SUMÁRIO
I. Por efeito da Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA) constante do artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT), na redação vigente em 2018, são ineficazes, para efeitos fiscais, os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos, ou com abuso das formas jurídicas, à obtenção de vantagens fiscais.
II. O artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS estabelece que, no caso de transmissão de participações sociais relativas a micro e pequenas empresas não cotadas, o valor tributável é de apenas 50% da mais-valia. Determina, por sua vez, o n.º 4 do artigo 43.º do Código do IRS que se entende por micro e pequenas empresas as entidades definidas como tal no anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro.
III. Nos termos do artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro, a qualidade de micro e pequena empresa depende, essencialmente, da verificação de um conjunto de requisitos materiais: o número de pessoas empregadas, o volume de negócios anual, e o balanço total anual. Dos artigos 3.º e 6.º do mesmo Anexo resulta que, no caso de a sociedade cujas participações sociais são objeto de transmissão onerosa ter “empresas associadas” (nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do anexo), a verificação dos referidos requisitos materiais (ou seja, o número de pessoas empregadas, o volume de negócios anual, e o balanço total anual) deve ser determinada com referência ao conjunto das sociedades qualificadas como “empresas associadas”, e não com referência apenas à sociedade cujas participações sociais são transmitidas (como se de uma “empresa autónoma” se tratasse).
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente e relatora), Dra. Rita Guerra Alves e Dra. Maria da Graça Martins (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte:
RELATÓRIO
A..., contribuinte n.º ..., com residência na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (“Primeiro Requerente”), e B..., contribuinte n.º ..., com residência na Rua ..., ...-... Leiria (“Segunda Requerente”), em conjunto designados por “Requerentes”, notificados da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada para apreciação da legalidade das liquidações de IRS (2018) n.º 2022..., demonstração de acerto de contas n.º 2022..., liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., e liquidação de IRS (2018) n.º 2022..., demonstração de acerto de contas n.º 2022..., e liquidação de juros compensatórios n.º 2022... (“Liquidações Contestadas”), vieram, em 29-02-2024, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“AT” ou “Requerida”), com vista à apreciação da legalidade e anulação das Liquidações Contestadas, cujo montante que pretendem anular ascende a € 3.197.902,06 e, bem assim, da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa apresentada contra as mesmas. Peticionam ainda o reembolso do imposto e juros compensatórios indevidamente pagos, acrescidos dos juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da LGT.
Os Requerentes contestam, em suma, (i) a legalidade da aplicação da cláusula geral anti-abuso (“CGAA”) prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por não estarem verificados os respetivos pressupostos, (ii) a legalidade da correção efetuada à exclusão de tributação em 50% do saldo das mais-valias apuradas (prevista no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS), por estarem em causa duas pequenas empresas e por se encontrarem verificados todos os pressupostos legais, e (iii) a legalidade das liquidações de juros compensatórios, por falta de verificação dos pressupostos previstos no artigo 35.º da LGT.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Requerida.
Em 9 de maio de 2024, foi comunicada, pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, a constituição do presente tribunal arbitral coletivo, nos termos da alínea c) do número 1 do artigo 11.º do RJAT.
Nesse mesmo dia, foi proferido despacho arbitral tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da AT para (i) apresentar resposta e, querendo, solicitar a produção de prova adicional, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, e, bem assim, (ii) remeter ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo, em cumprimento do disposto no artigo 17.º, n.º 2, do RJAT.
A Requerida apresentou resposta ao PPA em 12 de junho de 2024, defendendo-se por impugnação, e alegando, em síntese, que, tal como resulta do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), a AT cumpriu o ónus de provar a natureza anómala e artificiosa das operações em apreço, porquanto os atos praticados e meios utilizados permitiram obter vantagens fiscais que não seriam alcançados com atos de idêntico fim económico. Quanto à aplicação do artigo 43.º, n.º 3, do CIRS, a Requerida remete para os fundamentos constantes do RIT. Relativamente aos juros, a Requerida nota que reunidos os pressupostos necessários para aplicação das normas previstas nos n.ºs 1 a 3 do artigo 35.º da LGT, conjugado com o n.º 1 do artigo 91.º do CIRS (juros compensatórios), não havendo qualquer erro imputável aos serviços que dê origem a juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT. A Requerida não juntou o processo administrativo aos autos.
Tendo os Requerentes desistido da produção de prova testemunhal, por despacho arbitral de 5 de setembro de 2024, o Tribunal dispensou a realização da reunião do artigo 18.º do RJAT e notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas. Ambas as partes apresentaram alegações finais.
SANEADOR
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAT).
O PPA apresentado em 29-02-2024 é tempestivo porquanto foi cumprido o prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar da data da notificação do indeferimento expresso da reclamação graciosa deduzida contra os atos tributários impugnados (em 04-12-2023).
