processos n.ºs 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T e 490/2023-T.
· Por todos, reproduz-se o seguinte excerto da decisão proferida no âmbito do Processo n.º 467/2023-T: “(…) avança-se desde já que a apreciação da legalidade de actos de repercussão de CSR extravasa o âmbito material da arbitragem tributária. 43. Os actos de repercussão materializam “um fenómeno que consiste na transferência do peso económico de um tributo para pessoa diferente do sujeito passivo e com quem este está em relação, através da sua integração no preço de um qualquer bem”, tal como evidencia SÉRGIO VASQUES, ob. cit., p. 399. 44. Fenómeno este que não se subsume a nenhuma das realidades visadas pelo artigo 2.º do RJAT anteriormente transcrito, que determina que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação (alínea a) do n.º 1) e de actos de fixação da matéria tributável/matéria colectável/valores patrimoniais na eventualidade de não terem originado qualquer acto de liquidação (alínea b) do n.º 1). 45. Com efeito, independentemente da posição que se adopte sobre a natureza jurídica dos actos de repercussão – i.e., saber se são actos que integram uma relação jurídico-tributária complexa ou se são um fenómeno económico de natureza estritamente privada – certo é que aqueles não são actos tributários em sentido lato, porque não envolvem o apuramento da matéria colectável/tributável através da aplicação de uma norma tributária substantiva a um caso concreto e muito menos actos tributários de liquidação stricto sensu, que tornam certa, líquida e exigível a obrigação tributária através da operação aritmética de aplicação da taxa legal à matéria tributável previamente determinada 46. Este é, de resto, o entendimento que tem sido uniformemente defendido pela jurisprudência que se pronunciou sobre o tema, concretamente pelos Tribunais Arbitrais constituídos nos processos n.º 296/2023-T, 375/2023-T, 332/2023-T e 408/2023-T. Por todos, reproduz-se nesta sede em reforço das considerações já realizadas, o excerto das conclusões a que chegou o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 1 de fevereiro de 2024, no processo n.º 296/2023-T:
“III.6. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de repercussão,
Como os Colectivos que decidiram os processos nºs 408/2023-T e 375/2023-T, o presente Tribunal arbitral entende que não tem competências para apreciar directamente – e sem mais – actos de repercussão. Ainda que se possam integrar numa relação tributária complexa, tais actos ocorrem a jusante dos actos de liquidação e a competência que o legislador atribuiu aos tribunais arbitrais esgota-se – no que ao caso importa – na sindicância dos actos de liquidação. Isso decorre directamente das normas legais, mas corresponde também ao ensinamento da doutrina: Alberto Xavier, distinguindo a substituição tributária da repercussão, escrevia que nesta temos “um devedor de imposto, que é do mesmo passo contribuinte, e um terceiro que não desempenha qualquer papel na obrigação tributária.” Para Leite de Campos/Benjamim Rodrigues/Lopes de Sousa, entre o terceiro repercutido “e o sujeito activo não existe vínculo jurídico, no sentido de que o repercutido não é devedor do sujeito activo. A sua obrigação não nasce da realização do facto tributário, mas sim da realização de um facto ao qual a lei liga o direito de o sujeito passivo de repercutir e a correlativa obrigação do repercutido de reembolsar o sujeito passivo quando este exerça o seu direito. Daqui decorre, nomeadamente, que as relações entre o sujeito passivo e o repercutido inadimplente se regem pelo Direito privado.” Sendo isso assim em tese geral, face ao elenco das competências dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, e que constam dos artigos 2.º a 4.º do RJAT, nem sequer é preciso discutir a natureza jurídica desses actos de repercussão porque, qualquer que seja, não estão contemplados na única potencial norma atributiva de competência a este Tribunal: a da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT: “A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;”. Quer dizer que este Tribunal se declara liminarmente incompetente para apreciar o primeiro pedido da Requerente (declarar a ilegalidade dos actos de repercussão da CSR consubstanciados nas facturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente) (...)”.
