Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1014/2024-T
Data da decisão: 2025-04-29  IVA  
Valor do pedido: € 3.301.409,74
Tema: IVA – Locação financeira – dedução do imposto – bens e serviços de utilização mista
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SUMÁRIO:

  1. O artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA, corresponde à transposição para o direito interno do artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva IVA, e permite à Autoridade Tributária e Aduaneira impor condições especiais para o cálculo pro rata do imposto a deduzir, como sucede com o coeficiente de imputação específico previsto no Oficio-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009;
  2. A consideração da componente de amortização financeira das rendas pagas no âmbito dos contratos de locação financeira na percentagem de dedução é susceptível de causar distorções significativas na tributação quando o IVA pago aquando da aquisição do bem locado foi integralmente deduzido pelo locador;
  3. O método específico de dedução previsto no Oficio-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, apenas poderá ser afastado no caso de se demonstrar que a utilização dos bens e serviços indiferenciados foi sobretudo determinada pela actividade de disponibilização dos veículos locados e não pela actividade de financiamento e gestão dos contratos.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Carla Castelo Trindade (Presidente), Alberto Amorim Pereira e Nina Aguiar (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO:

 

A..., S.A., titular do número único de identificação e de pessoa colectiva ..., com sede na ..., ..., ..., ...-... ... (doravante designada por “Requerente”), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por “RJAT”), peticionando a anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada com vista à contestação dos actos tributários de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante designado por “IVA”) referentes ao ano de 2022, materializada na declaração periódica de Dezembro desse ano, com a consequente anulação parcial de tal autoliquidação, bem como a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida”) a restituir à Requerente o valor pago em excesso, no montante de € 3.301.409,74, assim como ao pagamento de juros indemnizatórios, contados desde a data da entrega das declarações periódicas de IVA referentes ao ano de 2022 até efectiva restituição do imposto pago em excesso.

 

Para fundamentar o seu pedido alegou, em síntese:

  1. A Requerente é uma instituição de crédito que realiza operações financeiras isentas, que não conferem direito à dedução de IVA, e operações sujeitas, que conferem direito à dedução de IVA, como é o caso das operações de locação financeira mobiliária;
  2. Para o efeito, a Requerente adquire recursos que são afectos, simultaneamente, às duas tipologias de operações;
  3. No ano de 2022, relativamente às aquisições de bens e serviços afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de utilização mista), a Requerente, em cumprimento do entendimento constante do Oficio-circulado nº 30108, de 30 de Janeiro de 2009, aplicou o coeficiente de imputação específico definitivo, tendo assim, no cálculo da percentagem de dedução de IVA, desconsiderado os valores respeitantes às amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira;
  4. O que resultou na entrega de um valor de prestação tributária em excesso;
  5. A Requerente apresentou reclamação graciosa da autoliquidação de IVA relativa ao exercício de 2022, a qual veio a ser indeferida, por despacho de 6 de Junho de 2024;
  6. Na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ao arguir que as operações de leasing consubstanciam “uma modalidade de crédito”, a Requerida contraria a posição anteriormente por si assumida, na Circular 15, de 5 de Julho de 2000, da Direcção de Serviços dos Impostos do Selo e das Transmissões do Património, na qual enunciava que: “[q]uanto ao leasing, o legislador não pretendeu tributá-lo [em Imposto do Selo], pois o leasing não é propriamente um meio de financiamento. Na verdade, segundo o art. 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24.06, que institui o regime jurídico do contrato de locação financeira”;
  7. A conformação do direito à dedução parcial consta do sistema comum do IVA, consagrado na Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (doravante designada por “Directiva IVA”);
  8. A percentagem de dedução resulta, de acordo com a Directiva IVA, de uma fracção que inclui os seguintes montantes:

a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução (…);

b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução”;

  1. A situação factual do Acórdão C-153/17, de 18 de Outubro de 2018 (doravante designado por “Acórdão Volkswagen”), do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante designado por “TJUE”) é totalmente comparável com a da Requerente;
  2. Neste Acórdão, o TJUE destaca a natureza complexa – e continuada – da operação realizada pela Volkswagen, materializada na realização de diversas prestações/actividades em benefício dos respectivos clientes – locatários financeiros – ao longo da vida do leasing automóvel, serviços esses que não se limitam à concessão de crédito, nem se definem por esta;

 