É admitida a cumulação de pedidos e a coligação dos Requerentes, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, porquanto, como sucede in casu, a procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Não foram identificadas nulidades ou exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
QUESTÕES A DECIDIR
Cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar da legalidade da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa em referência e, nessa medida, da legalidade das liquidações de IRS e juros compensatórios a ela subjacentes. Está em causa a transmissão de ações em duas sociedades pelos Requerentes e a respetiva tributação em sede de IRS (mais-valias).
Considerando a posição das partes vertidas nos articulados e nos documentos juntos aos autos pelos Requerentes (mormente os RITs que deram origem às referidas liquidações, e que se dão aqui por reproduzidos), as questõesdecidendas nos presentes autos reconduzem-se a saber se:
A. Se verificam os pressupostos de aplicação da CGAA (prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT)?
B. Subsidiariamente: Se se verificam os pressupostos de aplicação da exclusão de tributação em 50% do saldo das mais-valias apuradas (prevista no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS)?
C. Se se verificam os pressupostos para aplicação de juros compensatórios (previstos no artigo 35.º da LGT)?
D. Se os Requerentes têm direito a juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT?
Interessa, agora, enunciar a matéria de facto relevante para a apreciação destas questões.
MATÉRIA DE FACTO
§1. Factos provados
Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:
Os Requerentes, os ascendentes, e as sociedades relevantes: C... e D... Os Requerentes, residentes em território nacional no ano de 2018, são filhos de E... (cf. alegado no artigo 3.º do PPA, RIT, a fl. 8, junto ao PPA como Documento 1).
a. E... adquiriu, antes e depois de 1989, partes sociais nas sociedades C..., S.A., com o NIPC ... (“C...”), e D..., S.A., com o NIPC ... (“D...”), detendo, juntamente como o sócio F..., a maioria do capital social de ambas as sociedades desde os anos 90 (cf. alegado no artigo 3.º do PPA, RIT, a fl. 10, junto ao PPA como Documento 1).
b. As participações de E... na C... foram adquiridas nas seguintes datas:

(cf. RIT, a fl. 34, junto ao PPA como Documento 1).
c. As participações de E... na D... foram adquiridas nas seguintes datas:

(cf. RIT, a fl. 36, junto ao PPA como Documento 1).
d. E... e F... foram gerentes da C... desde 19-12-1994, e na D... desde 17-11-1986, até à transformação das sociedades em sociedades anónimas em dezembro de 2017, e administradores das mesmas até à doação das respetivas ações aos seus descendentes em setembro de 2018 (cf. RIT, a fl. 17, junto ao PPA como Documento 1).
Transformação das sociedades por quotas C... e D... em sociedades anónimas em dezembro de 2017
e. Em junho de 2016, iniciaram contactos entre F... (sócio das sociedades C... e D...) e L... relativamente a uma eventual venda das partes sociais na D... (cf. emails juntos ao PPA como Documento 8).
f. Em 19 e 29 de junho de 2017, o mandatário da sociedade G..., como sede no Luxemburgo (“G...”), e A... (sócio das sociedades C... e D...) trocam uma minuta de um contrato de transmissão de participações sociais, da qual consta (i) “Considerando que é política da Compradora, nos investimentos que realiza, criar para a sua equipa de gestão um Plano de stock options, como forma acessória de incentivo e que tem sido aliás estratégia dos grandes grupos internacionais para motivação dos seus quadros, os Vendedores comprometem-se a transformar a Sociedade em sociedade anónima previamente à Data de Conclusão”, e, como condição suspensiva, (ii) “Transformação da Sociedade em sociedade anónima de acordo com o Contrato de Sociedade que constitui o Anexo 4.1.f.” (cf. Documento 10 junto ao PPA).
g. Em dezembro de 2017, as sociedades por quotas C... e D... foram transformadas em sociedade anónimas (cf. Documento 12 junto ao PPA).
h. De forma a ser assegurado o número mínimo legal de acionistas (cinco) exigido para esta transformação societária, a transformação das sociedades C... e D... em sociedades anónimas foi acompanhada da entrada de novos sócios:
C...
- Antes de 29 de dezembro de 2017, a C... tinha como sócios: E..., pai dos Requerentes, com uma quota de € 34.916,00 (33,33%); F... com uma quota de € 34.916,00 (33,33%); e H... com uma quota de € 34.916,00 (33,33%);
- Com a transformação da sociedade em 29 de dezembro de 2017, a C... passou a ter dois novos sócios: o Primeiro Requerente com ações de € 10,00; e I..., filho de F..., com ações de € 10,00;
- Em 30 de março de 2018, o Primeiro Requerente e F... transmitiram as suas ações aos seus pais (cf. RIT, a fl. 13, junto ao PPA como Documento 1, e alegado no artigo 80.º do PPA).
i. Daqui se retira que o Primeiro Requerente foi sócio e acionista da C... entre 29 de dezembro de 2017 e 20 de março de 2018, tendo participado no aumento de capital (subscrevendo uma quota no valor de €10) e na transformação das sociedades em sociedades anónimas (a quota foi transformada em 10 ações), e tendo vendido as ações ao seu pai em 30 de março de 2018 (cf. RIT, a fls. 10 e 13, junto ao PPA como Documento 1).
