Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 478/2024-T
Data da decisão: 2025-05-29  IRC  
Valor do pedido: € 20.844,82
Tema: IRC; OIC; distribuição de dividendos; retenção na fonte; Livre circulação de capitais.
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Sumário

 

  1. A interpretação do Tribunal de Justiça sobre o direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquela.
  2. O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

 

Decisão Arbitral

 

O árbitro designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 14 de junho de 2024, Marisa Almeida Araújo, decide o seguinte:

 

I.         Relatório

 

A..., Organismo de Investimento Coletivo constituído de acordo com o direito alemão, com o número de contribuinte português..., com sede em..., ... Frankfurt am Main, Alemanha, de ora em diante designada por “Requerente”, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, bem como dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, na redação vigente. 

 

A Requerente pretende a anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa; a anulação dos atos tributários de retenção na fonte de IRC e o reconhecimento do direito do Requerente à restituição da quantia de EUR 20.844,82, relativa a retenções na fonte de IRC suportadas em Portugal sobre dividendos distribuídos no ano de 2021, tudo com as consequências legais, mormente o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante também designada por “Requerida” ou “AT”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 22 de maio de 2024 e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 1 de abril de 2024 e, de seguida, notificado à AT.

 

Nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 3, alínea a), do artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o árbitro aqui signatário, que comunicou a aceitação do encargo.

 

Em 23 de maio de 2024, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

O Tribunal Arbitral foi constituído em 14 de junho de 2024. 

 

A Requerida defendeu-se por impugnação em 9 de julho de 2024, pugnando pela absolvição dos pedidos. 

 

Foi dispensada a reunião a que alude o art.º 18,º do RAJT e as partes foram convidadas a apresentar alegações finais escritas.

 

A Requerente apresentou as suas alegações em 27 de setembro de 2024.

 

Posição da Requerente

 

O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituída sob a forma contratual e não societária. 2.º O Requerente é um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país.

O Requerente detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes, para efeitos fiscais, em Portugal sendo que no ano de 2021 o Requerente era detentor de participações sociais da sociedade residente em Portugal “C... SGPS, S.A.”.

 Requerente, na qualidade de acionista desta sociedade residente em Portugal, recebeu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos. 

Os dividendos recebidos no decorrer do ano de 2021, foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25%, prevista no n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC (“CIRC”). O Requerente recebeu dividendos e suportou em Portugal IRC por retenção na fonte, no montante total de € 20.844,82.

No dia 09.06.2023, o Requerente apresentou, ao abrigo do artigo 132.º n.ºs 3 e 4 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 137.º do CIRC, Reclamação Graciosa para apreciação da legalidade dos referidos atos de retenção na fonte de IRC relativos ao ano de 2021, na qual solicitou a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da UE, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal.

Em 29.12.2023 (carta registada de carta registada de 27.12.2023), o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da Reclamação Graciosa.

O Requerente não concorda com a posição assumida pela AT considerando que, o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal por OIC não residentes estão sujeitos a retenção na fonte liberatória em sede de IRC a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes) não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, tal como resulta expresso e inequívoco da decisão do TJUE.

Foi decidido o reenvio de questões prejudiciais para análise do TJUE, em tudo idênticas às que se colocam nos presentes autos, tendo o processo corrido termos junto do TJUE sob o n.º C-545/19. Em 17.03.2022 foi conhecido o veredito do TJUE no processo que correu termos sob o n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), no qual o TJUE se pronunciou, de acordo com a pretensão do Requerente no processo, sobre o regime português de tributação de dividendos auferidos por OIC. 

Assim, da decisão supra decorre, inapelavelmente, a procedência do presente pedido, uma vez que a questão material controvertida se mostra integralmente resolvida por aquela instância comunitária. 

Com efeito, a matéria de facto e de direito subjacente ao referido processo decidido pelo TJUE é em tudo idêntica à objeto dos presentes autos.

