Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 804/2024-T
Data da decisão: 2025-04-22  IVA  
Valor do pedido: € 69.850,74
Tema: IVA. Fornecimento ao pessoal da empresa, pelo sujeito passivo, de refeições em cantina. Alíneas d) do n.º 1 e b) do n.º 2 do art. 21.º do CIVA.
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SUMÁRIO

 

I. As prestações de serviços gratuitas efectuadas por uma empresa em benefício dos seus trabalhadores não são, por natureza, destinadas a fins alheios à empresa, salvo se, para efeitos da sua tributação efectiva, se comprovar o contrário.

II. Os serviços prestados para fins alheios à empresa são os que se destinam a consumo sem carácter empresarial, quer se trate de um consumo final do sujeito passivo, dos seus empregados, ou de terceiros.

III. São fiscalmente dedutíveis os gastos incorridos com operações enquadráveis no conjunto de despesas gerais relacionadas com a actividade económica de um sujeito passivo.

IV. As exclusões ou limitações ao exercício do direito à dedução de IVA, previstas no art. 21.º do CIVA, não podem vedar aos sujeitos passivos a prova de ausência de fraude ou de evasão fiscais, pois, se o fizerem, esvaziarão completamente o conteúdo do direito à dedução.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A Sociedade A..., S.A., NIPC...apresentou, no dia 25 de Junho de 2024, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade dos actos tributários de demonstração de liquidação de IVA e de juros compensatórios referentes ao ano de 2020, n.os 2024 ..., 2024..., 2024 ..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024..., 2024 ... e 2024..., bem como as respectivas demonstrações de acertos de contas, no montante total de € 69.850,74 (€ 61.154,22 IVA + € 8.696,52 juros compensatórios), resultantes das correcções constantes do RIT emitido ao abrigo da Ordem de Serviço Externa n.º OI2023... .
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 2 de Setembro de 2024.
  7. Por Despacho de 2 de Setembro de 2024, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar Resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 7 de Outubro de 2024, juntamente com o processo administrativo.
  9. Por Despacho de 22 de Outubro de 2024, foi dispensada a reunião prevista no art. 18º do RJAT, e convidadas as partes a apresentar alegações escritas.
  10. A Requerente apresentou alegações em 5 de Novembro de 2024, juntando um documento.
  11. Por Despacho de 14 de Novembro de 2024, foi concedido à Requerida o exercício do contraditório sobre esse novo documento.
  12. A Requerida apresentou alegações em 19 de Novembro de 2024.
  13. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objecto do processo.
  14. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.
  15. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade.
  16. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  17. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade, subsidiária da B... Inc., que tem por objecto social a produção, montagem, teste e comercialização de produtos eléctricos e electrónicos, prestação de serviços de investigação e desenvolvimento relativos a produtos eléctricos e electrónicos, e outras actividades com estas conexas, encontrando-se registada para o exercício da actividade com o CAE 26110 – “Fabricação de Componentes Eletrónicos”, e estando enquadrada no regime normal de IVA, de periodicidade mensal.
  2. A Requerente dispõe de uma cantina, cujo serviço suporta na totalidade, nada sendo cobrado aos seus colaboradores que a utilizam.
  3. A gestão da cantina, e a prestação de serviços de alimentação, foi contratualmente confiada à empresa C..., S.A., NIPC..., à qual a Requerente paga o valor das refeições servidas, de acordo com os preços estabelecidos no contrato de prestação de serviços, celebrado em 17 de Maio de 2010.
  4. A Requerente regista, contabilisticamente, os gastos correspondentes às facturas emitidas pela C..., no âmbito do contrato de prestação de serviços, a débito da conta #6370020 – GASTOS C/ PESSOAL ACÇ. SOCIAL – SERVIÇOS CANTINA.
  5. A Requerente procedeu à dedução do IVA incluído nas facturas emitidas pela C... no ano 2020, no montante de € 61.154,22, tendo registado contabilisticamente esta dedução, também a débito, na conta #2432310 – IVA DED.OBS TERRITÓRIO NACIONAL.
  6. Ao abrigo da Ordem de Serviço Externa n.º OI2023..., os SIT iniciaram em 27 de Outubro de 2023 um procedimento inspectivo, de âmbito parcial de IRC e IVA, reportado ao ano 2020, para efeitos da análise da situação tributária da Requerente.
  7. No decurso da acção inspectiva, os SIT mencionaram uma Ficha Doutrinária da AT (Processo n.º 17012, de 29 de Abril de 2021) na qual se sustentava que as despesas de refeições estão isentas de imposto nos termos da alínea 36) do artigo 9.º do CIVA, pelo que não seria devida a liquidação de IVA nessas operações, mas também não poderia ser efectuada a dedução do imposto suportado com a sua aquisição, atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 20.º do CIVA.
  8. Na medida em que, no entender da AT, ainda que tal fornecimento de refeições ao seu pessoal seja efectuado a título gratuito, não deixa de configurar uma prestação de serviços sujeita a IVA, porém isenta deste imposto ao abrigo do n.º 36 do artigo 9.º do Código do IVA, isenção esta que não confere o direito à dedução do IVA incorrido a montante.
  9. Lê-se no RIT (pp. 10-13):

Atendendo ao disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º do CIVA, o fornecimento de refeições pela empresa ao seu pessoal, mesmo que a título gratuito, configura uma prestação de serviços, sendo o seu valor tributável determinado nos termos da alínea c) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 16.º do CIVA.

Por outro lado, e de acordo com o n.º 36 do artigo 9.º do CIVA, estão isentos de imposto “os serviços de alimentação e bebidas fornecidos pelas entidades patronais aos seus empregados”.

Conjugando estes articulados com o constante na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º também do CIVA que dispõe que “só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes: a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas (…)” conclui-se que a A... não pode efetuar qualquer dedução de imposto suportado com a aquisição dos bens e serviços diretamente relacionados com o fornecimento dessas refeições.

Pois estando perante uma isenção prevista no artigo 9.º do CIVA, os sujeitos passivos nela enquadrados não liquidam o IVA nas suas operações a jusante (operações ativas), mas também não podem deduzir o imposto suportado a montante (operações passivas).

Para poder exercer esse direito à dedução, a A... teria que ter efetuado a renúncia à isenção do n.º 36 do artigo 9.º do CIVA, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º mesmo Código do IVA. Efetuando essa renúncia à isenção, para além da possibilidade de dedução integral do imposto suportado com as aquisições de bens e serviços destinados a cantina, teria que passar a liquidar IVA pelo fornecimento dessas refeições, seja esse fornecimento a título gratuito ou oneroso.

Deste modo, não tendo a A... efetuado a renúncia à isenção estabelecida no n.º 36 do artigo 9.º do CIVA, nem liquidado qualquer imposto a título das refeições servidas aos seus funcionários, esta registou indevidamente na conta 2432310 - IVA DED. OBS TERRITÓRIO NACIONAL os montantes seguidamente discriminados, a título do IVA constante das faturas emitidas pela C... a título de prestações de serviços de refeições servidas na cantina da empresa, e que fez constar nas declarações periódicas de IVA de 2020, no Campo relativo às deduções de imposto de aquisições de Outros Bens e Serviços (Campo 24 da declaração

C...

periódica):

 

 

C...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Refira-se que nos valores anteriormente apresentados foi também tido em conta as Notas de Crédito emitidas pela C... a título da anulação da prestação dos serviços em causa, e cuja regularização de imposto foi refletido diretamente na Conta 2432310 - IVA DED. OBS TERRITÓRIO NACIONAL, ou regularizado na conta 2434210 - IVA REG. MENSAIS A FAV. ESTADO (declarado, neste caso, no Campo 41 da declaração periódica).

