Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1088/2024-T
Data da decisão: 2025-04-13  IRC  
Valor do pedido: € 109.928,80
Tema: IRC – art. 64.º (correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis) – aquisição em processo de insolvência
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SUMÁRIO: No respeitante a imóveis, no âmbito de processos de insolvência, o valor que serviu ou deveria servir (não existindo isenção) de base à liquidação de IMT não é o VPT definitivo, mas sim o preço constante do ato ou contrato, dando expressão ao art. 64.º do CIRC em conjugação com o que decorre da regra 16.ª do n.º 4 do art. 12.º do CIMT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua..., n.º ..., ..., ...-... Leiria, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

  • RELATÓRIO

 

A) O pedido

 

A Requerente peticiona a anulação da liquidação adicional de IRC n.º 2021..., referente ao exercício de 2019, e, consequentemente, a anulação da decisão de indeferimento do pedido da sua revisão oficiosa.

 

B) O Litígio

 

Está em causa saber se, relativamente à aquisição de um imóvel feita por uma sociedade em processo judicial de insolvência, por preço inferior ao VPT, é ou não de aplicar o disposto no nº art. 64º do CIRC (correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis).

A Requerente sustenta, em resumo, que:

-  A norma legal estabelece uma comparação obrigatória entre o valor de mercado (o qual nunca pode ser inferior ao valor patrimonial tributário do imóvel) e o valor efetivo da aquisição.

- O único mecanismo legal que permite o afastamento desta regra fiscal é o constante do artigo 139.º do Código do IRC, através do qual o sujeito passivo pode fazer valer o preço efetivo de compra e venda.

- O facto de a base de incidência do IMT ter resultado da aplicação da regra 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT não se mostra relevante para efeitos de determinação do lucro tributável do IRC, dado que o legislador não contemplou idêntico comando na redação do artigo 64.º do Código do IRC.

- As normas em causa têm intencionalidades diferentes: o artigo 12.º do Código do IMT destina-se a fixar o valor tributável relativamente ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (artigo 2.º), podendo incidir simultaneamente com o imposto do selo (artigo 3.º), constituindo-se a obrigação tributária no momento em que ocorrer a transmissão; ao contrário, o artigo 64.º do Código do IRC pretende determinar as correções a efetuar para o apuramento do lucro tributável, quando haja lugar à transmissão onerosa de imóveis, estipulando, quais as regras a serem observadas quer pelos alienantes, quer pelos adquirentes

- A interpretação conjugada das disposições do artigo 64.º, n.º 3, do Código do IRC e da subalínea 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT não pode conduzir à fixação de um sentido e alcance da lei que não tem na norma do artigo 64.º, n.º 3 a mínima correspondência verbal.

- Quando da transmissão do imóvel, estaria obrigado, na condição de alienante, a acrescer no campo 745 do quadro 07 a diferença positiva entre o valor patrimonial tributário do imóvel e o valor do contrato de venda.

 

Por seu lado, a Requerida sustenta que:

- A aquisição em causa não decorreu de uma “situação normal de mercado”, uma vez que aconteceu no âmbito de um processo de insolvência.

- Assim, não há risco de serem considerados valores de transmissão inferiores aos efetivamente praticados, justificando-se a não aplicação da norma anti abuso do artigo 64.º do CIRC.

- Nos casos de transmissão dos imóveis por venda judicial, o valor que serve ou serviria de base à liquidação de IMT é, de acordo com a regra 16.ª, do n.º 4, do artigo 12.º do Código do IMT, o preço constante do ato ou do contrato.

- Para efeitos de IRC, em face do disposto no n.º 1 do artigo 64.º do Código do IRC, a regra é a mesma e, consequentemente, o lucro tributável para efeitos deste imposto deve ser o preço constante do contrato, e não o VPT.

- A sua posição encontra amparo em vários acórdãos do STA e numerosa jurisprudência, que identifica, salientando, pela sua relevância, o acórdão de uniformização de jurisprudência de 19/10/2022, processo n.º 77/22.

 

A Requerida invoca ainda a exceção “Do caso julgado administrativo e da consequente inimpugnabilidade do ato” em termos que adiante serão apreciados.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido foi aceite em 03/10/2024.

Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.

O tribunal arbitral ficou constituído em 10/12/2024.

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

A Requerente não respondeu à exceção deduzida pela Requerida, apesar de expressamente notificada para tal.

Por despacho de 03/04/2025 foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.