            

            Concluindo a Requerente que se mostram ilegais os atos de retenção na fonte de IRC incidentes sobre o pagamento de dividendos relativos ao ano de 2021, por violação do princípio do primado consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o que motivará a integral procedência do presente pedido arbitral, concluindo-se pela anulação dos atos tributários ora sindicados e pelo direito do Requerente à restituição do imposto indevidamente suportado, acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos nos termos do artigo 43.º da LGT, tudo com as demais consequências legais.     

 

 

 Posição da Requerida

 

            O Requerente é um organismo de investimento coletivo (OIC) e “(…) um sujeito passivo de IRC não residente, para efeitos fiscais, em Portugal e sem qualquer estabelecimento estável no país”.  

            No ano de 2021 recebeu dividendos, os quais foram tributados em Portugal à taxa de 25%, nos termos do disposto no n.º 4 do art.º 87.ºdo CIRC. O artigo 22.º do EBF, norma aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, e cuja desconformidade está na base das alegadas ilegalidades suscitadas pelo Requerente, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro. 

            Nos termos do diploma suprarreferido estabeleceu o legislador que para esses sujeitos não são considerados na determinação do lucro tributável os rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do CIRS, que estão isentos das derramas municipal e estadual, e, que estão dispensados da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos por si obtidos, n.ºs 3, 6 e 10 do artigo 22.º do EBF.

            No entanto, e conforme decorre do estatuído no n.º 1 do artigo 22.º do EBF, entendeu o legislador circunscrever tal regime jurídico aos OIC’s constituídos sob a égide do direito português e que operem de acordo com a legislação nacional. Regime que, atenta a natureza jurídica do Requerente não se lhe aplica, designadamente, por não preenchimento dos pressupostos plasmados no n.º 1 do artigo 22.º do EBF, considerando que não se constituiu, nem opera, nos termos da lei portuguesa. 

            Invoca o Requerente que o estatuído no n.º 4 do artigo 87.º do CIRC, bem como o próprio artigo 22.º do EBF, é desconforme com o TFUE tendo em conta que “(…) existe uma diferença de tratamento conferida pela legislação fiscal portuguesa, entre os OIC residentes e os OIC não residentes, na tributação de dividendos de fonte portuguesa”, diferença essa que se consubstancia “(…) no diferente tratamento fiscal que é conferido aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão isentos de imposto – e aos rendimentos obtidos em Portugal por OIC não constituídos ao abrigo da lei portuguesa – que estão sujeitos a retenção na fonte liberatória de IRC a uma taxa de 25%”. 13.º Sustenta a posição que sufraga no Acórdão do TJUE proferido no âmbito do P. C-545/19. 14.º Salvo o devido respeito, não lhe assiste a razão, segundo a Requerida, porquanto no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF estão incluídos OIC’s constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC’s constituídos nos demais Estados-Membros da EU, que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado. 

            Pelo que não se vislumbra em que medida a Requerida violou os princípios invocados.

            Acrescenta ainda a Requerida que, igualmente se impõe salientar que, ao contrário do alegado, e como já se aflorou supra, o disposto no n.º 10 do artigo 22.º do EBF não constitui uma isenção, mas antes uma dispensa da obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos OIC constituídos e que operem de acordo com a legislação nacional. Os OIC’s não residentes e sem estabelecimento estável em território português não se enquadram no n.º 1 do artigo 22.º do EBF e, consequentemente, nos n.ºs 2, 3 e 10 do mesmo artigo, como igualmente não se enquadram no invocado Acórdão do TJUE.

            Afigurando-se, assim, que a posição da Requerida configura uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, nos termos da qual estarão dispensados de retenção na fonte de IRC, os OIC’s não residentes que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado, o que, como se viu, não se verifica na situação do Requerente.