Apresenta-se, de seguida, quadro resumo com as correções aos valores de IVA declarados originalmente, discriminadas por período de imposto:

 

  1. Tendo sido proposta uma correcção, em sede de IVA, no montante de € 61.154,22, referente ao IVA alegadamente indevidamente deduzido pela Requerente, relacionado com as aquisições de bens e serviços destinados à cantina.
  2. Correcções que, mantidas no RIT, resultaram na demonstração de liquidação de IVA e juros num montante total de € 69.850,74.
  3. Discordando dos montantes liquidados e respectiva fundamentação, em 25 de Junho de 2024 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia que deu origem ao presente processo.
  4. Tendo sido assinalada, na Resposta da AT, a falta de comprovação de pagamento do IVA ora impugnado, a Requerente acrescentou esse comprovativo em anexo às suas Alegações.

 

II. B. Matéria não-provada

 

Entre os factos relevantes para esta Decisão Arbitral, nada ficou por provar.

 

 

 

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos e nos documentos juntos ao PPA.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Além do que precede, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

 

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

  1. A Requerente começa por descrever a posição da AT, centrada na noção de que o fornecimento de refeições pela empresa ao seu pessoal, mesmo que a título gratuito, configura uma prestação de serviços, dado o disposto no art, 4.º, 2, b) do CIVA, pelo que se aplicaria o art. 16.º, 2, c) do CIVA – invocando ainda a isenção, por força do art. 9.º, 36 do CIVA, dos serviços de alimentação e bebidas fornecidos pelas entidades patronais aos seus empregados, para concluir que a Requerente não pode efectuar qualquer dedução de imposto suportado com a aquisição dos bens e serviços directamente relacionados com o fornecimento dessas refeições, visto que, estando-se perante uma isenção prevista no art. 9.º do CIVA, os sujeitos passivos nela enquadrados não liquidam o IVA nas suas operações a jusante (operações activas), mas também não podem deduzir o imposto suportado a montante (operações passivas).
  2. Alega a Requerida que, para exercer o direito à dedução, a Requerente teria que ter renunciado à isenção do art. 9.º, 36 do CIVA, nos termos do art. 12.º, 1, a) do mesmo Código do IVA: o que, para além da possibilidade de dedução integral do imposto suportado com as aquisições de bens e serviços destinados à cantina, envolveria a liquidação de IVA pelo fornecimento dessas refeições, fosse esse fornecimento a título gratuito, ou a título oneroso.
  3. Não tendo renunciado à isenção do art. 9.º, 36 do CIVA, nem liquidado qualquer IVA pelas refeições servidas aos seus funcionários, a Requerente teria registado indevidamente na conta 2432310 - IVA DED. OBS TERRITÓRIO NACIONAL os montantes de IVA constantes das facturas emitidas pela C..., a título de prestação de serviços de refeições na cantina da empresa, e que fez constar nas declarações periódicas de IVA de 2020, no Campo relativo às deduções de imposto de aquisições de Outros Bens e Serviços (Campo 24 da declaração periódica).
  4. Passando à defesa da sua posição, a Requerente começa por lembrar o art. 2.º, 1, c) da “Directiva IVA” (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006), que sujeita a imposto as prestações de serviços efectuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade – entendendo-se por prestação de serviços tudo aquilo que não seja uma entrega de um bem (art. 24.º, 1 da Directiva IVA). Normas que têm paralelo nos arts. 1.º, 1, a) e 4.º, 1 do CIVA.
  5. Lembra também a Requerente que, de acordo com a jurisprudência do TJUE[1], a sujeição a IVA de uma prestação de serviços, para efeitos do art. 2.º, 1, c) da Directiva IVA, implica a verificação de cinco critérios:
  • que a operação em causa constitua uma prestação de serviços;
  • que seja efectuada a título oneroso;
  • que ocorra no território de um Estado-Membro da UE;
  • que seja efectuada por um sujeito passivo; e
  • que este aja nessa qualidade.
  1. Ora a AT não colocou em causa a existência de uma prestação de serviços, apenas assinalou a sua gratuitidade. Para haver onerosidade, o TJUE; em linha com o disposto no art. 73.º da Directiva IVA, insiste na reciprocidade de prestações, na existência de um contravalor remuneratório, expresso em valor monetário, que corresponda, por nexo directo, a um serviço individualizado prestado a quem o remunera[2].
  2. A Requerente destaca o entendimento do TJUE no Acórdão Fillibeck, no qual o Tribunal se pronunciou acerca de uma situação relacionada com a possibilidade de dedução, por parte de uma empresa, do IVA incorrido nas despesas relacionadas com o transporte gratuito dos seus trabalhadores, desde a sua residência até ao local de trabalho, quando esse trajecto ultrapasse uma certa distância. O Tribunal entendeu que não estavam preenchidos os requisitos de uma prestação de serviços efectuada a título oneroso, por não existir, no caso, qualquer contrapartida que tenha valor subjectivo e nexo directo com o serviço prestado: “uma vez que o trabalho que deve ser executado e o salário recebido são independentes do facto de os assalariados utilizarem ou não o transporte que lhes é fornecido pela entidade patronal, não pode considerar-se que uma fracção da prestação de trabalho efectuada seja uma contrapartida da prestação de transporte[3]
  3. Concluindo o TJUE que “o artigo 2.º, n.º 1, da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que uma entidade patronal que assegura o transporte dos seus assalariados, a partir de uma certa distância, do respectivo domicílio para o local de trabalho, a título gratuito e sem nexo concreto com a prestação de trabalho ou o salário, não efectua uma prestação de serviços a título oneroso na acepção dessa disposição[4].
  4. Por outro lado, a Requerente assinala a fundamental equiparação, no âmbito do IVA, de prestações de serviços a título gratuito ao conceito de prestação de serviços a título oneroso, seja nos termos do art. 26.º, 1, b) da Directiva IVA, quando esta assimila, à prestação de serviços a título oneroso, a “prestação de serviços a título gratuito efectuada pelo sujeito passivo, para uso próprio ou do seu pessoal ou, em geral, para fins alheios à empresa”; seja nos termos do art. 4.º, 2, b) do CIVA, quando este equipara às prestações de serviços a título oneroso as “prestações de serviços a título gratuito efectuadas pela própria empresa com vista às necessidades particulares do seu titular, do pessoal ou, em geral, a fins alheios à mesma”.
  5. Tratar-se-ia, segundo a Requerente, de evitar a não-tributação de uma prestação de serviços a título gratuito efectuada por um sujeito passivo para fins privados, evitando a discriminação entre prestadores de serviços[5].
  6. Explorando o paralelo com o Acórdão Fillibeck, a Requerente lembra que o TJUE concluiu que as prestações de serviços oferecidas aos assalariados satisfazem, normalmente, o uso privado do assalariado, na acepção do art. 6.°, 2 da Sexta Directiva – porque só em circunstâncias especiais esses serviços terão de ser necessariamente assegurados pela empresa (no caso Fillibeck, casos em que exigências da própria empresa aconselhem o fornecimento de transporte pela entidade patronal – casos em que, portanto, a prestação do serviços [de transporte] visa fins que não são estranhos à empresa; casos em que o benefício pessoal que o assalariado retira se mostra como meramente acessório em relação às necessidades da empresa)[6].
  7. Reconhecendo que convenções colectivas podem prever as prestações de serviços, em termos que deixem claro que a prestação do serviço é assegurada para fins que não são estranhos à empresa, e reconhecendo genericamente que situações especiais ditarão que o serviço de transporte a título gratuito prestado pela entidade empregadora aos seus colaboradores não poderá ser equiparado a uma prestação de serviços a título oneroso, o Acórdão Fillibeck conclui que “o artigo 6.°, n.° 2, da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que o transporte gratuito de assalariados, assegurado pela entidade patronal entre o respectivo domicílio e o local de trabalho, com um veículo da empresa, satisfaz em princípio o uso privado dos assalariados e serve, por conseguinte, fins estranhos à empresa. Todavia, esta disposição não se aplica quando as exigências da empresa, atentas certas circunstâncias particulares, tais como a dificuldade de recorrer a outros meios de transporte convenientes e as mudanças de local de trabalho, aconselham que o transporte dos assalariados seja assegurado pela entidade patronal, não sendo esta prestação, nestas condições, efectuada para fins estranhos à empresa[7].
  8. Por outro lado, a Requerente enfatiza que a existência do direito à dedução de IVA resulta de um nexo directo e imediato com uma actividade tributada em IVA – nos termos gerais do art. 168.º, a) da Directiva IVA e dos arts. 19.º, 1, a) e 20.º, 1, a) do CIVA. Lembrando que a jurisprudência do TJUE[8] tem determinado que esse direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado, exercendo-se imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante – visto que o que se procura alcançar é que o empresário seja completamente libertado do ónus do IVA devido, ou pago, no âmbito de todas as suas actividades económicas – razão pela qual o sistema comum do IVA garante a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as actividades económicas, quaisquer que sejam os fins ou os resultados destas actividades, na condição de as mesmas estarem, em princípio, sujeitas ao IVA.