  1. Na linha do que sucede no Acórdão Volkswagen, o serviço prestado pela Requerente não se reconduz a uma mera concessão de um financiamento, verificando-se igualmente um papel activo da sua parte na disponibilização dos veículos locados aos seus clientes – como seja ao nível da coordenação de eventuais queixas/questões dos locatários, através de call centers, balcões da Requerente e centro de empresas, bem como interacções com as respectivas seguradoras e outras entidades;
  2. À semelhança do caso da Volkswagen retractado naquele Acórdão, a Requerente afecta recursos a ambas as fases do contrato de locação financeira – por um lado, o período inicial de financiamento da aquisição da viatura (que se esgota em poucos dias, dado o número limitado de procedimentos necessários para a sua formalização e execução) e, por outro lado, o período (muito mais longo) do acompanhamento das vicissitudes várias (programadas e expectáveis ou inesperadas) dos veículos;
  3. Tal como a Requerente (seguindo as orientações do Ofício-circulado acima referido), a Volkswagen também não havia considerado, no seu volume de negócios, para efeitos do cálculo do direito à dedução, o montante correspondente à aquisição do valor dos veículos;
  4. De acordo com o TJUE, existindo custos gerais (de utilização mista) com ligação directa e imediata com a totalidade das actividades do sujeito passivo misto – i.e., com as suas operações tributadas, bem como com as suas operações isentas de IVA – estes devem ser considerados para efeitos do direito à dedução do mesmo;
  5. Tendo o TJUE concluído pela inclusão do capital no cálculo do pro rata, independentemente de a renda do contrato de leasing integrar, nos termos do regime de IVA britânico, uma componente isenta (circunstância que, conceptualmente, poderia conduzir a um alcance mais limitado do direito à dedução do locador), sempre teria também de concluir pela inclusão da referida componente no ordenamento jurídico português, em que a renda é única e totalmente tributada em IVA;
  6. Em linha com o que sucede com a situação de facto subjacente ao Acórdão Volkswagen, a utilização dos recursos adquiridos pela Requerente é, também, em certa medida, determinada pela disponibilização dos bens locados;
  7. Seguindo o entendimento do TJUE, no Acórdão Volkswagen, no âmbito da actividade de leasing da Requerente não se está apenas perante um financiamento, pois existe toda uma multiplicidade de gastos gerais nos quais a Requerente incorre (apenas) por forma a garantir a disponibilização continuada do veículo - que permanece na sua esfera jurídica durante toda a execução do contrato - ao locatário/cliente final;
  8. Ao desconsiderar a componente da amortização financeira das rendas da actividade de leasing na percentagem de dedução do IVA incorrido, o critério imposto pela Requerida não permite uma afectação real/alocação dos gastos gerais com as operações tributadas – rendas (tributadas em IVA na sua integralidade) – inviabilizando a dedução adequada do IVA destes gastos gerais incorridos para a disponibilização da viatura;
  9. De acordo com o TJUE, um critério de dedução que desconsidere “o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega” – tal como sucede com o coeficiente de imputação específico imposto pela Requerida – não é susceptível “de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios”;
  10. Extrair a conclusão de que, no âmbito dos contratos de leasing, todos os custos serão necessariamente imputáveis ao financiamento propriamente dito (como se de um contrato de mútuo se tratasse), não só é redutor, atentando às especificidades do leasing automóvel, como também se afigura em clara dissonância com a jurisprudência do TJUE, não podendo, de nenhuma forma, tal entendimento imperar na ordem jurídica portuguesa;
  11. Assim, não podem, no entender da Requerente, os valores relativos às amortizações financeiras dos contratos de leasing deixar de ser incluídos no apuramento da percentagem de dedução de IVA da Requerente;
  12. Pelo que, não tendo sido considerados pela Requerente, aquando da autoliquidação de IVA respeitante ao ano de 2022, as amortizações financeiras dos contratos de leasing, deve a autoliquidação de IVA impugnada ser parcialmente anulada e, em consequência, ser restituído à Requerente o valor de IVA pago em excesso.

 

A Requerente juntou 3 documentos e arrolou uma testemunha.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa os signatários, tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

 

O tribunal arbitral colectivo foi constituído em 11 de Novembro de 2024.

