Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 967/2024-T
Data da decisão: 2025-04-23  IVA  
Valor do pedido: € 102.137,60
Tema: IVA. Exercício do direito à dedução. Alteração retroativa do método de dedução. Ónus da prova.
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SUMÁRIO:

 

1. A invocação de um direito à dedução de IVA não exercido anteriormente não configura uma alteração retroativa de método de dedução.

 

2. Cabe ao sujeito passivo o ónus da prova dos factos que permitam quantificar o montante de imposto que aquele entende ter direito a deduzir.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros, Rui Duarte Morais (Presidente), Jorge Carita e Martins Alfaro, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 25-10-2024, acordam no seguinte:

 

A - RELATÓRIO

 

A.1 - Requerente da constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAMT): A..., S.A., com o NIF ... e sede social na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa.

 

A.2 - Requerida: Autoridade Tributária e Aduaneira.

A.3 - Objeto do pedido de pronúncia arbitral:

 

Legalidade da (auto)liquidação de IVA relativa ao ano 2021, materializada na declaração do período de imposto referente ao mês de dezembro daquele ano, nos termos da qual a Requerente deduziu o imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista, de acordo com o coeficiente de imputação específico imposto pela AT no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

 

A.4 - Pedido: A Requerente formulou os seguintes pedidos:

 

a) Anular parcialmente o ato tributário de autoliquidação de IVA da Requerente materializado na entrega da declaração periódica de IVA referente ao mês de dezembro de 2021; e

 

b) Restituir à Requerente o valor do IVA pago em excesso, no montante global de € 102.137,60, acrescido de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.

 

A.5 - Fundamentação do pedido:

 

Vem a Requerente suscitar a pronúncia sobre a legalidade da (auto)liquidação de IVA relativa ao ano de 2021, materializada na declaração do período de imposto referente ao mês de dezembro daquele ano, nos termos da qual a Requerente deduziu o imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista de acordo com o coeficiente de imputação específico imposto pela AT no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

 

Peticiona a Requerente a correção da dedução de IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista afetos à atividade de custódia de títulos por si desenvolvida, porquanto verificou que tal dedução se encontra viciada por erro relativamente ao regime jurídico aplicável à dedução do imposto incorrido na aquisição de tais recursos.

 

Em concreto, entende a Requerente que a dedução do imposto por si incorrida de acordo com o coeficiente de imputação específico imposto pela AT no Ofício-Circulado n.º 30108 não se afigura consentânea com o princípio da neutralidade que rege o sistema comum do IVA, porquanto não permite determinar, com precisão, o grau de recursos de utilização mista empreendidos.

 

Entende a Requerente que, em virtude do link direto existente entre um conjunto de recursos por si adquiridos e a área da custódia de títulos por si desenvolvida, deveria ter deduzido o respetivo IVA de acordo com o método da afetação real, preceituado na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2, ambos do artigo 23.º do Código do IVA.

 

Relativamente às situações em que identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação direta, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

 

A Requerente apurou um montante de IVA a deduzir de € 111.098,92 resultante da aplicação do critério de dedução apurado (de 74,98%) ao IVA incorrido com os serviços adquiridos à  B..., C... e D...– cf. Documento 4.

 

Entende que, mesmo que se entenda estar em causa uma regularização de imposto já deduzido e não o exercício do direito à dedução de IVA que nunca foi deduzido, tal não impede, per se, o sujeito passivo de efetuar uma correção à dedução inicial de imposto, no âmbito do disposto no artigo 78.º, ou do artigo 98.º do Código do IVA, consoante o caso.

 

Entende que, in casu, a alteração de metodologia da dedução do IVA não se reconduz aos conceitos de erro material ou de cálculo, fatura inexata, anulação da operação ou redução do seu valor tributável, especialmente previstos no artigo 78.º do Código do IVA, sendo entendido, por grande parte da doutrina e da jurisprudência nacional, como correspondendo a um erro de direito (não obstante o argumento da AT ser no sentido de inexistir, nestes casos, qualquer erro).