  9. Citando essa jurisprudência, destaca as conclusões a que ela chegou: “a existência de um nexo direto e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução é, em princípio, necessária para que o direito à dedução do IVA pago a montante seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar a extensão de tal direito. O direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito à dedução […] admitese igualmente o direito à dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de um nexo direta e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução, quando os custos dos serviços em causa fazem parte das suas despesas gerais e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens que fornece ou dos serviços que presta. Estes custos têm, com efeito, um nexo direto e imediato com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo[9].
  10. No que respeita ao direito à dedução aplicável a serviços de alimentação, a Requerente reconhece o princípio geral das limitações ao direito à dedução constantes dos arts. 176.º e 177.º da Directiva IVA, nomeadamente no que toca às despesas que não tenham carácter estritamente profissional, tais como despesas sumptuárias, recreativas ou de representação. E reconhece igualmente que o art. 21.º, 1, d) do CIVA exclui do direito à dedução o IVA contido nas despesas respeitantes a alojamento, alimentação, bebidas e tabacos e despesas de recepção, incluindo as relativas ao acolhimento de pessoas estranhas à empresa e as despesas relativas a imóveis ou parte de imóveis e seu equipamento, destinados principalmente a tais recepções.
  11. Todavia, destaca que o art. 21.º, 2, b) do CIVA prevê uma excepção à exclusão das despesas acima mencionadas do direito à dedução, aplicável às despesas relativas a fornecimento ao pessoal da empresa, pelo próprio sujeito passivo, de alojamento, refeições, alimentação e bebidas, em cantinas, economatos, dormitórios e similares.
  12. No seu caso específico, a Requerente invoca que , no seu ramo industrial, ela se vê forçada a laborar em regime contínuo, em turnos de 12 horas com pausas de 30 minutos para as refeições, conforme consta do n.º 4 da cláusula 55ª do Acordo de Revisão do Contrato coletivo entre a Associação Portuguesa das Empresas do Setor Elétrico e Eletrónico e a Federação dos Sindicatos da Indústria e Serviços – FETESE e outros: “Os trabalhadores prestando serviço em regime de turnos rotativos terão direito a um intervalo de meia hora por dia, para refeição, integrado no seu período normal de trabalho e cujo escalonamento é da competência do empregador. Este intervalo pode ser alargado ou reduzido por acordo entre o empregador e os trabalhadores interessados, desde que estes continuem a assegurar a laboração normal”.
  13. Essa circunstância de limitação horária agrava-se, segundo a Requerente, pelo facto de a laboração dever decorrer em “clean rooms”, o que implica fardamento e desfardamento; e agravou-se particularmente em 2020, por força do contexto pandémico.
  14. Foi particularmente nesse contexto que a Requerente alega ter-se visto forçada a garantir o fornecimento de alimentação aos seus trabalhadores, por forma a assegurar que os mesmos tivessem acesso a uma refeição adequada no seu tempo de permanência na empresa, não sendo o pagamento de um subsídio de alimentação uma alternativa viável.
  15. Logo, o fornecimento por parte da Requerente de refeições aos seus colaboradores tornou-se, segundo ela, um elemento essencial para o funcionamento do seu processo produtivo, não devendo dele ser dissociado – um input tanto ou mais necessário de que qualquer outra componente do seu processo produtivo.
  16. Logo, segundo a Requerente o fornecimento de refeições por parte dela ao seu pessoal não configuraria uma prestação de serviços a título oneroso para efeitos de IVA, mas antes um custo directamente relacionado com o conjunto da actividade económica da Requerente, sendo esta tributada em sede de IVA. Infere que as conclusões a que chegou o TJUE no Acórdão Fillibeck são directamente transponíveis para o caso presente.
  17. Assinala a Requerente que o RIT reconhece que os funcionários não tinham a opção de abdicar da refeição servida na cantina para, em alternativa, receberem subsídio de refeição ou outro tipo de compensação financeira – pelo que o fornecimento gratuito das refeições não possui qualquer nexo directo com qualquer contrapartida, na medida em que o trabalho executado e o salário auferido pelos trabalhadores em nada depende do facto de os mesmos usufruírem de refeições fornecidas pela Requerente numa cantina localizada no interior das suas instalações, o que significa que não se poderá considerar que uma fracção da prestação de trabalho seja uma contrapartida do fornecimento de refeições pela Requerente.
  18. Em suma, alega a Requerente, o fornecimento de refeições por parte da Requerente ao seu pessoal não configura uma prestação de serviços a título oneroso para efeitos de IVA, não constituindo, consequentemente, uma operação activa na óptica deste imposto – não podendo equiparar-se a uma prestação de serviços a título oneroso, por configurar uma prestação de serviços a título gratuito efectuada pela Requerente com vista às necessidades particulares do seu pessoal.
  19. Trata-se, como no entendimento perfilhado pelo TJUE no Acórdão Fillibeck, de circunstâncias especiais, nomeadamente as especificidades e intensidade do seu processo produtivo, a laboração por turnos, bem como o escasso período temporal que os seus colaboradores dispõem para se alimentar – pelo que não se poderá considerar que tal fornecimento de refeições pela Requerente aos seus trabalhadores serve fins estranhos à empresa, mas antes visa assegurar o bom funcionamento do seu processo produtivo bem como, simultaneamente, garantir que os trabalhadores conseguem satisfazer as suas necessidades de alimentação adaptadas ao seu período laboral. Reforçando o Acordo Colectivo de Trabalho a noção de que tal prestação de serviços visa fins que não são estranhos à actividade da Requerente.
  20. Conclui a Requerente que, não configurando o fornecimento de refeições por parte da Requerente aos seus trabalhadores uma prestação de serviços a título oneroso para efeitos de IVA, mas tendo em consideração que tal fornecimento é efectuado para fins que não são estranhos à actividade da mesma, os montantes em que a Requerente incorreu nas aquisições de bens e serviços que visam garantir o fornecimento de alimentação aos seus trabalhadores constituem despesas relacionadas com a actividade geral da Requerente, actividade esta totalmente tributada em sede de IVA: pelo que, na esteira da jurisprudência do TJUE, o IVA incorrido nessas mesmas despesas se afiguraria passível de dedução, na medida em que as mesmas possuem um nexo directo e imediato com o conjunto da actividade económica da Requerente.
  21. Insistindo a Requerente que, não obstante as despesas respeitantes a alimentação se encontrarem excluídas do direito à dedução, nos termos do art. 21.º, 1, d) do CIVA, as despesas incorridas pela Requerente na aquisição de bens e serviços com vista ao fornecimento de refeições aos seus trabalhadores se integram no âmbito da excepção a essa exclusão do direito à dedução, na medida em que constituem despesas relativas a fornecimento de alimentação ao pessoal da empresa na cantina localizada nas instalações da Requerente.
  22. Concluindo a Requerente, em síntese, que o IVA incorrido na aquisição de bens e serviços relacionados com o fornecimento de refeições aos seus trabalhadores se afigura passível de dedução, pelo facto de tais despesas configurarem custos gerais com um nexo direto e imediato com a atividade económica da Requerente, não se encontrando abrangidas por qualquer exclusão ao direito à dedução.
  23. Termina a peticionar a anulação dos actos tributários de liquidação de IVA e juros de IVA, o reembolso do valor indevidamente pago, e o direito a juros indemnizatórios.
  24. Em alegações, a Requerente reitera, sumariamente, o que argumentou no pedido de pronúncia. Insiste no não-preenchimento do requisito de onerosidade, tal como ele é definido pela jurisprudência do TJUE, e volta a sustentar a similitude do caso com aquele que foi apreciado pelo TJUE no Acórdão Fillibeck.
  25. E mantém a tese de que resulta evidente que o fornecimento de alimentação por parte da Requerente aos seus trabalhadores não possui qualquer nexo directo com qualquer contrapartida, na medida em que o trabalho executado e o salário auferido pelos trabalhadores em nada depende do facto de os mesmos usufruírem de refeições fornecidas pela Requerente numa cantina localizada no interior das suas instalações, o que significa que não se poderá considerar que uma fracção da prestação de trabalho seja uma contrapartida do fornecimento de refeições pela Requerente.
  26. Pelo contrário, sustenta, o fornecimento de refeições aos seus colaboradores é considerado, nas condições especiais da sua laboração, um elemento essencial para o funcionamento do seu processo produtivo, não devendo dele ser dissociado – não se tratando, portanto, de uma prestação de serviços a título oneroso para efeitos de IVA, mas antes de um custo directamente relacionado com o conjunto da actividade económica da Requerente, sendo esta tributada em sede de IVA.
  27. E recusa que o fornecimento de refeições pela Requerente se possa equiparar a uma prestação de serviços a título oneroso por configurar uma prestação de serviços a título gratuito efectuada com vista às necessidades particulares do seu pessoal.
  28. E mantém que, no art. 21.º do CIVA, a alínea b) do n.º 2 é norma especial, que se sobrepõe à regra geral da alínea d) do n.º 1 – ou seja, que a excepção-regra à exclusão do direito à dedução relativamente a despesas de fornecimento ao pessoal da empresa, pelo próprio sujeito passivo, de alojamento, refeições, alimentação e bebidas, em cantinas, economatos, dormitórios e similares, é afastada pelo direito à dedução quando, como no caso presente, é preenchida a previsão do art. 21.º, 2, b) do CIVA.
  29. Recusando, por fim, o argumento da Requerida, de que esta última regra é afastada quando o fornecimento das refeições não é efectuado pela Requerente, mas por empresa terceira – porque, no seu entender, esse último argumento é incompatível com a invocação, pela própria AT, do art. 9.º, 36 do CIVA.