 

            Conclui a Requerida que não merece qualquer juízo de censura, antes se afigurando que esta posição é a única que se coaduna com o princípio da legalidade ao qual está subordinada. 27.º Nestes termos, deve a presente ação arbitral ser julgada improcedente, absolvendo-se a Requerida dos pedidos

 

 

II.        Saneamento

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março) e o processo não enferma de nulidades.

Não existe matéria de exceção que obste ao conhecimento do mérito da causa.

 

            III.      Fundamentação

 

            III. I. Matéria de facto 

 

A.   Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

1.     O Requerente é, de acordo com o quadro regulatório e fiscal alemão, uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente um Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”), com residência fiscal na Alemanha, constituído sob a forma contratual e não societária, comumente designado de fundo de investimento, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal, sem qualquer estabelecimento estável no país.

2.     No ano de 2021, o Requerente era detentor de um lote de participações sociais em sociedade residente, para efeitos fiscais, em Portugal, tendo recebido, na qualidade de acionista dessa sociedade, dividendos sujeitos a tributação em IRC em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos.

3.     A entidade responsável pela custódia dos títulos detidos em Portugal era o B... GmbH.

4.     Os referidos dividendos recebidos no decorrer do ano de 2021 foram sujeitos a tributação em IRC por retenção na fonte liberatória, à taxa de 25% prevista no artigo 87.º do Código do IRC (“CIRC”), tendo o imposto retido na fonte sido entregue junto dos cofres da AT em Portugal.

5.     O Requerente suportou, em Portugal, no ano em causa, a quantia total de EUR 20 844,82, a qual constitui objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.

6.     Por discordar da retenção na fonte efetuada, no dia 09.06.2023, o Requerente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 132.º n.ºs 3 e 4 do Código do Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 137.º do CIRC, reclamação graciosa dos atos de retenção na fonte de IRC relativos aos ano de 2021, na qual solicitou a anulação dos mesmos por vício de ilegalidade por violação direta do Direito da União Europeia (UE), bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal.

7.     No dia 29.12.2023, o Requerente foi notificado, através de Ofício datado de 19.12.2023, do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada.

8.     O pedido de pronuncia arbitral foi apresentado em 1 de abril de 2024.

 

 

B.   Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT).

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a sua convicção ficou formada, sobretudo, com base nas peças processuais e nos documentos juntos pela Requerente.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

            III.II. Matéria de Direito

 

            Importa determinar, para efeito de apreciação dos pedidos, se o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes) é, ou não, compatível com o princípio da livre circulação de capitais.

            Quanto a esta matéria temos, desde logo, em consideração a decisão do TJUE no âmbito do processo n.º C-545/191. No referido processo (AllianzGI-Fonds AEVN), com matéria de facto análoga à dos presentes autos, o TJUE conclui que os artigos 56.° e 63.° TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção. 

Esse órgão jurisdicional interroga‑se, por um lado, sobre a questão de saber se esse tratamento fiscal diferente em função do local de residência da instituição beneficiária pode ser justificado pelo facto de os OIC residentes estarem sujeitos a outra técnica de tributação e, por outro, se a apreciação da comparabilidade das situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes para efeitos de determinar se existe uma diferença objetiva entre estes, de molde a justificar a diferença de tratamento instituída pela legislação desse Estado‑Membro, deve ser efetuada apenas ao nível do veículo de investimento ou deve igualmente ter em conta a situação dos detentores de participações sociais.

Neste âmbito o TJUE conclui que, o artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

O que significa, na senda da posição do Requerente que, o regime previsto nos artigos 94.º n.º 1 alínea c), 94.º n.º 3 alínea b), 94.º n.º 4 e 87.º n.º 4, todos do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes) não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais, tal como resulta expresso e inequívoco da decisão do TJUE. E, nessa medida, deve o regime que resulta daqueles normativos ser afastado, por força do princípio do primado, consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) sendo, assim, forçoso concluir que não podem manter-se os atos tributários de retenção na fonte ora sindicados, porque manifestamente ilegais.

