Sumário:
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O artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação nele previsto aos OIC que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, procede a um tratamento desfavorável dos OIC não residentes, o qual se afigura incompatível com a livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE.
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A interpretação do TJUE sobre o Direito da União Europeia é vinculativa para os órgãos jurisdicionais nacionais, com a necessária desaplicação do direito interno em caso de desconformidade com aquela.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros José Poças Falcão (presidente), Sónia Martins Reis e Ricardo Rodrigues Pereira (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. No dia 20 de novembro de 2024, A..., organismo de investimento coletivo em valores mobiliários, constituído e a operar no Grão-Ducado do Luxemburgo, com o NIF luxemburguês ... e com o NIF português..., com sede em ..., ..., Grão-Ducado do Luxemburgo (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a pronúncia deste Tribunal relativamente:
(i) À ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024... que teve por objeto as liquidações de IRC por retenção na fonte a seguir indicadas;
(ii) À ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte, referentes ao exercício de 2022, aquando da colocação à disposição do Requerente de juros pagos por entidades residentes em território português, no montante total de € 245.785,09.
O Requerente juntou 8 (oito) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas.
É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).
2. Como resulta do pedido de pronúncia arbitral (doravante, PPA), o Requerente é um organismo de investimento coletivo (doravante, OIC), com sede e direção efetiva no Grão-Ducado do Luxemburgo, constituído e a operar ao abrigo da Loi du 17 décembre 2010 concernant les organismes de placement collectif, que transpõe para a ordem jurídica luxemburguesa a Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC. O Requerente é administrado pela sociedade B..., S.A., entidade igualmente residente no Grão-Ducado do Luxemburgo.
No ano de 2022, o Requerente auferiu juros em Portugal, no montante total de € 702.243,10, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede IRC, através de retenção na fonte liberatória, no valor total de € 245.785,09.
O Requerente alega que não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativamente às aludidas retenções na fonte de IRC, seja ao abrigo da CDT Portugal/Luxemburgo, seja ao abrigo da lei interna do Grão-Ducado do Luxemburgo.
Por não se conformar com a tributação por retenção na fonte de IRC que incidiu sobre os juros pagos por entidades residentes em território português, o Requerente apresentou reclamação graciosa das mencionadas liquidações de IRC, referentes ao ano de 2022, tendo, nessa sede, sustentado, em síntese, que os juros de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, sob pena de tal consubstanciar uma discriminação injustificada entre OIC residentes e não residentes em Portugal, contrária ao princípio da livre circulação de capitais plasmado no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, ao princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP.
Acontece que, passados mais de quatro meses sobre a data de apresentação da referida reclamação graciosa, o Requerente não foi ainda notificado pela AT da respetiva decisão final, verificando-se assim uma situação de indeferimento tácito.
O Requerente termina o PPA peticionando o seguinte:
“Nestes termos, requer-se a V. Ex.ª a constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo dos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, pedindo-se pronúncia arbitral sobre a legalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024..., e, por via disso, das liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas.
Nessa sede, e em face do exposto, requer-se ao Tribunal Arbitral que:
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Declare a ilegalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte em referência, por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do CPA;
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Ao abrigo do artigo 100.º da LGT, ordene a restituição das importâncias indevidamente retidas na fonte a título de IRC, no montante total de EUR 245.785,09;
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Com a anulação dos actos tributários em crise, determine o pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1, e 100.º da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT a computar sobre o montante total de EUR 245.785,09, desde a data das retenções na fonte em referência; e
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Na medida da procedência dos pedidos anteriores, condene a Administração Tributária nas custas do processo arbitral, tudo com as demais consequências legais.”
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e notificado à AT em 27 de novembro de 2024.
4. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.ºs 2, alínea a) e 3 e no artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 13 de janeiro de 2025, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 31 de janeiro de 2025.
5. No dia 11 de março de 2025, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou os argumentos aduzidos pelo Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
A Requerida procedeu à junção aos autos do processo administrativo (doravante, PA).
6. No dia 12 de março de 2025, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, a conceder prazo para as partes, querendo, apresentarem alegações escritas e a indicar o dia 30 de maio de 2025 como data previsível para a prolação da decisão arbitral.
7. Apenas o Requerente apresentou as alegações escritas que aqui se dão por inteiramente reproduzidas.
II. Saneamento
8. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
Admite-se a cumulação de pedidos, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT.
O processo não enferma de nulidades.
Não existem quaisquer exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e que cumpra conhecer.
III. Fundamentação
III.1. De Facto
§1. Factos ProvadosROVADOS
9. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
a) O Requerente é um OIC, com sede e direção efetiva no Grão-Ducado do Luxemburgo, constituído e a operar ao abrigo da Loi du 17 décembre 2010 concernant les organismes de placement collectif, que transpõe para a ordem jurídica luxemburguesa a Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OIC. [cf. documentos n.ºs 2 e 3 anexos ao PPA]
b) O Requerente cumpre no seu Estado de residência e constituição exigências equivalentes às estabelecidas na legislação portuguesa que regula a atividade dos OIC, também em transposição da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, isto é, na Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro. [cf. documentos n.ºs 2 e 3 anexos ao PPA]
c) O Requerente é administrado pela sociedade B... S.A., entidade igualmente com residência no Grão-Ducado do Luxemburgo, ..., ..., Grão-Ducado do Luxemburgo. [cf. documentos n.ºs 2, 3 e 4 anexos ao PPA]
d) Em 2022, o Requerente auferiu juros com fonte em Portugal, no montante total de € 702.243,10, os quais foram sujeitos a tributação em Portugal em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, nos seguintes termos [cf. documentos n.ºs 5 e 6 anexos ao PPA e documento n.º 1 anexo às alegações do Requerente]:
Entidade
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Data
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Juros Brutos
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Retenção na Fonte
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Juros Líquidos
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C...