 

III. B. Posição da Requerida

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por caracterizar a situação, como sendo a de dedução do IVA contido nas facturas de aquisição de serviços de alimentação e bebidas, fornecidos por uma entidade externa a trabalhadores e também a convidados (conforme consta do descritivo das facturas) no refeitório da Requerente, sendo a gestão desse refeitório igualmente assegurada pela empresa fornecedora dos serviços de alimentação e bebidas – uma dedução que não foi considerada pelos SIT por não ter sido dado cumprimento ao estabelecido no art. 12.º, 1, a) do CIVA: especificamente, alega a Requerida, ao não ter renunciado à isenção do IVA prevista no art. 9.º, 36 do CIVA, e não ter liquidado IVA nas refeições fornecidas aos trabalhadores, a Requerente violou o disposto no art. 20.º do mesmo Código, que determina só poder ser deduzido imposto para a realização de operações tributáveis.
  2. Nega, portanto, a tese da Requerente, de que o fornecimento de refeições aos trabalhadores da empresa na sua cantina foi efectuada a título gratuito, e não oneroso (não existindo nexo directo entre o serviço prestado e a contrapartida recebida), pelo que estariam fora da abrangência do CIVA.
  3. Alega a Requerida que a Requerente omitiu que, apesar de os seus funcionários não pagarem pelas suas refeições, o valor de custo é facilmente determinável pelos valores facturados pelo fornecedor que presta estes serviços, e que, durante o período da pandemia, que obrigou ao encerramento temporário da cantina, a empresa pagou subsídio de refeição aos seus trabalhadores, de forma directa no recibo de vencimento, ou através de tickets refeição – o que permite à Requerida inferir que a prestação de serviços de refeições em causa, apesar de não ser paga de forma directa pelos seus trabalhadores, tem um nexo concreto com a prestação de trabalho e a retribuição mensal.
  4. E cita o sumário do Acórdão do TCA Sul de 09 de Maio de 2006 (Proc. n.º 064799/97):

1. O fornecimento de refeições pela recorrente aos seus funcionários, por força do contracto de trabalho, como equivalente ao subsidio de refeição, é, por si só, de considerar uma prestação de serviços sujeita a IVA, nos termos do n.º 2 do art. 4.º do CIVA.