Ou seja, entende que a norma prevista no n.º 6 do artigo 23.º do Código do IVA – que regula o mecanismo de correção dos critérios de dedução provisórios após apuramento, no final de cada ano, dos valores definitivos - não afasta a possibilidade de os sujeitos passivos, ao abrigo do n.º 2 do artigo 98.º do mesmo diploma, regularizarem, a posteriori, num prazo de 4 anos, uma dedução de imposto inicialmente efecuada.

 

Em face do exposto, e uma vez que a dedução do IVA incorrido na aquisição de recursos de utilização mista da área da custódia de títulos se traduz numa dedução adicional de imposto no montante de € 102.137,60, peticiona a revisão da dedução de imposto materializada definitivamente na entrega da declaração periódica de IVA de dezembro de 2021 e a consequente validação da dedução adicional de imposto naquele montante.

 

A.6 - Resposta da Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira:

 

A Requerida sustenta, em resumo, o seguinte:

 

As instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as atividades de Leasing ou de ALD devem adotar a metodologia de afetação real.

 

O coeficiente de imputação sugerido em orientação genérica é indicado a título supletivo, isto é, sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns.

 

A Requerente pretende efetuar a substituição de um critério de afetação real, calculado por referência ao coeficiente de imputação específico do Ofício-Circulado nº30108, por outro critério de afetação real, construído propositadamente para a área da custódia de títulos, tal como admite no ponto 95º da p.i.

 

A autoliquidação de IVA relativa ao ano 2021, materializada na declaração do período de imposto referente ao mês de dezembro daquele ano, nos termos da qual a Requerente deduziu o imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista de acordo com o coeficiente de imputação específico, Ofício-Circulado nº30108, de 30 de Janeiro de 2009, foi objeto de correções por parte dos SIT.

 

Para além do IVA em falta, designadamente aquisição de serviços de Custody fees e Corporate actions fees, os SIT admitiram a dedução parcial de imposto, na percentagem de dedução definitiva para o período em causa, tal como apurado pela Requerente, no valor de € 8.961.32.

 

Este montante corresponde, assim, à aplicação da percentagem de dedução definitiva de 8% ao montante de IVA de € 112.016.52, apurado no ponto V.2.2.1 do RIT.

 

Não está aqui em causa qualquer erro de enquadramento das operações tributáveis, para que se possa invocar erro de direito e o disposto n.º 2 do artigo 98.º do CIVA.

 

A situação em apreço configura uma alteração retroativa do método de dedução relativa aos bens de utilização mista por vontade exclusiva da Requerente.

 

A regularização de IVA pretendida pela Requerente consubstancia assim uma alteração do método da percentagem de dedução para o método da afetação real.

 

A Requerente pretende a aplicação integral do método da afetação real com o intuito de obter uma dedução adicional ou suplementar de imposto.

 

Não foi demonstrado que a alteração pretendida é motivada por um erro de direito, mas apenas por uma revisão de procedimentos, por uma operação puramente financeira.

 

A legislação interna portuguesa não autoriza que ocorram situações em que um sujeito passivo, após ter determinado o imposto dedutível e procedido à autoliquidação do IVA, referente a anos já decorridos, de acordo com o método da percentagem de dedução, venha, mais tarde, derrogar retroativamente a respetiva aplicação, enveredando por pressupostos distintos, em execução dos quais constrói diversas variantes de imputação que lhe são mais favoráveis para o cálculo das deduções de IVA.

 

O critério que a Requerente pretende impor assenta em pressupostos errados, sendo, seguramente, muito menos preciso do que o anteriormente utilizado.

 

Uma vez que foi adotado um dos métodos consagrados no artigo 23.º do CIVA, a Requerente deveria ter demonstrado em que medida incorreu no alegado erro de direito, ou em que reside a incorreção ou desajuste da aplicação do primeiro método face à sua atividade, o que não logrou fazer.

 

Conclui entendendo que deve a ação ser julgada totalmente improcedente e a AT ser absolvida de todos os pedidos.

 

 

B - SANEAMENTO:

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do Tribunal Arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.