Por exceção: a ilegitimidade processual e substantiva da Requerente
· A Requerente não é sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no artigo 4.º do CIEC, pelo que não tem legitimidade para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral;
· Carece igualmente a Requerente de legitimidade à luz do disposto no artigo 18.º, n.º 4, alínea a), do Decreto-Lei n.º 398/98 de 17 de dezembro (Lei Geral Tributária – LGT), pois que que no caso concreto não está em causa uma alegada situação de repercussão legal, porquanto a repercussão da CSR tem uma natureza meramente económica ou de facto;
· Por outro lado ainda, no caso sub judice, a Requerente não consegue demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriu aos seus fornecedores, tem incluído o valor da CSR pago pelo sujeito passivo de ISP/CSR, nem que suportou, a final, o encargo de tal tributo, isto é, que não o repassou no preço dos serviços prestados aos seus clientes, sendo estes os consumidores finais;
· Assim é que e em conclusão nesta parte: a Requerente não tem legitimidade nem para apresentar o pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral, nos termos do n.º 2, do artigo 15.º do CIEC e dos n.º 3 e 4, al. a), do artigo 18.º da LGT.
Por exceção: a ineptidão da petição inicial – Da falta de objeto
· A Requerente limita-se a identificar faturas de aquisição de combustíveis aos seus fornecedores, alegando que terá sido esta entidade que, na qualidade de sujeito passivo de ISP/CSR, terá procedido à introdução no consumo dos produtos que vieram a ser adquiridos pela Requerente, sem, no entanto, identificar quaisquer atos de liquidação de ISP/CSR praticados pela administração tributária e aduaneira, nem as Declarações de Introdução no Consumo (DIC) submetidas pelos alegados sujeitos passivos de imposto pelo que o presente pedido arbitral não respeita os pressupostos legais de aceitação do requerimento/petição inicial, por violação da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, requisito essencial à aceitação do pedido, havendo ineptidão da petição inicial determinativa da nulidade de todo o processo e da absolvição da instância, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), do CPC, aplicáveis ex vi da alínea e), do n.º 1, do artigo 29.º do RJAT;
Por impugnação
Em breve síntese alega subsidiariamente a Requerida que a Requerente não demonstra, como seria seu ónus, a repercussão da CSR, devendo funcionar plenamente as regras do ónus da prova, não se dando como provados os alegados factos invocados no pedido arbitral, sendo que, nos termos do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova de factos constitutivos de direito recai sobre quem os invoque.
A Requerente pronunciou-se por escrito sobre a matéria das exceções invocadas pela Requerida, sustentando, em síntese, a sua falta de fundamentação válida.
Verificando-se a inexistência de qualquer situação prevista no art.º. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada a realização da mesma, com fundamento no disposto nos artigos 16º-c), do RJAT e do princípio da proibição da prática de atos inúteis.
Foi ainda dispensada a apresentação de alegações por não se mostrarem necessárias.
II – Saneamento
A competência material do Tribunal
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º a 3.º da n.º 112- A/2011, de 22 de Março (Portaria de Vinculação).
Cumpre apreciar as exceções, de:
(i) Incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria;
(ii) Ilegitimidade processual e substantiva da Requerente;
(iii) Ineptidão da petição inicial (por falta de objeto e contradição entre o pedido arbitral e a causa de pedir);
(iv) Caducidade do direito de ação
A apreciação das exceções será efetuada pela ordem supra identificada, a título prévio, logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto
A - Factos provados
Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa e, em especial, para apreciação das exceções suscitadas, consideram-se provados os seguintes factos:
A. A Requerente é uma sociedade comercial que atua, além de outras, na área da construção civil e obras públicas;
B. Para o exercício da sua atividade adquiriu e adquire produtos petrolíferos que armazena em depósitos próprios localizados nas suas instalações;
C. No decurso da sua atividade e no ano de 2020 a Requerente adquiriu gasóleo no montante de € 1.895.160,71 – Cf Docs 2 a 64, juntos com o PPA;
D. A Requerente, alegando terem-lhe sido liquidados pelas suas fornecedoras de combustível as CSR respetivas, apresentou ao Diretor da Alfândega do Freixieiro, em 9-1-2024, pedido de revisão oficiosa de ato de liquidação/repercusssão…
E. ... no âmbito da qual expõe as razões em que alicerça a sua posição e pelas quais considera padecerem de ilegalidade, alegados atos de liquidação de CSR no período entre janeiro e dezembro de 2020...
F. ... repercutidos pelas petrolíferas fornecedoras do gasóleo adquirido pela Requerente nas vendas de gasóleo referidas supra;
G. Não tendo sido notificada de qualquer despacho incidente sobre o mencionado pedido de revisão oficiosa, a Requerente, em 11-6-2024, formulou o pedido de pronúncia arbitral que dá origem a estes autos.
