Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1004/2024-T
Data da decisão: 2025-03-19  IRS  
Valor do pedido: € 26.755,30
Tema: IRS – Rendimentos de capitais – Lançamentos em contas correntes dos sócios – Retenção na Fonte – Presunção – Arts. 5.º, n.º 1, al. h) e 6.º, n.º 4 do CIRS.
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Sumário:

  1. Demonstrado, pela AT, o pressuposto de aplicação da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, i.e., o lançamento de quantias em contas correntes dos sócios, a favor destes, consideram-se (presumem-se) tais importâncias atribuídas a título de lucros ou de adiantamento dos lucros, com a consequente tributação como rendimentos de capitais – categoria E (v. artigo 5.º, n.º 1 e n.º 2, alínea h) do Código do IRS).
  2. Esta presunção é iuris tantum, podendo o contribuinte afastá-la se demonstrar que esses lançamentos resultam de “mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”. Esta prova constitui ónus do contribuinte. 
  3. A AT não é onerada com a demonstração de causas possíveis dos lançamentos em contas correntes dos sócios, devendo a norma do artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS ser interpretada no sentido de que a presunção aí consagrada funciona enquanto a causa jurídica da atribuição das quantias lançadas em contas correntes de sócios não for declarada ou revelada (v. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de julho de 2024, no processo n.º 920/21.9BEPRT).
  4. Assim, não tendo a Requerente feito a prova de que os lançamentos na conta de sócios foram efetuados em razão de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, aqueles são qualificados como lucros ou adiantamento dos lucros e tributados a título de rendimentos de capitais.

 

DECISÃO ARBITRAL

                                                                                                 

Os árbitros Alexandra Coelho Martins (presidente), Clotilde Celorico Palma, designada pela Requerente, e Jorge Carita, indicado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, acordam no seguinte:

 

 

            I.         Relatório

 

A..., Lda., adiante “Requerente”, com o número de identificação de pessoa coletiva ... e sede na Rua ..., ..., ...-... Sertã, apresentou pedido de pronúncia arbitral, com invocação do disposto no artigo 99.º, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).

 

A Requerente pretende a anulação do ato de liquidação n.º 2024..., referente a retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), do ano 2021, no montante global de € 26.755,39, sendo € 24.536,90 relativos a imposto e € 2.218,40 a juros compensatórios.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 30 de agosto de 2024 e, de seguida, notificado à AT.

 

A Requerente designou como árbitro a Prof. Doutora Clotilde Celorico Palma, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, tendo a Requerida indicado o Dr. Jorge Carita.

Na sequência do requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas Partes para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), foi designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), II parte do RJAT.

 

Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo.

 

O Exmo. Presidente do CAAD informou as Partes, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo sido manifestada oposição.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 13 de dezembro de 2024.

 

            Em 28 de janeiro de 2025, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo (“PA”).

 

Em 27 de fevereiro de 2025, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual foram produzidas declarações de Parte e inquiridas as duas testemunhas indicadas pela Requerente. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, tendo o Tribunal fixado o prazo para a decisão até 12 de junho de 2025 (v. ata e gravação áudio disponíveis no SGP do CAAD).

 

            Requerida e Requerente apresentaram alegações em 13 de março de 2025 e 14 de março de 2025, respetivamente. Ambas as Partes mantiveram as suas posições. 

 

Posição da Requerente

 

A Requerente funda a sua pretensão na errónea qualificação e quantificação dos rendimentos efetuada pela AT (v. artigo 99.º, alínea a) do CPPT) e discorda do entendimento de que os montantes lançados em contas correntes dos seus sócios correspondem a adiantamentos por conta de lucros e, bem assim, de que seja aplicável a presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS.

Argumenta que não procedeu a qualquer distribuição de resultados, até porque inexistem lucros que o permitissem (v. artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais), e explica que foi o seu contabilista certificado que, por ter conhecimento de saldos desconformes de exercícios anteriores na sua contabilidade [da Requerente], nomeadamente saldos da conta Caixa (#11, a débito) e da conta de fornecedores (#22, a crédito), procedeu à regularização dos mesmos por via de contas dos sócios (#26), tendo em vista o acerto dos saldos da contabilidade para o valor existente na realidade nas contas e evitar a tributação direta [em sede de tributação autónoma] sobre o saldo de Caixa.

 

Segundo a Requerente, essas divergências prendem-se com a circunstância de não terem sido registados diversos pagamentos aos fornecedores, durante anos, o que gerou a acumulação de um saldo em caixa a débito de valores idênticos.

