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SUMÁRIO:
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A concessão de crédito no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria (cash pooling) está sujeita a imposto do selo, sendo a conexão relevante para aferir a incidência territorial do Imposto do Selo, o local da concessão do crédito e não o da sua utilização.
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A não aplicação da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h), do Código do Imposto do Selo às situações em que o devedor não tem sede ou direcção efectiva em Portugal mas sim noutro Estado-Membro da União Europeia, constitui uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais tutelada pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
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Não há lugar a juros indemnizatórios nas situações em que o pedido de revisão do ato tributário foi decidido em período inferior a um ano.
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DECISÃO ARBITRAL
Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 19-06-2024, elabora nos termos seguintes, a decisão arbitral no processo identificado:
1. RELATÓRIO
A..., LDA. (doravante abreviadamente designada por “Requerente”), titular do número de identificação de pessoa coletiva ..., com sede social na Rua ..., n.º ..., ...-..., ...-... Paço de Arcos, veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, com vista à declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., e consequente anulação dos atos de liquidação de Imposto do Selo (“IS”) referentes aos meses de abril a dezembro de 2020 e janeiro de 2021, efetuadas através das Declarações de Retenções na Fonte de Imposto de Selo (“DRFIS”) n.ºs ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e da Declaração Mensal de Imposto do Selo (“DMIS”) n.º ..., no montante total de € 15.030,49.
A Requerente peticiona também o reembolso do imposto pago, no montante de € 15.030,49, acrescido de juros indemnizatórios.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 08-04-2024 e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral, a aqui signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.
Em 29-05-2024 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 19-06-2024.
A Requerida, através de despacho arbitral proferido em 19-06-2024, foi notificada para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.
Em 06-09-2024, a Requerida juntou aos autos cópia do processo administrativo e apresentou a sua Resposta, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, na qual se defende por exceção e por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição de todos os pedidos.
Por despacho de 10-09-2024, foi determinada a notificação da Requerente para no prazo de 10 dias se pronunciar quanto à matéria de exceção invocada pela AT na sua Resposta, e para no mesmo prazo indicar a matéria de facto sobre a qual pretendia a inquirição da testemunha arrolada.
Por requerimento de 27-09-2024, a Requerente respondeu à matéria de exceção invocada pela AT.
Por despacho de 30-09-2024, foi determinada nova notificação à Requerente para indicar a matéria de facto sobre a qual pretendia a produção da prova testemunhal.
Através do requerimento de 15-10-2024, a Requerente informou os autos que se afigura desnecessária a produção de prova testemunhal, atenta a ausência de controvérsia relativamente à matéria de facto em discussão.
Por despacho de 16-10-2024, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas.
Em 31-10-2024, a Requerida apresentou alegações escritas, nas quais reiterou a posição anteriormente assumida em sede de Resposta.
Em 05-11-2024, a Requerente apresentou alegações escritas, nas quais reiterou também a posição assumida nos seus articulados.
Por despachos de 17-12-2024 e de 19-02-2025, foi determinada, nos termos do disposto na norma do artigo 21º-2 do RJAT, a prorrogação, pelo período de dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral nestes autos.
2. SANEAMENTO
A Autoridade Tributária suscitou a exceção da inimpugnabilidade dos actos tributários em questão e a consequente caducidade do direito de acção. Esta questão traduz-se na realidade na exceção da tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, matéria que será analisado mais adiante, onde se conclui no sentido da tempestividade do pedido, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Tudo visto, cumpre decidir.
3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. MATÉRIA DE FACTO
3. 1.1. Factos provados
Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente é uma sociedade por quotas de direito português, com sede e direção efetiva neste território, qualificando-se, em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), como um sujeito passivo residente, nos temos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código daquele imposto (cf. documento n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral e por acordo das partes).
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A Requerente tem como objeto social a prestação de todos os tipos de serviços de processamento de dados incluindo serviços de consulta na área do processamento eletrónico de dados, sistemas e hardware para operação de processamento eletrónico de dados, recolha de processamento e registo de dados bem como serviços de organização para terceiros, recrutamento e treino de pessoal, bem como instruções em conexão com tal atividade venda e marketing de serviços de processamento eletrónico de dados, bem como a compra, venda de equipamento eletrónico e locação de equipamento eletrónico de hardware e software (CAE 62030) (cf. documento n.º 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral e por acordo das partes).
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A Requerente integra o Grupo B... (“Grupo B...”), do qual também faz parte a C... B.V., (“C...”), entidade residente, para efeitos fiscais, na Holanda (cf. documentos 1, 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
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Quer a Requerente, quer a C... B.V. são detidas, direta ou indiretamente, em mais de 75%, pela D..., B.V., sendo, em última instância, todas detidas pela sociedade beneficiária efetiva do Grupo do Grupo B..., B... (USA), pelo que se encontram em relação de domínio ou de Grupo (cf. documentos 1, 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).
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No âmbito da sua atividade, o Grupo B... implementou um acordo de gestão de tesouraria, ao nível de diversas subsidiárias – sediadas em várias jurisdições europeias –, incluindo a ora Requerente, destinado a assegurar a gestão centralizada de tesouraria das diferentes entidades do Grupo (cf. documento 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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A Requerente formalizou a adesão ao referido acordo de cash-pooling mediante a celebração, em 12 de junho de 2014 (com produção de efeitos a partir de 1 de junho de 2014), com a empresa C... B.V., que também faz parte do Grupo B... de acordo denominado “Intercompany Cashpool Agreement”, nos termos que constam do documento nº 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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De acordo com a política de cash pooling implementada, a entidade responsável pelo controlo dos fluxos diários do sistema consolidado de tesouraria é a C... B.V. (“C...”) (cf. documento 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Nos termos do referido contrato de cash-pooling, a entidade responsável pelo controlo dos fluxos diários do sistema consolidado de tesouraria, concorda em disponibilizar fundos à Requerente (empréstimo de IC cashpool) ou receber fundos da Requerente (depósito de IC cashpool), numa base diária e consoante o caso, a pedido desta. Quando, no final de cada dia, o saldo for positivo, este é considerado como um depósito de Intercompany (“IC”) cashpool. Quando o saldo é negativo, é considerado um empréstimo de IC cashpool. Todos os depósitos e empréstimos de IC cashpool têm vencimento diário (cf. cf. documento 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Nos termos do mencionado contrato de cash pooling, os depósitos e empréstimos vencem juros a uma taxa de referência deduzida ou acrescida de uma margem (o diferencial de crédito dos depósitos IC ou spread de crédito dos empréstimos IC). Os juros vencidos no mês anterior serão objeto de um crédito ou de um débito no saldo de capital no primeiro dia útil de cada mês (cf. documento 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Nos termos do referido contrato de cash pooling, o mencionado sistema de gestão centralizada de tesouraria implementado pelo Grupo B... baseia-se no princípio de saldo nulo (vide cláusula 2), pelo que, sempre que aplicável, o saldo positivo da conta bancária da Requerente deverá ser automaticamente transferido para a conta bancária da C..., numa base diária, ou seja, reduzindo a zero o saldo da sua conta bancária (cf. documento 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Nos períodos a que os atos de autoliquidação de Imposto do Selo Impugnados respeitam (entre abril e dezembro de 2020 e janeiro 2021), a Requerente encontrava-se, de forma recorrente, numa situação de excesso de fundos/tesouraria, circunstância que determinou, ao abrigo do mencionado contrato a transferência dos fundos da sua conta bancária local para a C..., sendo depois reembolsados numa lógica de curto prazo (cf. documento 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Tendo em consideração a legislação em vigor em sede de IS, as transferências de fundos da Requerente para a C... foram tratadas enquanto concessões de crédito da primeira entidade à segunda (cf. documento 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Os excessos de tesouraria nos referidos períodos foram gerados pela atividade operacional da Requerente e não tiveram origem em financiamento/empréstimo bancário (cf. documentos 8 e 9, correspondentes às demonstrações financeiras de 2020 e 2021, que não evidenciam qualquer passivo bancário).
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Os fluxos financeiros relativos aos períodos em causa corresponderam a operações de curto prazo, verificando-se movimentos de entrada e de reembolso de fundos, que demonstram que os mesmos não têm prazo superior a 1 ano, verificando-se que as concessões de empréstimos da Requerente ocorridas no período em análise (entre 1 de abril de 2020 e 31 de janeiro de 2021) foram anuladas/reembolsadas nos meses seguintes, sempre antes de decorrido o prazo de um ano (cf. documento 10, correspondente aos extratos contabilísticos referentes ao período compreendido entre abril e dezembro de 2020 e janeiro 2021).