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28.03.2022
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100.646,00
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35.226,10
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65.419,90
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D...
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19.04.2022
|
31.500,00
|
11.025,00
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20.475,00
|
D...
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15.06.2022
|
9.750,00
|
3.412,50
|
6.337,50
|
E...
|
01.07.2022
|
81.562,50
|
28.546,88
|
53.015,62
|
F...
|
15.09.2022
|
242.471,23
|
84.864,93
|
157.606,30
|
D...
|
17.10.2022
|
67.850,00
|
23.747,50
|
44.102,50
|
D...
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17.10.2022
|
57.500,00
|
20.125,00
|
37.375,00
|
F...
|
15.12.2022
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110.963,37
|
38.837,18
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72.126,19
|
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Totais:
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702.243,10
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245.785,09
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456.458,01
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e) As aludidas retenções na fonte de IRC, referentes aos juros pagos pelas entidades D..., E... e F..., foram efetuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública através das guias de retenção na fonte n.ºs ..., de 20 de maio de 2022, ..., de 18 de julho de 2022,... , de 18 de novembro de 2022 e ..., de 18 de janeiro de 2023, pelo G... PLS, NIPC ... e pelo H... AG, NIPC..., na qualidade de entidades registadoras e depositárias de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do Código do IRC. [cf. documentos n.ºs 5 e 6 anexos ao PPA]
f) O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às aludidas retenções na fonte de IRC, seja ao abrigo da CDT Portugal/Luxemburgo, seja ao abrigo da lei interna do Grão-Ducado do Luxemburgo. [cf. documentos n.ºs 3 e 7 anexos ao PPA]
g) No dia 22.04.2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade dos aludidos atos de retenção na fonte de IRC – autuada sob o processo n.º ...2024... –, nos termos e com os fundamentos constantes do respetivo requerimento inicial, cuja cópia está anexa como documento n.º 1 ao PPA e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos. [cf., também, o PA]
h) No dia 04.11.2024, o Requerente foi notificado do projeto de decisão de indeferimento da referida reclamação graciosa, elaborado nos termos e com os fundamentos constantes do documento n.º 8 anexo ao PPA e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos e para, querendo, exercer o respetivo direito de audição prévia. [cf., também, o PA]
i) Volvidos mais de quatro meses sobre a data de apresentação da referida reclamação graciosa, o Requerente não foi ainda notificado pela Administração Tributária da respetiva decisão final, verificando-se assim o indeferimento tácito da mesma.
j) No dia 20.11.2024, o Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. Sistema de Gestão Processual do CAAD]
§2. Factos não Provados
10. Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham por provados.
§3. Motivação quanto à Matéria de Facto
11. Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consubstanciadas em afirmações meramente conclusivas e, por isso, insuscetíveis de prova e cuja veracidade terá de ser aquilatada em face da concreta matéria de facto consolidada.
Conforme indicado em cada uma das alíneas do probatório, a convicção do Tribunal resultou da apreciação crítica e de uma adequada ponderação, à luz das regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, do acervo probatório de natureza documental, incluindo o PA, que foi carreado para os autos, em conjugação com as alegações das partes nos respetivos articulados quando reportadas a factos pertinentes para a decisão que não se mostraram controvertidos.
12. Relativamente ao facto provado d), a AT impugnou a retenção na fonte de IRC, no valor de € 35.226,10, referente aos juros pagos pela entidade C... ao Requerente, no montante de € 100.646,00, por não ter sido “apresentado pela requerente a declaração emitida pelo agente pagador em Portugal no período relevante (artigo 28.º da LGT), ou seja, pelo substituto tributário atestando a data da obtenção dos juros, montante bruto dos juros pagos ao requerente e imposto retido na fonte em Portugal bem como o número da guia através da qual foi entregue o imposto retido junto dos cofres da autoridade tributária”. A este propósito, em sede de alegações, o Requerente veio dizer que “encetou diligências junto do substituto tributário com vista a obter cópias da guia de retenção na fonte e da declaração Modelo 30 subjacentes aos juros por si auferidos no dia 28 de Março de 2022, no montante de EUR 100.646,00, sobre os quais incidiu retenção na fonte no montante de EUR 35.226,10, mas que, até à presente data, essa entidade não forneceu ao Requerente a informação solicitada”, tendo, por isso, juntado a cópia do aviso de débito desse pagamento (cf. documento n.º 1 anexo às alegações. Posteriormente, o Requerente veio informar “que as diligências encetadas junto do substituto tributário com vista a obter cópias da guia de retenção na fonte e da declaração Modelo 30 subjacentes aos juros por si auferidos no dia 28 de março de 2022, no montante de EUR 100.646,00, sobre os quais incidiu retenção na fonte no montante de EUR 35.226,10, se revelaram infrutíferas”.
A este propósito importa começar por dizer que o documento n.º 1 anexo às alegações do Requerente, emitido pela entidade bancária UBS, em 29.03.2022, permite comprovar que, em 28.03.2022, a entidade C... pagou ao Requerente o montante de juros de € 100.646,00, sobre o qual incidiu uma retenção na fonte de imposto, à taxa de 35%, no valor de € 35.226,10, tendo o Requerente recebido o montante de juros líquidos de € 65.419,90; por isso, este Tribunal considera provado que o Requerente sofreu, efetivamente, tal ablação patrimonial no concernente aos ditos juros que lhe foram pagos pela entidade C..., tanto mais que tal documento não foi objeto de qualquer impugnação por parte da Requerida. Com efeito, considera este Tribunal que tal documento junto pelo Requerente é idóneo a comprovar que foi efetuado o pagamento dos ditos juros ao Requerente, na qualidade de beneficiário efetivo desses rendimentos e que os mesmos foram sujeitos a retenção na fonte.