 

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º, do RJAT, a Requerida apresentou resposta, no dia 18 de Dezembro de 2024, defendendo, em síntese, o seguinte:

  1. O apuramento da percentagem de dedução efectuado pela Requerente está em perfeita concordância, quer com as normas de direito comunitário e interno, quer com o Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009;
  2. A percentagem de dedução, inicialmente apurada, não resulta da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, mas sim da aplicação do método de afectação real, através da utilização de um critério de imputação objectivo, tendo em conta os valores envolvidos nas operações praticadas no âmbito das actividades de leasing ou de aluguer de longa duração (doravante designado por “ALD”);
  3. As operações de locação (leasing e ALD) consubstanciam uma modalidade de crédito (entre outras), pelo que a actividade da entidade locadora é, em substância, a concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída, essencialmente, por juros e outros encargos incluídos nas rendas;
  4. Na operação de locação, enquanto operação de concessão de financiamento, o valor de aquisição do bem objecto de contrato de locação corresponde ao capital financiado, que constitui a componente de amortização financeira na renda paga pelo locatário ao locador;
  5. No momento da aquisição desse mesmo input, a Requerente (locadora) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objecto do contrato de locação, por via do método da imputação directa;

 

 

 

  1. Assim, a parte da amortização financeira incluída na renda não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afectação real com recurso a um critério de imputação objectivo, uma vez que aquela mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem;
  2. A incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo;
  3. A inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante da renda, provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que será significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objecto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição;
  4. Não ocorre, pois, qualquer restrição do direito legítimo à dedução, como alega a Requerente;
  5. O método do pro rata, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, e que a Requerente pretende ver aplicado, não tem mérito para medir o grau de utilização que as duas categorias de operações, com e sem direito à dedução, fazem dos bens e serviços que lhe são indistintamente alocados (utilização mista);
  6. A questão principal que se coloca nesta sede foi, no entender da Requerente, já objecto de apreciação por parte do TJUE, sendo que, ao contrário do que pretende fazer valer a Requerente, o entendimento preconizado por este tribunal confirma a posição que tem vindo a ser assumida pela Requerida;
  7. O TJUE entendeu que o direito interno (concretamente o artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, do Código do IVA, na redacção vigente) legitimava a actuação da Requerida no sentido de derrogar a regra de cálculo do pro rata prevista na Sexta Directiva;
  8. De acordo com o TJUE, o método que a Requerida definiu é, em princípio, mais preciso do que o previsto na Sexta Directiva, dado que considera apenas a parte das rendas pagas que serve para compensar a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador;

 

  1. A componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução, uma vez que não constitui rendimento da actividade do sujeito passivo, ao invés do que sucede com as demais variáveis que integram a fórmula, sendo que a sua consideração provocaria distorções significativas na tributação e também desvirtuaria o próprio método do pro rata e todo o sistema de dedução do IVA, ao reconhecer como dedutíveis custos que não contribuíram para a realização de operações tributadas;
  2. A factualidade no caso sub judice não é comparável à do Acórdão Volkswagen;
  3. Os actos tributários contestados não padecem de qualquer ilegalidade, devendo permanecer intactos na ordem jurídica;
  4. Os factos que importam à boa decisão da causa não são susceptíveis de prova testemunhal, pelo que deve ser indeferido o pedido de produção de prova testemunhal.

 

Nessa mesma data, a Requerida juntou o processo administrativo, não tendo junto qualquer documento nem arrolado testemunhas.

 

Em 30 de Dezembro de 2024 e no seguimento da resposta que havia sido apresentada pela Requerida, a Requerente pronunciou-se sobre o pedido de indeferimento de produção de prova testemunhal, tendo pugnado pelo seu deferimento.

 

Em 3 de Janeiro de 2025, em face da posição da Requerente no que respeita à necessidade da produção de prova testemunhal, a Requerida apresentou requerimento a solicitar o aproveitamento da prova produzida nos processos n.º 446/2023-T e 662/2023, algo a que a Requerente veio a opor-se, através de requerimento apresentado em 10 de Janeiro de 2025.

 

Em 22 de Janeiro de 2025, foi proferido despacho arbitral a designar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, para o dia 19 de Fevereiro de 2025, pelas 14h30.

 

A reunião prevista no artigo 18.º, do RJAT, teve lugar no dia 19 de Fevereiro de 2025, para ouvir a testemunha B..., arrolada pela Requerente.