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A Requerente, na qualidade de entidade concedente do crédito à C..., liquidou e pagou mensalmente Imposto do Selo, à taxa de 0,04%, prevista na verba 17.1.4 da Tabela Geral do Código deste imposto, no montante global de € 15,030.49, por referência aos períodos de e compreendidos entre abril de 2020 e janeiro de 2021, conforme se resume no quadro seguinte (cf. documentos 2 e 11 juntos com o pedido de pronúncia arbitral):
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A Requerente procedeu ao pagamento dos montantes identificados na alínea antecedente, no valor total de € 15,030.49 (cf. documento nº. 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral e por acordo das partes).
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A Requerente em 19-05-023, apresentou reclamação graciosa contra os atos de liquidação de Imposto de Selo atrás identificados, no montante de € 15,030.49, o que fez ao abrigo do disposto no artigo 78.º, n.º 1 da LGT, com fundamento em erro imputável aos serviços (cf. documento nº 3, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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O pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente foi indeferido por despacho de 22-12-2023 proferido pelo Chefe de Divisão de Direcção de Finanças, com a seguinte fundamentação (cf. documento nº 1, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido):
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A Requerente foi notificada, através da Plataforma Via CTT, por notificação disponibilizada a 23 de dezembro de 2023, da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (cf. documento nº 4, junto com o pedido de pronúncia arbitral).
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Em 05-04-2024, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
3.1.2. Factos considerados não provados
Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
3.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente os documentos juntos pela Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Não se deram como provadas, nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.
Finalmente, importa sublinhar que a questão essencial a decidir é de direito e assenta na prova documental junta aos autos pela Requerente e na documentação constante do processo administrativo junto pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.2. MATÉRIA DE DIREITO
3.2.1. Da exceção da inimpugnabilidade dos actos tributários
A Requerida, na sua resposta, suscita, a título de exceção, a questão da inimpugnabilidade dos actos tributários em questão.
Alega a extemporaneidade do pedido de revisão oficiosa, por entender que no caso em apreço, não poderia ser efetuada nos termos da primeira modalidade prevista no n.º 1 do art.º 78.º da LGT, por se encontrar ultrapassado o prazo de reclamação administrativa (cf. artigo 131.º, n.º 1 do CPPT) e que, não obstante verificar-se a tempestividade referida no n.º 4 do art.º 78.º da LGT, apenas se considera notória a injustiça ostensiva, inequívoca e grave, aquela que é resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.
Sustenta a Requerida, que sendo manifesta a intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado e apenas tendo o órgão decisor feito a necessária apreciação da existência ou não de “um qualquer erro imputável aos serviços”, nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, que pudesse “ser invocado como fundamento do pedido de revisão oficiosa”, resulta a determinação da necessária intempestividade do presente pedido de constituição do tribunal arbitral.
Alega ainda a Requerida para fundamentar a exceção que invoca, que:
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Em sede de revisão oficiosa concluiu-se que o pedido sub júdice, havia sido apresentado intempestivamente, fora do prazo legal de 2 anos previsto no art.º 131º do CPPT para as reclamações graciosas de actos de autoliquidação de imposto, não estando preenchidos os pressupostos do art.º 78º da LGT atinentes à sua admissibilidade depois daquele prazo.
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A não apresentação em tempo de pedido de reclamação graciosa contra aquelas autoliquidações de imposto determina a inimpugnabilidade das mesmas em virtude da sua consolidação na ordem jurídica.
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A imputabilidade do erro à AT, para efeitos de admissibilidade do pedido de revisão oficiosa ao abrigo do art.º 78º da LGT, nunca poderia ocorrer no caso dos presentes autos:
- Quer por se tratar de autoliquidações de imposto, que não tiveram na sua base qualquer informação ou orientação da AT,
- Quer por se tratar de imposto repercutido aos Requerentes, que estes, ao pagarem, aceitaram como sendo legal e devido (diferentemente do que numa situação de retenções na fonte de imposto, que não é o caso dos autos),
- Situação que, concretamente, concorre para acentuar a negligência dos Requerentes que tendo efetuado o pagamento de um imposto, ainda assim, não reagiram, em tempo, contra a sua legalidade.
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O procedimento de revisão oficiosa, previsto no artigo 78.º da LGT, constitui um meio alternativo de garantia dos contribuintes, visando a anulação total ou parcial de atos tributários de liquidação ou de autoliquidação com fundamento em qualquer ilegalidade, erro imputável aos serviços, injustiça grave ou notória ou duplicação de coleta, devendo ser deduzido dentro dos respetivos prazos.
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Tratando-se de um tributo autoliquidado pelo sujeito passivo, como é o caso do Imposto do Selo previsto na verba 17 da TGIS, a impugnação será sempre precedida de reclamação graciosa apresentada no prazo de dois anos após a apresentação da declaração, nos termos do disposto no artigo 131.º do CPPT.
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Decorrido aquele prazo, como sucede no presente caso, fica afastado o recurso ao meio de defesa previsto no artigo 131.º do CPPT, restando apenas o recurso ao mecanismo previsto no artigo 78.º da LGT.
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Contrariamente ao que vem alegado na PI, no que respeita às autoliquidações atacadas por via da revisão oficiosa, todas realizadas após 30 de março de 2016, data que marca o fim da ficção legal consagrada no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, inexiste qualquer erro imputável aos serviços, uma vez que a AT não teve qualquer intervenção nas liquidações de imposto realizadas pelo Requerente de acordo com o quadro legal vigente, apesar do mesmo vir defender o contrário.
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Assim sendo, quanto às autoliquidações de Imposto do Selo atacadas por via da revisão oficiosa, inexiste imputabilidade do erro aos serviços.
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Tratando-se de um “erro imputável” ao sujeito passivo, a administração fiscal só teria o poder/dever de promover a sua revisão se o Requerente tivesse tomado a iniciativa nesse sentido no prazo da reclamação administrativa.
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Pelo que, ultrapassado o aludido prazo, a AT está desobrigada de promover a revisão oficiosa da autoliquidação a favor do contribuinte.
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Por conseguinte, tendo os atos de autoliquidação do Imposto do Selo ocorrido após a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, a decisão da revisão oficiosa n.º ...2023..., não podia ser outra que não aquela que comportou o indeferimento do pedido formulado naqueles autos, por se encontrar esgotado o prazo vertido no artigo 78.º da LGT para o efeito.
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O recurso à garantia impugnatória do pedido de revisão interposto ultrapassados os prazos legais disponibilizados aos interessados, terá, necessariamente, de produzir efeitos na garantia contenciosa, in casu na ação judicial, que se lhe segue, conduzindo à sua improcedência ex vi do caso decidido ou resolvido e, por conseguinte, à inimpugnabilidade do ato por o mesmo já estar assente na ordem jurídica, não podendo pois o Interessado fazer valer a sua pretensão, mesmo que judicialmente, para reagir contra o pedido de revisão intempestivo que deduziu dado que tal acto já se encontra legalmente estabilizado em virtude da antecedente inércia do aqui Requerente.
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O recurso à via judicial para impugnar a decisão em causa é, igualmente, intempestivo em virtude da falta do uso atempado do pedido de revisão, i.e. o direito de impugnar a decisão ora sindicada é, também ele, intempestivo, uma vez que a tempestividade deste depende da tempestividade do pedido de revisão que lhe está subjacente.
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Assim, tendo o presente pedido sido deduzido em consequência do indeferimento do pedido de revisão apresentado pelo Requerente, e sendo tal apresentação intempestiva, necessariamente se verifica a improcedência do pedido por força do caso decidido ou resolvido e consequentemente a exceção dilatória da inimpugnabilidade do acto prevista na alínea i) do n.º 1 do art.º 89º do CPTA, exceção essa que obsta ao prosseguimento do processo e determina a absolvição da instância da Entidade Demandada, nos termos do disposto nos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) e e) do RJAT.
Cumpre apreciar a exceção suscitada pela Requerida, o que se passa seguidamente a fazer.
Não tem este Tribunal dúvidas da aplicabilidade do artigo 78.º, n.º 1 da LGT a atos de autoliquidação, apesar da revogação do n.º 2 deste preceito, que estabelecia a presunção de “erro imputável aos serviços” para essas situações [de autoliquidação]. Este entendimento deriva da equiparação entre a autoliquidação, em que o contribuinte atua no lugar dos serviços da AT, e a liquidação administrativa.
Como assinala PAULO MARQUES[1], na autoliquidação a lei institui “uma delegação dos poderes administrativos tributários nos próprios contribuintes e a forçosa consideração do seu exercício como um verdadeiro acto tributário, credor da presunção legal da verdade declarativa a favor do contribuinte (artigo 75.º, n.º 1, da LGT). A escolha sobre a forma concreta de liquidação de imposto depende assim da vontade do Estado-legislador. Pelo que lançando mão de uma justificada e pertinente interpretação sistemática, em conformidade com o princípio da coerência e unidade do sistema jurídico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), podemos concluir que o contribuinte não está impedido de deduzir o pedido de revisão do acto tributário (artigo 78.º, da LGT) em relação à autoliquidação, apesar de já não beneficiar actualmente da ficção legal de «erro imputável aos serviços».