Ademais, o Requerente não deve ver a sua pretensão prejudicada pela alegada inexistência de declaração Modelo 30 relativa a tais rendimentos, já que ela é da responsabilidade do substituto tributário, ao qual cabe assegurar a regularidade e êxito da retenção na fonte, e a respetiva comprovação, nos termos gerais do artigo 28.º da LGT. Por outro lado, impõe-se reconhecer que, tendo ocorrido substituição tributária, o Requerente fez prova bastante com os elementos de que dispunha, pois identificou quer o respetivo substituto tributário, quer tal ato de retenção na fonte por referência aos rendimentos em causa (juros), à respetiva entidade pagadora (C...), à data de pagamento (28.03.2022), ao respetivo montante bruto (€ 100.646,00), à taxa de imposto aplicada (35%), ao valor da retenção na fonte (€ 35.226,10) e ao montante de juros líquidos que recebeu (€ 65.419,90). Ora, essa identificação preenche os requisitos do artigo 74.º, n.º 2, da LGT, exonerando o Requerente de ulterior comprovação.
Feita essa identificação – e na impossibilidade de o Requerente, ou mesmo este Tribunal, forçar o substituto tributário a juntar comprovativo documental atinente ao ato de retenção na fonte em causa –, poderia a Requerida ter impugnado essa identificação, provando que as referências eram inexistentes ou erradas. Contudo, não o fez e deveria tê-lo feito, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT.
Importa, ainda, dizer que a entrega da declaração Modelo 30 não esgota os meios de prova da existência da liquidação, da retenção na fonte e da entrega, nos cofres do Estado, do imposto retido. Mais, consideramos que uma deficiência de preenchimento da declaração Modelo 30 ou mesmo a falta da sua entrega por um substituto tributário, terá consequências próprias do incumprimento de deveres declarativos, mas não tem o efeito de tornar inexistente a verdade material, que foi a de, no caso concreto, o imposto ter sido efetivamente liquidado, retido e entregue. Por outras palavras, a falta ou deficiência de tais elementos documentais não tem a potencialidade de converter-se a si mesma num incumprimento, já não de deveres declarativos acessórios, mas da própria obrigação tributária principal. Assim, a ausência de declaração Modelo 30 ou outras deficiências declarativas não têm, nem teriam, a consequência que a Requerida sugere, ou seja, a de não ter ocorrido retenção na fonte quanto aos aludidos juros pagos pela entidade C... ao Requerente, ou de não ter ocorrido a entrega do imposto retido, ou a de não devermos considerar a existência da operação que integrou tal retenção e entrega.
13. No concernente ao facto provado f), a formação da convicção do Tribunal nesse sentido resultou dos documentos n.ºs 3 (particularmente quanto ao ali vertido relativamente ao regime fiscal a que o Requerente está sujeito no Grão-Ducado do Luxemburgo – cf. pág. 33 (“Taxation”)) e 7 anexos ao PPA, concatenados com o disposto nos artigos 11.º, n.º 1 e 24.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, nos exatos termos constantes dos artigos 59 a 70 das alegações do Requerente e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.
Acresce referir que, face à posição que assume a este propósito, estava na disponibilidade da Requerida lançar mão do mecanismo de troca de informações fiscais com as autoridades luxemburguesas, nos termos do disposto no artigo 27.º da CDT celebrada entre Portugal e o Luxemburgo, para obter os esclarecimentos tidos por necessários quer quanto ao regime fiscal a que o Requerente está sujeito no seu país de residência, quer quanto a saber se o Requerente ali obteve ou não algum crédito de imposto relativo às aludidas retenções na fonte de IRC atinentes aos ditos juros recebidos em Portugal; contudo, a Requerida não o fez e deveria tê-lo feito.
III.2. De Direito
§1. O thema decidendum
14. A questão jurídico-tributária que está no epicentro do dissídio entre as partes e que, por isso, o Tribunal é chamado a apreciar e decidir, consiste em determinar se a retenção na fonte de IRC, a título definitivo, sobre juros pagos a um OIC não residente em Portugal, como é o caso do Requerente, viola o Direito da União Europeia, estando concretamente em causa analisar o regime previsto no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), à luz do artigo 63.º do TFUE.
A resposta que for dada a essa questão será, naturalmente, determinante para o juízo a emitir quanto à (i)legalidade dos atos tributários controvertidos.
O Tribunal é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre a restituição ao Requerente do montante total de € 245.785,09, referente a IRC retido na fonte, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
§2. As Posições das Partes
15. A propósito da aludida questão jurídico-tributária, o Requerente, apoiando-se em profusa jurisprudência nacional e europeia e em diversos contributos doutrinais, alega, nuclearmente, o seguinte:
- “Constata-se pois que o regime estabelecido no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, ao restringir a dispensa de retenção na fonte e a exclusão de tributação em sede de IRC aos juros auferidos por OIC residentes em Portugal, discrimina os OIC não residentes, residentes noutro Estado-Membro da União Europeia, não obstante tais entidades não residentes serem constituídas e operarem em condições equivalentes às previstas na legislação portuguesa, ao abrigo da Directiva 2009/65/CE.”