2. E, nessa medida, irreleva saber se, por constituírem complemento remuneratório do trabalho prestado pelos funcionários, aquela prestação de serviços pode/deve, ou não, ser configurada como de natureza gratuita ou onerosa, já que, tendo inexoravelmente de revestir uma delas, sempre estaria, qualquer que ela fosse sujeita às regras de incidência, como de facto estava.

  1. A Requerida insiste que os serviços em causa estão abrangidos pelo IVA por terem carácter oneroso. E afasta a jurisprudência do TJUE invocada pela Requerente (relativa à dedução do imposto suportado na aquisição de serviços de transporte para os trabalhadores entre a sua residência e o local de trabalho), entendendo que ela não se aplica ao caso presente, pois, no seu entender, não é o facto de a aquisição das refeições fornecidas aos trabalhadores incorporar os preços das operações tributáveis realizadas que justifica a dedutibilidade do IVA contido na aquisição.
  2. É que, sendo o fornecimento de refeições aos empregados pela entidade patronal uma atividade isenta sem direito à dedução, nos termos do art. 9.º, 36 do CIVA, a Requerente não pode deduzir o imposto suportado com a aquisição dos bens e serviços directamente relacionados com o fornecimento dessas refeições, por força do art. 20.º, 1, a) do CIVA.
  3. E lembra que o art. 9.º, 36 do CIVA é taxativo quando dispõe que estão isentos de imposto “os serviços de alimentação e bebidas fornecidos pelas entidades patronais aos seus empregados” e que decorre do art. 20.º, 1, a), também do CIVA, que “só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes: a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas”.
  4. Não se encontrando, assim, prevista uma eventual discricionariedade que permita a classificação das refeições em causa como imprescindíveis na actividade de um sujeito passivo e a eventual aceitação da dedução do imposto suportado com a aquisição dos bens e serviços directamente relacionados com o fornecimento dessas refeições: pois, estando perante uma isenção prevista no art. 9.º do CIVA, os sujeitos passivos nela enquadrados não liquidam o IVA nas suas operações a jusante (operações activas), mas também não podem deduzir o imposto suportado a montante (operações passivas).
  5. Quanto ao argumento da Requerente, de que ocorre uma excepção à referida exclusão do direito à dedução, na medida em que constituem despesas relativas a fornecimento de alimentação ao pessoal da empresa na cantina localizada nas suas instalações, a Requerida reconhece a existência do art. 21.º, 1, d) do CIVA, mas entende que ela não é aplicável ao caso aqui em apreço, pois o fornecimento das refeições não é feito pela Requerente, mas sim por empresa terceira.
  6. Lembrando ainda que o fundamento para as liquidações adicionais de IVA impugnadas é o art. 20.º, 1, a) do CIVA conjugado com o art. 9.º, 36 do CIVA, e não o art. 21.º, 1, d) do CIVA.
  7. Invocando, a propósito do art. 21.º, 1, d) do CIVA, o Acórdão de STA de 6 de Dezembro de 2006 (Proc. n.º 0567/06):

É deste modo por imposição da alínea a) do nº 1 do artigo 20.º do CIVA, já que se trata de imposto relativo a aquisição de serviços sujeita a imposto e dele não isenta, como se extrai dos artigos 1º a), 4º, nº 1, e 9º nº 40 do CIVA. Só poderia haver direito à dedução se a recorrida cobrasse o preço das refeições e serviço de bar aos seus trabalhadores e liquidasse o correspondente IVA, caso em que se estaria perante o exercício de uma actividade acessória tributável em IVA, que o mesmo é dizer, os serviços adquiridos pela recorrida seriam por ela utilizados para a obtenção de receitas tributadas a jusante. Ora, é ela mesma a afirmar - cfr. o artigo 4, alínea f) da petição inicial - que faz uso do direito à isenção do artigo 9º nº 40 do CIVA, não liquidando, por isso, IVA aos seus trabalhadores que consomem as refeições. Trata-se de uma isenção simples, que não confere direito à dedução do IVA suportado a montante.

Daí que também não possa a recorrida deduzir o IVA que entregou à empresa prestadora do serviço de cantina e bar.

  1. Concluindo pela improcedência do pedido da Requerente.
  2. Em alegações, a Requerida reitera os argumentos apresentados na sua Resposta, enfatizando novamente que a Requerente omitiu, seja que o valor de custo das refeições é facilmente determinável pelos valores facturados pela fornecedora das refeições, seja que, durante o período da pandemia que obrigou ao encerramento temporário da cantina, a empresa pagou subsídio de refeição aos seus trabalhadores de forma directa, quer no recibo de vencimento, quer através de tickets refeição.

 

III. C. Fundamentação da decisão

 

III. C. 1. Quadro normativo

 

A questão deste caso gravita principalmente em torno de cinco normas, que importa transcrever:

 

  • art. 9.º, 36 do CIVA

Artigo 9.º

Isenções nas operações internas

Estão isentas do imposto:

36) Os serviços de alimentação e bebidas fornecidos pelas entidades patronais aos seus empregados;

 

  • art. 12.º, 1, a) do CIVA

Artigo 12.º

Renúncia à isenção

1 - Podem renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações:

a) Os sujeitos passivos que efectuem as prestações de serviços referidas nos n.os 10) e 36) do artigo 9.º;

 

  • art. 20.º, 1, a) do CIVA

Artigo 20.º

Operações que conferem o direito à dedução

1 - Só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens ou serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações seguintes:

a) Transmissões de bens e prestações de serviços sujeitas a imposto e dele não isentas;

 

  • art. 21.º, 1, d) do CIVA

Artigo 21.º

Exclusões do direito à dedução

1 - Exclui-se, todavia, do direito à dedução o imposto contido nas seguintes despesas:

d) Despesas respeitantes a alojamento, alimentação, bebidas e tabacos e despesas de recepção, incluindo as relativas ao acolhimento de pessoas estranhas à empresa e as despesas relativas a imóveis ou parte de imóveis e seu equipamento, destinados principalmente a tais recepções;

 

  • art. 21.º, 2, b) do CIVA

Artigo 21.º

Exclusões do direito à dedução

2 - Não se verifica, contudo, a exclusão do direito à dedução nos seguintes casos:

b) Despesas relativas a fornecimento ao pessoal da empresa, pelo próprio sujeito passivo, de alojamento, refeições, alimentação e bebidas, em cantinas, economatos, dormitórios e similares;

 

III. C. 2. Delimitação do objeto do litígio

 

Trata-se de saber se, operando o n.º 2 do art. 21.º do CIVA como norma que exceptua o disposto no n.º 1 do mesmo artigo, a Requerente pode deduzir o imposto contido nas despesas respeitantes a refeições, alimentação e bebidas fornecidos, em cantina, ao pessoal da empresa.

A dedução do imposto suportado pelos sujeitos passivos nas operações intermédias do circuito económico é um elemento central do funcionamento do sistema do IVA, que tem como objectivo tributar apenas o consumo final.

O IVA é um imposto de matriz comunitária, plurifásico, que assenta numa estrutura de entrega, e respectiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia produtiva, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir, razão pela qual o direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado[10].

O direito à dedução pressupõe, assim, que os sujeitos passivos recuperem, em regra, o IVA suportado em bens e serviços com vista à realização de operações tributadas, dentro dos limites estabelecidos no CIVA.

