SUMÁRIO
I. Para contrariar a força probatória das informações oficiais obtidas pela Autoridade Tributária (AT) de congéneres autoridades fiscais estrangeiras ao abrigo de convenções de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado (resultante do n.º 4 do artigo 76.º da LGT), não é exigido ao sujeito passivo que faça prova do contrário, pois “a lei não lhes atribui força probatória plena, bastando gerar dúvidas fundadas sobre os factos nelas afirmados, como resulta do preceituado no art. 346.º do CC” (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28.01.2021, processo n.º 00007/04.9BEMDL; Decisão Arbitral de 21.06.2022, processo n.º 601/2022-T).
II. Não tendo o legislador estipulado que prova devem os sujeitos passivos apresentar para contrariar as informações obtidas pela AT de congéneres autoridades fiscais estrangeiras ao abrigo de convenções de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, vigora o regime da prova livre, no âmbito do qual os elementos apresentados pelos sujeitos passivos são apreciados pelo tribunal arbitral com inteira liberdade, mas segundo a sua experiência, prudência e o bom senso.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha (Árbitro Presidente), Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho e Dra. Rita Guerra Alves (Árbitros Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 08.10.2024, com respeito ao processo acima identificado, decidiram o seguinte:
1. {C}{C}Relatório
A..., contribuinte fiscal número ... (doravante designado por “o Requerente”), e B..., contribuinte fiscal número ...,residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Mafra (doravante conjuntamente designados por Requerentes), na sequência do ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada em 17.01.2024, contra a liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao exercício de 2019, no montante de €150.057,63, vieram, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, ou “RJAT”), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112‐A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“AT” ou “Requerida”), peticionando ao Tribunal Arbitral o seguinte:
“1. Ser decretada a anulação da liquidação/cobrança de €384.929,28 referente ao IRS de 2019, pois apenas € 78.377,61 respeitam a rendimentos de capital pelo resgate de um PPR;
2. Ser excluído da tributação três quintos desse rendimento e o remanescente sujeito à taxa de 21,5%, conforme os art.º 5º, n.º 3 do CIRS e 21º n.º 5 do EBF, acrescido dos respetivos juros compensatórios.
Ou, caso não seja esse o entendimento,
3. Considerar que apenas €78.377,61 dos €384.929,28 recebidos pelo Impugnante respeitam a rendimentos de capital e aplicar a taxa de 28%, conforme o art.º 72º, n.º 1, alínea d) do CIRS, acrescido dos respetivos juros compensatórios.
4. Assim, deverá ainda ser desenvolvida a Garantia Bancária solicitada ao Banco BPI, S.A. e devem também todos os valores pagos até à data da sentença sejam deduzidos no montante a pagar”.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 29.07.2024. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, a AT foi notificada em 09.08.2024. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou, como Árbitros, os acima identificados. Em 18.09.2024, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 08.10.2024, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio.
Notificada para o efeito, a AT veio apresentar resposta ao PPA e juntar o processo administrativo (“PA”) em 11.11.2024. Em 22.11.2024, os Requerentes vieram responder à exceção suscitada pela AT na resposta ao PPA.
Por despacho de 14.01.2025, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada, e em sintonia com o previsto no artigo 113.º do CPPT, subsidiariamente aplicável, por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, dispensada a apresentação de alegações escritas.
Por despacho de 08.04.2025, as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre uma eventual alteração do valor da causa.
2. Saneamento
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, em face do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAT.
O PPA é tempestivo, porquanto foi apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea e), do CPPT, a contar do indeferimento tácito do pedido de reclamação graciosa deduzida, em 17.01.2024, contra a liquidação de IRS impugnada.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Na resposta ao PPA veio a AT suscitar a exceção de ineptidão da petição inicial (leia-se PPA), por incumprimento dos requisitos contidos no artigo 186.º do CPC e no artigo 10.º, n.º 2, do RJAT, mais especificamente, por não identificar os atos tributários objeto do pedido. Diz a AT que, no PPA, os Requerentes identificam o ato de liquidação de IRS que entendem conter erro/lapso de quantificação, mas que não se sabe se o PPA foi apresentado na sequência de uma reclamação graciosa que dizem ter apresentado e sobre a qual alegadamente se formou um indeferimento tácito, uma vez que nenhum pedido é formulado por referência àquele indeferimento. Argumenta a AT que esta omissão impede o exercício pleno e eficaz do seu direito ao contraditório.