Seguindo a decisão, entre outras, proferida no âmbito do processo n.º 1174/2024-T, a que aderimos, 

“[N]os termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1”.

Tendo a AT através da Circular 6/2015, de 17 de Junho esclarecido quanto ao artigo 22.º do EBF que: “Esta exclusão abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais, que tenham a natureza de rendimentos de capitais, prediais ou mais-valias, incluindo, nomeadamente, as menos-valias realizadas ou potenciais, os rendimentos vencidos e ainda não recebidos, os rendimentos e gastos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros e imóveis que integram o património do fundo, bem como os gastos ou perdas associados a variações cambiais, os quais consubstanciam, por natureza, rendimentos daquelas categorias e, de acordo com o normativo contabilístico aplicável aos OIC, devem ser contabilizados conjuntamente com os ativos que lhes deram origem.

Cumpre, assim, analisar se o artigo 22.º do EBF, ao excluir de tributação os dividendos auferidos por OIC residentes em território nacional, e sujeitar a retenção na fonte os dividendos auferidos por entidades equivalentes não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos do artigo 63.º do TFUE.

Sem mais delongas, adiante-se desde já que entende este Tribunal Arbitral que assiste razão aos Requerentes quando defendem que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OIC constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OIC constituídos segundo a legislação de países terceiros (como sejam os EUA), viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, em linha com jurisprudência arbitral recente nesta matéria: Decisão Arbitral de 20-09-2023, processo n.º 12/2023-T; Decisão Arbitral de 23-02-2024, processo n.º 777/2023-T; Decisão Arbitral de 28-03-2024, processo n.º 840/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 577/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 842/2023-T; Decisão Arbitral de 15-04-2024, processo n.º 849/2023-T; Decisão Arbitral de 21-05-2024, processo n.º 839/2023-T; Decisão Arbitral de 11-06-2024, processo n.º 60/2024-T; Decisão Arbitral de 24-06-2024, processo n.º 850/2023-T.

Relembre-se a jurisprudência do STA vertida no Acórdão de 13/09/2023, processo n.º 715/18.7BELRS (subscrita por vários Acórdãos subsequentes do mesmo Tribunal, designadamente nos processos: 0802/21.4BELRS, de 08/05/2024; 0806/21.7BELRS e 0755/19.9BELRS, ambos de 29/05/2024; e 0757/19.5BELRS de 05/06/2024). E mais recentemente também pelo STA no processo n.º 01676/20.8BELRS, de 11/07/2024. E na mesma senda deste último Acórdão, por se aderir aos fundamentos expressos no citado no Acórdão do STA de 13/09/2023, remete-se para o mesmo, destacando-se o excerto que de seguida se transcreve:

“Como referimos, o Tribunal recorrido assentou a sua decisão no acórdão do TJUE, de 17 de março de 2022, proferido no processo C-545/19. Sobre este acórdão a AT não se pronuncia nas suas conclusões de recurso, designadamente não afasta a doutrina que dele emana ao caso em apreço.

Ora, no acórdão em referência estava em causa um reenvio prejudicial apresentado no âmbito de um litígio que opunha a AllianzGI-Fonds AEVN à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito da retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. E discutia-se a compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFUE, tendo o TJUE concluído que:

O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado - Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

Esta jurisprudência, proferida relativamente a uma OIC de um país Membro da União Europeia, aplica-se manifestamente a uma OIC de um País Terceiro, uma vez que por força do artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, a livre circulação de capitais aplica-se tanto aos fluxos de capitais entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e países terceiros, sem nenhuma condição de reciprocidade (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08). Esta característica distingue a livre circulação de capitais de todas as outras liberdades do mercado interno, uma vez que estas se aplicam exclusivamente no território dos Estados-Membros.” (negrito nosso)

Daqui se retira, de forma clara, que o artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, quando torna aplicável o regime aí previsto apenas a OIC constituídos à luz da legislação portuguesa, excluindo os que o foram segundo as demais legislações dos Estados Membros da EU ou de países terceiros. In casu, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OICs residentes num Estado terceiro, são objeto de retenção na fonte, quando, ao invés, os dividendos distribuídos a OICs que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional não estaria, sujeito a essa mesma retenção.