- “Por outras palavras, ainda que revestindo características equivalentes aos OIC residentes em Portugal, em cumprimento das condições previstas na Directiva 2009/65/CE, os OIC não residentes são colocados numa situação de desvantagem comparativamente aos OIC residentes, tão-só em consequência de não terem a sua residência em Portugal.”
- “Como tal, o tratamento discriminatório operado pelos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, encontra-se em violação do TFUE, ao constituir uma restrição às liberdades fundamentais e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação do primado do Direito Comunitário sobre o Direito interno, facto que deverá determinar anulação das liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas e a consequente restituição do imposto indevidamente liquidado ao ora Requerente.”
- “Ora, no caso concreto, estando em causa o pagamento de juros de fonte portuguesa decorrentes de obrigações, a legislação portuguesa em análise será, como tal, potencialmente violadora da livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.”
- “Neste contexto, caberá então determinar em que medida é que o tratamento fiscal diferenciado dos juros pagos por entidades portuguesas a OIC residentes noutros Estados-Membros, constituídos e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, previsto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, vis-à-vis aquele aplicável, nos termos do artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, aos OIC residentes em Portugal, constituídos e a operar em condições equivalentes, por força da legislação portuguesa que transpõe a referida Directiva, se traduz numa restrição à livre circulação de capitais.”
- “Neste contexto, a situação na qual uma entidade portuguesa paga juros a um OIC residente em Portugal é comparável à situação que está na origem dos presentes autos, em que esses juros foram pagos ao Requerente, na sua qualidade de OIC credor de juros pagos por entidades residentes em território português, constituído e a operar ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, residente no Grão-Ducado do Luxemburgo.”
- “Efectivamente, em ambos os casos, os juros pagos por entidades portuguesas podem ser objecto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia por mero efeito do exercício da competência tributária do Estado português.”
- “Em síntese, na medida em que o artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, faz depender a dispensa de retenção na fonte e tributação em sede de IRC dos juros de fonte portuguesa pagos a um OIC da respectiva residência em território português, os OIC não residentes constituídos e a operar em condições equivalentes, ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, encontram-se numa situação objectivamente comparável à dos OIC residentes em território português, podendo em ambos os casos os juros pagos por entidades residentes em Portugal ser objecto de uma dupla tributação económica ou de uma tributação em cadeia.”
- “Neste contexto, constata-se que as liquidações de IRC objecto dos presentes autos assentam numa situação de discriminação que viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.”
- “Efectivamente, de acordo com as regras e princípios de Direito da União Europeia que prevalecem sobre a legislação nacional, nas situações como a ora em análise, impende sobre o Estado Português a obrigação de, no âmbito do exercício da sua soberania tributária sobre os juros auferidos pelo Requerente, tratar os mesmos de modo equiparável aos juros pagos a um OIC credor residente em situação análoga – ou seja, de não discriminar entre OIC residentes e não residentes.”
- “Essa obrigação de não discriminar implica, necessariamente, que também os benefícios ou vantagens de natureza fiscal atribuídos a residentes devam ser concedidos, nas mesmas condições, a não residentes.”
- “Aplicando os princípios afirmados pela supra citada jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia à matéria de facto em apreço, a situação do Requerente constitui um exemplo claro de discriminação por parte do Estado Português entre OIC portugueses e OIC luxemburgueses.”
- “Neste contexto, conclui-se que a aplicação do regime previsto nos artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, se traduziu numa restrição à livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE, na medida em que implicou uma tributação por retenção na fonte sobre os juros pagos ao Requerente, a qual não ocorreria caso os mesmos tivessem sido pagos a um OIC residente em Portugal.”
- “Em suma, inexistindo um nexo directo entre a vantagem fiscal consagrada no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, e a compensação dessa vantagem pela liquidação de um determinado imposto sobre os OIC residentes, não poderá a discriminação sub judice ser justificada com a necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal português.”
- “Em síntese, a partir do momento em que o Estado português optou por não tributar em sede de IRC os juros pagos a OIC residentes em Portugal, não poderá justificar a discriminação sub judice com fundamento na salvaguarda da repartição equilibrada do poder de tributação entre Estados-Membros.”
- “Ou seja: o Estado português não pode justificar a discriminação em referência com a necessidade de garantir a eficácia de controlos administrativos na medida em que nem sequer concede aos OIC não residentes a possibilidade de comprovarem que cumprem, no seu Estado-Membro de residência, exigências equivalentes às previstas na legislação portuguesa.”
- “Ou seja: o Estado português não pode justificar a discriminação em referência com a necessidade de evitar a fraude e a evasão fiscal ou de garantir a eficácia de controlos administrativos na medida em que tal resultaria numa presunção inilidível, e como tal contrária ao princípio da proporcionalidade, do carácter artificioso das operações em causa e do incumprimento por parte do Requerente, no seu Estado de residência, de exigências equivalentes às previstas na legislação portuguesa.”
- “Finalmente, tendo presente o enquadramento de facto e de direito subjacente ao processo na origem do pedido de reenvio prejudicial que culminou no Acórdão AllianzGI-Fonds AEVN de 17 de Março de 2022 (Processo C-545/19), sublinhe-se que as conclusões do Tribunal de Justiça da União Europeia no âmbito deste Acórdão são imediatamente relevantes para a boa decisão dos presentes autos e, nesse contexto, para a anulação dos actos tributários em crise.”