Finda a inquirição, foi concedido às partes o prazo simultâneo de 15 dias para apresentação de alegações escritas, tendo ambas as partes, no dia 7 de Março de 2025, apresentado as suas alegações, nas quais, em síntese, mantiveram as posições expressas nos articulados anteriores.

 

  1. SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

  1. QUESTÃO A DECIDIR:

Atentas as posições assumidas pelas partes, vertidas nos argumentos expendidos, verifica-se que a questão a decidir reconduz-se a saber se, num contrato de locação financeira, em que a renda paga inclui capital, juros e encargos, deve a componente de capital ser considerada para efeito de cálculo da percentagem de dedução do IVA suportado nas aquisições de bens e serviços de utilização mista ou se, ao invés, neste cálculo apenas deve ser considerado o montante correspondente aos juros e outros encargos.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO:

 

  1. Fundamentação da matéria de facto:

A convicção acerca dos factos tidos como provados formou-se tendo por base a prova documental junta pelas partes, indicada relativamente a cada um dos pontos, e cuja adesão à realidade não foi questionada, bem como a matéria alegada e não impugnada.

No que diz respeito ao facto infra enunciado incluído na matéria de facto não provada, não resultou, nem dos documentos juntos aos autos, nem do depoimento da testemunha indicada pela Requerente, qualquer evidência de que exista uma “multiplicidade de gastos gerais nos quais o Requerente incorre (apenas) por forma a garantir a disponibilização continuada do veículo” ao locatário, tal como alegado pela Requerente.

Com efeito, a testemunha inquirida, apesar de demonstrar um conhecimento directo e profundo dos procedimentos inerentes às operações de locação financeira realizadas pela Requerente, não foi capaz de demonstrar nem que os gastos gerais tenham sido sobretudo afectos à actividade de locação financeira, nem, dentro desta, essencialmente à actividade de disponibilização dos bens locados e não à actividade de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira.

A testemunha limitou-se a declarar que “se houvesse uma maneira de medir”, diria que os gastos gerais seriam mais utilizados na fase de disponibilização do veículo, desde logo “porque é uma fase mais longa” do que a fase de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira.

Tal, conforme referiu a testemunha, não passa de uma mera “intuição”, pois que, segundo declarou, “não há forma de fazer essa mensuração”, “nem com uma fórmula matemática muito elaborada”.

A testemunha acrescentou, ainda, que muitas das actividades levadas a cabo no âmbito da fase da disponibilização dos veículos, como seja a facturação aos clientes, se encontram subcontratadas a uma empresa externa. Tal permite concluir que não é a Requerente que desenvolve a totalidade da actividade inerente à fase da disponibilização dos veículos.

Por outro lado, de acordo com a testemunha inquirida, o valor correspondente ao custo dos gastos gerais indiferenciados está incluído nos valores cobrados a título de comissões e montantes referentes à taxa de financiamento.

Declarou, ainda, a testemunha inquirida, com interesse para os autos, que se a Requerente o pretender, pode extrair a informação acerca do tempo que é gasto por cada trabalhador em cada uma das tarefas levadas a cabo no âmbito da actividade de locação financeira, sendo que apenas não detém essa informação porque “nunca sentimos essa necessidade”.

Não ficou, assim, demonstrado que, tal como pretendido pela Requerente, os gastos gerais tenham sido sobretudo afectos à actividade de locação financeira, nem, dentro desta, essencialmente à actividade de disponibilização dos bens locados.

Aliás, a Requerente não logrou sequer demonstrar que tal utilização dos bens e serviços indiferenciados tenha sido motivada, “pelo menos em certa medida” (como se refere no Acórdão Volkswagen, a que adiante nos referiremos), pela actividade de disponibilização dos bens locados.