D...
- Antes de 30 de dezembro de 2017, a D... tinha como sócios: E..., pai dos Requerentes, com uma quota de € 33.750,00 (45%); F... com uma quota de € 33.750,00 (45%); e duas quotas próprias de € 7.000,00 (10%);
- Com a transformação da sociedade em 30 de dezembro de 2017, a D... passou a ter três novos sócios: o Primeiro Requerente com ações de € 20,00; I..., filho de F..., com ações de € 10,00; e J..., com ações de € 10,00;
- Em 20 de março de 2018, os três novos acionistas transmitiram as suas ações aos seus pais (cf. RIT, a fl. 15, junto ao PPA como Documento 1).
j. Daqui se retira que o Primeiro Requerente foi sócio e acionista da D... entre 30 de dezembro de 2017 e 20 de março de 2018, tendo participado no aumento de capital (subscrevendo uma quota no valor de €20) e na transformação da sociedade em sociedades anónima (a quota foi transformada em 20 ações), e tendo vendido as ações ao seu pai em 20 de março de 2018 (cf. RIT, a fl. 15, junto ao PPA como Documento 1).
Situação patrimonial das sociedades C... e D... em 2017
k. No final de 2017, as sociedades C... e D... tinham uma situação financeira sólida, com elevados montantes de disponibilidades financeiras:

(cf. RIT, a fl. 11, junto ao PPA como Documento 1).
Amortização de ações na D... em 11 de setembro de 2018 (ascendentes)
l. Em 11 de setembro de 2018, E... e F... amortizaram ações na D... (operação isenta de IRS, na totalidade, por as partes sociais amortizadas terem sido adquiridas antes de 1989), tendo recebido os seguintes valores:

(cf. RIT, a fl. 16, junto ao PPA como Documento 1).
Doação de partes sociais por E... aos seus filhos (ora Requerentes) em 11 de setembro de 2018
m. O Primeiro Requerente adquiriu ações na C..., por doação do seu pai em 11 de setembro de 2018, e por aquisição onerosa a outros acionistas em 14 de setembro de 2018 (cf. RIT, a fl. 10, junto ao PPA como Documento 1).
n. A Segunda Requerente adquiriu ações na C..., por doação do seu pai em 11 de setembro de 2018, e por aquisição onerosa a outros acionistas em 14 de setembro de 2018 (cf. RIT, a fl. 10, junto ao PPA como Documento 1).
o. Os Requerentes foram administradores da sociedade C... entre setembro de 2018 e janeiro de 2019 (cf. RIT, a fls. 10 e 14, junto ao PPA como Documento 1).
p. O Primeiro Requerente prestava serviços jurídicos à C... (cf. RIT, a fl. 18, junto ao PPA como Documento 1).
q. A Segunda Requerente exerceu funções de Diretora Financeira na sociedade C... em 2017 e 2018 (cf. RIT, a fl. 18, junto ao PPA como Documento 1).
r. O Primeiro Requerente adquiriu ações na D..., por doação do seu pai em 11 de setembro de 2018 (cf. RIT, a fl. 10, junto ao PPA como Documento 1).
s. A Segunda Requerente adquiriu ações na D..., por doação do seu pai em 11 de setembro de 2018 (cf. RIT, a fl. 10, junto ao PPA como Documento 1).
Nova amortização de ações na D... em 12 de setembro de 2018 (descendentes)
t. Em 12 de setembro de 2018, os descendentes de E... (ora Requerentes) e de F... amortizaram ações na D..., tendo recebido os seguintes valores:

(cf. RIT, a fl. 17, junto ao PPA como Documento 1).
Permuta entre descendentes de E... e F... em 14 de setembro de 2018
u. Em 14 de setembro de 2018, foi efetuada uma permuta de ações entre os Requerentes, descentes de E..., e os descendentes de F..., pelo preço de € 3.000.000,00, ficando os ora Requerentes detentores, cada, de 33,33% das ações na C... e transmitindo as suas ações na D... aos descendentes de F... (cf. RIT, a fls. 14 e 17, junto ao PPA como Documento 1; RIT, a fl. 25, junto ao PPA como Documento 2).
Transmissão de ações na C...
v. Em 17 dezembro de 2018, ambos os Requerentes transmitiram parte das ações na C... (3.415) à própria sociedade (aquisição de ações próprias), pelo preço de € 366.668,10 (cf. RIT, a fl. 25, junto ao PPA como Documento 2).
w. Em 27 dezembro de 2018, ambos os Requerentes alienaram as restantes ações (31.511) a entidade terceira, a K..., pelo preço de € 3.383.331,90 (cf. RIT, a fl. 25, junto ao PPA como Documento 2).