B. FACTOS NÃO PROVADOS
Não está provado:
- que nas aquisições de combustíveis (gasóleo) mencionadas supra em C., as fornecedoras tivessem repercutido nas respetivas faturas de venda os valores da CSR;
- que essas aquisições tenham dado origem a atos de liquidação conjunta de ISP, CSR e outros tributos;
- que tenha sido cobrado o montante de € 200.451,80;
- que tenha sido a Requerente a suportar esse montante;
C. Motivação para a fixação do sobredito quadro factual.
Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, bem como o processo administrativo e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados, bem como não provados os factos acima referenciados.
No que concerne aos factos dados como não provados, este Tribunal Arbitral entende que as faturas emitidas pelas comercializadoras/fornecedoras de combustíveis quando desacompanhadas das DIC globalizadas, dos consequentes atos de liquidação e dos respetivos comprovativos de pagamento, não permitem certificar a efetiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo das quantidades de combustível referidas em A., da matéria de facto provada.
Igualmente, quanto aos factos dados como não provados, impõe-se registar que a prova da repercussão pressupõe inevitavelmente como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que, conforme se viu supra, não foi demonstrado pela Requerente.
Acresce que a Requerente não cumpriu o critério a observar na prova da repercussão da CSR, tal qual fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C-460/21. Ao que aqui importa, referiu aquele Tribunal o seguinte:
“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).
45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).
46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).
(…) 48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)
Da aplicação da jurisprudência do TJUE ao presente caso resulta que a repercussão da CSR sobre terceiros – que não decorre de qualquer imposição legal prevista na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que instituiu a CSR, sendo tão só “expectável” perante o regime e funcionamento deste tributo –, não pode ser em qualquer caso presumida.O que é compreensível, se se tiver em consideração que a repercussão opera aqui como um fenómeno económico, com uma configuração e amplitude variáveis.
Como explica SÉRGIO VASQUES: “A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida. A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transação”. [Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399].
Consequentemente, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida por mais que tenha sido querida na lógica de funcionamento do tributo. Ao invés, impõe-se uma análise do contexto e dos vários fatores que conformam cada transação comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final. É que, conforme se referiu, a Requerente não demonstrou que suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos serviços que presta aos seus clientes não estava contemplada a repercussão da CSR, por forma a poder sustentar que suportou, de forma efetiva, o encargo do imposto.
Ora, este exercício de prova não foi realizado pela Requerente, que se limitou a estabelecer meros juízos presuntivos de que suportou a CSR em virtude de uma suposta – embora inexistente – obrigação legal de repercussão do encargo daquele tributo.
Na realidade, a Requerente procurou provar a repercussão através das faturas de aquisição do combustível às fornecedora, sem que destas conste a CSR/litro e CSR suportada, sendo que tais documentos não fazem a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transacionados; não estabelecem a relação entre as transações e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não demonstra no caso concreto da Requerente a incorporação do encargo da CSR nas faturas de venda de gasolina e gasóleo à Requerente, nem tão pouco em que grau e/ou medida em que tal incorporação se processou.
Acresce que mesmo que a Requerente tivesse demonstrado a liquidação e repercussão da CSR, sempre inexistiriam elementos nos autos que permitam certificar que o encargo da CSR se cristalizou na sua esfera jurídica, isto é, que foi a Requerente a entidade que em última instância foi onerada com o tributo em causa, porquanto não incorporou o seu custo no preço dos serviços prestados aos seus clientes, que podem situar-se no circuito ou cadeia económico-comercial como os verdadeiros consumidores finais.
Concluindo ou sintetizando: para formar a sua convicção fundou-se o Tribunal nos elementos de prova documentais juntos aos autos, designadamente, as faturas relativas às aquisições de combustível pela Requerente – faturas juntas pela Requerente (Docs 2 a 64 com o PPA) e que não espelham as alegadas repercussões de CSR, ou seja, não mencionam o valor de CSR, nem existe qualquer correlação feita com os atos de liquidação correspondentes. Na realidade, é a própria Requerente que refere que este tributo está incluído no respetivo preço de venda pelas entidades fornecedoras desses produtos petrolíferos, pelo que não consta de forma autónoma de cada uma das faturas emitidas.
Dito doutro modo: não foi feita prova que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto em causa, a final, dado que, para fazer tal prova, seria necessário demonstrar ainda duas vertentes cumulativas:
(i) Que a CSR foi repercutida à Requerente, quais os montantes e em que períodos;
(ii) Que foi a Requerente que suportou em definitivo o encargo da CSR, ou seja, que no preço dos serviços que presta aos seus clientes não estava contemplada a repercussão da CSR (e/ou em que medida não estava), por forma a poder sustentar que suportou, de forma efetiva, o encargo do imposto.