As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo nenhuma delas manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAMT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAMT, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 25-10-2024.

O Tribunal Arbitral é materialmente competente, atenta a conformação do objeto do processo e de acordo com o preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, ambos do RJAMT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

Com a sua Resposta, a Requerida juntou o que denominou como ‘Processo Administrativo’.

 

Por despacho de 23-01-2025, foi a Requerida notificada para proceder à junção do relatório final do procedimento de inspeção tributária e documentação a ele anexa, bem como de cópia(s) da(s) liquidações de IVA resultantes de tal ação inspetiva.

 

A Requerida não cumpriu com o determinado na referida notificação, nem apresentou qualquer justificação para a omissão.

 

O Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º, do RJAMT, e a produção de alegações.

 

O processo não enferma de nulidades, nem existem exceções de que cumpra conhecer.

 

 

C - FUNDAMENTAÇÃO:

 

C.1 - Matéria de facto - Factos provados

 

Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

 

A Requerente é uma instituição de crédito, cujo objeto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras - Facto admitido por acordo.

 

No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante da alínea 27) do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem direito à dedução deste imposto. É o caso das operações de financiamento/concessão de crédito e as operações relativas a pagamentos - Facto admitido por acordo.

 

Simultaneamente, a Requerente realiza operações que conferem o direito à dedução deste imposto (cf. alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA), em concreto, a custódia de títulos - Facto admitido por acordo.

 

Com referência ao ano 2021, a Requerente foi objeto de procedimento de inspeção tributária externo e de âmbito geral, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º 012023... de 06-02-2023, do qual resultaram correções que totalizaram o montante de € 112.016,52, correspondente a valor de IVA apurado em falta, relativo a aquisições intracomunitárias de serviços cujo imposto é devido no território nacional, concretamente a falta de autoliquidação de imposto na aquisição de serviços de custódia / guarda e gestão de valores mobiliários a entidades não estabelecidas em Portugal - Processo Administrativo.

 

As correções em causa são referentes a IVA relativo a aquisições intracomunitárias de serviços e que deveria ter sido objeto de autoliquidação pela Requerente, por força do disposto na alínea e) do nrs. 1 e n.º 5 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 6 do artigo 6.º, do Código do IVA - Processo Administrativo.

 

As correções em causa foram realizadas em cada um dos campos 24 das declarações periódicas de IVA dos períodos de Janeiro a Dezembro de 2021, sendo que o montante de IVA dedutível resultou da aplicação da percentagem provisória de 3% ao montante do IVA incorrido, tendo-se procedido à regularização a favor da Requerente, no campo 40 da declaração periódica de IVA de Dezembro de 2021, no montante do IVA correspondente à diferença entre a percentagem de dedução provisória aplicável em 2021 (3%) e a respetiva percentagem definitiva (8%).

 

As correções foram assim calculadas através da aplicação ao valor ilíquido do imposto da percentagem final de 8% - método pro rata -, nos termos que se seguem - Processo Administrativo:

 

 

 

 

As correções fundaram as seguintes liquidações adicionais de IVA e liquidações de IVA das quais resultou uma regularização do montante do excesso a reportar para o período seguinte - Processo Administrativo:

 

 

 

 

 

 

 

A fundamentação das referidas liquidações, a qual resulta do relatório final do procedimento de inspeção tributária - foi a seguinte:

 

Em consulta à informação acessível pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), alusiva ao VIES107, verificou- se que, de acordo com o declarado pelo operador intracomunitário B..., identificado com o número de IVA belga BE-..., doravante designada também B... , a A... efetuou, em 2021, aquisições intracomunitárias de serviços a esta entidade.

 

A B... não tem, no território nacional, sede, estabelecimento estável ou domicílio fiscal, constando no VIES como tendo endereço no ..., ..., na Bélgica.

 

No caso vertente, a A... é sujeito passivo de IVA nas aquisições intracomunitárias de serviços efetuadas à B... .