Declarações de rendimentos (em sede de IRS)
x. Nas respetivas declarações de rendimento Modelo 3 do ano de 2018, os Requerentes declararam esta alienação (Anexo G), aplicando a exclusão de 50% de tributação prevista no artigo 43.º do CIRS, por se tratar em ambos os casos de pequenas empresas (cf. alegado nos artigos 5.º e 6.º do PPA, e nos artigos 5.º e 8.º da resposta ao PPA).
y. Na sua declaração de rendimentos, o Primeiro Requerente declarou uma alienação de partes sociais no valor total de € 8.185.030, cujo valor de aquisição totaliza os € 10.807.452,20, tendo assim apurado menos-valias no ano de 2018 (cf. alegado no artigo 4.º da resposta ao PPA, e no artigo 5.º da resposta ao PPA).
z. Nesta sequência foi emitida a liquidação n.º 2019... de 02-07-2019, com um valor a reembolsar de € 1.675,06 (cf. alegado no artigo 6.º da resposta ao PPA).
aa. Na sua declaração de rendimentos, a Segunda Requerente declarou uma alienação de partes sociais no valor total de € 8.185.000, cujo valor de aquisição totaliza os € 10.807.422,20, tendo assim apurado menos-valias no ano de 2018 (cf. alegado no artigo 7.º da resposta ao PPA).
bb. Nesta sequência foi emitida a liquidação n.º 2019... de 02-07-2019, com um valor a reembolsar de € 1.190,91 (cf. alegado no artigo 9.º da resposta ao PPA).
RITs, procedimento de reclamação graciosa e processo arbitral
cc. Em 11 de maio de 2021, a coberto das Ordens de Serviço n.ºs OI2019... de 16-08-2019 e OI2019... de 02-08-2019, a Direção de Finanças de Leiria levou a cabo ações inspetivas internas de âmbito parcial (IRS), motivadas por terem sido detetadas alienações de ações com menos-valias relevantes em 2018, e concluídas em 12 de agosto de 2022 (cf. alegado no artigo 10.º da resposta ao PPA).
dd. Em maio de 2021, os Requerentes foram notificados pela Direção de Finanças de Leiria para prestarem esclarecimentos sobre os valores incluídos no Anexo G das suas declarações de rendimentos Modelo 3 do ano de 2018, e para apresentarem documentos comprovativos dos valores de alienação declarados (cf. alegado no artigo 7.º do PPA).
ee. Em resposta, os Requerentes remeteram os esclarecimentos solicitados por email (cf. alegado no artigo 7.º do PPA).
ff. Os Requerentes foram notificados do projeto de relatório (através do Ofício n.º DITI-... de 18-04-2022 para o Primeiro Requerente, e do Ofício n.º DITI-...-2022 de 28-04-2022 para a Segunda Requerente), nos termos do qual a AT, com base em idêntica fundamentação de facto e de direito, propunha a realização de uma correção em sede IRS no valor de € 1.419.034,33 para cada um dos Requerentes, relativamente ao saldo das mais-valias apurado no exercício de 2018, e em virtude da aplicação da cláusula geral anti abuso (cf. alegado no artigo 9.º do PPA).
gg. Através do Ofício n.º DIT1-...-2022, datado de 30-08-2022, o Primeiro Requerente foi notificado do RIT que confirmava as correções propostas, no qual se pode ler as seguintes conclusões:
Da aplicação da CGAA

Da exclusão de mais-valias prevista no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS


(cf. Documento n.º 1 junto ao PPA).
hh. Através do Ofício n.º DIT1-..., datado de 30-08-2022, a Segunda Requerente foi notificada do RIT que confirmava as correções propostas, ao abrigo da aplicação da CGAA, com os mesmos fundamentos que sustentaram as correções efetuadas com referência ao Primeiro Requerente (cf. Documento n.º 2 junto ao PPA).
ii. O Primeiro Requerente foi notificado da liquidação de IRS n.º 2022..., liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., demonstração de acerto de contas n.º 2022..., que apurava um saldo final a pagar de € 2.454.329,13, com data limite de pagamento de 18-01- 2023 (cf. Documento n.º 3 junto ao PPA).
jj. A Segunda Requerente foi notificada da liquidação de IRS n.º 2022..., liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., demonstração de acerto de contas n.º 2022..., que apurava um saldo final a pagar de € 2.453.606,48, com data limite de pagamento de 18-01-2023 (cf. Documento n.º 4 junto ao PPA).
kk. Em 16-01-2023, os Requerentes efetuaram o pagamento voluntário dos valores liquidados a título de imposto e juros compensatórios (cf. Cópia dos comprovativos que se juntam ao PPA como documento n.º 5).
ll. Em 17-03-2023, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa na qual contestaram a legalidade da aplicação da cláusula geral anti abuso, da correção efetuada à exclusão de tributação em 50% do saldo das mais-valias apuradas, e das liquidações de juros compensatórios (cf. Documento n.º 6 junto ao PPA).
mm. Em 04-12-2023, os Requerentes foram notificados da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa, na qual a AT determinou a integral anulação das liquidações de juros compensatórios majorados nos termos do artigo 38.º, n.º 6, da LGT, mas indeferiu o peticionado pelos Requerentes relativamente à CGAA e à exclusão parcial de 50% do saldo das mais-valias (cf. Documento n.º 7 junto ao PPA).
nn. A Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos em 29-02-2024 (facto não controvertido).