III. FUNDAMENTAÇÃO (cont.)
O Direito
A. Questão prévia: incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria
Quanto à competência deste Tribunal, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, o pedido, tal como formulado pela Requerente, é arbitrável, isto é, se a apreciação de pretensões referentes à CSR tal como “desenhada” pela Requerente, se encontra ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.
Como é sabido e afigura-se pacífico, é pelo critério do pedido que se afere a competência de um tribunal.
Assim é que nesta sede, puramente formal, irrelevam quaisquer considerações em torno da viabilidade substancial da pretensão deduzida, as quais apenas deverão ser aferidas na fase do julgamento da causa.
Deste modo, não se verificará aquele apontado vício da instância se a pretensão concretamente deduzida, apreciada em abstrato e alheando-se de qualquer avaliação do seu mérito, couber no quadro das competências jurisdicionais do tribunal em que a ação pende.
No caso presente não subsistem dúvidas de que a pretensão deduzida — de resto, de modo bastante claro e sem qualquer ambiguidade ou equivocidade — é a de invalidação de diversos atos de liquidação da CSR, com fundamento em que o conteúdo exatório desses atos foi repercutido na esfera jurídica da Requerente e assacando-se-lhes vício que, de acordo com a argumentação sufragada, seria causa da respetiva ilegalidade.
Para apreciar a competência do tribunal é indiferente, portanto, saber se o vício invocado procede quer no que diz respeito à existência efetiva dos seus elementos constitutivos quer mesmo no que diz respeito ao efeito invalidante que se lhe atribui — tudo isso pertence já ao conhecimento da questão de fundo — ou se a requerente tem legitimidade adjetiva para o invocar em juízo, matéria que ingressará já no quadro da apreciação da exceção de ilegitimidade.
Ora, a jurisdição arbitral tributária é competente para conhecer de pretensões relativas à “declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos” [art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT]. Tanto basta, assim, para concluir pela manifesta improcedência da exceção de incompetência com este fundamento, na medida em que o que se peticiona não é a declaração de ilegalidade dos atos de repercussão do encargo de pagamento da CSR, mas antes a declaração de ilegalidade de atos de liquidação deste tributo cujos efeitos foram alegadamente repercutidos nas esferas da Requerente, pretensão que claramente se compreende no âmbito material da jurisdição arbitral tributária como se verá.
A competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)
Este âmbito material é, por sua vez, circunscrito na Portaria de Vinculação, nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
Objeto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.” (negrito nosso)
Ainda que a conjugação das referidas normas jurídicas não apresente uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de atos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela “Portaria de Vinculação”, o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria, o certo é que resulta incontroversa a inclusão no âmbito da competência material dos Tribunais Arbitrais a apreciação da legalidade de atos de liquidação de impostos.
Para o efeito de se responder a esta questão, torna-se necessário qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
Designadamente e entre outras, nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 508/2023-T e 520/2023-T, a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a exceção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:
“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma atividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspetiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.
Em sentido contrário, pronunciaram-se os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T, 410/2023-T e 861/2023-T que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Para o efeito, o acórdão proferido no âmbito do processo n.º 644/2022-T, de 24 de Outubro de 2023, decidiu, de forma elucidativa, no seguinte sentido:
“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coativo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afetação à realização de fins públicos – que definem um imposto. Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT. Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito ativo respetivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).
Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da atividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua conceção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.
Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)
Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respetiva natureza.
Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a exceção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”.
Assim sendo, cabendo tomar posição sobre a querela jurídica, este Tribunal Arbitral subscreve e acompanha a jurisprudência maioritária que qualifica a CSR como um imposto, uma vez que este corresponde a um tributo que efetivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Consequentemente, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos.
Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar os concretos pedidos formulados pela Requerente com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.
Ora, como a própria Requerida admite “foi intenção do legislador restringir a vinculação dos serviços e organismos ao CAAD no âmbito de pretensões que dizem respeito, especificamente, a impostos, aqui não se incluindo tributos de outra natureza, tais como as contribuições”.