 

 

D) Saneamento

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

Para além da exceção invocada pela Requerida, que a seguir se apreciará, não existem outras questões que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

d.1) Exceção “Do caso julgado administrativo e da consequente inimpugnabilidade do ato”

A Requerida salienta os seguintes factos (a seguir dados por provados):

- A Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação que ora impugna, a qual foi expressamente indeferida.

- A Requerente não recorreu hierarquicamente de tal decisão de indeferimento, nem deduziu, na sequência, processo de impugnação.

- Posteriormente, a Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa, invocando os mesmos fundamentos que havia alegado na reclamação graciosa.

- Tal pedido de revisão que foi indeferido pelas mesmas razões que haviam levado ao indeferimento da reclamação graciosa.

Perante estes factos, a Requerida entende que a decisão administrativa de indeferimento se tornou definitiva (ocorreu aquilo que designa por “caso julgado administrativo”) o que a impediria de, com os mesmos fundamentos – tal qual aconteceu – a Requerente solicitar o pedido de revisão oficiosa.

Entende ainda que “a própria decisão do pedido de revisão oficiosa tem um mero carácter confirmativo da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, retirando-lhe, deste modo e consequentemente a virtualidade de ser sindicável”.

 

Apreciando,

É hoje pacificamente aceite que existem três meios diferentes de reação contra uma liquidação tida por ilegal: a reclamação graciosa, o pedido de revisão oficiosa e a impugnação judicial.

A reclamação graciosa e o pedido de revisão não se confundem, pese embora sejam “meios administrativos de impugnação substancialmente idênticos”, há que o reconhecer As diferenças existem quanto aos seus possíveis fundamentos, ao órgão administrativo com competência para a decisão, aos efeitos da sua interposição[1].

Por serem vias de recurso diferentes, a lei não prevê que a utilização de um (reclamação graciosa) exclua a utilização do outro (pedido de revisão oficiosa).

O pedido de revisão oficiosa, desde que verificado o condicionalismo inerente ao uso deste meio procedimental, obriga a AT a reponderar (ponderar de novo) a questão, a legalidade da liquidação em causa.

Indo além do caso concreto, temos que, muitas vezes, acontecerá que um pedido de revisão oficiosa deva proceder apesar de a reclamação oficiosa, antes deduzida com os mesmos fundamentos, ter sido julgada improcedente e o sujeito passivo com tal se ter conformando, não tendo impugnado a liquidação na sequência do indeferimento. Serão, por exemplo os casos em que, após a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o TJUE se ter pronunciado (pronúncia vinculativa, recordamos) em termos que obrigam, em sede de revisão oficiosa, a uma decisão de sentido contrário.

 

A decisão que põe termo ao processo de revisão, mesmo que concluindo de igual modo e pelos mesmos fundamentos, não é, em sentido técnico-jurídico, um ato administrativo confirmativo de um ato administrativo anterior (a decisão da reclamação graciosa),

Segundo a jurisprudência uniforme do STA, está-se perante um ato confirmativo de outro quando “há um ato emanado da mesma entidade e dirigido ao mesmo destinatário, que repete o conteúdo de um ato anterior, perante pressupostos de facto e de direito idênticos e sem que o reexame desses pressupostos decorra de revisão imposta por lei” [cfr. entre muitos outros os Acs. do STA de 25/05/2000 e 28/10/2010, in recs. n.º 43440 e 039/10].

Ora estamos precisamente perante um caso de uma revisão imposta por lei.

 

Por último, referir que a questão do “caso julgado administrativo anterior” não foi invocada na decisão do pedido de revisão oficiosa, não foi um dos fundamentos de tal decisão, pelo que entendemos que esta questão sempre resultaria excluída da sindicância do tribunal.

Termos em que se considera improcedente a exceção.

 

  • FACTOS

 