Em resposta a esta exceção, os Requerentes alegaram, em suma, que apresentaram os factos e fundamentos da sua petição inicial, referindo a liquidação de IRS que deu origem à apresentação de uma reclamação graciosa, cujo indeferimento tácito os levou a apresentar uma petição inicial. Mais sublinharam os Requerentes que, na resposta ao PPA, a AT referiu várias vezes a reclamação graciosa em apreço, e que a AT tem acesso à documentação relativa à mesma.
Cumpre decidir.
O artigo 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, indica, como uma das nulidades insanáveis em processo judicial tributário, a ineptidão da petição inicial. Não indicando o CPPT as situações em que se deve entender que ocorre ineptidão da petição inicial, há que fazer apelo ao artigo 186.º do CPC, que é de aplicação subsidiária ao processo judicial tributário, nos termos do artigo 2.º, alínea e), do CPPT, e ao processo arbitral tributário, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
No artigo 186.º, n.º 1, do CPC, indicam-se as seguintes situações de ineptidão da petição inicial:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
O n.º 3 do mesmo artigo estabelece que “se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial”.
Conforme dispõe expressamente o n.º 2 do artigo 10.º do RJAT: “O pedido de constituição de tribunal arbitral é feito mediante requerimento enviado por via eletrónica ao presidente do Centro de Arbitragem Administrativa do qual deve constar:
a) A identificação do sujeito passivo, incluindo o número de identificação fiscal, e do serviço periférico local do domicílio ou sede do sujeito identificado em primeiro lugar no pedido;
b) A identificação do ato ou atos tributários objeto do pedido de pronúncia arbitral;
(...)”
In casu, não se verifica nenhuma das circunstâncias descritas nestes artigos, sendo também claro que a AT Requerida interpretou convenientemente o PPA. Não só a AT referiu, na resposta ao PPA, a reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, como indicou com precisão a data em que foi apresentada, não havendo nenhum obstáculo à arguição de uma eventual intempestividade do PPA ou a caducidade do direito à ação. Por último, note-se que a AT Requerida não só tem acesso aos documentos integrantes do procedimento de reclamação graciosa em apreço (autuada com o n.º ...2024...), como juntou os mesmos ao processo administrativo que remeteu aos autos nos termos do artigo 17.º do RJAT. Não se vislumbra, assim, em que momento ficou a AT Requerida limitada no exercício do direito ao contraditório.
Pelo exposto, e sem mais delongas, julga-se improcedente a exceção invocada pela AT de ineptidão da petição inicial (leia-se, do PPA).
As partes não invocaram outras exceções suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa, pelo que passamos de seguida a identificar as questões a decidir por este tribunal arbitral, e a posição das partes relativamente às mesmas.
3. {C}{C}Questões decidendas
Cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar a legalidade (i) da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2019, no montante de € 150.057,63, emitida com referência ao valor recebido pelos Requerentes por ocasião do resgate de umPlano de Reforma Internacional (“PRI”), valor esse que não foi declarado pelos Requerentes na respetiva Modelo 3 do IRS do ano de 2019, e (ii) do ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes contra a referida liquidação de imposto (autuada com o n.º ...2024...). O montante liquidado pela AT teve como base o valor comunicado pelas autoridades fiscais de Guernsey como recebido pelo Requerente em 2019 (€ 384.929,28), ao qual foi aplicada a taxa liberatória de 35% prevista no artigo 72.º, n.º 16, alínea a), do Código do IRS.
Considerando a posição das partes, as questões que importa solucionar são as seguintes:
(i) {C}{C}Se os rendimentos auferidos pelos Requerentes no estrangeiro, por ocasião do resgaste de um PRI em 2019, foram de (a) € 384.929,28, correspondente à totalidade da quantia recebida pelos Requerentes (como defende a AT), ou (b) € 78.377,61, correspondente à diferença positiva entre as contribuições realizadas para o referido PRIe o valor resgatado (como defendem os Requerentes)?
(ii) {C}{C}Quanto ao apuramento do montante a considerar como rendimento tributável em sede de IRS, se é aplicável a exclusão (parcial) prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º do Código do IRS (“São excluídos da tributação três quintos do rendimento, se o resgate, adiantamento, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade, bem como o vencimento, ocorrerem depois dos primeiros oito anos de vigência do contrato”)?