Com o devido respeito por diferentes entendimentos jurisprudenciais, nomeadamente arbitrais, é entendimento deste tribunal arbitral que não se trata, na verdade, de contribuição, mas antes de um imposto. O que determina a qualificação de um tributo como contribuição financeira é o facto desse tributo ter por finalidade compensar prestações administrativas de que o sujeito passivo dessa mesma contribuição seja presumidamente beneficiário ou que a elas tenha dado causa. Não importa, pois, a designação que o legislador atribui ao tributo, mas sim a sua natureza intrínseca, a qual tem de respeitar os princípios subjacentes à qualificação de cada categoria de tributo.
Dito de outro modo, e retornando ao caso concreto da CSR, seria necessário que a prestação pública beneficiasse o respetivo sujeito passivo.
Assim sendo, não se vislumbra como considerar a CSR uma contribuição, já que esta é estabelecida a favor da empresa Infraestruturas de Portugal, SA (atual entidade titular da correspondente receita), os sujeitos passivos são as empresas responsáveis pela introdução no consumo dos produtos petrolíferos (principalmente empresas distribuidoras de combustíveis) mas os beneficiários e os responsáveis pelo financiamento da tarefa da Infraestruturas de Portugal é a população em geral, incluindo tanto os utilizadores da rede rodoviária nacional concessionada à Infraestruturas de Portugal, como os utilizadores de vias rodoviárias não incluídas da rede concessionada. Ora, esta generalidade contraria a alegada natureza de contribuição da CSR. A este respeito, e seguindo de muito perto a posição assumida, entre outros, nos Acórdãos proferidos no âmbito dos processos do CAAD nºs 113/2023-T, de 15-07-2023, 410/2023, de 13-11-2023, 375/2023-T, de 15/01/2024, 101/2024, de 04-06-2024 e 957/2023, de 8-7-2024, entende este Tribunal Arbitral, na linha dessas decisões, que improcede a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria.
Há ainda porém, nesta matéria, um argumento que importa rebater e que assenta no paralelismo que, por vezes, se tenta estabelecer entre a CSR e a CESE (Contribuição Especial para o Setor Energético).
É, segundo nos parece, argumento algo falacioso na medida em que a caracterização da CESE é substancialmente distinta da CSR, e, como tal, não é aplicável a jurisprudência arbitral que veio declarar a incompetência do Tribunal Arbitral ratione materiae para a apreciação de litígios que tinham como objeto a CESE.[1]
Na verdade, a CSR não é equiparável ao previsto para a Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE) na medida em que a receita obtida pela CESE[2] é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, e tem por base uma contraprestação de pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional. Ou seja: não se reconduz à taxa stricto sensu, visto que não incide sobre «uma prestação concreta e individualizada que a Administração dirija aos respetivos sujeitos passivos», nem preenche o requisito de unilateralidade que caracteriza o imposto, uma vez que não tem como finalidade exclusiva a angariação de receita, nem se destina à satisfação das necessidades financeiras do Estado, antes se pretendendo que o sector energético contribua para a cobertura do risco sistémico que é inerente à sua atividade.[3]
Ora situação bem diferente da que ocorre com a CSR, em que os beneficiários e os responsáveis pelo financiamento da tarefa da Infraestruturas de Portugal são a população em geral.
Por último, aos argumentos expostos acresce mencionar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), reforça este entendimento quanto à qualificação da CSR como imposto. Segundo o TJUE, à luz do Direito da União Europeia, esta qualificação “compete ao Tribunal de Justiça”, em função das caraterísticas objetivas de imposição, independentemente da qualificação que lhe é dada pelo direito nacional (cf. Istituto di Ricovero e Cura a Carattere Scientifico (IRCCS) — Fondazione Santa Lucia, processo C-189/15, acórdão de 18 de janeiro de 2017, §29; e Test Claimants in the FII Group Litigation, processo C-446/04, acórdão de 12 de dezembro de 2016, §107, entre outros).