 

O IVA correspondente às aquisições intracomunitárias de serviços da A... à B... é exigível no momento de realização das prestações de serviços, bem como determinam que os valores tributáveis em tais prestações de serviços são os valores das contraprestações a elas associadas.

 

A A... deveria ter autoliquidado IVA, à taxa de 23%, sobre o valor das aquisições intracomunitárias de serviços à B..., realizadas em 2021, correspondentes aos montantes faturados - Custody fees Corporate actions fees.

 

Os diários de contabilização das aquisições intracomunitárias à B..., disponibilizados em resposta ao solicitado no ponto 8 do Pedido de Elementos n.º 2 da AT, evidenciaram a inexistência de autoliquidação (ou dedução) de IVA relacionado com as referidas aquisições intracomunitárias de serviços à B... .

 

Finalmente, anote-se que o referido IVA objeto de autoliquidação não é dedutível na esfera da A..., porque as correspondentes aquisições intracomunitárias de serviços da A... à B... foram destinadas à realização de “serviços afetos a atividades totalmente isentas”, conforme devidamente esclarecido pela A... em resposta ao ponto 12.2.3. do Pedido de Elementos n.º 5 da AT.

 

Assim, face ao exposto, procede-se à correção (IVA apurado em falta), no montante global de € 112.016,52, com os respetivos valores desagregados por declaração periódica de IVA […].

 

A Requerente apresentou reclamação graciosa em 16-02-2024, dentro do prazo de 120 dias a contar do dia seguinte ao termo da data para pagamento voluntário indicado nas notificações das liquidações adicionais de IVA e das liquidações de IVA das quais resultou uma regularização do montante do excesso a reportar para o período seguinte sem que das mesmas resultasse qualquer valor a pagar, em conformidade com disposto na alínea a) e b) do n.º 1 do artigo 102.º, aplicado por força do artigo 70.º, ambos do CPPT - Processo Administrativo.

A decisão final de indeferimento no procedimento de reclamação graciosa foi notificada à Requerente por via de correio registado em 20-05-2024, pelo que se considera a Requerente notificada daquela decisão em 23-05-2024, nos termos dos artigos 39.º, n.º 1 e 38.º, n.º 3, ambos do CPPT - Processo Administrativo.

 

A Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral em 16-08-2024 - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

Por despacho de 23-01-2025, foi a Requerida notificada para proceder à junção do relatório final do procedimento de inspeção tributária e documentação a ele anexa, bem como de cópia(s) da(s) liquidações de IVA resultantes de tal ação inspetiva - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

A Requerida não cumpriu com o determinado na referida notificação, nem apresentou qualquer justificação para a omissão - Sistema de Gestão Processual do CAAD.

 

C.2 - Factos dados como não provados:

 

Não se encontra provado que a correcta percentagem de dedução de imposto definitiva seja de 74,98%.

 

O Tribunal considerou o facto em causa como não provado uma vez que o único assomo probatório apresentado pela Requerente consistiu na junção, com a p.i., de um documento - n.º 4 -, consistente num quadro, elaborado pela Requerente, contendo a demonstração do IVA que, no entender da Requerente, seria dedutível através da aplicação da percentagem de 74,98% ao IVA liquidado.

 

Ora, tal documento não é idóneo para servir de prova e muito menos de prova cabal da alegação da Requerente de que deveria ser aplicada aquela percentagem e não qualquer outra.

 

Primeiro, porque se trata de documento elaborado pela própria Requerente e, portanto, apenas poderá fazer prova quanto a factos que lhe sejam desfavoráveis.

 

E depois, porque tal quadro nada mais é do que a ilustração das operações aritméticas que conduziram ao apuramento dos quantitativos de imposto que a Requerente considera ter direito a deduzir.

 

Como se entendeu na Decisão Arbitral do CAAD, de 23-09-2024, processo n.º 190/2024-T:[1]

 

O que caberia provar não seria (apenas) a exatidão dos cálculos efetuados, mas sim – essencialmente – a realidade dos valores que lhes serviram de base, o valor das operações que conferem e não conferem direito à dedução de IVA e dos recursos adquiridos com utilização indiferenciada nestes dois tipos de operações.