E é por isso que o art. 19.º, 1 do CIVA estatui o conjunto de valores dedutíveis ao IVA que incide sobre as suas operações tributáveis.

Estabelecendo-se, de seguida, exclusões ao direito à dedução que estão sobretudo relacionadas com imposto relativo a aquisições de determinados bens ou serviços que, pelas suas características, se revelem: a) serem não-essenciais à actividade produtiva; ou b) serem facilmente susceptíveis de desvio para consumos privados, para consumos não-empresariais.

Como se lê no Acórdão do STA de 14 de Janeiro de 2004 (Proc. 01727/03):

o legislador, ciente de que os bens ou serviços identificados na norma são susceptíveis de ser utilizados no desenvolvimento de uma actividade empresarial mas consciente da dificuldade de controlar essa relação causal, imprescindível para obstar à fraude e evasão fiscal, optou por impor expressamente a exclusão do direito à dedução do IVA relativo a determinados bens ou serviços, independentemente da utilização concreta que lhes esteja associada”.

Recordemos que o cálculo do IVA pelos operadores económicos se efectua pelo método subtractivo indirecto, nos termos do art. 1º, 2, 2º§ da Directiva IVA, recordando ainda que o regime das deduções que preside ao Sistema Comum do IVA visa desonerar inteiramente o empresário do imposto que suporte no âmbito de todas as suas actividades económicas, desde que elas próprias estejam efectivamente sujeitas a imposto – o principal afloramento do princípio da neutralidade.

Por essa razão, a jurisprudência do TJUE tem sustentado a ideia de que o direito à dedução faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado[11].

Qualquer limitação pode, com efeito, aumentar o perigo de incorporação oculta do IVA no preço de bens e serviços, o que originaria efeitos cumulativos, contrários à sua neutralidade, que se apresenta como a uma característica principal.

E também por essa razão o regime das deduções tem consagração expressa na Directiva IVA, nos seus artigos 167.º, 168.º e 178.º (correspondentes aos artigos 17.º e 18.º da anterior Directiva 77/388/CEE, a “Sexta Diretiva”) – excluindo, desde logo, o direito à dedução em relação às despesas que não tenham carácter estritamente profissional, tais como despesas sumptuárias, recreativas ou de representação.

A Directiva IVA (tal como anteriormente o fazia a “Sexta Diretiva”) autorizou os Estados-Membros a consagrarem nas suas legislações nacionais exclusões do direito à dedução, na condição de elas constarem de legislação anterior à adopção do IVA, tal como delineado no âmbito do sistema comum – com cláusulas ditas de “standstill”.

Devendo lembrar-se que o CIVA entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1986 e que Portugal ficado obrigado a dar cumprimento ao sistema comum do IVA a partir de 1 de Janeiro de 1989.

Ora, tendo presente que o CIVA não se encontrava em vigor em final de 1985 e que não existia na ordem jurídica nacional qualquer disposição que excluísse o direito à dedução do IVA nessa data, uma vez que o Código do Imposto de Transacções, revogado pelo CIVA, não previa as exclusões à dedução do IVA previstas no artigo 21.º do CIVA, colocou-se a questão de saber se poderia, ou não, o legislador nacional introduzir as exclusões e as limitações ao direito à dedução com base na cláusula de “standstill”.

Insistindo-se que as exclusões ao exercício do direito à dedução podem assentar no facto de se referirem a despesas e consumos que, não obstante poderem ser absolutamente necessários à prossecução de actividades profissionais ou empresariais, serem facilmente susceptíveis de desvio para consumos privados.

Por isso as exclusões ou limitações podem até abranger despesas prima facie profissionais ou empresariais, desde que: a) não se esvazie completamente o conteúdo do direito à dedução (nomeadamente vedando aos sujeitos passivos a ilisão da presunção, ou seja, a prova de ausência de fraude ou de evasão fiscais); b) se respeite o “standstill”, ou seja, não se alargue o âmbito das exclusões e limitações após a data de 1 de Janeiro de 1979, ou após a data da adesão do Estado-Membro, se posterior; isto é, desde que não se alarguem exclusões ou limitações em violação do normativo da União.

É neste contexto que deve interpretar-se o núcleo de normas relevante neste caso: a exclusão de princípio contida no n.º 1 do art. 21.º do CIVA, tornando não-dedutíveis certas despesas respeitantes a alojamento, alimentação, bebidas e tabaco e despesas de recepção, incluindo as relativas ao acolhimento de pessoas estranhas à empresa – assente na presunção de que são despesas cuja essencialidade pode revelar-se problemática, o que transparece da referência específica a “pessoas estranhas à empresa” – é depois contrariada, com a adversativa “contudo”, pela norma especial do n.º 2 do mesmo art. 21.º do CIVA, que admite como dedutíveis, no seu “numerus clausus”, despesas relativas a fornecimento ao pessoal da empresa, pelo próprio sujeito passivo, de alojamento, refeições, alimentação e bebidas, em cantinas, economatos, dormitórios e similares – assente na presunção de que, aqui, é menos problemática a ligação à actividade tributada em IVA do sujeito passivo, o que, por sua vez, transparece da referência específica a “pessoal da empresa”.

E é de presunções que se trata, sempre ilidíveis (art. 73.º da LGT):  como as normas relativas ao direito a dedução de IVA têm como efeito o afastamento da incidência do imposto, reconduzem-se a normas de delimitação negativa de incidência, determinadas por presunções – nomeadamente a de que as despesas indicadas no art. 21.º, 1 e 2, não têm, total ou parcialmente, relação exclusiva com a actividade produtiva das empresas sujeitas a IVA, pois é essa a única justificação aceitável para o afastamento da dedutibilidade deste imposto, que, como imposto sobre o consumo, se pretende que seja neutro para os intermediários ao longo de todo o circuito económico.

Como se lê no Acórdão do TCA Sul de 21 de Outubro de 2021 (Proc. 113/05.8BELSB):

Tendo presente as exclusões do direito à dedução que o legislador nacional fez constar do artigo 21.º do CIVA, na redacção em vigor em 2002, e analisada que foi a margem estreita que na matéria era concedida pela Sexta Diretiva, em vigor no momento da adesão de Portugal à então CEE, mantida pela atual Directiva IVA, e considerando ainda a coerência do sistema do IVA, nomeadamente o princípio da neutralidade, as diversas alíneas do n.º 1, do artigo 21.º do CIVA devem ser interpretadas, como presunções ilidíveis, face à inadmissibilidade de presunções inilidíveis em direito fiscal, por força do disposto no artigo 73.º da LGT, caso contrário incorreriam em incompatibilidade com o artigo 17.º da Sexta Directiva e violação do principio da proporcionalidade.”

Por outras palavras, dir-se-á que a desoneração do IVA suportado em despesas subsumíveis na alínea d) do n.º 1 do art. 21º do CIVA é uma excepção, que em princípio está excluída ou afastada por aplicação daquele normativo, e só é admitida na hipótese do redébito com vista à obtenção do seu reembolso, nas hipóteses taxativamente previstas nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 21.º do CIVA.