Ainda quanto à questão da comparabilidade, recorde-se que a AT veio alegar, na sua resposta, que tais situações não são comparáveis, defendendo que o tratamento fiscal é diferenciado entre um OIC que se constitua e operem de acordo com a legislação nacional e um OIC não residente, porquanto o primeiro é tributado em sede de imposto do selo (verba 29 TGIS) e o último não. Porém, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, foi decidido que tal circunstância é irrelevante, na medida em que não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes, tal como resulta dos parágrafos 53 a 58 do referido Acórdão, que se passam a transcrever:

53 - A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

54 Além disso, como salientou a advogada-geral no n.o 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).

55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. 56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.

57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.o 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.o TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado-Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado-Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.

Conclui-se, assim, que também aqui não assiste razão à Requerida.

Importa também recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do Direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE. Não há dúvida de que, estando em causa questões de Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02, e de 27-11-2018, proferido no âmbito do processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1).

O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Daqui se retira que os tribunais nacionais (incluindo os tribunais arbitrais) têm o poder-dever de desaplicar as normas de direito interno que se revelem contrárias a normas de Direito da União Europeia, desde que estas respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14).

 

Pelo exposto, e considerando a incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito de aplicação os OIC constituídos segundo a legislação de países terceiros, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula as liquidações de IRC por retenção na fonte contestadas, e os atos de indeferimento tácitos das reclamações graciosas apresentadas pelos Requerentes, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT”.

 

 

            Dos juros indemnizatórios

 

A Requerente, peticiona a restituição da quantia paga, acrescida de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da LGT, que, no seu n.º 1 dispõe que estes são devidos “quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

O direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral como resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 5 do RJAT e da jurisprudência consolidada.

Esta disciplina deriva do dever, que recai sobre a AT, de reconstituição imediata e plena

 da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, como resulta do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, fazendo este último preceito referência expressa ao pagamento de juros indemnizatórios, compreendido nesse efeito repristinatório do statu quo ante.

O que significa que na execução do julgado anulatório a AT deve reintegrar totalmente

 a ordem jurídica violada, restituindo as importâncias de imposto pagas em excesso e, neste âmbito, a privação ilegal dessas importâncias deve ser objeto de ressarcimento por via do cálculo de juros indemnizatórios, por forma a reconstituir a situação atual hipotética que “existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado”.

Face ao exposto, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de indeferimento da Reclamação Graciosa, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea d) da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais

 

Nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do CPC [ex vi 29.º, nº 1, alínea e) do RJAT], será condenada em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

Neste âmbito, o n.º 2 do referido artigo concretiza a expressão “houver dado causa”, segundo o princípio do decaimento, entendendo que dá causa às custas do processo a parte vencida. 

 

            IV. Decisão

 

Nestes termos, o Tribunal Arbitral decide:

a)    Anular os atos tributários de retenção na fonte de IRC;

b)    Anular a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada pelo Requerente com referência às retenções na fonte em apreço, com as consequências legais, incluindo o reembolso do montante pago indevidamente, acrescido dos juros indemnizatórios;

c)    Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

V.        Valor do Processo 

 

            Fixa-se ao processo o valor de € 20.844,82, indicado pela Requerente e não impugnado pela Requerida, correspondente à utilidade económica do pedido – Cfr. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”) e artigo 306.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (“CPC”), ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

VI.          Custas 

            

            Custas no montante de € 1.224,00 a cargo da Requerida, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. 

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa e CAAD, 29 de maio de 2025

 

O árbitro,

 

 

 

Marisa Almeida Araújo