(iii) {C}{C}Quanto à taxa de imposto aplicável aos rendimentos em apreço, se é aplicável a taxa liberatória agravada de 35% (prevista no artigo 72.º, n.º 16, alínea a), do Código do IRS), a taxa liberatória geral de 28% (de acordo com os artigos 71.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRS), ou a taxa de 21,5% (prevista para os planos poupança-reforma no artigo 21.º, n.º 5, do EBF)?
No PPA, os Requerentes invocaram também a violação dos princípios da decisão e do inquisitório, por a AT não ter decidido a reclamação graciosa no prazo legalmente estipulado para o efeito, ou realizado as diligências necessárias para apurar devidamente o correto valor da matéria coletável.
Identificadas as questões a decidir pelo Tribunal Arbitral, passamos à discussão da matéria de facto e respetiva fundamentação.
4. Da matéria de facto
Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos, assente nos factos alegados pelas partes e na prova documental junta ao processo:
A. {C}{C}Entre 01.07.2002 e 30.09.2018, o Requerente foi funcionário do C... AG) na Alemanha (cf. declaração da C... de 07.12.2023 junta ao PPA como Doc. 4).
B. {C}{C}Durante tal período, o Requerente constituiu um PRI apresentado pela sua entidade patronal, a C..., aos trabalhadores da C... em missão internacional, tendo a C... e o Requerente contribuído, conjuntamente, um montante total de € 306.553,35, e tendo as contribuições efetuadas pela C... sido tida em conta, para efeitos fiscais, como benefício em espécie (cf. declaração da C... de 07.12.2023 junta ao PPA como Doc. 4).
C. {C}{C}O resgate do PRI foi ordenado pelo Requerente ao D... Limited em 07.02.2019, correspondendo o montante do mesmo a € 384.929,28, ou seja, à soma do total das contribuições realizadas pelo Requerente e pela C... (€ 306.553,35) e do retorno do investimento (€ 78.377,61) (cf. declaração da C... de 07.12.2023 junta ao PPA como Doc. 4).
D. {C}{C}Os Requerentes não declararam o valor do resgate do PRI na declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS relativa ao ano de 2019 (com o n.º...), que apresentaram em 23.06.2020 (cf. declaração de rendimentos junta ao PA).
E. {C}{C}Na sequência de informações recebidas das autoridades fiscais de Guernsey, a AT abriu o processo de divergência n.º ...2023..., em 14.03.2023, para apurar se os Requerentes auferiram rendimentos no estrangeiro que não inscreveram na sua declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS do ano de 2019, tendo o Requerente vindo informar que teria recebido o montante de € 384.930,96 no âmbito de um plano de pensões internacional:
(cf. informação constante do PA).
F. {C}{C}Em 24.03.2023, a AT notificou o Requerente do seguinte:
(cf. informação constante do PA).
G. {C}{C}Nesta sequência, os Requerentes foram notificados, em 27.12.2023, da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao exercício de 2019, no montante de € 150.057,63, da qual resulta o seguinte:
(cf. Doc. 1 junto ao PPA).
H. {C}{C}Os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra o ato de liquidação de IRS em apreço em 17.01.2024, com fundamento na errónea qualificação e quantificação dos rendimentos obtidos no estrangeiro em 2019 pelos Requerente, à qual foi atribuído o número ...2024... (cf. artigo 3.º da resposta ao PPA, informação da AT constante do PA, e Doc. 3 junto ao PPA).
I. {C}{C} Os Requerentes prestaram a garantia bancária com o n.º GAE/..., com o valor máximo de € 160.430,00, emitida em 24.04.2024, no âmbito do plano de pagamento a prestações com o n.º 2024 ..., referente à liquidação de IRS contestada (cf. Docs. 9 e 10 juntos ao PPA).
J. {C}{C}Em 0.07.2024, os Requerentes procederam ao pagamento da primeira prestação acordada com a AT, no montante de € 4.246,55 (cf. Docs. 10 e 11 juntos ao PPA).