II.1- Factos Provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Em 2015, no âmbito de um processo de insolvência, a Requerente adquiriu, pelo valor de € 376.500,00, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n.º... da freguesia de ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário (VPT) de € 866 450,00.
  2. Tal aquisição foi isenta de IMT ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 270.º do DL 53/04, de 18 de março.
  3. Em 2019, a Requerente alienou tal imóvel (que, à data, tinha o VPT de € 885 945,13) pelo preço de € 886.000,00,
  4. Na declaração de rendimentos modelo 22 do IRC, relativa a 2019, a Requerente deduziu, no campo 772 do quadro 07, o valor de € 489.950,00, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário à data da aquisição (€ 866.450,00) e o preço pago por esta (€ 376.500,00), o que fez nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 64.º do CIRC.
  5. A Requerente foi objeto de ação inspetiva, a qual originou correções em sede de IRC, porquanto os SIT da Direção de Finanças de Leiria entenderam que “(…) o sujeito passivo não pode, neste caso em concreto aplicar a alínea b) do n.º 3 do artigo 64.º do CIRC, uma vez que o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel adquirido não serviu nem serviria de base à liquidação do IMT, ainda que esta fosse de efetuar”. sustentando que, caso a Requerente não tivesse beneficiado de isenção, o IMT devido incidiria sobre o valor constante do ato ou do contrato, não obstante ser inferior ao valor patrimonial tributário do imóvel, por tal resultar da aplicação da regra 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT.
  6. Pelo que foi anulada a correção referida em e emitida a liquidação ora impugnada à correção da dedução efetuada ao abrigo da alínea b) do n.º 3 do artigo 64.º do Código do IRC.
  7. A Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação que ora impugna, a qual foi expressamente indeferida.
  8. A Requerente não recorreu hierarquicamente de tal decisão de indeferimento, nem deduziu, na sequência, processo de impugnação.
  9. Posteriormente, a Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa, invocando os mesmos fundamentos que havia alegado na reclamação graciosa.
  10. O pedido de revisão que foi indeferido pelas mesmas razões que haviam levado ao indeferimento da reclamação graciosa.

 

Estes factos estão confirmados pela documentação junto aos autos, não tendo suscitado qualquer divergência entre as partes.

 

II.2 – Factos não provados

Não foram apurados quaisquer factos tidos por “não provados” com relevância para a decisão.

 

 

III - O DIREITO

 

Como já referido, está em causa saber se, relativamente à aquisição de um imóvel feita por uma sociedade em processo judicial de insolvência, por preço inferior ao VPT, é ou não de aplicar o disposto no art. 64.º do CIRC (correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis)[2].

Adiantamos, desde já, que sufragamos a posição da Requerida e, em geral, os argumentos em que se funda.

Na realidade, o art. 64.º do CIRC é uma norma que introduz um desvio ao princípio geral (com expressão constitucional) de que as empresas devem ser tributadas, fundamentalmente, pelo seu lucro real. Isto porquanto cria, por razões de prevenção de evasão fiscal, uma presunção legal, aplicável em sede de IRC, segundo a qual o preço da transação de um imóvel não foi inferior ao respetivo VPT. Valor este a ser considerado, por força de tal presunção legal, quer pelo alienante, quer pelo adquirente, quando o preço declarado no contrato for inferior.

Estamos, pois, perante uma norma excecional, o que impõe uma interpretação restritiva do seu campo de aplicação.

A mesma presunção legal é aplicável em sede de IMT. Porém é afastada, pelo CIMT (regra 16.ª do n.º 4 do artigo 12.º), nos casos, como os de aquisição em processo de insolvência, em que não se coloca a questão de “subdeclaração” do preço pago.

Para além de uma interpretação sistemática levar a concluir que a mesma “exceção” é de aplicar também em sede de IRC, sempre ofenderia as regras da boa hermenêutica jurídica pretender estender o campo de aplicação de uma norma excecional a situações em que manifestamente não ocorre a sua ratio.

 

Este entendimento tem total respaldo na jurisprudência uniformizada do STA.

Segundo o acórdão do Pleno da Seção do Contencioso Tributário de 19-10-2022, proc. 077/22.8:

I - No respeitante aos imóveis adquiridos ao Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias Locais ou mediante arrematação judicial ou administrativa, ou ainda adquiridos no âmbito de processos de insolvência ou processos especiais de revitalização sob controlo judicial, o valor que serviu de base à liquidação de IMT não é o VPT definitivo, mas sim o preço constante do acto ou contrato, dando expressão ao art. 64º do CIRC em conjugação com o que decorre da regra 16ª do nº 4 do art. 12º do CIMT.

 

  • DECISÃO ARBITRAL

Termos em que se conclui pela total improcedência dos pedidos.

 

Valor: € 109.928,80

Custas, no montante de € 3.060,00, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento.

 

13 de abril de 2025

 

Os árbitros

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 


 

Marta Vicente

 

 

Hélder Faustino

 

 



[1] Ver, por todos, Jorge Lopes de Sousa et al., Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, 2012, pág.712 ss.

[2] Artigo 64.º CIRC

Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis

 

1 — Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.

2 — Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.

3 — Para aplicação do disposto no número anterior:

a) O sujeito passivo alienante deve efetuar uma correção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;

b) O sujeito passivo adquirente adota o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.

(…)