Ou, dito de outro modo, pela eliminação do n.º 2, do artigo 78.º, da LGT, não nos parece arredada a autoliquidação do objecto do procedimento de revisão.
A revogação do mencionado preceito legal apenas colocou termo, expressamente, à determinação legal que considerava imputável aos serviços o erro na autoliquidação, para efeitos de revisão oficiosa, introduzindo-se agora uma maior paridade entre o contribuinte e o fisco. Mas nada nos leva a entender que deva existir um desequilíbrio garantístico entre a liquidação efectuada pelo próprio contribuinte e a liquidação administrativa. Ambas poderão assim ser sindicadas mediante a revisão do acto tributário (artigo 78.º, da LGT) […]”.
Recentemente, e de forma clara, o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 9 de novembro de 2022, proferido no processo n.º 087/22.5BEAVR, pronunciou-se favoravelmente à qualificação de “erro imputável aos serviços” em relação a uma questão respeitante a atos de retenção de imposto do selo, com inegável paralelismo, porquanto respeita a atos não praticados diretamente pela própria AT, mas pelos operadores económicos, de que se transcreve o seguinte excerto ilustrativo:
“[…] colhem de pleno os argumentos da recorrente no sentido de que, tendo sido o IS liquidado e cobrado pelas instituições financeiras, em substituição da AT tal como lhe é perpetrado pela lei (artigo 2.º do Código do IS), o erro de direito tem de ser imputado precisamente “aos serviços” como antedito, pelo que os PROAT [pedidos de revisão oficiosa dos atos tributários] apresentados no prazo de quatro anos, nos termos da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, devem ter-se como apresentados tempestivamente e está a AT obrigada a tomar conhecimento do mérito dos pedidos feitos na revisão oficiosa, com os efeitos próprios desta, limitados à cessação dos efeitos do acto.”.
Não sendo a ilegalidade alegada imputável ao sujeito passivo, nem tendo o mesmo contribuído para a mesma, não pode deixar de ser atribuída à Administração, como já declarado em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13 de março de 2002, no processo n.º 026765:
“A obediência que a Administração deve à lei (vejam-se os artigos 266.º n.º 1 da Constituição e 55.º da LGT) abrange a de todos os graus hierárquicos, e a de todas as origens, não excluindo, nem a lei constitucional, nem a comunitária, não podendo considerar-se legal o acto que aplica lei ordinária que afronte princípios constitucionais ou normas de direito comunitário cuja observância se imponha ao Estado Português.
Como assim, o facto de a liquidação ter obedecido às disposições legais […] não exclui a existência de erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado na aplicação de lei que não podia ser empregue, por contrária a normas de direito comunitário que vinculam o Estado Português.
Daí que os serviços da Administração tenham incorrido em erro, que apenas a eles é imputável, pois não se mostra ter sido o contribuinte a dar-lhe azo, propiciando informação que haja induzido o erro, o qual foi reconhecido pela sentença recorrida, por isso que anulou a liquidação por ele viciada.
Esta falta, demonstrada que fica com a procedência da impugnação, não deixa de ser imputável aos serviços pela eventual falta de culpa de qualquer dos seus agentes.”
Importa também referir que, conforme salienta a Requerente, existem orientações genéricas da AT devidamente publicadas no sentido da tributação em Imposto do Selo, como o Despacho n.º 1614/2010, de 10 de janeiro de 2012, ou a Ficha Doutrinária n.º 2020000532-IV n.º 17783, de 30 de agosto de 2020, não lhe podendo ser imputado um comportamento negligente.
Em síntese, sendo alegado no pedido de revisão oficiosa o erro na liquidação, por violação do direito da União Europeia (em concreto a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), o que interessa saber é apenas se a Requerente contribuiu para esse erro. O que não se verificou. Deste modo, reitera-se que o erro não pode deixar de ser imputável aos serviços da AT, pelo que a situação da Requerente é enquadrável no prazo de 4 anos estipulado na parte final do n.º 1 do artigo 78.º da LGT.
Considerando que as autoliquidações aqui em apreciação respeitam aos períodos de abril a dezembro de 2020 e janeiro de 2021 e que o pedido de revisão foi apresentado em 19 de maio de 2023 (cf. alínea Q) dos factos provados), importa concluir que não foi ultrapassado o referido prazo de 4 anos, tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado tempestivamente.
De igual modo, se verifica a tempestividade do pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 05-04-2024, dentro do prazo de 90 dias, previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado da notificação do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, remetido por via eletrónica, em 23-12-2023 (cf. alínea S) dos factos provados), que se considera efetuada no décimo quinto dia posterior ao registo de disponibilização (em 07-01-2024), de acordo com o previsto no artigo 39.º, n.º 10 do CPPT.
Em face do exposto, impõe-se concluir pela tempestividade, quer do pedido de revisão oficiosa, quer do pedido de pronúncia arbitral, pelo que improcede a exceção invocada pela Requerida.
3.2.2. Posição das partes
O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado na sequência do indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., deduzido contra os atos de liquidação de Imposto do Selo referentes aos meses de abril a dezembro de 2020 e janeiro de 2021, efetuadas através das Declarações de Retenções na Fonte de Imposto de Selo n.ºs..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e da Declaração Mensal de Imposto do Selo n.º..., no montante total de € 15,030.49.
3.2.2.1.Posição da Requerente
A Requerente, relativamente ao mérito do pedido alega que desde a entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2020 (“Lei OE 2020”), em 1 de abril de 2020, estão isentos, ao abrigo da alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, os empréstimos e respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo, condições que considera verificarem-se na operação de financiamento implementada ao nível do Grupo B... (“Grupo B...”), do qual faz parte.
Todavia, aquela isenção aparentava permanecer, ainda assim, limitada pelo n.º 2 do mencionado artigo 7.º do CIS [inalterado pela referida Lei OE 2020], nos termos do qual, à data dos factos, tal isenção seria afastada “(…) quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”. Ou seja, afigurava-se que a isenção dependia de o credor (no caso a Requerente, por estar em causa um saldo positivo) ter sede ou direção efetiva num Estado-Membro da União Europeia que não Portugal. Tendo a Requerente sede e residência fiscal em Portugal suscitavam-se dúvidas sobre a aplicação desta isenção às operações de cash-pooling vertentes.
No entanto, a Lei do Orçamento de Estado para 2022 (“Lei OE 2022”), a qual entrou em vigor a 28 de junho de 2022, veio clarificar a redação do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, passando este preceito legal a dispor expressamente que a citada isenção seria inaplicável “(…) quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor ou o devedor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional”.
Neste sentido, passou a ficar claro que a exclusão à limitação prevista para as isenções aplicáveis a empréstimos destinados à cobertura de carências de tesouraria e cash-pooling, nos casos em que qualquer um dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva em território português, é também aplicável aos casos em que o devedor (e não apenas o credor) tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital, acordada com Portugal.
As dúvidas que resultavam da redação anterior do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, à qual se reportam os factos dos autos, foram esclarecidas pela jurisprudência que, de forma consistente, decidiu que a não aplicação da isenção em apreço, quando os devedores eram de fora de Portugal, mas de outro Estado-Membro da União Europeia, que resultava do texto legal, era discriminatória e violava o direito europeu – cf. neste sentido a decisão arbitral proferida no âmbito do processo nº 277/2020-T, de 6 de outubro de 2020, suportada na jurisprudência do Tribunal de Justiça (acórdãos de 14 de novembro de 1999, processo C-439/97, Sandoz GmbH, e de 22 de novembro de 2018, processo C-575/17, Sofina S.A.). No mesmo sentido também se pronunciam as decisões arbitrais 57/2021-T, de 6 de outubro de 2021, 818/2021-T, de 18 de maio de 2022, e 59/2022-T, de 30 de outubro de 2022.
Uma vez que as autoliquidações de Imposto do Selo em análise enfermam de erro de direito e assentam em entendimentos veiculados pela própria AT, contrários ao direito da União Europeia, as mesmas configuram “erro imputável aos serviços”. Efetivamente, apesar de [as liquidações] terem sido efetuadas com base na declaração do contribuinte, este adotou as orientações genéricas da AT devidamente publicadas (v. artigo 43.º, n.º 2 da LGT e, a título de exemplo, o Despacho n.º 1614/2010, de 10 de janeiro de 2012, ou a Ficha Doutrinária n.º 2020000532-IV n.º 17783, de 30 de agosto de 2020), não lhe sendo, portanto, imputável uma conduta negligente.
Defende ainda a Requerente que:
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O conceito de erro abrange a violação do direito da União Europeia, pelo que a AT tem o dever de proceder à interpretação e aplicação das normas internas em conformidade com o direito da União, não o tendo feito.
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Constatando-se o pressuposto de erro imputável aos serviços, o pedido de revisão oficiosa constitui meio próprio, tendo sido deduzido tempestivamente, dentro do prazo de 4 anos fixado pelo artigo 78.º, n.º 1, II parte da LGT.