 

Mais alega que impendia sobre a Requerida o ónus de provar que os lançamentos em conta corrente dos sócios não resultam “de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”, como dispõe o artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, o que, em seu entender, aquela não fez. Além de que a AT se baseia num critério formal para manter uma presunção ilidível, não respeitando a verdade material dos factos, a sua substância económica e o respeito pelo princípio da capacidade contributiva.

 

Conclui pela “ilegalidade da decisão de avaliação indireta da matéria coletável”, ou, caso assim não se entenda, pela correção do excesso de quantificação da matéria coletável.

 

Posição da Requerida

 

            Segundo a Requerida, o ato tributário está devidamente justificado no Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), tendo sido desencadeadas, durante o procedimento inspetivo, as diligências necessárias para o apuramento da verdade material. Assim, verificou-se que, em 31 de dezembro de 2021, foram efetuados, em benefício dos sócios, movimentos contabilísticos, gerando um saldo a débito, na conta SNC 2685 – (Rest.) Acionistas/Sócios, no montante líquido de € 87.631,77, por contrapartida da conta 11 – Caixa  da empresa.

            Não constando dos autos que estes movimentos resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais dos referidos sócios, consubstanciam transferências de propriedade dos ativos, da esfera patrimonial do sujeito passivo para a esfera patrimonial dos sócios, com a consequente presunção de adiantamento por conta de lucros, por parte da Requerente em favor dos seus sócios, enquadrável na Categoria E de IRS, como rendimento de capitais, na esfera dos sócios-gerentes (v. artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, conjugado com o artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do mesmo diploma), tributado por retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS.

 

            Neste contexto, cabia à entidade devedora, aqui Requerente, efetuar a retenção devida, no momento em que os rendimentos foram pagos ou colocados à disposição do seu titular, nos termos do disposto nos artigos 7.º, n.ºs 1 e 3, alínea a), subalínea 2), 101.º, n.º 2, alínea a) e 94.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, todos do Código do IRS.

 

            A Requerida também considera que a presunção consagrada no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS é ilidível. No entanto, em seu entender, incumbia à Requerente fazer prova de que as referidas operações (registos contabilísticos a débito e a crédito e respetivos fluxos financeiros) resultaram de mútuos, prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais e de provar a sua legalidade e regularidade nos termos aí definidos. Prova que, na perspetiva da Requerida, a Requerente não fez, designadamente quanto aos valores abertos dos fornecedores, das contas-correntes, dos pagamentos e recebimentos, entre outros.

 

            Acrescenta que a contabilidade goza da presunção de veracidade prevista no artigo 75.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (“LGT”), tendo a AT satisfeito o ónus que lhe competia, de provar os lançamentos contabilísticos na conta-corrente dos sócios, pressupostos na presunção em apreço.

 

            Conclui, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado.

 

 

 

 

 

II.        Saneamento

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo, dirigido à anulação do ato de liquidação de IRS por retenção na fonte, incluindo juros compensatórios (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, conjugado com o artigo 102.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, contado da data limite de pagamento da liquidação de IRS e juros compensatórios objeto dos autos, fixada em 24 de junho de 2024, tendo a ação arbitral dado entrada em 28 de agosto de 2024 (v. artigo 279.º do Código Civil, por remissão dos artigos 20.º, n.º 1 do CPPT e 3.º-A do RJAT).

 

Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

            III.      Fundamentação de Facto

 

            1.         Matéria de Facto Provada

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se consideram provados:

 

 

  1. A..., Lda., aqui Requerente, foi objeto de um procedimento inspetivo externo, de âmbito parcial, em IRS e retenções na fonte de IRS, relativo ao período de tributação de 2021, por se enquadrar no universo de sujeitos passivos que, no exercício de 2020, evidenciavam valores superiores a € 50.000 na rubrica Caixa, tendo, no exercício seguinte (2021), operado a sua redução em montante superior a € 50.000, ou porque não entregaram a Informação Empresarial Simplificada (“IES”) referente a 2021 – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) constante do processo administrativo (“PA”).
  2. A referida ação inspetiva foi determinada pela ordem de serviço OI2023..., de 17 de agosto de 2023, tendo sido iniciada em 28 de setembro desse ano e concluída em 26 de abril de 2024 – cf. RIT.
  3. Previamente à ação inspetiva foram empreendidas pela AT diligências externas de recolha e cruzamento de elementos, em cumprimento do despacho DI2023... de 20 de julho de 2023, com 2023, com o objetivo de: “Recolha de elementos relacionados com a evolução da estrutura societária da empresa”, tendo-se verificado que:

“[…] o Sujeito Passivo no encerramento das contas do exercício de 2020, evidenciava na rubrica “caixa” valores superiores a 50.000,00 € e no encerramento das contas do exercício de 2021, tinha reduzido essa rubrica em mais de 50.000,00 €.