A acrescer a estas decisões, o TJUE teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão atinente à CSR no âmbito do processo arbitral nº 564/2020-T, no qual foi promovido um pedido de reenvio prejudicial. Analisada a decisão proferida pelo TJUE conclui-se que este qualificou a CSR como imposto, porquanto na decisão (Despacho do Tribunal de Justiça de 07 de fevereiro de 2022 - Vapo Atlantic, processo C-460/21) o Tribunal de Justiça, não colocou em causa essa qualificação e assume, para efeitos do artigo 1 da Diretiva 2008/118, um conceito funcional ou autónomo de imposto indireto que abrange «quaisquer “imposições” indiretas que, pelas suas caraterísticas estruturais e teleológicas, não tenham um “motivo específico” na aceção da diretiva e possam, por conseguinte, privar o imposto especial de consumo harmonizado.[4]
Seguindo o raciocínio inerente à decisão do TJUE, o tributo criado pela lei portuguesa – e que este designou por “contribuição” – constitui um imposto porquanto, por opção do legislador português, representa uma imposição indireta sem motivo específico e como tal suscetível de frustrar os desideratos de harmonização positiva subjacentes à Diretiva 2008/118. Ou seja, o legislador português apesar de classificar o tributo como “contribuição”, definiu a respetiva incidência subjetiva em termos análogos à do ISP (artigo 5 da Lei n.º 55/2017, de 31 de agosto), colocando-se, assim, no âmbito de aplicação do artigo 1, n.º 2 da Diretiva 2008/118.
Isto significa que, como mencionado na decisão proferida no citado processo 957/2023-T, «mesmo que, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional português, a CSR houvesse de ser qualificada como uma contribuição financeira (inconstitucional, desde já se avança), nem por isso ela – tal como está desenhada – deixaria de ser um imposto indireto na aceção da Diretiva. Isto sob pena de os Estados-membros poderem, em função da maior ou menor criatividade constitucional em termos de tributos públicos, frustrar os propósitos de harmonização e de neutralidade no plano dos impostos indiretos sobre o consumo.»
Posto isto, resulta clara a posição do TJUE vertida no despacho proferido no processo C‑460/21, a 7 de fevereiro de 2022, quando afirma que a CSR foi criada com uma finalidade puramente orçamental de obtenção de receita (imposto), não lhe estando subjacente qualquer “motivo específico” de política ambiental, energética ou social, dando-se por reproduzidos os demais argumentos. Assim, a questão da qualificação jurídica como imposto está consagrada na decisão do TJUE, e em numerosa jurisprudência dos nossos Tribunais arbitrais.
Acresce ainda que as taxas da CSR possuem valor fixo, estabelecido na própria Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, incidindo sobre os litros do produto transacionado/introduzido no consumo e não sobre o valor da transação, reforçando a sua natureza de imposto específico, uma vez que possui um valor fixo, independente do nível de preço. O mesmo se aplica ao ISP-Consignação de Serviço Rodoviário. Quanto ao demais afirmado pela Requerida sobre a incompetência do Tribunal, considerando que na interpretação das peças processuais se deve observar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, e que o Tribunal deve extrair da redação dada ao pedido na petição inicial o sentido mais favorável aos interesses do peticionante, improcedem todos os outros argumentos aduzidos pela Recorrida.
Em suma, a questão jurídica em discussão nos presentes autos integra a competência do Tribunal arbitral, na medida em que se trata de apreciação de atos tributários e respetiva legalidade da liquidação da CSR, criada pela Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto.
Como se disse, face à posição sufragada no supramencionado Acórdão do TJUE, há que considerar este tributo desconforme ao Direito da União Europeia, nomeadamente, ao n.º 2 do artigo 1.º da Diretiva n.º 2008/118/CE, de 16/12/2008, como resulta sufragado pelo despacho proferido pelo TJUE em 07/02/2022, no âmbito do processo nº C-460/21.
Termos em que se conclui pela competência material do Tribunal arbitral – Cf. al. a) n.º 1, art.º 2.º e art.º 4.º, ambos do RJAT e pela improcedência da invocada exceção.
Questão prévia: ilegitimidade processual
Seguindo de perto e, por vezes, mesmo de muito perto, as considerações tecidas nos acórdãos arbitrais proferidos por Tribunais Coletivos presididos por quem também preside ao presente Tribunal nos processos nºs 357/2024-T,1036/2023-T, 649/2024-T, 645/2024-T, 50/2024-T e 295/2024-T, dir-se-á o seguinte:
Não consta do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, por via da aplicação do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT, que remete para as disposições legais de natureza processual do Código de Processo e de Procedimento Tributário (“CPPT”), do CPTA e do CPC.
Da regra geral do direito processual, constante do artigo 30.º do CPC, resulta que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar, sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (v. artigo 9.º, n.º 1 do CPTA).
A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário, cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”), como “a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.”.
No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (vide artigo 1.°, n.º 2, da LGT).
Do CPPT resulta a existência de uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT). No mesmo sentido, ainda que se refira somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu artigo 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”. E o artigo 78.º da LGT assegura a mesma posição de legitimidade ou ilegitimidade conferida pelas regras gerais sobre o tema.