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Ainda que assim não se entendesse sempre seria aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT, com a possibilidade de revisão excecional nos 3 anos posteriores ao do ato tributário, com fundamento em injustiça grave ou notória.
Sustenta também a Requerente que não se verifica a incidência territorial de Imposto do Selo, uma vez que:
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Nas operações de crédito, o facto tributário que predetermina a incidência do Imposto do Selo é a efetiva utilização do crédito por parte do beneficiário/utilizador do crédito, o qual, nos termos da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º do Código do Imposto do Selo, corresponde ao titular do interesse económico correspondente (neste caso, a C...).
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Por força do artigo 4.º do Código do Imposto do Selo, que versa sobre a incidência territorial deste Imposto, a sujeição depende da conexão que a situação apresente com o território português, sendo esta conexão determinada pelo local onde se verifica a utilização do crédito.
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Estando em causa a concessão de crédito no quadro de uma relação de cash pooling, apenas deve ser tributada a utilização de fundos consumada em território nacional, o que não se verifica no caso em apreço, na medida em que a Requerente, se encontra sempre numa posição credora, concedendo crédito à C..., entidade do Grupo residente fiscal na Holanda centralizadora do cash pooling.
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Considerando que a receção e utilização dos fundos ocorreu integralmente fora de Portugal (centralizado na Holanda e depois utilizado nas diversas jurisdições onde as sociedades do Grupo abrangidas pelo referido contrato de cash pooling se encontram sediadas), entende a Requerente que não se mostra preenchido um dos requisitos base para a sujeição a Imposto do Selo, por falta de conexão com o território nacional.
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Adicionalmente, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, da LGT, vem referido que “(s)em prejuízo de convenções internacionais de que Portugal seja parte e salvo disposição legal em sentido contrário, as normas tributárias aplicam-se aos factos que ocorram no território nacional”.
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No âmbito do Imposto do Selo, verifica-se que o legislador, em matéria de operações financeiras, não cingiu a construção do respetivo facto tributário à celebração dos contratos em território português. O que deverá relevar para a constituição do respetivo facto tributário, em relação às operações financeiras, é a utilização do crédito.
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Contudo, sabe a Requerente que não tem sido esta a posição assumida pela AT quanto a esta matéria, que tendencialmente alarga o âmbito de incidência territorial nas operações de crédito, atraindo para Portugal a tributação de factos que, provadamente, ocorrem fora do território nacional – como no caso em contenda.
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De facto, em muitas situações em que a AT já se pronunciou, este alargamento do âmbito incidência é justificado por se considerar que a concessão, e não a utilização do crédito, ocorrerem em território nacional – desvirtuando desse modo aquele que deverá ser o facto gerador de Imposto do Selo (e.g., a utilização do crédito).
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Uma vez mais, pese embora no caso em concreto se possa entender que a concessão do contrato ocorra em território nacional, o que justamente se constata é que a utilização dos créditos que estão na origem das autoliquidações de Imposto do Selo cujo reembolso se requer, ocorreram integralmente fora do território português.
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Face às regras de territorialidade que condicionam a sujeição a Imposto do Selo, é legítimo afirmar que a tributação nesta sede estará sempre dependente do grau de conexão que a situação apresenta com o território português, sendo esta conexão aferida, in casu, em função do local em que se verifica a utilização do crédito, e não a sua concessão.
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De facto, os fundos são apenas apropriados e utilizados pela C... fora de Portugal, pelo que o crédito ou mútuo apenas se consumou fora do território nacional e, como tal, fora do âmbito de incidência territorial previsto no referido artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo.
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Face ao exposto, considera a Requerente que não se verificando os pressupostos de incidência de Imposto do Selo por força da aplicação da regra da territorialidade, em virtude de a utilização do crédito não ocorrer em território nacional, forçoso será concluir que as operações de concessão de crédito em apreço não estão, desde logo, sujeitas a Imposto do Selo, pelo que as liquidações em apreço (que a Requerente, nos moldes acima referidos, fez por prudência, atenta a posição conhecida da AT quanto a esta matéria), devem ser, sem mais, anuladas, o que se requer.
A Requerente peticiona ainda juros indemnizatórios, de acordo com o estabelecido nos artigos 24.º, n.º 5 do RJAT, 43.º da LGT e 61.º, n.º 1 alínea a) do CPPT.
3.2.2.2.Posição da Requerida
A Requerida, pugna pela improcedência e consequente absolvição de todos os pedidos, tendo em sede de defesa por exceção sustentado que o pedido de revisão oficiosa foi indeferido por não ser aplicável ao caso em apreço o disposto no artigo 78.º, n.º 1, 2ª parte da LGT e o prazo de 4 anos aí previsto, dado que, a existir erro, o mesmo nunca seria imputável aos serviços, pois estes não tiveram intervenção nas autoliquidações de Imposto do Selo impugnadas.
Defende assim que o pedido de revisão oficiosa apenas poderia ter suporte na 1ª parte do referido preceito, dentro do prazo da reclamação graciosa, o qual estava ultrapassado à data em que o direito foi exercido.
Considera a Requerida que da intempestividade do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente e apenas tendo o órgão decisor feito a necessária apreciação da existência ou não de “um qualquer erro imputável aos serviços” nos termos do disposto no artigo 78.º da LGT, que pudesse “ser invocado como fundamento do pedido de revisão oficiosa”, resulta a determinação da necessária intempestividade do presente pedido de constituição do tribunal arbitral.
Concluí a Requerida que tendo o presente pedido sido deduzido em consequência do indeferimento do pedido de revisão apresentado pelo Requerente, e sendo tal apresentação intempestiva, necessariamente se verifica a improcedência do pedido por força do caso decidido ou resolvido e consequentemente a exceção dilatória da inimpugnabilidade do acto prevista na alínea i) do n.º 1 do art.º 89º do CPTA, exceção essa que obsta ao prosseguimento do processo e determina a sua absolvição da instância.
Caso assim não se entenda, sustenta ainda a Requerida, que nem por isso as liquidações contestadas deixam de ser legais, atendendo a que:
No que respeita à questão da incidência territorial do imposto:
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Os empréstimos em causa foram concedidos em Portugal, apesar do destinatário dos mesmos ter residência fora deste território, pelo que de acordo com o entendimento aceite pela jurisprudência e doutrina, todos os créditos concedidos em Portugal no âmbito de operações de tesouraria derivadas do sistema cash pooling são abrangidos pelas normas de territorialidade do Código de Imposto do Selo, ou seja, para determinar o âmbito territorial de incidência do IS, também releva o local em que é concedido o crédito e não apenas, como defende a Requerente, o local onde esse crédito é utilizado. Competia assim à Requerente, enquanto entidade concedente do crédito e sujeito passivo do imposto, liquidar, cobrar e entregar nos cofres do Estado o imposto repercutido C... B.V. (“C...”)., conforme decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º, da alínea f) do n.º 3 do artigo 3.º, da alínea g) do artigo 5.º, do n.º 1 do artigo 9.º, do n.º 1 do artigo 22.º, do n.º 1 do artigo 23.º, dos artigos 41.º e 43.º e do n.º 1 do artigo 44.º, todos do CIS.
No que respeita à questão da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7º do CIS:
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Da análise à documentação apresentada pela Requerente não é possível concluir com suficiente grau de certeza que os requisitos enunciados na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS se encontram preenchidos, porquanto não ficou demonstrado que as operações financeiras em causa têm por base excedentes de liquidez do grupo ou se decorrem de linha de crédito junto de instituições financeiras, ou sequer que os fluxos financeiros cumpriram os prazos previstos na norma de isenção.
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A existência do contrato - “Intercompany Cashpool Agreement” – deve ser visto como o indício de uma realidade, mas ele não é mais do que uma mera forma jurídica que, como é óbvio, pode ter ou não ter adesão na realidade.
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A Requerente não demonstra - tal como lhe competia, nos termos do n.º 1 do art.º 74.º da LGT – que os saldos apenas se mantêm inalterados foram concedidos por um durante o período de tempo inferior ao prazo de um ano indicado na norma como requisito para aproveitamento da isenção, nem pela natureza do crédito – conta-corrente – se pode dar como determinável o prazo de cada crédito, nem o contrato teve duração inferior a um ano, o que torna virtualmente impossível dar como provada a verificação desse pressuposto da isenção neste crédito.
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Incumbe à Requerente, nos termos das regras do ónus da prova, demonstrar a existência dos pressupostos que alega como fundamento do seu direito à isenção de Imposto do Selo, demonstração que não conseguiu fazer.
Quanto aos juros reclamados entende a Requerida que não se verificando, nos presentes autos, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à Requerente qualquer indemnização, nos termos do disposto no art.º 43.º da LGT. No entanto, a serem devidos juros indemnizatórios, estes apenas seriam devidos a partir do prazo de um ano após o pedido de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, em consonância com a lógica da alínea c) do n.º 3 art.º 43.º da LGT.