  • Valores campo A5419-4 Caixa – IES 2020 102.119,11 €;
  • Valores campo A5419-4 Caixa – IES 2021 849.13 €;

Foi assim proposta a abertura de processo de inspeção, que deu origem à Ordem de Serviço que serviu de credenciação à presente ação.

  • Foram solicitados os ficheiros SAF-T da contabilidade de 2020 e 2021;

Após envio do Ficheiro SAF-T o mesmo foi validado e extraídos vários extratos de conta do ano de 2021 […]” – cf. RIT.

  1. Na sequência do procedimento inspetivo, por ofício datado de 28 de março de 2024, a Requerente foi notificada do projeto de Relatório com proposta de correções de retenções na fonte de IRS no valor de € 24.536,90, incidente sobre adiantamentos por conta de lucros na esfera dos sócios, presumidos nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS e enquadrados como rendimentos de capitais, conforme previsto no artigo 5.º, n.º 2, alínea h) do mesmo Código, à taxa de 28% (v. o artigo 71.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS) – cf. RIT.
  2. A Requerente exerceu o direito de audição, em 17 de abril de 2024, através do Portal das Finanças, argumentando o seguinte – cf. Documento 3 e anexo ao RIT:

“A conta 11 – Caixa a 01/01/2021 tinha um valor a débito no montante de 102.119,11€, valor este que é reflexo de ao longo dos anos anteriores de recebimentos e pagamentos da empresa não corretamente refletidos na contabilidade.

O saldo da conta 22 – Fornecedores ao longo dos anos tem um valor a crédito que não corresponde [à] realidade, e conforme se pode observar nos anos anteriores (2017 – 134.400,29€ ; 2018 – 82.749,00€ ; 2019 – 121,361,00€ ; 2020 – 99.315,65€; 2021 – 121.361,00€), enquanto que a realidade da empresa se traduzia numa dívida a fornecedores de valores residuais e de caráter curto prazo, o que significa que a contrapartida do não registo do pagamento aos fornecedores foi acumular um saldo em caixa a débito de valores idênticos.

Assim, e depois de em 2020, primeiro ano Covid19 com todas as circunstâncias que implicou no desenvolvimento da atividade da empresa, pois estamos a falar de “lar de Idosos”, com a necessidade de contratar mais pessoal para fazer face [à]s necessidades de fazer equipas de trabalho independentes (Em Espelho), que se traduziu num aumento dos custos com o pessoal, e que se veio também a refletir em 2021 segundo ano Covid19, pelos que os resultados da empresa nesses anos foi reduzido (2020 – 13.010,24€ ; 2021 – 4120,03€ e em 2022 – negativos de 5999,30€)

No fecho do ano de 2021 e depois de todos os lançamentos até 31 de Dezembro de 2021 o valor em 11-Caixa mostrava um valor de 100.849,13€, valor este que tem origem no acima explicado e com vários anos de existência, pelo que foi feito o lançamento de acerto da conta 11-Caixa pela contrapartida da conta 26-Sócios com o objetivo definido de [à] posterior fazer o levantamento dos saldos corretos dos fornecedores e acertar os mesmos, e este procedimento foi feito com o sentido de evitar que a manutenção do saldo de caixa no valor acima identificado viesse a originar uma tributação direta sobre o saldo de Caixa de 50% por parte da AT, situação que não faz qualquer sentido pois, todos os valores recebidos pela empresa são devidamente faturados, não existindo qualquer valor recebido ao longo dos anos que não tenha sido faturado.

O valor lançado [à] conta 26 – Sócios foi por opção e não estar a misturar com os lançamentos de clientes e fornecedores e de se perceber que aquele valor é o valor a ser corrigido, pelo que não houve qualquer intenção de fazer pagamento aos sócios ou de o fazer por possível distribuição futura de lucros da empresa, e para mais a mesma empresa não tem resultados positivos, conforme descrito acima, está endividada e com dificuldade diária de fazer face aos compromissos assumidos e que precisamente se avolumaram a partir de 2020, primeiro ano Covid19. O saldo da conta 26 – Sócios refletia um valor a crédito de 12.368,23€ precisamente pelas dificuldades de tesouraria que a empresa enfrenta, pelo que não tem qualquer sentido achar que haveria intenção de fazer qualquer distribuição de lucros.