K. {C}{C}Em 26.07.2024, os Requerentes apresentaram o PPA que deu origem aos presentes autos.
Factos não provados
Com relevância para os autos, não ficou provado que:
i. {C}{C}As contribuições pagas na primeira metade da vigência do PRI constituído a favor do Requerente representaram pelo menos 35% da totalidade daquelas, para efeitos da exclusão (parcial) prevista no artigo 5.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRS;
ii. {C}{C}O PRI constituído a favor do Requerente constituiu um “plano poupança-reforma” para efeitos do artigo 21.º do EBF;
iii. {C}{C}O D... Limited (a entidade responsável pela liquidação do PRI em causa e pelo consequente pagamento dos valores em apreço) não tinha, em 2019, domicílio em país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.
Fundamentação da matéria de facto
Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão, discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7, e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
In casu, cumpre notar o disposto no artigo 76.º da LGT, sob a epígrafe “Valor probatório”, no qual se pode ler:
“1 — As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei.
(...)
4 — São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado”.
Como vem sendo jurisprudência dos Tribunais Superiores e dos tribunais arbitrais, para contrariar a força probatória das informações oficiais obtidas pela AT de congéneres autoridades fiscais estrangeiras ao abrigo de convenções de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado (resultante do n.º 4 do artigo 76.º da LGT), não é exigido ao sujeito passivo que faça prova do contrário, pois “a lei não lhes atribui força probatória plena, bastando gerar dúvidas fundadas sobre os factos nelas afirmados, como resulta do preceituado no art. 346.º do CC” (Cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28.01.2021, processo n.º 00007/04.9BEMDL; Decisão Arbitral de 21.06.2022, processo n.º 601/2022-T). Acresce que, não tendo o legislador estipulado que prova devem os sujeitos passivos apresentar para contrariar as informações obtidas pela AT de congéneres autoridades fiscais estrangeiras ao abrigo de convenções de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, vigora o regime da prova livre, no âmbito do qual os elementos apresentados pelos sujeitos passivos são apreciados pelo tribunal com inteira liberdade, mas segundo a sua experiência, prudência e o bom senso.
No caso em apreço, as autoridades fiscais de Guernsey informaram a AT de que o Requerente auferiu rendimentos de capitais no montante de € 384.929,28. À luz do n.º 4 do artigo 76.º da LGT, cabia ao Requerente fazer prova de factos suscetíveis de gerar dúvidas fundadas quanto a esta informação. A este propósito, temos que os documentos apresentados pelos Requerentes no decurso do procedimento de reclamação graciosa e em sede arbitral (designadamente o Documento 4 junto ao PPA) comprovam que (a) enquanto trabalhador da C... entre 2002 e 2018, o Requerente constituiu um PRI, para o qual foram feitas contribuições no montante total de € 306.553,35, e (b) do montante total resgatado em 2019, apenas o valor de € 78.377,61 constitui rendimento tributável em sede de IRS.
Quanto à proporção das contribuições pagas na primeira metade da vigência do PRI constituído a favor do Requerente relativamente ao montante total das mesmas (relevante para efeitos da exclusão (parcial) prevista no artigo 5.º, n.º 3, alínea b), do Código do IRS), à natureza do PRI como “plano poupança-reforma” (relevante para efeitos do artigo 21.º do EBF), e ao domicílio ou residência fiscal da entidade responsável pela liquidação do PRI (o D... Limited) (relevante para determinar a aplicação da taxa liberatória de 35% prevista no artigo 72.º, n.º 16, alínea a), do Código do IRS), cumpria aos Requerentes apresentarem elementos comprovativos dos mesmos (nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT), o que não lograram fazer nem no decorrer do procedimento de reclamação graciosa, nem em sede arbitral. Não basta aos sujeitos passivos alegar os factos que suportam as pretensões e direitos que invocam, sendo também necessário que ofereçam elementos de prova credíveis e demonstrativos de tais factos. Com este fundamento, temos como não provados os factos elencados supra como factos não provados.
5. {C}{C}Matéria De Direito
5.1. Valor dos rendimentos auferidos no estrangeiro pelos Requerentes em 2019
As partes contendem sobre se, por ocasião do resgaste de um PIR em 2019, os Requerentes auferiram (a) € 384.929,28 (como defende a AT), ou (b) € 78.377,61 (como defendem os Requerentes)?
Posição das partes
Com base nos documentos juntos ao PPA, os Requerentes defendem que o montante do resgate (€ 384.929,28) corresponde à soma das contribuições realizadas para o PIR em apreço (€ 306.553,35) e a rentabilização das mesmas (€ 78.377,61), devendo apenas este último montante ser considerado como rendimento de capital auferido no ano de 2019, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do Código do IRS.