Mas o raciocínio inverte-se se recordarmos que, de acordo com o sistema comum do IVA e com o princípio fundamental da neutralidade do IVA, é a exclusão da dedução de IVA que é excepcional, e as normas que o estabelecem devem ser de interpretação restrita, ao passo que a dedução de IVA é que é a regra, pelo que a solução do art. 21.º, 2, b) do CIVA constitui um regresso ao regime-regra, o regime dos arts. 19.º e 20.º do CIVA.

Sob um outro prisma, simplificando: o art. 21.º, 1 do CIVA exclui certo tipo de despesas independentemente de tais despesas concorrerem, ou não, para a realização de operações tributáveis – por presumir que a realização dessas despesas constitui já, e em si mesmo, um consumo final, pelo que devem ser suportadas definitivamente pelos seus destinatários.

Relativamente a uma outra alínea do n.º 2 do art.º 21.º do CIVA, e dado o evidente paralelismo, vale a pena referir-se que, no processo arbitral n.º 425/2018-T, foi suscitado um reenvio prejudicial com a seguinte questão:

“A correta interpretação da alínea a) do artigo 168.º e do artigo 176.º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, e dos princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade, permitem que o legislador português, na alínea d) do n.º 1 e na alínea d) do n.º 2 do artigo 21.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro, limite em 50% o direito à dedução do IVA suportado com despesas de alimentação, ainda que o sujeito passivo comprove que a totalidade de tais despesas foi integralmente afecta ao exercício da sua atividade económica tributada?”

Esse pedido deu origem, no TJUE, ao Processo n.º C-630/19, no qual foi proferido despacho fundamentado, em 26 de Fevereiro de 2020, no qual pode ler-se:

“(...)

23 Daqui resulta que, na medida em que o sujeito passivo, agindo nessa qualidade na data em que adquire um bem ou um serviço, utilize esse bem ou esse serviço para as necessidades das suas operações tributadas, está autorizado a deduzir o IVA devido ou pago em relação ao referido bem ou ao referido serviço (Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos, C-225/18, EU:C:2019:349, n.º 27 e jurisprudência referida).

24 Em segundo lugar, resulta igualmente da jurisprudência que só são permitidas derrogações ao direito à dedução do IVA nos casos expressamente previstos nas disposições das diretivas que regem esse imposto (Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos, C-225/18, EU:C:2019:349, n.º 28 e jurisprudência referida).

(…)

31 No caso em apreço, importa precisar, antes de mais, que, em conformidade com o artigo 395.° do Ato relativo às condições de adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às adaptações dos Tratados (JO 1985, L 302, p. 23), interpretado em conjugação com o anexo XXXVI do mesmo ato, a República Portuguesa, que aderiu às Comunidades Europeias em 1 de janeiro de 1986, pôde diferir até 1 de janeiro de 1989 a aplicação integral das regras que constituem o sistema comum do IVA (Acórdão de 8 de março de 2012, Comissão/Portugal, C-524/10, EU:C:2012:129, n.º 13).

32 Em seguida, resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que, à data da adesão da República Portuguesa, o artigo 21.° do Código do IVA excluía do direito à respetiva dedução o imposto pago a montante que incidia sobre as despesas respeitantes à alimentação e que, na sequência de uma alteração do referido artigo, em 2005, o direito à dedução do IVA para este tipo de despesas foi admitido, em certas condições, até ao limite de 50 %.

33 Afigura-se, assim, sob reserva de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, que, na sequência da alteração do artigo 21.° do Código do IVA, despesas que estavam totalmente excluídas do direito à dedução do IVA passaram a conferir, em certas condições, um direito à dedução parcial deste imposto. Por conseguinte, essa alteração, que reduz o âmbito das despesas excluídas deste direito à data da adesão da República Portuguesa à União, está abrangida pela cláusula de standstill prevista no artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA (v., por analogia, Acórdão de 14 de junho de 2001, Comissão/França, C-345/99, EU:C:2001:334, n.os 23 e 24).

34 Por último, importa ainda apreciar, em conformidade com a jurisprudência, se a legislação nacional em causa prevê de maneira suficientemente precisa a natureza e o objeto dos bens ou dos serviços para os quais fica excluído o direito à dedução do IVA, a fim de garantir que a faculdade concedida aos Estados-Membros não sirva para prever exclusões gerais a esse regime (Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos, C-225/18, EU:C:2019:349, n.º 40 e jurisprudência referida).

35 A este respeito, há que observar que, no Acórdão de 15 de abril de 2010, X Holding e Oracle Nederland (C-538/08 e C-33/09, EU:C:2010:192, n.os 50 e 51), o Tribunal de Justiça entendeu que categorias de despesas relativas ao fornecimento de refeições e de bebidas ao pessoal de um sujeito passivo assim como ao fornecimento de alojamento estavam definidas de forma suficientemente precisa, pelo que a exclusão do direito à dedução, prevista pelo direito nacional em causa nesse processo, estava abrangida pelo âmbito de aplicação da cláusula de standstill.

36 Além disso, no Acórdão de 2 de maio de 2019, Grupa Lotos (C-225/18, EU:C:2019:349, n.º 42), o Tribunal de Justiça também considerou que a categoria de despesas relativa aos «serviços de alojamento e de restauração», na medida em que diz respeito à natureza dos referidos serviços, estava definida de forma suficientemente precisa na perspetiva das exigências estabelecidas pela jurisprudência.

(…)

83. Termos em que o TJUE declarou: “O artigo 168.°, alínea a), e o artigo 176.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que, após a adesão do Estado-Membro em causa à União Europeia, reduz o âmbito das despesas excluídas do direito à dedução do imposto sobre o valor acrescentado, autorizando, em certas condições, uma dedução parcial do imposto sobre o valor acrescentado que incide sobre tais despesas, entre as quais, nomeadamente, as relativas à alimentação, ainda que o sujeito passivo comprove que essas despesas foram integralmente afetas ao exercício da sua atividade económica tributável.”

Voltando ao nosso caso: dadas as circunstâncias concretas da laboração da Requerente, e até em função dos imperativos da contratação colectiva, e de acordo com regras da experiência, os serviços em causa não se afiguram serem dissociáveis da actividade empresarial da Requerente, contribuindo para a realização de operações tributáveis; não existindo, em contrapartida, qualquer suporte probatório que habilitasse a conclusão de que tais despesas se realizaram para satisfazer interesses particulares, ou para atender a interesses alheios ao escopo da empresa.

Devendo recordar-se que, face à prova apresentada pela Requerente, que além do mais goza da presunção de veracidade (art. 75.º, 1 da LGT), perde relevância a alegação da Requerida, de que, durante as circunstâncias excepcionais da Pandemia, a Requerente se teria socorrido de sucedâneos do sistema normal de alimentação dos seus trabalhadores – porque o que está em causa é apenas a despesa facturada, e essa refere-se exclusivamente a despesas com a alimentação dos trabalhadores.

Além disso, a AT não provou, como lhe competiria (art. 74.º da LGT) que a prestação de serviços em causa respeitava a fins alheios à Requerente – ou, mais amplamente, visou lesar patrimonialmente o erário público.