Em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual.
Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (vide artigo 9.º, n.º 2 do CPPT), enquanto no que respeita aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (vide artigo 9.º, n.º 3 do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.
Subsumindo:
In casu, a Requerente invoca a qualidade de repercutido legal para deduzir a ação arbitral (SÉRGIO VASQUES, afirma acertadamente que “se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.” - Cfr. Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., p. 401), referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral”.
Contudo, importa começar por reafirmar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado artigo 18.º, n.º 3 da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).
Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º da LGT, pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem“suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (vide artigo 9.º, n.ºs 1 e 4 do CPPT).
Conforme resulta da jurisprudência do CAAD (cfr., entre outros e além dos já citados) o acórdão proferido no processo 296/2023-T, de 1 de fevereiro de 2024) “(...)qualquer que seja a posição a adotar em tese geral e, salvo disposição legal em contrário -, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efetivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias. (...)”
Neste âmbito, JORGE LOPES DE SOUSA, refere que “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [artigo 18. °, n.º 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do (…) respetivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar. (...) “É de considerar ser titular de um interesse suscetível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser diretamente afetado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.°, n.° 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão direta na sua esfera jurídica (...) – Cfr. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, pp. 115 a 120).
Ora, conforme muito bem se assinalou no acórdão do CAAD, de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbito do processo 296/2023-T, “qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”).” (negrito nosso).
A referida disposição legal (artigo 15.º, n.º 2, do CIEC) estabelece que “podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respetivo imposto.”.
Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjetiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redação:
“1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo:
a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado; (…)
(...)
2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:
a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;”
Efetivamente, desde a redação inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjetiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.
Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados, e só quando preencham requisitos adicionais, podem suscitar questões sobre, tal como resulta do n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”. Ora, esta solução apresenta total cabimento face à impraticabilidade que seria fazer a gestão de um sistema demasiadamente aberto a todo o género e tipo de reembolsos, com uma duvidosa forma de controlo (a esta mesma conclusão chegaram, entre outras, as decisões proferidas nos processos n.ºs 296/2023-T, 408/2023-T, 375/2023-T, 633/2023-T e 861/2023-T).
Por outro lado, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal.
Com efeito, a Lei n.º 55/2007, de 31 de agosto, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vide artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
Pois bem, infere-se do articulado da Requerente que esta legitima a sua intervenção processual do facto singelo de lhe ter sido repercutida a CSR pelas empresas fornecedoras de combustíveis ( e algumas não são sujeitos passivos de ISP/CSR) caracterizando-se como um consumidor de combustíveis, sobre o qual recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo.
Todavia, a repercussão económica – pois é deste tipo de repercussão de que se trata - não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo, além de que a Requerente não tem a qualidade de consumidor de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”) pois na verdade, o combustível adquirido é um fator de produção no circuito económico, pelo que se a CSR se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida a Requerente, esta não faz parte das entidades potencialmente lesadas e que são ou seriam os consumidores e não os operadores económicos.
Acresce que nos termos da lei que prevê a CSR, não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico, pelo que será errónea a conclusão de que é sobre a Requerente que recai tal encargo. Basta atentar, para esta conclusão, no artigo 5.º, n.º 1 da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”.
Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma, pelo que o artigo 5.º, n.º 1, não remete para o artigo 2.º do CIEC (que prevê a repercussão legal nos impostos especiais sobre o consumo), mas apenas para as normas desse código que regulam a liquidação, cobrança e pagamento do imposto pelo sujeito passivo.
Como salienta o acórdão do CAAD, de 8 de janeiro de 2024, proferido no âmbito do processo 408/2023-T, doutrina a que se adere:
“1. A Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
2. A Requerente não é consumidor final, o que significa que os gastos em que incorre são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
3. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis à Requerente, não há razões para crer que esta, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenha também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, que nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).”
Ora, não sendo a Requerente o sujeito passivo da CSR, nem repercutido legal desta contribuição, não lhe assiste legitimidade processual, a menos que, como interessada, alegue e demonstre factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., que evidencie um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre si impende.
Contudo, o único facto que a Requerente alega para este efeito é o de lhe ter sido repercutida a CSR, qualificando esta repercussão, erradamente, como legal: a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza, a qual, porém, não existe.
Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que a Requerente afirma.
Na realidade, a Requerente é tão-só um cliente comercial dos sujeitos passivos – e nem todos o são - que liquidaram a CSR.