- “Em face de todo o exposto, inexistindo quaisquer argumentos que possam justificar o tratamento discriminatório decorrente da retenção na fonte que incidiu sobre os juros de fonte portuguesa pagos ao Requerente em 2022, conclui-se que os artigos 4.º, n.º 2, 94.º, n.ºs 1, alínea c), 3, alínea b), e 5, 87.º, n.º 4, do CIRC e 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF, consubstanciam uma restrição discriminatória à livre circulação de capitais, contrária ao artigo 63.º do TFUE e, bem assim, ao artigo 8.º, n.º 4, da CRP.”
- “Tudo ponderado, as liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas enfermam de vício de violação de lei consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, na violação do princípio do primado do Direito da União Europeia ínsito no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o qual deverá, nos termos do artigo 163.º do CPA, determinar a respectiva anulação, com a consequente restituição do imposto indevidamente retido na fonte, no montante total de EUR 245.785,09, ao abrigo do artigo 100.º da LGT.”
- “Tudo ponderado, com a anulação de actos de retenção na fonte ilegais com fundamento na violação do artigo 63.º do TFUE, necessariamente serão devidos juros indemnizatórios desde a data da entrega da prestação tributária, sob pena de o regime previsto nos artigos 43.º, n.º 1, 100.º da LGT, e 61.º, n.º 5, do CPPT, ser incompatível com os princípios do primado e da efectividade do Direito da União e da cooperação, previsto no artigo 4 § do Tratado da União Europeia ("TUE"), e, bem assim, no tratamento discriminatório dos contribuintes não residentes que, no exercício da sua livre circulação de capitais, obtêm rendimentos de capitais de fonte portuguesa, sujeitos a retenção na fonte contrária ao Direito da União, na medida em que não permitiriam uma tutela ressarcitória plena do contribuinte que, em violação do Direito da União, se viu privado de determinada quantia pecuniária, indevidamente entregue junto dos cofres do Estado a título de imposto.”
- “Face ao exposto, necessariamente se conclui que, não tendo o imposto em referência sido autoliquidado pelo Requerente, mas objecto de retenções na fonte efectuadas por entidade terceira (na qualidade de substituto tributário) no interesse da Administração Tributária, o erro na prolação de tais liquidações terá de ser imputável «aos serviços», nos termos e para os efeitos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.”
16. Por seu turno, a Requerida alega, essencialmente, o que resulta sintetizado nas seguintes conclusões que aduz:
- “1. AT encontra-se subordinada ao princípio da legalidade, pelo que não poderia aplicar de forma direta e automática as decisões do TJUE proferidas sobre casos concretos que não relevam do direito nacional, para mais não estando em causa situações materialmente idênticas, e em que a aplicação correta do direito comunitário não se revela tão evidente (Ato Claro) que não deixe margem para qualquer dúvida razoável quanto ao modo como deve ser resolvida a questão
suscitada.”
- “2. O regime fiscal aplicável aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional, embora consagre a isenção dos dividendos distribuídos por sociedades residentes, não afasta a tributação desses rendimentos por outras formas, seja por tributação autónoma, seja em imposto do selo, quando os mesmos rendimentos integram o valor líquido destes organismos, logo, não pode afirmar-se que, em substância, as situações em que se encontram aqueles OIC e os Fundos de Investimentos constituídos e estabelecidos noutros Estados-Membros que auferem dividendos com fonte em Portugal, sejam objetivamente comparáveis.”
- “3. Assim, não pode concluir-se que o regime fiscal dos OIC – que não se contém em exclusivo no n.º 3 do artigo 22.º do EBF – esteja em conformidade com as obrigações que decorrem do artigo 63.º do TFUE.”
- “4. Por conseguinte, a retenção na fonte efetuada sobre os dividendos pagos à Requerente respeita o disposto na legislação nacional e na convenção para evitar a dupla tributação, devendo ser mantida na ordem jurídica.”
- “5. Acrescentamos ainda que, admitindo-se a comparabilidade das situações dos OIC residentes e não residentes, entende-se, porém, seguindo a doutrina expendida no Acórdão proferido no proc. 1435/12 do STA de 9.07.2014, que o tratamento diferenciado entre residentes e não residentes não constitui em si mesmo qualquer discriminação proibida pelo n.º 1 do artigo 63.º do TFUE.”
- “6. Na verdade, seguindo-se o entendimento expresso no Acórdão do STA, proc.19/10.3BELRS, de 07-05, “Para que se pudesse concluir, in casu, no sentido do carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as entidades financeiras não residentes, a recorrida teria que demonstrar que suportara uma tributação mais elevada no seu conjunto, o que não se verificou. Neste sentido, vide o Acórdão Gerritse, de 12 de junho de 2003 (Processo C- 234/01).
É de sublinhar que estando perante matéria de direito, como entendido pela sentença proferida pelo Tribunal a quo, cabia à requerente ter demonstrado a existência dos factos constitutivos dos direitos, prova a fazer por quem os invoca, tal como o que se encontra firmado no ordenamento fiscal português, no artigo 74.º da LGT e 342.º do Código Civil, subsidiariamente aplicável às relações jurídico-tributárias. Não o tendo feito, não é possível invocar de modo assertivo o carácter discriminatório da norma em discussão.”.”
- “7. No caso sub judice, em face da matéria de facto e dos documentos juntos aos autos entende-se que a Requerente não fez prova da discriminação proibida,”
- “8. Assim sendo, considerando-se que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo, o Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada.”
- “9. Recordando a este propósito os Acórdãos do STA proferidos nos processos n.º 1192/13, de 21.05.20215, n.º 1435/12, de 9.07.2014, n.º 884/17, de 12.09.2018, e o já citado proc. 19/10.3BELRS, de 7.05.”