§2. Factos não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos relevantes dado como não provados
§3. Motivação quanto à matéria de facto
Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cf. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documentaljunta aos autos, e considerando as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.
MATÉRIA DE DIREITO
§1. Da cláusula geral anti-abuso (CGAA)
A CGAA constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT tinha ao tempo dos factos (2018) a redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro:
“São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.
Mais tarde, por força da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, esta norma passou a ter a seguinte redação:
“2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.
3 - Para efeitos do número anterior considera-se que:
a) Uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja realizada por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;
b) Uma construção pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.
4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica.
5 - Sem prejuízo do número anterior, quando o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções, devem aplicar-se as regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária.
6 - Em caso de aplicação do disposto no n.º 2, os juros compensatórios que sejam devidos, nos termos do artigo 35.º, são majorados em 15 pontos percentuais, sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2011, de 5 de junho, na sua redação atual”.
Aceitemos, como ponto de partida a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (cf. Acórdão de 07-06-2023, processo n.º 03285/11.3BEPRT), segundo a qual a aplicação da CGAA, na redação em vigor em 2018, pressupõe a presença de cinco elementos:
“- o elemento meio, que respeita à via escolhida - ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos, sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;
- o elemento resultado, que tem a ver com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente;
- o elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2, da LGT);
- o elemento normativo, que tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal;
- o elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT)”.
Daqui se retira que não basta que o sujeito passivo opte pela via fiscalmente menos onerosa, é necessário que o negócio jurídico seja efetuado em abuso de forma jurídica e consubstancie negócio artificioso destinado, principalmente ou exclusivamente, a reduzir a carga fiscal.
§2. Da aplicação da CGAA ao caso sub judice
RITs e posição das partes
Dos RITs notificados aos Requerentes resulta que a AT concluiu que os Requerentes e o seu pai (E...) realizaram várias operações societárias (transformação de sociedades, e amortizações de ações) e negócios jurídicos (doações e permutas), num curto espaço de tempo, com o fim de assegurar que as partes sociais nas sociedades C... e D... seriam transmitidas com base num valor de aquisição (para efeitos de IRS) superior ao que seria apurado se as mesmas partes sociais fossem transmitidas diretamente pelo pai dos Requerentes (E...), permitindo uma tributação nula, em sede de IRS, das transmissões de ações em apreço. Analisadas as várias transações relevantes, concluiu a AT:
- Valor de aquisição das ações na C...:
Se o pai dos Requerentes (E...) não tivesse doado as ações ao Requerentes, o valor de aquisição das ações na C... corresponderia ao custo de aquisição / valor nominal das mesmas (nos termos do artigo 48.º, alínea b), do CIRS): € 34.926,00 (cabendo € 17.463,00 a cada um dos Requerentes).
Assumindo os valores avançados (corrigidos) pela AT, o valor das mais-valias tributáveis a imputar ao Primeiro Requerente seria de € 657.586,44, conforme demonstrado no quadro a fl. 35 do RIT (Documento 1), e que se copia infra:

Ora, na sequência das operações descritas supra, o Primeiro Requerente declarou um valor de aquisição de € 6.371.619,00 e uma menos-valia de € 2.621.619,00.
Assumindo os valores avançados (corrigidos) pela AT, o valor das mais-valias tributáveis a imputar à Segunda Requerente seria de € 657.586,44, conforme demonstrado no quadro a fl. 34 do RIT (Documento 2), e que se copia infra:

Ora, na sequência das operações descritas supra, a Segunda Requerente declarou um valor de aquisição de € 6.371.619,00 e uma menos-valia de € 2.621.619,00.
- Valor de aquisição das ações na D...:
Se o pai dos Requerentes (E...) não tivesse doado as ações ao Requerentes, o valor de aquisição das ações na D... corresponderia a € 31,472,99 (nos termos do artigo 48.º, alínea b), do CIRS), cabendo € 15.736,50 a cada um dos Requerentes.
Assumindo os valores avançados (corrigidos) pela AT, o valor das mais-valias tributáveis a imputar ao Primeiro Requerente seria de € 4.410.393,31, conforme demonstrado no quadro a fl. 38 do RIT (Documento 1), e que se copia infra:

Ora, na sequência das operações descritas supra, o Primeiro Requerente declarou um valor de aquisição de € 4.435.823,20 e uma menos-valia de € 803,20.
Assumindo os valores avançados (corrigidos) pela AT, o valor das mais-valias tributáveis a imputar à SegundaRequerente seria de € 4.410.393,31, conforme demonstrado no quadro a fl. 38 do RIT (Documento 2), e que se copia infra:

Ora, na sequência das operações descritas supra, a Segunda Requerente declarou um valor de aquisição de € 4.435.823,20 e uma menos-valia de € 803,20.