3.2.3. Questões a decidir
Considerando a factualidade exposta, bem como os fundamentos aduzidos na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e, ainda, as pretensões e posições assumidas quer pela Requerente quer pela Requerida nas suas peças processuais, cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar as seguintes questões:
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Da (falta) de incidência territorial do Imposto do Selo da verba 17.1.4, no caso de utilização de crédito ocorrida fora do território nacional;
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Se, em caso de sujeição a Imposto do Selo da aludida utilização de crédito, os empréstimos concedidos pela Requerente à C... B.V. (“C...”), beneficiam da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código de Imposto do Selo (“CIS”);
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Se a Requerente, a serem ilegais as autoliquidações ora postas em crise, tem direito aos juros indemnizatórios peticionados.
3.2.4. Apreciação das questões
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Da incidência territorial do Imposto do Selo da verba 17.1.4, no caso de utilização de crédito ocorrida fora do território nacional
O artigo 1.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo dispõe que este imposto “incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.
Nos termos do artigo 4.º, n.º 1 do mesmo diploma, todos os factos mencionados no artigo 1.º são sujeitos a Imposto do Selo quando tenham ocorrido em território nacional.
A verba 17.1.4 da Tabela Geral do Imposto do Selo estabelece que incide Imposto do Selo sobre «crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30».
Importa, pois, saber se as operações de crédito subjacentes às autoliquidações aqui em análise ocorreram, ou não, em território nacional. Sendo a resposta negativa, exclui-se a incidência do imposto. Se for afirmativa, é de aplicar a verba 17 da TGIS respeitante às operações financeiras, cuja tributação pode ser eventualmente neutralizada pela aplicação de um regime de isenção (v. artigo 7.º do Código do Imposto do Selo).
Na tese da Requerente, as transferências de fundos por si efetuadas, ao abrigo do contrato de cash-pooling, em benefício da sociedade contraparte “C...”, não são abrangidas pelo âmbito de incidência territorial do Imposto do Selo, por entender que, estando em causa operações de concessão de crédito previstas na verba 17.1.4 da TGIS, o facto tributário corresponde à efetiva utilização do crédito por parte do beneficiário, titular do interesse económico, sobre quem recai o encargo do imposto, como determinado pelo artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do Código do Imposto do Selo.
Encontrando-se este beneficiário localizado fora do território nacional (na Holanda), conclui que não se verifica o critério de conexão relevante de que depende a localização da operação financeira em Portugal (v. artigo 4.º, n.º 1 do Código do Imposto do Selo), pois esta é determinada pelo local onde se verifica a utilização do crédito, ou seja, na Holanda, país de residência da “C...”, onde ocorreu a receção e utilização dos fundos.
O Supremo Tribunal Administrativo proferiu, em 28-11-2018, decisão no processo n.º 06/11.4BESNT 0436/16, em que apreciou, entre outras, a questão de saber se o crédito sob a forma de conta corrente, concedido por uma entidade com sede em território português a uma entidade com sede noutro Estado, no qual se procederá à utilização do crédito, é sujeita a IS em Portugal ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.º 1, do CIS.
O Supremo Tribunal Administrativo decidiu o seguinte:
“Com esta verba do IS pretende-se tributar as transferências de saldos entre a impugnante, enquanto empresa nacional, e a entidade centralizadora, sedeada na Suécia, devendo tais transferências de saldos ser qualificadas como financiamentos concedidos também para efeitos do disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS. Portanto, no caso concreto, incumbiria à impugnante a liquidação do imposto de selo, na qualidade de concedente do crédito, que seguidamente o deveria debitar à A’………… não residente.
E tais transferências de saldos, tanto são tributadas quando ocorrem entre empresas nacionais, entre empresas de estados-membros ou até entre empresas de estados-membros e de países terceiros, aplicando-se sempre as normas constantes dos artigos 1º. n º 1, 2º, b), 3º, n.º 1, f), 4º, n.º 1, 23º, n.º 1, 41º e 44º, todos do CIS.
Nesta medida, não se vislumbra que sejam ofendidas as normas do artigo 63º do TFUE e 40º do Acordo EEE, que consagram a livre circulação de capitais, uma vez que estas normas relativas ao IS são aplicadas indistintamente a todas as operações económicas legalmente previstas, sem discriminação em função da nacionalidade ou do território, quando duas empresas operem nas mesmas condições e sujeitas aos mesmos acordos que a impugnante e a A’………., em sentido coincidente, onde se decidiu que o direito da União era ofendido por haver um tratamento diferente em razão do território, pode ver-se o acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-439/97.
Efectivamente a operação de transferência de capitais realizada entre a impugnante e a dita A’…………, e ao contrário do que defende a impugnante, tem que ser necessariamente subsumida ao disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS e respectiva verba 17.1.4 da TGIS, desde logo porque tem que ser qualificada como uma operação de crédito com contrapartida, isto é, remunerada por via do pagamento dos juros calculados a uma taxa acordada entre as partes e durante o período de tempo de duração da cedência do capital. E sempre que haja a utilização desse mesmo capital por parte da A’………..–crédito utilizado- ocorre a possibilidade de tributação ao abrigo das normas respeitantes ao CIS e à TGIS atrás indicadas”.
Tal como foi decidido no âmbito do processo arbitral nº 780/2024-T, em 08-10-2024, a que se adere e cujo teor a seguir se transcreve:
À luz deste acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, deverá entender-se que, embora para efeitos do CIS o titular do interesse económico, sobre quem recai o encargo do Imposto do Selo, seja o utilizador do crédito [nos termos do artigo 3.º, n.º 3, alínea f), do CIS], o facto tributário é a concessão de crédito, o que decorre do próprio texto desta alínea f) ao referir que se considera titular do interesse económico «na concessão do crédito, o utilizador do crédito» (e não «na utilização do crédito, o utilizador do crédito», como seria adequado se o facto tributário fosse a utilização).
No mesmo sentido de o facto tributário ser a concessão do crédito aponta a globalidade do regime legal, ao considerar sujeito passivo quem concede o crédito [de harmonia com o disposto no artigo 2.º, n.º 1 alínea b), do mesmo Código], incumbi-lo da liquidação do imposto «devido por operações de crédito» (nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 23.º do mesmo Código) e impondo-lhe a obrigação de efectuar o seu pagamento (artigo 41.º do CIS).
Haverá que ter presente, ao nível do imposto do selo, quem é o sujeito passivo de direito (artigo 2º do CIS – a entidade que tem a obrigação de liquidar, cobrar e entregar o imposto ao Estado) e quem é o sujeito passivo de facto (artigo 1º e artigo 3º do CIS – a entidade que é a titular do interesse económico, quem suporta efetivamente o encargo do imposto). Ou seja, em regra, o sujeito passivo de direito procede à liquidação do imposto e repercute-o (efectua a sua cobrança) perante o sujeito passivo de facto que é o titular do interesse económico no facto tributário sujeito a imposto do selo e depois de cobrado, procede à sua entrega ao Estado.
O facto de apenas haver lugar a tributação quando o crédito concedido for utilizado, que resulta da verba 17.1 da TGIS, não obsta ao entendimento, que estará subjacente ao referido acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de que as «operações financeiras» que se pretendem tributar são as de concessão de crédito que apenas se consideram concretizadas no momento em que o crédito concedido é utilizado.
Isto é, o facto tributário é constituído pela «utilização de crédito (...) em virtude da concessão de crédito», a que se refere a verbas 17.1., subjacente à verba 17.1.4. A concessão de crédito é a «operação financeira» que se pretende tributar. Ou, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, «o imposto incide sobre a utilização do crédito em resultado de uma operação de concessão de crédito», sendo esta operação a «operação financeira» que é objecto de incidência no âmbito de todas as situações previstas na verba 17. da TGIS.
Aliás, é também esse o entendimento adoptado no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14-03-2018, proferido no processo n.º 0800/17, citado pelo Requerente no artigo 108.º do pedido de pronúncia arbitral, como se vê pelo respectivo sumário:
“I - A concessão de crédito está sujeita a imposto do selo, qualquer que seja a natureza e forma, relevando, contudo, para o efeito a efectiva utilização do crédito concedido.
II - O facto tributário eleito para tributação em imposto de selo é, sempre, a concessão de crédito - prestação de valores monetários de uma parte a outra obrigando-se esta última a restituir aquele montante (em singelo ou acrescido de valor convencionado), no futuro.
III - A mera celebração do contrato de concessão de crédito nem sempre gera facto tributário do imposto. Quando a utilização do crédito for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que coincide com a data de celebração do contrato de concessão de crédito.
IV - Quando a utilização do crédito não for imediata, o facto tributário emerge na data de utilização que não coincide com a data de celebração do contrato concessão de crédito”.
Sendo assim, a conexão relevante para aferir a incidência territorial do Imposto do Selo é o local da concessão do crédito, que determina o dever de liquidar do concedente.