 

  1. Factos provados:

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente a actividade comercial prevista no artigo 4.º, n.º 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (doravante designado por “RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
  2. No âmbito da sua actividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção plasmada no artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA, como as operações de financiamento e de concessão de crédito e, bem assim, as operações associadas a pagamentos e, em geral, transacções relativas à negociação e venda de títulos –, as quais não conferem o direito à dedução do IVA suportado;
  3. A Requerente realiza ainda operações que conferem o direito à dedução deste imposto nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Código do IVA, como sejam, entre outras, as operações de locação financeira mobiliária;
  4. A Requerente, nas situações em que identificou uma conexão directa e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação directa, ao abrigo do artigo 20.º, n.º 1, do Código do IVA;
  5. A Requerente aplicou o método de imputação directa referido no parágrafo anterior em relação à aquisição de bens – como viaturas – objecto dos contratos de locação financeira;
  6. Em relação aos bens objecto de contratos de locação financeira, a Requerente deduziu, na íntegra, o IVA suportado na aquisição, por estarem directamente ligados a operações de locação financeira tributadas que conferem o direito à dedução do imposto realizadas a jusante pela Requerente;
  7. Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA;
  8. Nas situações em que a Requerente identificou uma conexão directa, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações activas (outputs) por si realizadas e, simultaneamente, logrou determinar critérios objectivos do nível de utilização efectiva, aplicou o método da afectação real estabelecido no artigo 23.º, n.º 2, primeira parte, do Código do IVA;
  9. Com vista a determinar o quantum de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afectos indistintamente às diversas operações por si realizadas (i.e., aos recursos indiferenciados, como os consumos de electricidade, água, papel, material informático [hardware e software], telecomunicações, etc.), a Requerente recorreu ao método da percentagem de dedução, a qual foi determinada através da aplicação de um coeficiente de imputação específico, tal como preconizado pela Requerida, plasmado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA;
  10. Consequentemente, nas declarações periódicas de IVA referentes ao ano de 2022, a Requerente apurou uma percentagem de dedução, definitiva, de 10%;
  11. A Requerente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 131.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, e do artigo 97.º, do Código do IVA, reclamação graciosa da autoliquidação de imposto referente ao período de 2022;
  12. Essa reclamação graciosa veio, por despacho de 6 de Junho de 2024, a ser indeferida pela Requerida;
  13. O pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral foi apresentado em 31/08/2024.

 

  1. Factos não provados:

Com interesse para os autos, não se demonstrou que os recursos de utilização mista foram essencialmente afectos à actividade de locação financeira e, dentro desta, predominantemente à actividade de disponibilização dos bens locados e não à actividade de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira.

  1. DO DIREITO:

Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.

De acordo com a Requerente, a aplicação do método de dedução previsto no ponto 9 do Oficio-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, é ilegal, pugnando pela aplicação do método pro rata geral estabelecido no artigo 23.º, n.º 4 do Código do IVA, considerando-se, assim, no cálculo da percentagem de dedução, não só os juros e encargos incluídos nas rendas dos contratos de locação financeira, mas também as amortizações financeiras, isto é, o capital incluído nessas rendas.

Ao invés, a Requerida defende que, uma vez que no momento da aquisição do input, o sujeito passivo (o locador) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objecto do contrato de locação, a parte da amortização financeira incluída na renda não pode ser incluída no cálculo da percentagem de dedução, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.

 

 

A não ser assim, estar-se-ia a provocar um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, já que tal dedução seria significativamente influenciada por via de uma simples restituição de um financiamento, cujo bem subjacente já foi objecto de liquidação e dedução de IVA no momento da sua aquisição.

Sinteticamente expostas as posições das partes, importa, antes de mais, percorrer o quadro normativo com relevo para a decisão da causa.

Assim, começando pela Directiva IVA, importa ter em consideração o disposto nos seus artigos 168.º, 173.º e 174.º, os quis dispõem nos seguintes termos:

  1. Artigo 168º, da Directiva IVA:

“Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a) O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

b) O IVA devido em relação a operações assimiladas a entregas de bens e a prestações de serviços, em conformidade com a alínea a) do artigo 18.º e o artigo 27.º;

c) O IVA devido em relação às aquisições intracomunitárias de bens, em conformidade como artigo 2.º, n.º 1, alínea b), subalínea i);

d) O IVA devido em relação a operações assimiladas a aquisições intracomunitárias, em conformidade com os artigos 21.º e 22.º;

e) O IVA devido ou pago em relação a bens importados para esse Estado–Membro.”

  1. Artigo 173.º, da Directiva IVA:

1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.

O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo.

2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:

a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;

e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respetivo montante for insignificante.”

  1. Artigo 174.º, da Diretiva IVA:

1. O pro rata de dedução resulta de uma fração que inclui os seguintes montantes:

a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º;

b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

Os Estados–Membros podem incluir no denominador o montante das subvenções que não sejam as diretamente ligadas ao preço das entregas de bens ou das prestações de serviços referidas no artigo 73.º.