 

Ora, sobre estes factos – essenciais à procedência do seu pedido – a Requerente não produziu qualquer prova.

 

O silêncio da AT sobre a realidade de tais números, nomeadamente na sua resposta, não pode ter o valor de uma aceitação implícita, atento, desde logo, o disposto nos nº 6 e 7 do artigo 110º do CPPT.

Para mais, tal silêncio compreende-se dado a AT, quer na decisão da reclamação graciosa, quer na sua resposta no presente processo, ter optado por uma outra linha de argumentação, invocando apenas exclusivamente argumentos de direito.

 

Também não se pode considerar, para este efeito, a consequência prevista no n.º 6 do artigo 84.º do CPTA para a falta do envio do processo administrativo uma vez que os documentos idóneos a fazer a prova da realidade dos valores que serviram de base aos cálculos refletidos no documento n.º 4 junto pela Requerente deveriam estar na posse da Requerente. Aliás, estando em causa atos tributários de IVA relativas aos anos de 2021 e 2022, verifica-se que o prazo de 10 anos, previsto no artigo 52.º do Código do IVA, para a obrigação de arquivo e conservação de documentos de suporte ainda não terminou, o que reforça a obrigação da Requerente de ter tal documentação em sua posse.

 

Portanto, nos presentes autos, como a falta do processo administrativo não torna a prova da realidade dos valores que serviram de base aos cálculos refletidos no documento n.º 4 junto pela Requerente impossível ou de considerável dificuldade, não é possível considerar que os factos alegados pela Requerente se considerem provados.

 

C.3 - Fundamentação da matéria de facto:

 

Relativamente à matéria de facto, importa salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAMT.

 

Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação da prova produzida, o referido princípio da livre apreciação (cfr. artigo 607.º, n.º 5, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAMT).

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do CPC).

 

No que se refere aos factos provados e não provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e na posição assumida por ambas as Partes, em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

 C.4 - Matéria de direito:

 

C.4.1 - Questão prévia:

 

A Requerente identificou como objeto do pedido de pronúncia arbitral o seguinte:

 

Legalidade da (auto)liquidação de IVA relativa ao ano 2021, materializada na declaração do período de imposto referente ao mês de dezembro daquele ano, nos termos da qual a Requerente deduziu o imposto incorrido na aquisição de recursos de utilização mista, de acordo com o coeficiente de imputação específico imposto pela AT no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.

 

E deduziu como pedido principal o seguinte:

 

Anular parcialmente o ato tributário de autoliquidação de IVA da Requerente materializado na entrega da declaração periódica de IVA referente ao mês de dezembro de 2021.

 

Como resulta da matéria de facto dada como provada, os atos tributários questionados advieram de um procedimento de inspeção tributária e consistiram em liquidações adicionais de IVA e liquidações de IVA das quais resultou uma regularização do montante do excesso a reportar para o período seguinte.

Assim sendo, não estamos perante uma autoliquidação de imposto, mas sim perante liquidações corretivas - heteroliquidações -, fundadas em correções efetuadas pela AT aos valores declarados pelo contribuinte, e da qual resultou imposto adicional a pagar.

 

Não obstante, o Tribunal entende que a Requerente expressou de modo imperfeito o objeto e o pedido do pedido de pronúncia arbitral e que a referência feita ao ato de autoliquidação deve ser entendida substancialmente como uma referência à correção, pela AT, do valor declarado em sede de autoliquidação, assim se recusando uma perspetiva meramente formalista das enunciações da Requerente.

 

Consequentemente, doravante o Tribunal referir-se-á à causa de pedir e ao pedido em função dos atos tributários praticados pela AT e que constam da matéria de facto provada.

 

C.4.2 - Decisão:

 

Nos presentes autos, a Requerente não contesta que as operações em causa sejam tributáveis e que determinem a obrigação de autoliquidação por parte do sujeito passivo.