É certo que a solução da questão não será pacífica, como se vê pela decisão arbitral de 06-11-2019, proferida no processo n.º 61/2019-T.
Mas, estando-se, tanto no caso do acórdão proferido no processo 06/11.4BESNT 0436/16, como no proferido no processo 0800/17, perante decisões do Supremo Tribunal Administrativo, proferidas por unanimidade, sobre uma questão idêntica à que se coloca neste processo, afigura-se, que um Tribunal que julga em 1ª instância, como é este Tribunal Arbitral, deverá aderir a essa jurisprudência, pelos fundamentos invocados, que têm suporte legal nas normas invocadas.”
Nestes termos, e aplicando o entendimento acabado de citar ao qual se adere, que é de resto também coincidente com o sentido da decisão proferida em 03-09-204 no processo arbitral nº853/2023-T, cujo coletivo a aqui signatária integrou, e ainda com o decidido no âmbito dos processos n.ºs 277/2020-T, de 6 de outubro de 2020, 279/2020-T e 57/2021-T, dá-se por verificado o elemento de conexão territorial com Portugal, considerando-se realizadas em território português as operações financeiras relativas à modalidade de cash pooling em causa (colocação de excedentes de tesouraria), aplicando-se a verba 17.1.4, respeitante a “Crédito utilizado sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou qualquer outra forma em que o prazo de utilização não seja determinado ou determinável, sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30”, a que corresponde a taxa de 0,04%.
Improcede, assim, o primeiro vício que a Requerente imputa às liquidações impugnadas.
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Da aplicação da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código de Imposto do Selo
A Requerente defende que mesmo que se entenda existir conexão territorial, sempre seria aplicável, ao seu caso em concreto, a isenção de imposto do selo prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea h) do CIS, na redação introduzida pela Lei OE 2020.
Vejamos se lhe assiste razão.
O artigo 7.º do CIS estabelece o seguinte, na redacção resultante da Lei n.º 2/2020, de 31 de Março, no aqui interessa:
“Artigo 7.º Outras isenções
1 - São também isentos do imposto:
(...)
h) Os empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo; (redacção introduzida pela Lei n.º 2/2020, de 31 de Março)
2 - O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direcção efectiva no território nacional, com excepção das situações em que o credor tenha sede ou direcção efectiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional.
Com a Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho, o n.º 2 do artigo 7.º do CIS, passou a ter a seguinte redacção:
“2 - O disposto nas alíneas g) e h) do n.º 1 não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, com exceção das situações em que o credor ou o devedor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal, caso em que subsiste o direito à isenção, salvo se o credor tiver previamente realizado os financiamentos previstos nas alíneas g) e h) do n.º 1 através de operações realizadas com instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no estrangeiro ou com filiais ou sucursais no estrangeiro de instituições de crédito ou sociedades financeiras sediadas no território nacional.”
Na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS prevê-se a isenção de Imposto do Selo para “os empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”.
Da matéria de facto que resultou provada, conclui-se que a situação da Requerente se enquadra na previsão desta norma, encontrando-se preenchidos todos os requisitos da norma de isenção da alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, atendendo a que:
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As transferências de fundos da Requerente para a C... configuram uma concessão de crédito (depósito de IC cashpool), com vencimento de juros a favor da primeira, nos termos do contrato de cash pooling (“Intercompany Cashpool Agreement”), celebrado no seio do grupo B..., a que a Requerente pertence, para a gestão centralizada de tesouraria. Tratando-se de operação de transferência de capitais por cash pooling, é subsumível ao disposto no artigo 4.º, n.º 1, do Código do Imposto do Selo e respetiva verba 17.1.4 da TGIS, devendo ser qualificada como uma operação de concessão de crédito (cf. Alíneas E), F), G), H, I) e J) dos factos provados).
-
Os empréstimos concedidos pela Requerente à C... nos períodos em causa foram reembolsados nos meses seguintes, sempre antes de decorrido o prazo de um ano (cf. Alínea N) dos factos provados).
-
Ambas as entidades são detidas em mais de 75% pela D..., B.V., e, em última instância, todas são detidas pela sociedade beneficiária efetiva do Grupo B..., B... (USA), encontrando-se em relação de domínio ou de Grupo (cf. Alíneas C) e D) dos factos provados).
Considera assim o Tribunal que a Requerente fez prova:
-
Do contrato de gestão centralizada de tesouraria e das condições nele estabelecidas;
-
Da relação societária de domínio ou de grupo entre a Requerente e a C..., esta última na sua qualidade de sociedade centralizadora do contrato de gestão de tesouraria, nos termos do previsto no artigo 7.º, n.º 8 do Código do Imposto do Selo;
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De não ter sido ultrapassado o prazo máximo de um ano entre a transferência dos fundos e o seu reembolso; e
-
De os fundos não terem sido originados por via de financiamento através de instituições de crédito ou sociedades financeiras, resultando antes dos excedentes de liquidez da sua atividade.
O enquadramento objetivo das operações de cash pooling da Requerente na citada alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo afigura-se assim inequívoco.
A questão é que o âmbito de aplicação desta isenção, quando algum dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional, como sucede com a C..., está restrito aos casos em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia[2] (que não Portugal).
Ora a Requerente tem sede e direção efetiva em Portugal, pelo que não cumpre a condição (subjetiva) desta isenção.
Importa assim concluir que, resulta da redacção do artigo 7.º do CIS vigente após a Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho, que é aplicável a isenção de Imposto do Selo, mas, à face da redacção anterior, era afastada a isenção.
Assim, e quanto às operações anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho, e tal como salienta a decisão arbitral do processo n.º 277/2020 (e também no mesmo sentido as decisões proferidas nos processos arbitrais n.ºs 59/2022-T, de 30 de outubro de 2022, 57/2021-T, de 6 de outubro de 2021, e 818/2021-T, de 18 de maio de 20229, só por imposição de normas de hierarquia superior poderá este regime ser afastado, o que é propugnado pela Requerente, ao considerar tal regime incompatível com o Direito da União Europeia.
Analisemos então a questão da (in)compatibilidade do regime do artigo 7.º do CIS com o Direito da União Europeia, começando por fazer o enquadramento legal da questão e o levantamento das normas jurídicas aplicáveis.
O artigo 8.º, n.º 4, da CRP estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Desta norma decorre o primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Interno, quando não está em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
Como é entendimento pacífico na jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões de Direito da União Europeia.
Os artigos 63.º e 65.º do TJUE estabelecem o seguinte:
CAPÍTULO 4
OS CAPITAIS E OS PAGAMENTOS
Artigo 63.º
1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.
Artigo 65.º
1. O disposto no artigo 63º não prejudica o direito de os Estados-Membros:
a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;
b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.
2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.
3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.
Os empréstimos de curto prazo são movimentos de capitais, como resulta da Directiva n.º 88/361/CEE, do Conselho de 24-06-1988, o que não é objecto de controvérsia.
Feito o enquadramento legal, passemos então à apreciação da questão.
A questão em apreço, foi já objecto de ampla apreciação pelos Tribunais Arbitrais, designadamente nos acórdãos proferidos em 6 de Outubro de 2020, no âmbito do processo n.º 277/2020-T, em 28 de Fevereiro de 2021, no âmbito do no processo n.º 749/2019-T, em 18 de Abril de 2021, no âmbito do processo n.º 171/2020-T, em 6 de Outubro de 2021, no âmbito do processo n.º 57/2021-T, em 18 de Maio de 2022, no âmbito do processo n.º 818/2021-T em 30 de Outubro de 2022, no âmbito do processo n.º 59/2022-T e mais recentemente no âmbito do processo n.º 853/2023-T, cujo coletivo a signatária integrou. Tal como é referido na decisão proferida neste último processo, cujo teor subscrevemos e acompanhamos e tem plena aplicação ao caso em apreço:
“4. 3.2. DISCRIMINAÇÃO COM BASE NA RESIDÊNCIA. VIOLAÇÃO DO DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA – JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA C-420/23
Atento o supra exposto, a última questão a que há que dar resposta, prende-se com saber se ocorre a violação do princípio da não discriminação ínsito na liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE. Esta liberdade fundamental é considerada clara e incondicional e imediatamente aplicável (processo C-163/94, Sanz de Lera, com acórdão de 14 de dezembro de 1995).
O problema suscita-se na medida em que os empréstimos de curto prazo, como os concedidos no âmbito do cash pooling vertente, constituem movimentos de capitais à luz do Diretiva 88/361/CEE, do Conselho de 24 de junho de 1988 (v. processos C-282/12, Itelcar, de 3 de outubro de 2013, e C-452/04, Fidium Finanz AG, de 3 de outubro de 2006, sobre concessão de crédito e liberdade de circulação de capitais).
A jurisprudência arbitral já se pronunciou sobre esta matéria, existindo decisões em sentidos opostos, nomeadamente a do processo n.º 277/2020-T11, que conclui pela discriminação em razão da nacionalidade/residência e pela consequente incompatibilidade com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, e a do processo n.º 279/2020-T que decide em sentido oposto[3].