No PPA, os Requerentes alegaram, em suma, que todas as operações societárias (transformação da sociedade, e amortizações de ações) e negócios jurídicos celebrados (doações e permutas) foram realizados por legítimas razões societárias e pessoais no momento em que cada um deles ocorreu, não havendo uma sucessão clara, linear ou cronologicamente articulada de negócios ou uma única operação com vista a um fim comum, a obtenção de vantagens fiscais. Defendem os Requerentes que não se verifica o elemento intelectual da CGAA, por não existir uma construção de negócios sucessivos exclusivamente ou maioritariamente destinados à partilha, com isenção fiscal a favor dos descendentes (ora Requerentes), do produto da venda das duas sociedades acima melhor referidas.
Apreciação do Tribunal Arbitral
Da análise dos elementos juntos aos autos (em especial a análise das operações contida nos RITs em apreço), temos que, in casu, a AT interpretou e aplicou corretamente a CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na versão vigente em 2018, por se encontrarem verificados os respetivos pressupostos (ou seja, os cinco elementos supra referidos).
Em primeiro lugar, quanto ao elemento meio, temos que os Requerentes, conjuntamente com o seu pai (E...), estruturaram uma série de operações, efetuadas num curto prazo de tempo, que resultou (i) na alienação total das partes sociais detidas na C... (à própria sociedade e a uma terceira entidade), e (ii) na amortização e na transmissão aos descendentes de F... das partes sociais detidas D..., sem qualquer tributação em sede de IRS. Esta vantagem fiscal foi obtida, essencialmente, através o aumento significativo do valor de aquisição das referidas partes sociais, que permitiu aos Requerentes apurar menos-valias fiscais em sede de IRS (ao invés de mais-valias tributáveis), como amplamente demonstrado pela AT nos RITs notificados aos Requerentes.
Em segundo lugar, quanto ao elemento intelectual, também não nos restam dúvidas de que a opção por esta construção (que permitiu a ausência de tributação da transmissão das partes sociais na C... e na D...) foi adotada para evitar uma solução que estaria sujeita a tributação (a transmissão das ditas partes sociais a uma entidade terceira e a F..., ou descendentes, pelo pai dos Requerentes). Com base na matéria de facto assente, a justificação avançada pelos Requerentes, de que haveria uma relação difícil entre o pai dos Requerentes e F... em 2017 e 2018, e que estaria uma mera reorganização familiar, não nos parece minimamente credível. Veja-se, a título de exemplo, que E... e F... acordaram amortizar ações na D... (operação isenta de IRS por as partes sociais terem sido adquiridas antes de 1989) no mesmo dia em que E... doou as suas ações na C... aos Requerentes (11 de setembro de 2018). Note-se também que o envolvimento dos Requerentes como administradores da C..., diretora financeira (Segunda Requerente), e prestador de serviços jurídicos (Primeiro Requerente), torna pouco verosímil que os Requerentes não tivessem conhecimento de todas as operações em causa, da respetiva motivação e do benefício fiscal por elas gerado.
Em terceiro lugar, quanto ao elemento resultado, os RITs notificados ao Requerentes demonstram de forma cabal e convincente que o conjunto de operações realizadas pelos Requerentes (e que foram acima descritas na matéria de facto dada como provada) implicaram a eliminação de tributação relativamente à transmissão das ações nas duas sociedades em causa.
Em quarto lugar, quanto ao elemento normativo, também é claro que a poupança fiscal obtida pelos Requerentes não é incentivada pelo legislador fiscal, não se configurando como legítima em face dos princípios de Direito Fiscal. A legislação fiscal estabelece regras distintas para a determinação do valor de aquisição de partes sociais adquiridas a título gratuito (Código do Imposto do Selo) e adquiridas a título oneroso (CIRS), não sendo estas regras, bem como a isenção de Imposto do Selo prevista para doações entre ascendentes e descendentes, destinadas a permitir aumentos artificiais no valor de aquisição de partes sociais.
Quanto ao elemento sancionatório, o mesmo determina a ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos. Esta é a consequência ditada pelas correções ao valor de aquisição das partes sociais transmitidas, correções estas que resultaram no apuramento de mais-valias tributáveis em sede de IRS.
Por último, da leitura dos RITs notificados aos Requerentes, que estiveram na origem das Liquidações Contestadas, resulta claro que os atos tributários impugnados não padecem do vício de falta de fundamentação, independentemente do teor de alguns dos anexos aos RITs (que aliás os Requerentes não tiveram o cuidado de juntar aos autos). Temos que a análise e fundamentação contidas nos RITs são claras e suficientemente detalhadas para os Requerentes perceberem o percurso cognitivo seguido pela AT, bem como as razões de facto e de direito que estiveram na origem das Liquidações Contestadas, em cumprimento do artigo 77.º da LGT.