O lançamento efetuado [à] data do encerramento do exercício de 2021 não foi discutido com a gerência da empresa, pois o mesmo foi feito com o sentido explicado acima, não havendo qualquer intenção de pagamento a sócios de qua[is]quer importâncias, e as mesmas serem corrigidas [à] posterior […]”.

  1. A AT manteve a proposta de correções, que se convolou em definitiva, e emitiu o Relatório de Inspeção Tributária, do qual se retiram os seguintes fundamentos com relevância para a matéria dos autos – cf. RIT :

Análise aos elementos contabilísticos

O saldo de abertura da conta “caixa” em 2021 era de 102.119,11 € a débito.

Após análise efetuada à conta “caixa” verifica-se que foi efetuado um movimento contabilístico com data de 31/12/2021 com o valor de 100.000,00€ a crédito (sem nenhum documento de suporte), por contrapartida da conta 2685 “(Rest.) Accionistas (sócios)” a débito […]

Analisada a conta 2685, verifica-se que tem um saldo de abertura de 12.368,23 € a crédito, e que em 31 dezembro de 2021 pelo movimento efetuado ficou com um saldo de 87.631,77 € a débito […]

Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades

Em face do lançamento efetuado em 31/12/2021, na conta 2685 “(Rest.) Accionistas (sócios)” no valor de 100.000,00 €, referido no ponto anterior, verifica-se que a sociedade colocou à disposição dos sócios o valor de 87.631,77 €.

Na ausência de um contrato de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, será de presumir, nos termos do nº. 4 do artigo 6.º do CIRS “...Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.”, que tais importâncias, foram pagas ou colocadas à disposição dos sócios a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

Face ao exposto, conclui-se que os factos descritos preenchem a norma de incidência consignada na alínea h) do nº. 2 do artigo 5.º do CIRS, que refere expressamente “Os lucros das entidades sujeitas a IRC, colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º”, pelo que deverão ser tributados em sede de IRS.

Nos termos do art.º 101.º, n.º 2, alínea a) do CIRS, as entidades devedoras dos rendimentos que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada, são obrigadas a reter o imposto aos rendimentos ilíquidos de que sejam devedoras, à taxa prevista no artigo 71.º do CIRS.

Tais rendimentos que se consideram “auferidos/colocados à disposição” do sócio-gerente até 31 de dezembro de 2021, encontram-se sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%, nos termos da alínea a) do nº. 1 do artigo 71.º do CIRS.

Nos termos do artigo 98.º, n.º 3 do CIRS, o imposto retido ou a reter, deveria ter sido entregue nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte da colocação à disposição, ou seja, considerando que foi colocado à disposição dos sócios-gerentes em 31/12/2021 a quantia de 87.631,77 €, deveria ter sido nessa data retido na fonte o valor de 24.536,90 € = (87.631,77 € * 28%), a entregar até 20/01/2022.

Após consulta ao sistema informático da AT, nomeadamente às guias de retenção entregues pela sociedade A..., Lda, relativamente ao exercício de 2021, verifica-se que não foi efetuada nem entregue pela sociedade quaisquer quantias referentes a retenções na fonte de capitais, nem tal operação se encontra registada na contabilidade da sociedade.

Ao não efetuar a retenção, nem a consequente entrega do imposto o sujeito passivo está a infringir o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS.

Os lucros ou adiantamentos por conta de lucros são considerados rendimentos de capitais (categoria E de IRS), nos termos da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º do CIRS, na esfera dos sócios, sendo assim rendimentos sujeitos à taxa liberatória de 28%, de acordo com a alínea a) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS.

[…]

Análise do direito de audição:

Como foi referido pelo SP: “no final de 2021 e depois de todos os lançamentos até 31 de Dezembro de 2021 o valor em 11-Caixa mostrava um valor de 100.849,13€, valor este que tem origem no acima explicado e com vários anos de existência, pelo que foi feito o lançamento de acerto da conta 11-Caixa pela contrapartida da conta 26-Sócios com o objetivo definido de [à] posterior fazer o levantamento dos saldos corretos dos fornecedores e acertar os mesmos, e este procedimento foi feito com o sentido de evitar que a manutenção do saldo de caixa no valor acima identificado viesse a originar uma tributação direta sobre o saldo de Caixa de 50% por parte da AT”, no entanto, não foi feita prova documental dos valores em aberto aos fornecedores (Exemplo: recibos de pagamento, prova dos pagamentos, conta corrente emitida pelos fornecedores).