Tratando-se de uma questão a avaliar com base no direito da União Europeia, o Supremo Tribunal Administrativo, em sede de recurso para uniformização de jurisprudência, suscitou o reenvio prejudicial, no âmbito do qual o Tribunal de Justiça se pronunciou em linha com a decisão do processo arbitral n.º 277/2020-T, no sentido da desconformidade da diferenciação entre a tributação em Imposto do Selo das operações de concessão de crédito cujo credor é residente em Portugal e o devedor não o é, das demais situações e que o credor é residente num outro Estado-Membro da União Europeia, que beneficiam de isenção daquele imposto – v. acórdão do Tribunal de Justiça proferido em 20 de junho de 2024, no processo C-420/2023, Faurécia.
Como assinala a decisão do processo arbitral n.º 277/2020-T, o regime diferenciador do artigo 7.º, n.º 2 do Código do Imposto do Selo, que restringe as isenções previstas nas alíneas g) e h) do seu n.º 1, priva os residentes de um Estado-Membro (no caso a C..., residente na Holanda) da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos em Portugal. Isto, quando não existe limitação similar no caso de o mutuário ser residente em território nacional, o que constitui uma restrição aos movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE, que só pode ser admitida nas situações previstas no artigo 65.º do Tratado, ou seja:
− em relação a “contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido” (v. n.º 1, alínea a)); ou
−“por razões de ordem pública ou de segurança pública” (v. n.º 1, alínea b))
Em síntese, para que a legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do TFUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento respeite a situações não comparáveis objetivamente, ou se justifique por uma razão imperativa de interesse geral – v. acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina, C-575/17 (ponto 46 e demais jurisprudência aí citada)(…).
Quanto ao facto de o sujeito passivo do imposto ser o concedente do crédito (a Requerente) e não o devedor, a C..., não afasta esta conclusão, pois, “embora não se esteja perante uma situação de substituição tributária em sentido próprio (que se efectua através de retenção na fonte do imposto liquidado pelo substituto, nos termos do artigo 20.º da LGT), está-se perante situação em que se admite (e legalmente se pretende) a repercussão económica do imposto em relação ao titular do interesse económico, que é o utilizador do crédito, que deve suportar o encargo do imposto, nos termos dos n.ºs 1 e 3 alínea f) do artigo 3.º do CIS. Aliás, no caso de não pagamento do imposto pelo sujeito passivo (credor), o imposto até poderá ser exigido directamente ao titular do interesse económico, designadamente nos casos de operações de cash pooling, como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 19-02-2020, proferido no processo n.º 2244/12.3BEPRT 0898/17.
Sobre a comparabilidade das situações, continuando a acompanhar a decisão do processo arbitral n.º 277/2020-T: “está-se perante um imposto de obrigação única, devido relativamente a cada acto de concessão de crédito, e os intervenientes num contrato de cash pooling encontram-se em situações idênticas, independentemente do local da sua residência ou do local onde o capital é investido, havendo mesmo possibilidade de frequentes inversões das posições de credor e devedor no âmbito do mesmo contrato, em função das disponibilidades e necessidades de tesouraria de cada um dos intervenientes.
Assim, tem de se concluir pela comparabilidade das situações entre residentes e não residentes, para efeitos da isenção em causa, em contratos do tipo do dos autos.
Neste contexto, a atribuição de uma vantagem fiscal aos devedores residentes em Portugal que é recusada aos devedores não residentes constitui, como defende a Requerente, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes, que é de qualificar como discriminação, na acepção do Tratado, por não existir qualquer diferença objectiva de situação susceptível de justificar tratamento diferenciado.
Assim, a alínea a) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 65.º do TFUE não permitem o regime consubstanciado nas referidas normas do CIS, pois a diferença de tratamento não é justificada por uma diferença de situação objetiva.”
(…)
Como acima se mencionou, a recentíssima decisão (de 20 de junho de 2024) do Tribunal de Justiça no processo Faurécia, C-420/23, veio consolidar a posição acima preconizada do caráter discriminatório da exclusão da isenção prevista no n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo nas situações, como aquela a apreciar nestes autos, em que as mesmas operações estão isentas quando nelas intervenham duas entidades estabelecidas no Estado-Membro [Portugal], mas deixam de o estar quando o mutuário se encontra estabelecido noutro Estado-Membro.
Para tanto, o Tribunal de Justiça apresenta os seguintes fundamentos:
“12 […] em princípio, a isenção do imposto do selo prevista no artigo 7.°, n.° 1, alínea g), do CIS é aplicável às operações financeiras em causa no processo principal. Contudo, o artigo 7.°, n.° 2, do CIS restringe o âmbito de aplicação daquela isenção, que não se aplica quando qualquer dos intervenientes não tenha sede ou direção efetiva no território nacional.
13 Embora o artigo 7.°, n.° 2, do CIS preveja uma exceção à exclusão da isenção, esta exceção só se aplica quando o credor tenha a sua sede ou direção efetiva noutro Estado-Membro da União Europeia ou num Estado com o qual a República Portuguesa tenha celebrado uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o património. Ora, no caso em apreço, o credor, a Faurécia, tem a sua sede em Portugal, pelo que esta sociedade não está abrangida pela referida exceção.
14 O órgão jurisdicional de reenvio acrescenta que, na sentença de 6 de outubro de 2020, o Tribunal Arbitral em Matéria Tributária (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) considerou que o artigo 7.°, n.° 2, do CIS constituía uma restrição à livre circulação de capitais, uma vez que os residentes dos outros Estados-Membros seriam privados da possibilidade de beneficiarem, no que respeita ao imposto do selo, da isenção aplicável aos mútuos contraídos em Portugal.
15 Em contrapartida, na sentença de 3 de novembro de 2020, o facto de, no processo em apreço, o sujeito passivo do imposto do selo ser o credor, a Faurécia, e não o devedor estabelecido em França, foi considerado determinante para chegar à conclusão inversa da sentença de 6 de outubro de 2020. Assim, na sentença de 3 de novembro de 2020, o Tribunal Arbitral em Matéria Tributária (Centro de Arbitragem Administrativa — CAAD) declarou que, no que respeita ao imposto do selo, os credores residentes em Portugal não são objeto de nenhum tratamento fiscal diferenciado em função da nacionalidade ou da residência dos seus mutuários.
16 Nestas condições, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«A norma constante do artigo 7.°, n.° 2, do [CIS], segundo a qual a isenção de Imposto de Selo prevista para as operações de tesouraria de curto prazo é aplicável quando nestas intervêm duas entidades residentes em Portugal ou quando o mutuário é aqui residente (sendo o credor residente na União Europeia) mas já não é aplicável quando o mutuário (devedor) é residente num Estado-Membro da União Europeia e o mutuante (credor) é residente em Portugal, é conforme aos princípios da não discriminação e da liberdade de circulação de capitais, estabelecidos nos artigos 18.°, 63.° e 65.°, n.° 3 do TFUE?»
Quanto à questão prejudicial
17 Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os artigos 18.° e 63.°, bem como o artigo 65.°, n.° 3, TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação de um Estado-Membro segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado-Membro ou quando o mutuário aí esteja estabelecido, mas não estão isentas quando o mutuante esteja estabelecido no referido Estado-Membro e o mutuário esteja estabelecido noutro Estado-Membro.
Quanto aos princípios e liberdades aplicáveis
18 A título preliminar, importa recordar que o artigo 18.° TFUE apenas deve ser aplicado de modo autónomo às situações regidas pelo direito da União para as quais o Tratado FUE não preveja regras específicas de não discriminação [Acórdão de 18 de março de 2021, Autoridade Tributária e Aduaneira, C-388/19 (Imposto sobre as mais-valias imobiliárias), C-388/19, EU:C:2021:212, n.° 20 e jurisprudência referida].
19 Ora, o Tratado FUE prevê, designadamente, no seu artigo 63.°, uma regra específica de não discriminação no domínio da liberdade de circulação de capitais [Acórdão de 18 de março de 2021, Autoridade Tributária e Aduaneira, C-388/19 (Imposto sobre as mais-valias imobiliárias), C-388/19, EU:C:2021:212, n.° 21 e jurisprudência referida]. Além disso, o Tribunal de Justiça já declarou que os empréstimos concedidos por residentes a não residentes, como os que estão em causa no processo principal, constituem movimentos de capitais abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 63.° TFUE (v., neste sentido, Acórdão de 14 de outubro de 1999, Sandoz, C-439/97, EU:C:1999:499, n.° 7).
20 Por conseguinte, há que examinar a questão prejudicial unicamente à luz do artigo 63.° TFUE.
Quanto à livre circulação de capitais
21 O artigo 63.°, n.° 1, TFUE proíbe, de maneira geral, os entraves aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros. As medidas proibidas por esta disposição, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado-Membro ou de dissuadir os residentes desse Estado-Membro de investir noutros Estados (Acórdão de 27 de abril de 2023, L Fund, C-537/20, EU:C:2023:339, n.° 42 e jurisprudência referida).