Quanto a uma alegada artigo 63.º do CPPT, os Requerentes vieram defender que, considerando o teor da argumentação utilizada pela AT, mormente no sentido de que parte das operações societárias teriam como objetivo uma verdadeira distribuição antecipada de dividendos, sempre importaria aos serviços de inspeção terem notificado as próprias sociedades para prestação de esclarecimentos e inclusivamente de procedimentos de inspeção para liquidação dos impostos eventualmente devidos. Ora, não se alcança o sentido deste argumento dado que a AT não defende, in casu, que operações societárias teriam como objetivo uma verdadeira distribuição antecipada de dividendos. A AT centra a sua análise no aumento artificial do valor de aquisição das partes sociais transmitidas, e na consequente ausência de tributação, em sede de IRS, das transmissões em apreço.
Quanto à determinação da vantagem fiscal na esfera dos Requerentes em comparação com o negócio jurídico de efeito equivalente (i.e., a alienação das participações em ambas as sociedades feitas diretamente pelo ascendente com base nos valores de aquisição originários apurados nos RITs e posterior partilha para os descendentes ora Requerentes), note-se que a CGAA implica a ineficácia de negócios jurídicos apenas para efeitos fiscais.
No caso sub judice, ocorreram transmissões de ações eficazes nos termos gerais de direito, tendo o pai dos Requerentes efetivamente transmitido (por doação) as suas ações nas duas sociedades para os Requerentes. É quando estes transmitem as mesmas ações que se conclui a serie de operações com vista primordial à obtenção de uma vantagem fiscal. Não pode a AT ignorar que a propriedade das ações foi efetivamente transmitida para os Requerentes, e que é do conjunto das operações em apreço que se desenha um esquema relevante para efeitos da CGAA. Assim sendo, andou bem a AT ao centra-se na correção ao valor de aquisição das ações transmitidas e no apuramento das mais-valias auferidas pelos Requerentes.
Note-se também que a questão de saber se uma quota cujo valor foi alterado por aumentos de capital posteriores a 1989 se considera adquirida, na totalidade, antes ou depois de 1989 (para efeitos de não sujeição / tributação da respetiva transmissão em sede de IRS), é ainda uma questão controvertida nos tribunais judiciais e arbitrais, não sendo uma opção segura, em 2017 e 2018, no sentido de evitar a tributação em sede de mais-valias. Assim sendo, à data das transações relevantes (2017 e 2018), não podiam os Requerentes concluir, sem mais, que se a transmissão das partes sociais na C... e na D... fosse efetuada diretamente pelo seu pai, a mesma estaria isenta de tributação em sede de IRS.
Os Requerentes alegam ainda a violação de vários princípios constitucionais, designadamente, do princípio da boa-fé e o princípio da tipicidade. Sem desenvolver em que sentido a interpretação conduzida pela AT violaria estes princípios, não é possível ao Tribunal Arbitral apreciar esta questão.
Por todo o exposto, o Tribunal Arbitral julga improcedente o pedido de anulação das Liquidações Contestadas, com fundamento na incorreta interpretação e aplicação da CGAA prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.
§3. Da exclusão de tributação em 50% do saldo das mais-valias apuradas (prevista no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS)
Na parte relevante para o caso em apreço, dispõe o artigo 43.º, n.ºs 3 e 4, do Código do IRS:
“1 - O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes.
(...)
3 - O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor.
4 - Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.”
Decorre assim do artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS que, no caso de transmissão de participações sociais relativas a micro e pequenas empresas não cotadas, o valor tributável é de apenas 50% da mais-valia. Determina, por sua vez, o n.º 4 do artigo 43.º do Código do IRS que se entende por micro e pequenas empresas as entidades definidas nos termos do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 143/2009, de 26 de Julho e 81/2017, de 30 de Junho), diploma que define o procedimento de certificação por via eletrónica de micro, pequenas e médias empresas, da competência do IAPMEI.
Da leitura do artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, resulta claro que a qualidade de micro, pequena ou média empresa depende, essencialmente, da verificação de um conjunto de requisitos materiais: o número de pessoas empregadas, o volume de negócios anual, e o balanço total anual. Dos artigos 3.º e 6.º do anexo resulta também claro que, no caso de a sociedade cujas participações sociais são objeto de transmissão onerosa ter “empresas associadas”, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do anexo, a verificação dos referidos requisitos materiais (ou seja, o número de pessoas empregadas, o volume de negócios anual, e o balanço total anual) deve ser determinada com referência ao conjunto das sociedades qualificadas como “empresas associadas”, e não apenas com referência à sociedade cujas participações sociais são transmitidas (como se de uma “empresa autónoma” se tratasse).
Tal como referem os Requerentes, a qualificação de uma empresa pelo IAPMEI não tem natureza constitutiva, relevando antes a qualificação material resultante da subsunção dos elementos factuais à previsão legal (cf. Decisão Arbitral proferida no processo n.º 510/2014T, em 14 de março de 2015).