Quanto à alegação de que as despesas de alimentação não teriam nexo directo com a actividade da Requerente, não obstante as especificidades da sua laboração, convirá recordar que a jurisprudência europeia admite o direito à dedução, mesmo não havendo uma relação directa e imediata entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante, desde que os gastos suportados a montante façam parte das despesas gerais do sujeito passivo.

Podendo citar-se Acórdão SVEDA UAB, de 22 de Outubro de 2015 (Proc. C-126/14), n.º 28:

o Tribunal de Justiça também admitiu um direito a dedução do IVA a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de um nexo direto e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito a dedução, quando as despesas incorridas fazem parte das despesas gerais desse sujeito passivo e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens fornecidos ou dos serviços prestados pelo sujeito passivo. Estas despesas têm, com efeito, uma relação direta e imediata com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo”.

Ou como pode ler-se no já citado Acórdão Fillibeck do TJUE de 16 de Outubro de 1997 (Processo C-258/95):

27 Segundo jurisprudência assente, a existência de um nexo direto e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução é, em princípio, necessária para que o direito à dedução do IVA pago a montante seja reconhecido ao sujeito passivo e para determinar a extensão de tal direito. O direito à dedução do IVA que incidiu sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição tenham feito parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante com direito à dedução (acórdão SKF, já referido, n.º 57 e jurisprudência referida).

28 Porém, admite-se igualmente o direito à dedução a favor do sujeito passivo, mesmo na falta de um nexo direta e imediato entre uma determinada operação a montante e uma ou várias operações a jusante com direito à dedução, quando os custos dos serviços em causa fazem parte das suas despesas gerais e são, enquanto tais, elementos constitutivos do preço dos bens que fornece ou dos serviços que presta. Estes custos têm, com efeito, um nexo direto e imediato com o conjunto da atividade económica do sujeito passivo (v., nomeadamente, acórdão SKF, já referido, n.º 58 e jurisprudência referida).

Como o CIVA não consagra qualquer limitação ao princípio geral da liquidação e dedução do IVA, estabelecido no artigo 168.º da Directiva IVA, para as despesas incorridas por uma empresa com o pagamento a uma outra empresa para fornecer refeições aos seus trabalhadores, como previsto no acordo-base celebrado entre a administração da Requerente e a comissão dos seus trabalhadores, o que é feito sem quaisquer implicações nas suas retribuições, é esta a regra geral, que é ressalvada pelo art. 21.º, 2, b) do CIVA – não procedendo o argumento de Requerida, de que essa solução não procederia por não ter sido a própria Requerente a prestar os serviços, e antes uma contratada por ela: seja porque é evidente que a Requerente não tem actividade, ela própria, no “catering”, seja porque é precisamente porque há uma empresa de “catering” envolvida que houve despesa explícita e facturada, e que foi liquidado IVA; o que não teria sucedido se a Requerente, violando as vantagens da divisão de trabalho e da especialização, tivesse procurado assumir directamente a confecção e entrega das refeições aos seus trabalhadores, ou tivesse criado um departamento para o efeito, numa “integração vertical”.

Quanto ao argumento de que para poder exercer o direito à dedução, a Requerente teria que ter efectuado a renúncia à isenção do n.º 36 do artigo 9.º do CIVA, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º mesmo CIVA, ele não procede porque, dada a aplicabilidade do art. 21.º, 1, b) do CIVA, que é norma especial, a Requerente tem direito à dedução do IVA suportado na sua relação com a fornecedora de “catering” – independentemente da questão da isenção (além de que, não sendo cobrados aos trabalhadores os serviços em causa, não colhe o argumento de que são isentos – visto não poder isentar-se um serviço que não é sujeito a IVA em primeiro lugar).

Aceitando-se, em conclusão, que os serviços a que correspondem as despesas tributadas não são dissociáveis da actividade económica da Requerente, da actividade consistente em operações tributáveis, não havendo qualquer prova de desvio para satisfação de interesses particulares, ou de interesses alheios à actividade empresarial da Requerente, conclui-se que o IVA incorrido nestas despesas é dedutível na totalidade, uma vez que estão em causa despesas gerais da actividade da Requerente, que estabelecem um nexo com a sua actividade tributável em IVA, não se aplicando, por outro lado, nenhuma das exclusões tipificadas no art. 21.º, 1 do CIVA.

 

III. C. 3. Juros indemnizatórios

 

Dada a procedência do pedido, são devidos juros indemnizatórios, tal como peticionado pela Requerente, nos termos do art. 43.º da LGT, dado ter-se apurado que houve erro imputável aos serviços, de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

Nos termos do Acórdão do STA de 31 de Outubro de 2001 (Proc. n.º 26167):

Para efeitos da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, imposta à administração tributária pelo art, 43.º da L.G.T., havendo um erro de direito na liquidação e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte.”

E nos termos do Acórdão do STA de 7 de Novembro de 2001 (Proc. n.º 26404):

Esta imputabilidade do erro aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro, podendo servir de base à responsabilidade por juros indemnizatórios a falta do próprio serviço, globalmente considerado”.

Os juros indemnizatórios devem ser contados da data em que cada uma das liquidações foi paga pela Requerente, até ao integral reembolso da Requerente, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, em montante a apurar em sede de execução de julgado.

 

III. C. 4. Matérias de conhecimento prejudicado

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria, por isso, inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT.

 

IV. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando os actos tributários ora sindicados;
  2. Condenar a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira, ao reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios;
  3. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

V. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 69.850,74 (sessenta e nove mil, oitocentos e cinquenta euros e setenta e quatro cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

 

VI. Custas

 

Custas no montante de € 2.448,00 (dois mil, quatrocentos e quarenta e oito euros) a cargo da Requerida, nos termos da Tabela I do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT.

 

Lisboa, 22 de Abril de 2025.

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

 

Catarina Belim

 

 

Rui Miguel Marrana

 



[1] Acórdão Suzlon Wind Energy Portugal, Proc. C-605/20, de 24 de Fevereiro de 2022, n.º 46.

[2] Acórdão Suzlon Wind Energy Portugal, n.º 62; Acórdão Apple and Pear Development Council, Proc. C-102/86, de 8 de Março de 1988, n.º 12; Acórdão Hotel Scandic, Proc. C-412/03, de 20 de Janeiro de 2005, n.º 21.

[3] Acórdão Fillibeck, de 16 de Outubro de 1997, Proc. C-285/95, n.os 16-17.

[4] Acórdão Fillibeck, n.º 18.

[5] Acórdão Fillibeck, n.º 25.

[6] Acórdão Fillibeck, n.os 29-30.

[7] Acórdão Fillibeck, n.º 34.

[8] Acórdão de 18 de Julho de 2013, Proc. C-124/12, n.os 25-26; Acórdão SKF, de 29 de Outubro de 2009, Proc. C-29/08, n.os 55-56.

[9] Acórdão de 18 de Julho de 2013, Proc. C-124/12, n.os 27-28; Acórdão SKF, de 29 de Outubro de 2009, Proc. C-29/08, n.os 57-58.

[10] Xavier Basto, A Tributação do Consumo e a sua coordenação internacional, Lisboa, 1991, p. 41.

[11] Acórdãos de 14 de Junho de 2017, Compass Contract Services (Proc. C-38/16), e de 18 de Outubro de 2018, Volkswagen Financial Services (Proc. C- 153/17).