 

A Requerente contesta tão-somente que o direito à dedução do imposto em causa tenha sido apurado pela AT em função do método pro rata, na percentagem definitiva de 8%, sustentando que o imposto incorrido na área de custódia de títulos (incluindo a aquisição de serviços de guarda e gestão de valores mobiliários à B...), deve ser por si recuperado por via do direito à dedução através do recurso ao método da afectação real e da aplicação da percentagem de 74,98% ao IVA liquidado.

 

Como já referido, o fundamento (de direito) invocado pela AT, quer no relatório final do procedimento de inspeção tributária, quer na decisão final no procedimento de reclamação graciosa necessária, quer ainda na resposta apresentada no presente processo arbitral, resulta do entendimento de que está em causa uma alteração retroativa do método de dedução do imposto.

 

Em sentido oposto, a Requerente veio entendendo que lhe é legalmente permitida a alteração retroativa de método de dedução do imposto.

 

Salvo melhor entendimento, a questão de facto que se suscita nos presentes autos assume natureza distinta.

 

Com efeito, a Requerente não procedeu à dedução de qualquer montante de IVA suportado na aquisição de bens ou serviços (inputs) utilizados de forma indistinta em operações que conferem, e noutras que não conferem, o direito à dedução.

 

Diversamente do que sustenta a Requerida, não se vislumbra, por parte da Requerente, qualquer intenção de alterar retroativamente o método de apuramento utilizado, nem de substituir esse método por outro, tampouco de modificar o pro rata definitivo apurado com referência a 31 de dezembro de 2021.

 

Em síntese, a Requerente não visa uma alteração do método utilizado, porque, efetivamente, nos períodos em apreço, a Requerente não aplicou qualquer método de afetação aos recursos de utilização mista, nem efetuou dedução do IVA com base em qualquer percentagem (pro rata), fosse esta definitiva ou provisória.

 

O que a Requerente alega é a existência de um erro de direito, não quanto ao cálculo do pro rata, mas quanto à omissão no reconhecimento do direito à dedução do imposto suportado (ou de parte deste) na aquisição de bens de utilização mista.

 

E quanto a esta parte, constitui posição deste Tribunal que não é aceitável uma interpretação normativa que impeça um sujeito passivo de, dentro do prazo legalmente estabelecido, exercer plenamente o direito à dedução de IVA.

 

Admitir tal restrição configuraria, no entender deste Tribunal, uma violação do princípio da neutralidade do IVA, que justamente o regime do IVA visa evitar.

Distinta, no entanto, é a questão relativa à extensão do direito à dedução.

 

É que a Requerente, ao invocar erro na autoliquidação - ou, se se quiser, erro nas liquidações adicionais -, encontra-se onerada com o dever de demonstrar os factos que sustentam e quantificam esse erro, o qual constitui condição essencial para que o seu pedido possa ser provido.

 

Porém - e conforme resulta dos factos dados como não provados -, a Requerente não fez prova relativamente aos valores que, em seu entender, confeririam direito à dedução, através da aplicação da percentagem de 74,98% ao IVA liquidado, nem sobre os factos que sustentariam a conclusão jurídica de que a referida percentagem deveria ser essa e não qualquer outra, sendo certo que o respetivo ónus lhe incumbia - artigo 74.º, n.º 1, da LGT.

 

Assim, e por força da ausência de prova factual, conclui-se pela improcedência do pedido principal e, consequentemente, do pedido de juros indemnizatórios.

 

 

D - DECISÃO:

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedentes os pedidos constantes do pedido de pronúncia arbitral, absolvendo a Requerida do pedido.

 

 

E - VALOR DA CAUSA:

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 102.137,60, correspondente às liquidações impugnadas, objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

O valor indicado pela Requerente não foi impugnado e não considera o Tribunal existir fundamento para o alterar, pelo que se fixa à presente causa o valor de € 102.137,60.

 

 

F - CUSTAS:

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAMT, e da Tabela I, anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, a cargo da Requerente, que decaiu na totalidade.

 

Notifique.

 

23 de Abril de 2025.

 

Os Árbitros,

 

 

(Rui Duarte Morais)

 

 

(Jorge Carita)

 

 

(Martins Alfaro - Relator)