Na resposta ao PPA, a Requerida diz que as autoridades fiscais de Guernsey comunicaram à AT que, no ano de 2019, o Requerente auferiu rendimentos no valor de € 384.929,28, classificados como “others” por se tratarem de rendimentos que não juros, dividendos, lucros ou outros rendimentos provenientes da alienação ou amortização de ativos financeiros. Assim sendo, para efeitos de IRS, os rendimentos em causa integram a categoria dos rendimentos de capitais, em concreto, a alínea p) do n.º 1 do artigo 5.º do Código do IRS, nos termos do qual se consideram rendimentos de capitais “quaisquer outros rendimentos derivados da simples aplicação de capitais”.
Mais diz a AT que, in casu, os documentos apresentados pelos Requerentes (i.e., uma declaração emitida pela entidade empregadora) não demonstram, de forma clara e inequívoca, que o rendimento recebido resulta de resgate de um PPR. No entender da AT, os Requerentes deveriam ter apresentado extrato(s) bancário(s) emitido pela entidade gestora do PRI, onde se encontram discriminadas as contribuições feitas por ambas as partes, o valor capitalizado e o valor do resgate.
Por último, diz a AT que as informações comunicadas pelas autoridades fiscais de outros países, ao abrigo da troca de informações, constituem comunicações de natureza oficial, feitas pelas autoridades públicas competentes para o efeito, pelo que gozam de uma autenticidade que, na falta de prova em contrário, fazem prova plena. Assim sendo, a documentação apresentada pelos Requerentes não dispõe de força probatória suficiente para infirmar a informação que foi comunicada à AT pelas autoridades fiscais de outro país ao abrigo dos mecanismos oficiais de troca de informação. Conclui-se, assim, que a AT agiu corretamente ao tributar o rendimento comunicado pelas autoridades fiscais de Guernsey como rendimento de capital.
Apreciação do Tribunal Arbitral
Como resulta da matéria de facto assente e da respetiva fundamentação, temos que os documentos apresentados pelos Requerentes (designadamente o Documento 4 junto ao PPA) comprovam que (a) enquanto trabalhador da C... entre 2002 e 2018, o Requerente constituiu um PRI, para o qual foram feitas contribuições no montante total de € 306.553,35, e (b) do montante total resgatado em 2019 (€ 384.929,28), apenas o valor de € 78.377,61 constitui rendimento tributável em sede de IRS, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código do IRS.
5.2. Da aplicação da exclusão (parcial) prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º do Código do IRS
Posição das partes
Os Requerentes defendem a aplicação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º do Código do IRS (“São excluídos da tributação três quintos do rendimento, se o resgate, adiantamento, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade, bem como o vencimento, ocorrerem depois dos primeiros oito anos de vigência do contrato”). Isto porque entendem que o valor sujeito a tributação em sede de IRC (€ 78.377,61) corresponde a rendimentos de capital que respeitam a um resgate de um PPR após 8 anos de vigência de contrato.
Na resposta ao PPA, a AT Requerida não se pronunciou quanto a esta questão.
Apreciação do Tribunal Arbitral
Dispõe a alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º do Código do IRS, na redação em vigor em 2019, o seguinte:
“3 - Consideram-se ainda rendimentos de capitais a diferença positiva entre os montantes pagos a título de resgate, adiantamento ou vencimento de seguros e operações do ramo «Vida» e os respetivos prémios pagos ou importâncias investidas, bem como a diferença positiva entre os montantes pagos a título de resgate, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade por fundos de pensões ou no âmbito de outros regimes complementares de segurança social, incluindo os disponibilizados por associações mutualistas, e as respetivas contribuições pagas, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes, quando o montante dos prémios, importâncias ou contribuições pagos na primeira metade da vigência dos contratos representar pelo menos 35 % da totalidade daqueles:
(...)
b) São excluídos da tributação três quintos do rendimento, se o resgate, adiantamento, remição ou outra forma de antecipação de disponibilidade, bem como o vencimento, ocorrerem depois dos primeiros oito anos de vigência do contrato”.
No caso sub judice, não obstante aos Requerentes terem demonstrado que o resgate (em 2019) ocorreu após os primeiros oito anos de vigência do PRI (constituído em 2002), os Requerentes não alegaram nem provaram que o montante das contribuições pagas na primeira metade da vigência do PRI representaram pelo menos 35 % da totalidade daquelas, pelo que não resta ao Tribunal Arbitral senão concluir que, in casu, não se verificam os pressupostos de aplicação da exclusão (parcial) prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º do Código do IRS.