Cumpre apreciar e decidir.
§3. Enquadramento normativo
17. O artigo 22.º do EBF, na redação vigente em 2022 e nos segmentos normativos a considerar, estabelece o seguinte:
“Artigo 22.º
Organismos de Investimento Coletivo
1. São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.
(…)
3. Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.
(…)
10. Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.
(…)”
18. O artigo 63.º do TFUE estatui o seguinte:
“Artigo 63.º (ex-artigo 56.º TCE)
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.”
19. O artigo 65.º do TFUE, limitando a aplicação do disposto no citado artigo 63.º, estatui o seguinte:
“Artigo 65.º (ex-artigo 58.º TCE)
1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
4. Na ausência de medidas ao abrigo do n.º 3 do artigo 64.º, a Comissão, ou, na ausência de decisão da Comissão no prazo de três meses a contar da data do pedido do Estado-Membro em causa, o Conselho, pode adotar uma decisão segundo a qual as medidas fiscais restritivas tomadas por um Estado-Membro em relação a um ou mais países terceiros são consideradas compatíveis com os Tratados, desde que sejam justificadas por um dos objetivos da União e compatíveis com o bom funcionamento do mercado interno. O Conselho delibera por unanimidade, a pedido de um Estado-Membro.”
§4. O caso concreto: subsunção normativa
20. A questão da discriminação entre OIC residentes e não residentes em Portugal e da alegada violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE foi analisada no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE, em 17 de março de 2022, no âmbito do processo C‑545/19, tendo ali sido, além do mais, entendido o seguinte:
“36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.º 49 e jurisprudência referida).
37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.
38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.
39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).”
Destarte, constitui entendimento do TJUE que o aludido regime jurídico consubstancia uma discriminação que viola diretamente o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, uma vez que estabelece um regime de tributação menos favorável aos OIC não residentes quando comparado com o regime aplicável aos OIC residentes.
21. No entanto, em conformidade com a jurisprudência do TJUE, designadamente nos acórdãos Futura Participations (Processo C-391/97), Marks & Spencer (Processo C‑446/03) e Denkavit II (Processo C‑170/05), a proibição da referida diferenciação pelo artigo 63.º do TFUE só se restringe aos casos em que ambas as situações sejam objetivamente comparáveis; neste mesmo sentido, no citado acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN foi aduzido o seguinte:
“40 Não obstante, segundo o artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.º TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 29 e jurisprudência referida].
42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.º, n.º 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.º 30 e jurisprudência referida].”
Assim, importa então determinar se a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos à tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11, do Código do IRC e ao Imposto do Selo (Verba 29 da TGIS), mas apenas a tributação em sede de IRC que não se verifica quanto aos OIC residentes, não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa. A este respeito foi afirmado o seguinte no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN:
“49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.º 47 e jurisprudência referida).
(…) a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.º 44 e jurisprudência referida). (…)
53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.º 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.
56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.º, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.”
Ainda a propósito da análise da comparabilidade objetiva das situações em apreço, foi afirmado o seguinte no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN:
“60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.º 49 e jurisprudência referida).
(…) na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.º 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.
72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 58 e jurisprudência referida).
73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.
74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.”
Atentas as citadas considerações vertidas no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, há que concluir que os juros auferidos por um OIC não residente, como é o caso do Requerente, devem ser tratados de modo equiparável aos juros auferidos por um OIC residente em situação análoga, isto é, não pode existir discriminação entre OIC residentes e não residentes no que respeita à tributação dos juros, sob pena de se verificar uma discriminação decorrente da “aplicação de regras diferentes a situações comparáveis”, tal como evidenciou o TJUE no acórdão ACT 4, proferido em 12 de dezembro de 2006, no âmbito do processo C‑374/04.
22. Acresce referir que decorre igualmente da jurisprudência do TJUE que o princípio da livre circulação de capitais pode ser objeto de restrições, desde que motivadas por razões imperiosas de interesse geral, tais como a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional ou a necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os dois Estados‑Membros.
Quanto à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, o TJUE, no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, afirmou expressamente que para que tal justificação seja admissível “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78), sendo que, in casu, “a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte” (considerando 79). Consequentemente, afirma o TJUE que não existe uma relação direta “entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” (considerando 80), pelo que, a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal” (considerando 81).
Destarte, a tributação dos participantes de um fundo de investimento no respetivo Estado de residência (ou se os mesmos obtiveram um crédito de imposto), não é relevante para apreciar a questão sub judice; tanto mais que, como vertido na decisão arbitral proferida no processo n.º 463/2024-T:
“A presente acção não foi intentada pelos investidores, nem os mesmos são partes nela, nem é lícito chamar à colação a posição dos referidos investidores.
Por seu lado, o art. 22º do EBF não estabelece nenhuma ligação entre o tratamento fiscal dos juros ou dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC, residentes ou não residentes, e a situação fiscal dos seus detentores de participações.
Da mesma forma, a AT não afere da posição dos investidores em OIC residentes para efeitos fiscais em Portugal, para reconhecer a estes o regime fiscal previsto no art. 22º do EBF.
Seria administrativamente impraticável, excessivamente oneroso, proceder-se a uma determinação caso a caso, totalmente particularizada, para cada OIC não-residente, ou investidor individual, com o único fito de aumentar as receitas tributárias dos Estados-Membros.
Tanto os fundos residentes em Portugal, como os não-residentes, podem ter titulares institucionais e individuais de todos os Estados da União Europeia e de terceiros Estados.