2. Em derrogação do disposto no n.º 1, no cálculo do pro rata de dedução não são tomados em consideração os seguintes montantes:

a) O montante do volume de negócios relativo às entregas de bens de investimento utilizados pelo sujeito passivo na sua empresa;

b) O montante do volume de negócios relativo às operações acessórias imobiliárias e financeiras;

c) O montante do volume de negócios relativo às operações referidas nas alíneas b) a g) do n.º 1 do artigo 135.º, se se tratar de operações acessórias.

3. Quando façam uso da faculdade prevista no artigo 191.º de não exigir a regularização em relação aos bens de investimento, os Estados–Membros podem incluir o produto da cessão desses bens no cálculo do pro rata de dedução.”

Por seu turno, e tendo por referência as normas da Directiva IVA supra citadas dispõem os n.ºs 1 a 5 do artigo 23.º do Código do IVA nos seguintes moldes:

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afeto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afetação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que deem lugar a dedução.

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

5 - No cálculo referido no número anterior não são, no entanto, incluídas as transmissões de bens do ativo imobilizado que tenham sido utilizadas na atividade da empresa nem as operações imobiliárias ou financeiras que tenham um carácter acessório em relação à atividade exercida pelo sujeito passivo.”

Feito este enquadramento normativo, importa salientar que a questão em causa nos autos tem sido objecto de pronúncia por diversa jurisprudência, quer do Supremo Tribunal Administrativo (doravante designado por “STA”), quer dos tribunais arbitrais constituídos no seio do CAAD.

 

 

A jurisprudência que tem vindo a ser firmada não é unânime, reconduzindo-se a divisão da jurisprudência à interpretação dada a dois Acórdãos do TJUE, a saber: o já citado Acórdão Volkswagen e o denominado Acórdão Banco Mais, proferido no processo C-183/13, em 10 de Julho de 2014 (doravante designado por “Acórdão Banco Mais”).

Segundo o Acórdão Banco Mais, a Directiva IVA “não se opõe a que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos” (sublinhado nosso).

Em sentido diverso, no Acórdão Volkswagen entendeu-se que a Directiva IVA deve ser interpretada no sentido de que “por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é susceptível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios”.

Mais se defendeu neste Acórdão que, “na medida em que estes custos gerais foram realmente efectuados, pelo menos em certa medida, tendo em vista a disponibilização de veículos, que são operações tributáveis, os referidos custos são parte, enquanto tais, dos elementos constitutivos do preço dessas operações. Por conseguinte, origina-se um direito à dedução do IVA.” (sublinhado nosso).

Sendo que, ainda de acordo com este Acórdão, “no que respeita ao método de cálculo do pro rata de dedução do IVA aplicado pela Administração Fiscal, cabe ao órgão jurisdicional nacional verificar se este método tem em conta a afectação real e significativa de uma parte dos custos gerais para efeitos das operações que conferem direito à dedução”.

Em face destes entendimentos do TJUE, tem vindo a ser defendido pela jurisprudência nacional que a solução da questão passa pela prova que venha a ser efectuada pelos sujeitos passivos quanto à utilização dos bens e serviços mistos no âmbito dos contratos de locação financeira, concretamente quanto à predominância da sua utilização em cada uma das fases dos contratos (a fase da gestão e financiamento dos contratos ou a fase da disponibilização dos veículos).

Sendo que, para que se possa defender a consideração das amortizações financeiras no cálculo da percentagem de dedução do IVA suportado nas aquisições de bens e serviços de utilização mista, terá de se demonstrar que estes bens e serviços de carácter indiferenciado são, sobretudo, consumidos na fase da disponibilização dos veículos, prova essa que tem necessariamente de ser efectuada por quem pretende fazer valer-se da consideração da componente da amortização financeira das rendas para efeitos do cálculo da percentagem de dedução do IVA, in casu, a Requerente.

Embora a jurisprudência não seja unânime, tem vindo a ser consolidado no STA o entendimento no sentido propugnado pelo Acórdão Banco Mais – neste sentido vejam-se, entre outros, Acórdãos de 06/11/2024, no processo 1092/13.8BELRS; de 20/03/2023, no processo 142/21.9BALSB; de 12/10/2022, no processo 01173/08.0BELRS; de 24/03/2021, no processo 87/20.0BALSB; de 30/09/2020, no processo 95/19.3BALSB; e de 04/03/2020, no processo 7/19.4BALSB, todos in www.dgsi,pt.