Pelo exposto, o Tribunal Arbitral determina que o valor do rendimento auferido pelos Requerentes em 2019, por ocasião do resgate do PRI, tributável nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código do IRS, corresponde a € 78.377,61.
5.3. Da taxa de imposto aplicável aos rendimentos em apreço
Cumpre também ao Tribunal Arbitral determinar se é aplicável a taxa liberatória de 35% (prevista no artigo 72.º, n.º 16, alínea a), do Código do IRS), a taxa liberatória de 28% (de acordo com os artigos 71.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea d), do Código do IRS), ou a taxa de 21,5% (prevista no artigo 21.º, n.º 5, do EBF)?
Posição das partes
Os Requerentes defendem, a título principal, ser aplicável a taxa de 21.5% prevista no artigo 21.º, n.º 5, do EBF. Subsidiariamente, os Requerentes defendem que a transferência do montante resgatado foi feita pelo D... Ltd (a entidade responsável pela liquidação do PRI e do consequente pagamento dos valores em apreço) através uma conta sediada na ilha de Guernsey, o que é completamente alheio ao Requerente, pelo que não pode ser alvo de tributação agravada, à taxa de 35%. Acresce que, o PRI foi constituído na Alemanha e gerido pelo Banco ..., que não tem domicílio num país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.
Na resposta ao PPA, a AT Requerida não se pronunciou quanto a esta questão.
Apreciação do Tribunal Arbitral
O artigo 21.º do EBF, na redação em vigor em 2019, previa um benefício fiscal de IRS para (i) as importâncias pagas por fundos de poupança-reforma quando o reembolso dos certificados ocorresse nas situações definidas na lei (no n.º 3), e (ii) as importâncias pagas por fundos de poupança-reforma quando o reembolso dos certificados ocorresse fora das situações definidas na lei (no n.º 5).
O regime jurídico dos planos de poupança-reforma é governado pelo Decreto-Lei n.º 158/2022, de 2 de julho, que estabelece, entre o mais, especiais restrições ao reembolso dos montantes investidos, e regras de composição do património dos fundos. Nem todos os planos de pensões privados constituem necessariamente “planos de poupança-reforma” governados por esta legislação, ou para efeitos do benefício fiscal previsto no artigo 21.º do EBF.
No caso sub judice, tal como referido supra, os Requerentes não demonstraram que o PRI constituído a favor do Requerente em 2002 constituiu um “plano poupança-reforma” para efeitos do artigo 21.º do EBF, como lhes competia à luz do artigo 74.º, n.º 1, da LGT. Assim sendo, conclui o Tribunal Arbitral que não é aplicável a taxa de 21,5% prevista no artigo 21.º, n.º 5, do EBF.
Acresce que, tal como referido supra, os Requerentes não apresentaram quaisquer elementos de prova quanto domicílio ou residência fiscal do D... Limited. Considerando a informação prestada pelas autoridades fiscais de Guernsey (avaliada à luz do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da LGT), e que a transferência do montante resgatado foi efetuada de uma conta bancária em Guernsey (facto não disputado entre as partes), cumpria aos Requerentes demonstrar que a entidade responsável pela liquidação do PRI em causa, e pelo consequente pagamento dos valores em apreço, não tinha domicílio em país, território ou região sujeitos a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, como Guernsey, o que não lograram fazer.
Em face do exposto, o Tribunal Arbitral conclui que o rendimento tributável auferido pelos Requerentes em 2019, por ocasião do resgate do PRI, corresponde a € 78.377,61 (nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do Código do IRS), ao qual é aplicável a taxa liberatória de 35% (prevista no artigo 72.º, n.º 16, alínea a), do Código do IRS). Assim sendo, conclui-se também que o imposto legalmente devido pelos Requerentes corresponde a € 27.432,16 (€ 78.377,61 x 35%), devendo o remanescente do imposto liquidado e correspondentes juros compensatórios ser anulados, o que se determina.