Assim é que, tal como foi afirmado no acórdão do CAAD, de 8 de janeiro de 2024, proferido no âmbito do processo 408/2023-T:
“Não integra, nem é parte da relação tributária, nem é repercutido legal. Também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenha sido a Requerente a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas: − Que a CSR foi repercutida à Requerente, qual o montante e em que períodos; − Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que presta aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR e em que medida, por forma a poder sustentar que suportou de forma efetiva o encargo do imposto”.
Conforme se deixou referido supra, a Requerente limitou-se a juntar várias faturas dos seus fornecedores de combustíveis (gasóleo e gasolina) que, como se viu, estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto.
Posto isto, a Requerente não logrou, por isso, atestar que suportou o tributo contra o qual reage. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhe poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente ação arbitral, tendo em conta que não é sujeito passivo, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutido legal da CSR.
Igualmente, como acima referido, e tal resulta dos acórdãos do CAAD, de 8 de janeiro de 2024 e de 1 de fevereiro de 2024, proferido no âmbitos dos processos n.ºs 408/2023-T e 296/2023-T, compreende-se que o legislador não tenha adotado um conceito irrestrito de legitimidade ativa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o ato de liquidação do imposto, a determinação da sua efetiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor.
Isto é, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
Por fim, em cumprimento do desiderato do direito nacional e da União Europeia, não se diga que a Requerente ficou desprovida de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma ação civil de repetição do indevido instaurada contra o seu fornecedor, se reunir os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspetiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (vide artigo 20.º da Constituição).
A este propósito adiante-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao atual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação, precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (vide Acórdão de 1 de outubro de 2003, processo n.º 0956/03) – Cfr ainda, na mesma linha, os Acórdãos do CAAD nos processos nºs 295/2024-T proferidos por Tribunais Coletivos presididos pelo árbitro que também preside a este Tribunal
Em suma, em face do exposto deve julgar-se verificada a exceção de ilegitimidade da Requerente, constituindo uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Tribunal conheça a questão de fundo e demais questões suscitadas, com a consequente absolvição da Requerida da instância, nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
Assim é que, em resultado da apreciação das questões prévias referentes à (in)competência do Tribunal Arbitral em razão da matéria e à ilegitimidade processual, resulta que o presente Tribunal arbitral é materialmente competente para se pronunciar sobre a ilegalidade e anulação das liquidações de CSR; todavia, a Requerente é parte ilegítima para suscitar o pedido de ilegalidade das correspondentes liquidações de CSR praticadas pela Requerida.
Com a procedência desta exceção fica prejudicada a apreciação do mérito do pedido e das demais questões suscitadas no processo.
III. DECISÃO
Com base no exposto, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:
a) Julgar improcedente a exceção de incompetência material e, em consequência, declarar competente este Tribunal Arbitral para apreciar da ilegalidade e anulação dos atos objeto dos autos e mencionados supra;
b) Julgar procedente a exceção de ilegitimidade ativa e, em consequência absolver a Requerida da instância;
c) Julgar prejudicada a apreciação das demais questões e exceções suscitadas e
d) Condenar a Requerente nas custas atento o seu decaimento.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se ao processo o valor de € 200.451,80 de acordo com o disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º- A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicáveis por força do que se dispõe no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2 do RCPAT.
CUSTAS
Custas no montante de 4.284,00, a cargo da Requerente, por ter sido total o seu decaimento, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com os artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT, e 527.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
· Notifique-se.
Porto, 26 de maio de 2025
O Tribunal Arbitral Coletivo,
José Poças Falcão
Presidente e Relator
Rui Miguel Zeferino Ferreira
Árbitro Adjunto
Maria Alexandra Mesquita
Árbitro Adjunto
[1] Neste sentido, cfr: Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 714/2020-T, de 12-07-2021.
[2] A CESE foi criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, como contribuição extraordinária que tem “por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”, incidindo sobre as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional.
[3] Nestes termos, como se disse no Acórdão supracitado, proferido no processo nº 957/2023-T, «a CESE trata-se de um tributo de carácter comutativo, embora baseado numa relação de bilateralidade genérica ou difusa que, interessando a um grupo homogéneo de destinatários e visando prevenir riscos a este grupo associados, se efectiva na compensação de eventual intervenção pública na resolução de dificuldades desse sector, assumindo assim a natureza jurídica de contribuição financeira.»
[4] Vd. par. 26 do Despacho Vapo Atlantic.