Entendimento este com o qual concordamos e ao qual aderimos na íntegra.

Com efeito, a questão a decidir nos presentes autos é em tudo idêntica à que foi objecto de decisão pelo TJUE no Acórdão Banco Mais.

No âmbito deste processo, o TJUE foi chamado a pronunciar-se, em sede de reenvio prejudicial, sobre a seguinte questão:

Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?

Sobre esta questão pronunciou-se o TJUE nos seguintes termos:

33. A este propósito, há que observar que, embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o setor automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos. Incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efetivamente esse o caso no processo principal.

34. Ora, nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel”.

Concluindo, assim, que:

O artigo 17°, n° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como a do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar” (sublinhados e realces nossos).

Tal como sublinhado no Acórdão do STA de 17/06/2015, no processo 01874/13, in www.dgsi.pt quanto àquele Acórdão do TJUE, “o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios (que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos), leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel”.

De acordo com a jurisprudência que se vem consolidando no STA, a inclusão das amortizações financeiras é susceptível de gerar distorções significativas na tributação sempre que a utilização dos serviços e bens gerais seja, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de leasing.

Com o que não pode deixar de se concordar já que, conforme veio a resultar provado – cfr. pontos 5) e 6) da matéria de facto provada -, no momento da aquisição dos veículos objecto dos contratos de locação financeira, a Requerente exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem por via do método da imputação directa.

E, se tal direito à dedução foi exercido na íntegra aquando da aquisição dos veículos, é manifesto que, a menos que se demonstre que os bens e serviços indiferenciados foram predominantemente utilizados na fase de disponibilização dos veículos, que corresponde à fase não financeira da operação, a posterior consideração da componente das amortizações financeiras das rendas pagas no âmbito dos contratos de locação financeira é susceptível de causar distorções significativas na tributação, já que, neste caso, a dedução seria, como defende a Requerida, “significativamente influenciada por via de uma simples restituição de um financiamento”.

Em tais situações, conforme decorre do artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA, a Requerida pode vir a impor condições especiais para o cálculo do pro rata do imposto previsto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA ou fazer cessar tal procedimento.

Razão pela qual, como tem vindo a ser entendido, nada impede que a Requerida, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA, imponha a aplicação de um método específico para apuramento do pro rata de dedução do imposto, como sucedeu com o Oficio-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

Neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do STA, de 04/03/2020, no processo n.º 7/19.4BALSB, in www.dgsi.pt, de acordo com o qual, “ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação” (com negrito no próprio texto).

E, por todos, Acórdão do STA proferido no processo 87/20.0BALSB, já citado, que fixou jurisprudência no sentido de que “nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”.

 

 

 

Assente que está a possibilidade de a Requerida impor condições especiais para o cálculo do pro rata do imposto, como sucedeu com o Oficio-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, sempre que a aplicação do método previsto no n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA provoque ou possa provocar distorções significativas na tributação, vejamos agora em que situações pode o sujeito passivo afastar a aplicação do método previsto no indicado Oficio-circulado.

Conforme tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, a questão prende-se com a medida da utilização dos bens e serviços comuns no âmbito dos contratos de leasing.

Quando se verifique que tal utilização seja, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, apenas deve ser incluída na fracção destinada ao apuramento do montante relativo ao direito à dedução dos bens e serviços de utilização mista a componente de juros incluída nas rendas e não a amortização financeira.

Ao invés, quando se verifique que tais recursos foram, sobretudo, afectos à actividade de disponibilização dos bens locados, nada impede que a componente de amortização financeira seja incluída na respectiva fracção.

O entendimento defendido pelo STA tem também vindo a ser acolhido, embora também não de forma unânime, pela jurisprudência arbitral. Neste sentido vejam-se, entre outras, as decisões proferidas em 27/04/2023, no processo n.º 612/2022-T, em 19/12/2023, no processo n.º 455/2023-T, e em 11/04/2024, no processo n.º 446/2023-T.