Regime jurídico dos planos de poupança-reforma
5.4. Da violação do princípio da decisão e do princípio do inquisitório, e da falta de fundamentação das correções à matéria tributável
Posição das partes
No PPA, os Requerentes vieram defender que, ao não ter decidido a reclamação graciosa no prazo de quatro meses previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, a AT violou o princípio da decisão, consagrado no artigo 56.º da LGT e no artigo 129.º do Código de Procedimento Administrativo (C.P.A.), e o princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da LGT, por não realizar as diligencias necessárias nem responder à respetiva reclamação do contribuinte, de forma a apurar devidamente o correto valor da matéria coletável. Na resposta ao PPA, a AT Requerida não se pronunciou quanto a estas questões. Mais arguiram os Requerentes que os erros da liquidação de Imposto impugnada carecem de fundamentação.
Apreciação do Tribunal Arbitral
Quanto a estes vícios, temos que não assiste razão aos Requerentes.
O legislador fiscal estabeleceu, no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, que os procedimentos graciosos devem ser concluídos pela AT no prazo de quatro meses. No n.º 5 do mesmo artigo, o legislador estabeleceu a sanção para o incumprimento do previsto no n.º 1: o indeferimento presumido da pretensão do sujeito passivo. Significa isto que o não cumprimento do prazo de quatro meses não vicia o ato tributário contestado.
Quanto à violação do princípio do inquisitório previsto no artigo 58.º da LGT, os Requerentes não concretizam que diligências entendem que a AT poderia e deveria ter realizado no caso concreto para esclarecer a sua situação tributária, ficando prejudicada a apreciação do Tribunal Arbitral nesta matéria.
Quanto ao vício de falta de fundamentação, considerando a informação comunicada pela AT ao Requerente no âmbito do processo de divergência, e a posição dos Requerentes vertida no PPA, temos que os Requerentes apreenderam os fundamentos que sustentam a liquidação de imposto sindicada.
Nestes termos, o Tribunal Arbitral julga estes vícios improcedentes.
***
Em face de todo o exposto, o Tribunal Arbitral (1) declara parcialmente ilegais e anula a liquidação de IRS n.º 2023..., e o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2024..., (2) condena a AT a devolver o montante de imposto e juros compensatórios já pago pelos Requerentes, se superior ao legalmente devido.
6. {C}{C}Decisão
Face a todo o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide julgar o pedido de pronúncia arbitral parcialmente procedente e, consequentemente:
(a) {C}{C}declarar parcialmente ilegais e anular a liquidação de IRS n.º 2023..., e o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2024..., nos termos supra expostos;
(b) {C}{C}condenar a AT a devolver o montante de imposto e juros compensatórios já pago pelos Requerentes, se superior ao legalmente devido.
7. {C}{C}Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em € 150.057,63 (cento e cinquenta mil, cinquenta e sete euros, e sessenta e três cêntimos), correspondente ao valor da liquidação de IRS impugnada.
A este respeito, note-se que os Requerentes indicaram o valor da causa como correspondendo a € 78.377,61, ou seja, ao valor dos rendimentos de capital que os Requerentes entendem encontrar-se sujeito a tributação em sede de IRS. Todavia, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, quando seja impugnada uma liquidação de imposto, o valor da causa corresponde à “importância cuja anulação se pretende”. Considerando que os Requerentes peticionam a anulação total da liquidação de imposto contestada, que disputam também a taxa a aplicar aos rendimentos de capitais sujeitos a IRS, e que não indicaram a importância cuja anulação pretendem, o Tribunal Arbitral fixa o valor da causa com base no valor total da liquidação de IRS impugnada, incluindo juros compensatórios (€ 150.057,63).
8. {C}{C}Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Considerando que os Requerentes peticionaram a anulação da liquidação de imposto em causa, no âmbito da qual foi apurado um imposto a pagar de € 134.725,25 (€ 384.929,28 x 35%), e que o Tribunal Arbitral determinou que o imposto devido pelos Requerentes corresponde a € 27.432,16 (€ 78.377,61 x 35%), conclui-se que o PPA é improcedente em 20,36% e procedente em 79,64%.
Nestes termos, cumpre aos Requerentes suportarem € 747,62 da taxa arbitral (€ 3.672,00 x 20,36%), e à AT Requerida suportar € 2.924,38 da taxa arbitral (€ 3.672,00 x 79,64%), o que se determina.
CAAD, 20 de maio de 2025
Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha - Árbitro Presidente
Dra. Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho - Árbitro Adjunto
Dra. Rita Guerra Alves - Árbitro Adjunto