22 No caso em apreço, resulta do pedido de decisão prejudicial que o CIS previa, em caso de concessão de empréstimos por um residente português, regras de tributação diferentes consoante o mutuário residisse ou não em Portugal, estando prevista uma isenção do imposto do selo unicamente no primeiro caso.
23 Tal diferença de tratamento é suscetível de tornar menos atrativos, para os residentes portugueses, investimentos como a concessão de empréstimos, realizados no estrangeiro, em relação aos investimentos realizados no território português. Esta diferença de tratamento produz também um efeito restritivo em relação aos mutuários não residentes, uma vez que constitui um obstáculo à recolha de capitais em Portugal que os mutuários residentes não encontram.
24 Neste contexto, é irrelevante o facto de, segundo a legislação portuguesa em causa no processo principal, o sujeito passivo do imposto do selo ser o mutuante estabelecido em Portugal e não o mutuário estabelecido noutro Estado-Membro. Com efeito, o facto de o exercício da livre circulação de capitais se tornar menos atrativo devido a uma regulamentação fiscal nacional que trata diferentemente uma situação interna e uma situação transfronteiriça basta, por si só, para demonstrar a existência de uma restrição.
25 Além disso, também não é suscetível de demonstrar a inexistência de uma restrição à livre circulação de capitais o argumento do Governo Português segundo o qual o imposto do selo não constitui um encargo fiscal para o mutuante, uma vez que são os mutuários que suportam efetivamente o imposto, embora, regra geral, tenham a possibilidade de deduzir o seu montante no âmbito do imposto sobre os lucros.
26 É certo que, como indicou a própria recorrente no processo principal nas suas observações escritas, pode acontecer que o mutuário suporte o imposto do selo, quer porque o mutuante lhe imputa um montante correspondente, quer porque o imposto lhe é diretamente exigido em caso de não pagamento desse imposto pelo sujeito passivo. Todavia, por um lado, esta conclusão em nada altera o facto de, por força da legislação nacional em causa no processo principal, ser o mutuante que é sujeito passivo do imposto do selo. Por outro lado, em todo o caso, como foi salientado no n.° 23 do presente acórdão, esta legislação produz um efeito restritivo não só em relação aos mutuantes residentes mas também em relação aos mutuários não residentes.
27 Como tal, uma legislação como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE.
28 Posto isto, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.
29 Resulta de jurisprudência constante que o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, uma vez que constitui uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objeto de interpretação estrita. Por conseguinte, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de que toda a legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residem ou do Estado em que investem os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado [Acórdão de 16 de novembro de 2023, Autoridade Tributária e Aduaneira (Mais-valias sobre transmissões de participações sociais), C-472/22, EU:C:2023:880, n.° 27 e jurisprudência referida].
30 Com efeito, as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE não devem constituir, de acordo com o n.° 3 deste artigo, um meio de discriminação arbitrária nem uma restrição dissimulada. Assim, o Tribunal de Justiça declarou que semelhantes diferenças de tratamento só podem ser autorizadas se disserem respeito a situações que não são objetivamente comparáveis ou, no caso contrário, se forem justificadas por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 16 de novembro de 2023, Autoridade Tributária e Aduaneira (Mais-valias sobre transmissões de participações sociais), C-472/22, EU:C:2023:880, n.° 28 e jurisprudência referida].
31 Segundo jurisprudência do Tribunal de Justiça, a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado-Membro deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais em causa, bem como o objeto e o conteúdo destas últimas. Apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença objetiva entre as situações [Acórdão de 16 de novembro de 2023, Autoridade Tributária e Aduaneira (Mais-valias sobre transmissões de participações sociais), C-472/22, EU:C:2023:880, n.° 29 e jurisprudência referida].
32 A este respeito, por um lado, nem o órgão jurisdicional de reenvio nem o Governo Português especificaram o objetivo prosseguido pela isenção parcial do imposto do selo resultante da legislação nacional em causa no processo principal.
33 Por outro lado, o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal baseia-se no local de residência do mutuário, uma vez que as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando envolvam duas entidades estabelecidas em Portugal ou quando o mutuário esteja estabelecido nesse Estado-Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado-Membro.
34 No entanto, como a Comissão salientou nas suas observações escritas, no que respeita ao imposto do selo cobrado em Portugal, o caso de um empréstimo concedido a um mutuário residente afigura-se comparável à de um empréstimo concedido a um mutuário não residente, uma vez que esse imposto é calculado com base em cada operação individual e à qual se aplica uma taxa de imposto fixa, tendo em conta as circunstâncias particulares da operação.
35 Assim, tendo em conta o objeto e o conteúdo da regulamentação nacional em causa no processo principal, a diferença de tratamento que dela resulta não parece assentar, sem prejuízo de verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, numa diferença de situações objetiva.
36 De resto, nem o órgão jurisdicional de reenvio nem o Governo Português invocaram uma razão imperiosa de interesse geral que justifique a restrição gerada por essa regulamentação.
37 Tendo em conta todas as considerações anteriores, há que responder à questão submetida que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro segundo a qual as operações de tesouraria de curto prazo estão isentas de imposto do selo quando nestas intervenham duas entidades estabelecidas nesse Estado-Membro, mas não estão isentas quando o mutuário esteja estabelecido noutro Estado-Membro.”
De frisar que o aresto em referência se pronuncia exatamente sobre a mesma questão objeto de análise nestes autos: a exclusão de isenção prevista no n.º 2 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo apenas em razão da residência. O facto de estar aí em apreciação a alínea g) do n.º 1 daquele preceito e de nesta ação arbitral a isenção pertinente ser a da alínea h) não acarreta alteração às conclusões alcançadas, pois a isenção em ambas as alíneas é objeto de exclusão pela mesma norma com base no mesmo critério, sendo o entendimento aí vertido totalmente transponível para a situação da Requerente.”
Em face de todo o exposto, importa concluir pelo caráter discriminatório da tributação em Imposto do Selo das operações de cash pooling da Requerente e consequente desconformidade com o direito da União Europeia, por constituir uma restrição injustificada à liberdade de circulação de capitais (v. artigo 63.º do TFUE).
Consequentemente, é ilegal a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, bem como as liquidações de Imposto do Selo que dela foram objecto, por violação do Direito Europeu, em conformidade com o disposto no n.º 4, do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.
Da ilegalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente e, consequentemente, da ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo em causa, resulta para a AT a obrigação de restabelecer a situação que existiria se os actos não tivessem sidos praticados.
De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e implica o reembolso pela AT à Requerente do imposto indevidamente pago por esta, no montante de € 15,030.49.
3.2.4.3. Dos juros indemnizatórios
Nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT, para além do reembolso do imposto indevidamente pago são também devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”
Este entendimento é, de resto, conforme com a jurisprudência uniformizada pelo STA, designadamente no acórdão proferido no processo n.º 51/19.1BALSB, em 11 de Dezembro de 2019, que tem o seguinte sumário:
“Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. art. 78.º, n.º 1, da LGT) e vindo o acto a ser anulado, mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do pagamento da quantia liquidada [cfr. art. 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT].”
No caso em apreço não há lugar a juros indemnizatórios, uma vez que o pedido de revisão oficiosa do ato tributário foi decidido por despacho de 22-12-2023, i.é., em período inferior a um ano contado da apresentação daquele pedido em 19-05-023, pelo que improcede neste ponto a pretensão da Requerente.
3.2.4.4. Questões de conhecimento prejudicado
Ao abrigo da proibição da prática de atos no processo inúteis e desnecessários, fica prejudicado, o conhecimento das demais questões submetidas à apreciação deste Tribunal (cf. artigos 130º e 608.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).
4. DECISÃO
Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
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Julgar procedente o pedido formulado pela Requerente, e em consequência:
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Anular a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2023..., bem como os actos de liquidação de Imposto do Selo que dela foram objecto, referentes aos meses de abril a dezembro de 2020 e janeiro de 2021, efetuadas através das DRFIS n.ºs..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e da DMIS n.º...;
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Condenar a Requerida no reembolso à Requerente do imposto indevidamente pago, no montante de € 15,030.49;
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Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, formulado pela Requerente.
5. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 15.030,49 (quinze mil e trinta euros e quarenta e nove cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
6. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 918,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida por decaimento, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de abril de 2025.
O Árbitro,
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(Carla Almeida Cruz)
[1] V. “A Revisão do Acto Tributário: Requiem pela Autoliquidação?”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal do IDEFF, Ano 9, N.º 1, Primavera, pp. 209 a 229.
[2] Ou noutro Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal.
[3] Suportando-se também no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 28 de novembro de 2018, processo n.º 06/11.4BESNT 0436/16, que conclui pela inexistência de discriminação.