Será, portanto, administrativamente mais praticável, e muito menos oneroso, circunscrever a análise ao nível da situação fiscal dos fundos residentes e não-residentes a quem são pagos juros ou distribuídos dividendos, obtendo-se a informação relevante numa única determinação, sem necessidade de particularizar as situações de benefício económico último.
Por outras palavras: considerando que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não-residentes a uma retenção na fonte dos rendimentos de capital que recebem, o que deve relevar é o impacto directo que as normas tributárias têm na actividade dos fundos, e não na situação fiscal dos investidores individualmente considerados. Estes não têm necessariamente a mesma nacionalidade dos fundos, o que deve ser considerado normal, até porque os investimentos transfronteiriços são um dos objectivos do mercado interno e da liberdade de circulação de capitais no âmbito da União Europeia.
Em suma, o rastreamento de investidores individuais espalhados por todo o mundo, e a aplicação de um conjunto diferente de regras a cada um deles, dependendo de seu país de domicílio, apresentaria uma situação impraticável para os tribunais que, no futuro, fossem chamados a analisar a conformidade da legislação fiscal nacional em causa com as liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais.”
No concernente à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados-Membros, o TJUE entendeu, no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, que “a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território” (considerando 82); mais, “quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos” (considerando 83). Nesta conformidade, concluiu o TJUE que “a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida” (considerando 84).
23. Nesta conformidade, o TJUE, no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, decidiu o seguinte:
“O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
24. Resulta do exposto que o “artigo 63.º do TFUE deve, pois, ser interpretado, no sentido de facilitar a liberdade de circulação dos investimentos mobiliários e de não criar entraves ao movimento de capitais. Por conseguinte, o artigo 22.º, n.º 1 do EBF acaba por estabelecer um tratamento discriminatório prejudicial ao circunscrever o regime de isenção de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento mobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional e penalizar as entidades que operem no território nacional mas que são constituídas segundo o direito de um outro Estado-Membro.
Conforme se referiu, os Estados-Membros podem estabelecer distinções entre sujeitos passivos que se encontrem numa situação idêntica desde que isso não implique, segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3 do TFUE, uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais. De acordo com o acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, proferido pelo TJUE no âmbito do processo n.º C‑545/19, em 17 de Março de 2022, a diferença de tratamento fiscal apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objectivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão, de 10 de Fevereiro de 2011, proferido no âmbito dos processos n.º C-436/08 e n.º C-437/08). Ora, tal como resulta da jurisprudência do TJUE aplicável aos presentes autos, não se verifica que existam razões imperiosas de interesse geral que admitam o tratamento discriminatório prejudicial acima descrito ao OICVM não residentes em face dos OICVM residentes que se encontram em situações objectivamente comparáveis.
Acresce ainda que as disposições dos tratados que regem a União Europeia são directa e obrigatoriamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por força do artigo 8.º, n.º 4 da CRP, prevalecendo sobre as normas do direito nacional, razão pela qual os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA proferido no âmbito do processo n.º 0188/15, em 1 de Julho de 2015.” (decisão arbitral proferida no processo n.º 382/2021-T).
Importa, ainda, salientar que, como é consabido, a jurisprudência do TJUE tem caráter vinculativo para os tribunais nacionais, em matéria de Direito Europeu (ver, neste sentido e entre outros, os acórdãos do STA de 26.03.2003, processo n.º 01716/02, de 09.11.2005, processo n.º 01090/03 e de 03.12.2008, processo n.º 0587/08); como salientado no acórdão do STA, de 18.12.2013, proferido no processo n.º 0568/13, “atento o primado do direito comunitário (…), é vedado ao tribunal aplicar normas do direito nacional que afrontem o que naquele se impõe, sendo que, havendo acórdão interpretativo proferido pelo TJUE a decisão nele proferida retroage à data da entrada em vigor da respectiva norma, excepto se no próprio acórdão se dispusesse de forma diferente, como claramente se vê do seguinte trecho do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça em 10/05/2012, nos processos apensos C-338/11 a C-347/11:
«58. (…) segundo jurisprudência constante, a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito da União, no exercício da competência que lhe confere o artigo 267º TFUE, esclarece e precisa o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido cumprida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se também se encontrarem reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (v., designadamente, acórdãos de 3 de outubro de 2002, Barreira Pérez, C-347/00, Colet., p. I-8191, nº 44, e de 17 de fevereiro de 2005, Linneweber e Akritidis, C-453/02 e C-462/02, Colet., p. I-1131, nº 41, e de 6 de março de 2007, Meilicke e o., C-292/04, Colet., p. I-1835, nº 34).
59. Só a título excecional é que o Tribunal de Justiça pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica da União, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição por si interpretada para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa-fé. Para que se possa decidir por esta limitação, é necessário que se encontrem preenchidos dois critérios essenciais, ou seja, a boa-fé dos meios interessados e o risco de perturbações graves (v., designadamente, acórdãos de 10 de janeiro de 2006, Skov e Bilka, C-402/03, Colet., p. I-199, nº 51, e de 3 de junho de 2010, Kalinchev, C-2/09, Colet., p. I-4939, nº 50).».”
25. Acolhendo expressamente a orientação adotada pelo TJUE no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, o STA, em acórdão proferido em 28.09.2023, no âmbito do processo n.º 93/19.7BALSB, uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:
“1 – Quando um Estado Membro escolhe exercer a sua competência fiscal sobre os dividendos pagos por sociedades residentes unicamente em função do lugar de residência dos Organismos de Investimento Colectivo (OIC) beneficiários, a situação fiscal dos detentores de participações destes últimos é desprovida de pertinência para efeitos de apreciação do carácter discriminatório, ou não, da referida regulamentação;
2 – O artº.63, do TFUE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção;
3 – A interpretação do artº.63, do TFUE, acabada de mencionar é incompatível com o artº.22, do E.B.F., na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 7/2015, de 13/01, na medida em que limita o regime de isenção nele previsto aos OIC constituídos segundo a legislação nacional, dele excluindo os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados Membros da União Europeia.”