A medida da utilização dos bens e serviços indiferenciados trata-se de matéria de facto, constitutiva do direito da Requerente, impendendo, assim, sobre si, para obter provimento do seu pedido, o ónus de alegar e demonstrar que, na hipótese dos autos, a utilização de bens e serviços indiferenciados não é, sobretudo, determinada pela gestão e financiamento dos contratos de leasing. Ou, pelo menos, alegar e demonstrar que a utilização dos bens e serviços indiferenciados foi motivada, “pelo menos em certa medida”, pela actividade de disponibilização dos veículos.

No caso dos autos, porém, conforme resulta da matéria de facto não provada, não logrou a Requerente fazer tal demonstração, nada tendo resultado provado a esse respeito.

Assim, não se tendo demonstrado que os bens e serviços indiferenciados tenham sido, sobretudo, utilizados na fase da disponibilização dos veículos, nada impede que a Requerida, ao abrigo do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA, afaste a regra do cálculo pro rata da dedução do imposto previsto nos n.ºs 2 e 4 do Código do IVA, impondo, assim, que no cálculo da percentagem de dedução sejam apenas considerados os juros e encargos incluídos nas rendas dos contratos de locação financeira, excluindo-se de tal percentagem o valor correspondente às amortizações financeiras.

Tal possibilidade encontra respaldo legal tanto no artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA, como no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva IVA, pelo que não padece a autoliquidação de IVA impugnada nos autos de qualquer ilegalidade, devendo, em consequência, a mesma manter-se na ordem jurídica.

Donde, tem necessariamente de improceder o pedido de anulação da autoliquidação de IVA impugnada, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e de condenação da Requerida a restituir à Requerente o valor pago em excesso.

Improcedendo tais pedidos, não se verifica qualquer erro imputável aos serviços que tenha determinado o pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido, improcedendo também, em consequência, o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

Consigna-se que, pese embora a Requerente tenha, a final, requerido, a título subsidiário, o reenvio prejudicial, não se impõe a este tribunal submeter a questão a decidir à apreciação do TJUE.

Com efeito, dispõe o artigo 267.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, nos seguintes moldes:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados; 

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. 

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. 

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. 

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.

Significa isto que, sempre que se coloca uma questão de interpretação e aplicação do direito da União Europeia, devem os tribunais nacionais suscitar essa questão perante o TJUE, através do reenvio prejudicial, apenas sendo dispensado tal reenvio “quando a interpretação do Direito da União Europeia resulta já do chamado acquis jurisprudencial”.[1]

No caso dos autos e conforme resulta de tudo quanto se expôs, está em causa uma questão sobre a qual não se suscitam dúvidas de interpretação de normas do direito da União Europeia, em concreto da Directiva IVA.

A questão da conformidade da norma do artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA, com o direito comunitário, concretamente, a questão de saber se este artigo corresponde à transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, da Directiva IVA, tem vindo, como já se deixou exposto, a ser largamente apreciada pelas instâncias, designadamente europeias, encontrando-se sedimentado, pelo menos na jurisprudência das instâncias europeias e do STA, o entendimento segundo o qual o citado artigo do Código do IVA não viola o artigo 173.º, da Directiva IVA.

Com efeito, como já exposto, decorre do disposto no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva IVA que os Estados-Membros podem “autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”.

Sendo que isso mesmo resulta da jurisprudência consolidada, nomeadamente entre outros, já citado Acórdão do STA, de 04/03/2020, no processo n.º 7/19.4BALSB, para o qual se remete, por uma questão de economia, e, como tal, daí resulta que não se impõe a este tribunal submeter a questão a decidir à apreciação do TJUE.

 

  1. DECISÃO:

Termos em que, com os fundamentos de facto e de direito que supra ficaram expostos, decide o Tribunal Arbitral Colectivo:

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente, absolvendo a Requerida do pedido; e
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se à causa o valor de € 3.301.409,74, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

  1. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 42.228,00, nos termos da Tabela I da Tabela Anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como do disposto no n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, e do n.º 1 do artigo 4.º, do citado Regulamento, a pagar pela Requerente, por ser a parte vencida.

 

Lisboa, 29 de Abril de 2025

 

 

Os Árbitros,

 

Carla Castelo Trindade

(Árbitra Presidente)

 

Alberto Amorim Pereira

(Árbitro adjunto e Relator)

 

Nina Aguiar

(Árbitra adjunto)

 

 



[1] Cfr. decisão arbitral, de 30 de Novembro de 2015, no processo n.º 364/2015-T, in www.caad.org.pt.