Daqui se retira que, para efeitos do artigo 43.º, n.º 3, do CIRS, não releva a qualificação da C... conferida pelo IAPMEI. In casu, a sociedade C... constitui uma empresa média, por ter mais de 50 efetivos em 2017 e 2018, pelo que não se aplica a exclusão parcial de tributação prevista no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS à transmissão das respetivas partes sociais pelos Requerentes. Note-se que os Relatórios juntos ao PPA como Documentos 33 e 34 não são suficientes para abalar a análise detalhada contida nos RITs quanto ao número de trabalhadores da C... em 2017. Note-se também que, mediante o teor dos RITs, cumpria aos Requerentes demonstrar que trabalhadores não teriam o alegado nexo de subordinação referido no artigo 5.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro, o que não lograram fazer.
A este propósito, relembre-se o disposto no artigo 76.º, n.º 1, da LGT (“As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei”), e a jurisprudência vertida no sumário do Acórdão do TCAS, de 15 de fevereiro de 2024, processo n.º 35/09.8 BECTB, no qual se pode ler:
“I- O disposto no art.º 76.º, n.º 1, da LGT não significa que, em sede judicial, o contribuinte não possa pôr em causa a factualidade apurada em sede inspetiva, provando a ocorrência de erro sobre os pressupostos de facto.
II- No entanto, tal ocorrência de erro sobre os pressupostos de facto tem de ser alegada e provada”.
Quanto à sociedade D..., a AT demonstrou, nos RITs em causa, que as sociedades C... e D... tinham uma estrutura acionista comum, e bem assim o controlo maioritário de ambas as sociedades por o mesmo grupo de pessoas singulares que atuam concertadamente (como demonstrado em algumas das operações em análise). A ausência de faturação entre as empresas e o facto de não partilharem tarefas de produção ou comercialização não significa que as empresas não operem, essencialmente, no mesmo mercado, como alegam os Requerentes. E tal como referido no artigo 285.º do PPA, a D... produziria equipamentos destinados à produção de produtos de vidro, e a C... produz equipamentos designados a diversos sectores, incluindo o vidreiro. Ora, sendo a D... uma “empresa associada” da C... (empresa média), a transmissão de partes sociais daquela sociedade não poderá beneficiar da exclusão parcial de tributação prevista no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS.
Também quanto a esta questão, em face do teor dos RITs em apreço, não vislumbramos a verificação do vício de falta de fundamentação ou de violação do direito de audição, tendo os Requerentes se pronunciado sobre os factos relevantes e demonstrado perceber as razões de direito e de facto que deram origem à posição da AT vertida nos RITs.
Nestes termos, improcede também o pedido de anulação das Liquidações Contestadas com fundamento na violação do disposto no artigo 43.º, n.º 3, do CIRS.
§4. Da legalidade das liquidações de juros compensatórios
Sob a epígrafe “juros compensatórios” estipula o art. 35º da LGT:
“1 – São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.
2 – São também devidos juros compensatórios quando o sujeito passivo, por facto a si imputável, tenha recebido reembolso superior ao devido.
3 – Os juros compensatórios contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, do termo do prazo de entrega do imposto a pagar antecipadamente ou retido ou a reter, até ao suprimento, correcção ou detecção da falta que motivou o retardamento da liquidação.
4 – Para efeitos do número anterior, em caso de inspecção, a falta considera-se suprida ou corrigida a partir do auto de notícia.
5 – Se a causa dos juros compensatórios for o recebimento de reembolso indevido, estes contam-se a partir deste até à data do suprimento ou correcção da falta que o motivou.
(…)
7 – Os juros compensatórios só são devidos pelo prazo máximo de 180 dias no caso de erro do sujeito passivo evidenciado na declaração ou, em caso de falta apurada em acção de fiscalização, até aos 90 dias posteriores à sua conclusão. (...)”
Quanto a esta questão, temos que assiste razão à AT Requerida, porquanto foi apurado imposto em falta, não entregue nos cofres do Estado nos prazos legais no ano fiscal de 2018, por factos imputáveis aos Requerentes, devido a atos e negócios jurídicos artificiosos celebrados (que levaram à aplicação da CGAA), reunindo-se, assim, todos os pressupostos necessários para aplicação das normas previstas nos n.ºs 1 a 3 do artigo 35.º da LGT, conjugado com o n.º 1 do artigo 91.º do CIRS.
Improcede, assim, o vício apontado pelos Requerentes à liquidação de juros compensatórios em apreço.
§5. Do direito a juros indemnizatórios
Improcedendo o PPA na totalidade, e não havendo qualquer erro imputável aos serviços para efeitos do artigo 43.º da LGT, improcede também o pedido de juros indemnizatórios.
DECISÃO
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.
VALOR DO PROCESSO
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 3.197.902,06.
CUSTAS
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 40.698,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes, em razão do decaimento.
Notifique-se.
CAAD, 9 de maio de 2025.
Os árbitros,
(Rita Correia da Cunha)
(Rita Guerra Alves)
(Maria da Graça Martins)