26. A decisão adotada pelo TJUE no acórdão AllianzGI‑Fonds AEVN, bem como a citada uniformização de jurisprudência pelo STA, embora respeitantes ao pagamento de dividendos a OIC não residentes, são inteiramente aplicáveis ao pagamento de juros a OIC não residentes (como acontece no caso concreto) e, por isso, não podem deixar de repercutir-se no mérito da presente causa e, portanto, na decisão a ser proferida por este Tribunal.
Assim, impõe-se concluir que quer os atos de retenção na fonte de IRC controvertidos, no montante global de € 245.785,09, quer o indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024... que os manteve são ilegais por radicarem no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF que, nos termos acima enunciados, viola o disposto no artigo 63.º do TFUE.
Tal vício invalidante tem por consequência a anulação dos atos de retenção na fonte de IRC controvertidos, no montante global de € 245.785,09 e a anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024... que os manteve (cf. artigo 163.º, n.º 1, do CPA ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).
§5. A restituição dos montantes indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios
27. O Tribunal é, ainda, chamado a pronunciar-se sobre a restituição ao Requerente do montante global de € 245.785,09 referente a IRC retido na fonte, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios.
O artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT preceitua que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT) que estabelece que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do estatuído no artigo 43.º, n.º 1, da LGT e no artigo 61.º, n.º 4, do CPPT.
Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estatuir que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Ora, dependendo o direito a juros indemnizatórios do direito ao reembolso de quantias pagas ou retidas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
28. Na sequência da declaração de ilegalidade e anulação quer dos atos de retenção na fonte de IRC controvertidos, quer do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024..., nos termos acima enunciados, há lugar à restituição das prestações tributárias indevidamente suportadas pelo Requerente, por força do disposto nos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
Nesta conformidade, tem o Requerente direito à restituição do valor global de € 245.785,09 (duzentos e quarenta e cinco mil setecentos e oitenta e cinco euros e nove cêntimos), referente ao IRC retido na fonte, decorrente do somatório dos valores unitários dos atos de retenção na fonte de IRC controvertidos.
29. Para além da restituição do aludido montante global atinente a imposto que indevidamente suportou, tem ainda o Requerente direito a juros indemnizatórios.
Com efeito, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do Direito da União Europeia tem como consequência não só o direito à restituição, como o direito a juros, sendo disso exemplo, entre outros, o acórdão proferido, em 18 de abril de 2013, no processo C-565/11, no qual foi afirmado o seguinte:
“21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado-Membro tenha cobrado impostos em
violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado, mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgeselischaft e o., C-397/98 e C-410/98, Colet., p. I-1727, n.ºs 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colet., p. I-11753, n.º 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.º 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C-113/10, C-147/10 e C-234/10, n.º 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados-Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.º 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.º 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.ºs 27 e 28 e jurisprudência referida).”
Como resulta deste aresto, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo; no caso português, o regime substantivo do direito a juros indemnizatórios está plasmado no artigo 43.º da LGT que, nos segmentos a considerar, estatui o seguinte:
“Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
(…)
4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.
(…)”
O STA uniformizou jurisprudência, especificamente para os casos de retenção na fonte seguida de reclamação graciosa, no acórdão proferido em 29.06.2022, no processo n.º 093/21.7BALSB, nos seguintes termos: “Em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do acto tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efectivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº.43, nºs.1 e 3, da L.G.T.”.
Nesta conformidade, tem pois o Requerente direito a juros indemnizatórios desde a data em que se verificou o indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024... – o que sucedeu em 23.08.2024 (cf. documento n.º 1 anexo ao PPA e PA) –, até à data da emissão da respetiva nota de crédito a favor do Requerente, sobre a quantia total a restituir, que é de € 245.785,09 (duzentos e quarenta e cinco mil setecentos e oitenta e cinco euros e nove cêntimos).
Os juros indemnizatórios são calculados à taxa legal supletiva, nos termos do disposto nos artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT, no artigo 559.º do Código Civil e na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril.
*
30. A finalizar, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (cf. artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
IV. Decisão
Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:
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Declarar ilegais e anular os controvertidos atos de liquidação de IRC por retenção na fonte, referentes ao exercício de 2022, no montante total de € 245.785,09 (duzentos e quarenta e cinco mil setecentos e oitenta e cinco euros e nove cêntimos), com as legais consequências;
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Declarar ilegal e anular o indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2024..., com as legais consequências;
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Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituir ao Requerente o montante de € 245.785,09 (duzentos e quarenta e cinco mil setecentos e oitenta e cinco euros e nove cêntimos), acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima enunciados, com as legais consequências;
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Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas processuais.
V. Valor do Processo
Atento o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 245.785,09 (duzentos e quarenta e cinco mil setecentos e oitenta e cinco euros e nove cêntimos).
VI. Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 4.284,00 (quatro mil duzentos e oitenta e quatro euros), cujo pagamento fica a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique.
Lisboa, 16 de abril de 2025.
O Presidente do Tribunal Arbitral,
(José Poças Falcão)
A Árbitra vogal,
(Sónia Martins Reis)
O Árbitro vogal (relator),
(Ricardo Rodrigues Pereira)