Assim, analisados os elementos enviados e com base na legislação existente sobre o assunto em questão:

  • De acordo com Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul emitido no processo nº 02544/08 CT 2º Juízo, de 25-11-2008:

“Concluindo-se que os lançamentos feitos em conta corrente de sócios não resultam de mútuos, da prestação de trabalhos ou do exercício de cargos sociais, têm os mesmos que ter-se, presumidamente, como feitos a título de lucros ou de adiantamento dos lucros (nº 4, in fine, do art.º 7º do CIRS).]”

  • Processo nº 571/2017-T do CAAD

“Na verdade, como se escreveu no Acórdão do TCA-SUL de 15.07.2008, proferido no processo 02371/08 “o que determina o artigo em questão é que quando a AF constate, em quaisquer empresas referidas no preceito, que as contas correntes dos respectivos sócios contém lançamentos contabilísticos de montantes em favor daqueles, cabe-lhe indagar da razão de ser de tais lançamentos, o que, por princípio, terá de ser revelado pela própria contabilidade, devidamente organizada segundo os princípios das leis comercial e fiscal; E então, ou os beneficiários demonstram que se trata de uma situação enquadrável em mútuos, em prestação de trabalho ou no exercício de cargos sociais, ou então a lei faz decorrer a “verdade ficta” de que correspondem a lucros ou a adiantamento de lucros.” (sublinhado nosso).

Resulta assim, que aquela presunção opera a favor do Estado quando esta constata que as contas correntes dos sócios contêm lançamentos de montantes a favor destes e os sócios não demonstrem que se trata de uma situação enquadrável em mútuos, em prestação de trabalho ou no exercício de cargos sociais. […]”

  1. Após a conclusão do procedimento inspetivo, foi emitida a liquidação adicional de retenção na fonte de IRS 2021, sob o n.º 2024..., de 6 de maio de 2024, no valor de € 24.536,90, e a liquidação dos correspondentes juros compensatórios n.º 2024..., de 6 de maio de 2024, no valor de € 2.218,40, perfazendo o total de € 26.755,30, em ambos os casos com data-limite de pagamento de 24 de junho de 2024 – cf. Demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR n.º 2024 ... junta pela Requerente.
  2. Em 28 de agosto de 2024, inconformada com o ato tributário de liquidação (adicional) de IRS e juros compensatórios inerentes reportados ao período de tributação de 2021, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

            2.    Factos não Provados

 

Não se provou que o lançamento a débito, a 31 de dezembro de 2021, da importância de € 100.000,00, na conta #2685 – “(Rest.) Accionistas (sócios)”, que resultou no saldo a débito dessa mesma conta de € 87.631,77, após dedução do saldo de abertura a crédito de € 12.368,23, corresponda a um lançamento indevido e que não tenha subjacente uma entrega real de meios financeiros aos sócios (v. artigos 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º e 20.º do ppa).

 

Nem, bem assim, ficou demonstrado que o valor a débito da conta #11 – Caixa, a 1 de janeiro de 2021, no montante de € 102.119,11, seja o reflexo de anteriores recebimentos e pagamentos não corretamente refletidos na contabilidade, em anos anteriores (v. artigos 23.º a 25.º do ppa).

 

            3.    Motivação da Decisão da Matéria de Facto

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, conforme supra referenciado em relação a cada facto julgado assente.

 

Contudo, as declarações de Parte e prova testemunhal produzida não lograram demonstrar a factualidade constitutiva da causa de pedir da Requerente, centrada no erro na aplicação da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS.

 

A primeira testemunha inquirida, B..., filho dos sócios-gerentes da Requerente, com funções na área administrativa, afirmou que envia mensalmente toda a documentação para a empresa que assegura a contabilidade (externa) da Requerente, de onde este Tribunal retira que, em geral, os documentos de suporte de que a Requerente dispunha à data dos factos eram facultados à contabilidade.

 

O sócio-gerente da Requerente, C..., referiu que o lançamento contabilístico na origem da liquidação impugnada derivou de um erro na contabilidade, embora tenha, ao mesmo tempo, afirmado que não tem conhecimentos de contabilidade. Justificou que o ano 2021 foi um ano difícil (Covid) e que o contabilista teve problemas pessoais, sem detalhar ou explicar o alegado erro contabilístico.

 

Mais referiu que não ocorreu a transferência de valores para os sócios e que só em 2023, com a ação inspetiva, teve conhecimento de que a empresa de contabilidade não efetuou lançamentos relativos a pagamentos aos fornecedores e que, para regularizar as divergências, segundo o informaram, operou um movimento de acerto/lançamento no final de 2021. Perguntado se o saldo de caixa contabilizado em 2020, de cerca de € 102.000 existia, disse que era possível, mas que não sabia, pois é o contabilista que processa esse tipo de situações. 

Ora, afigura-se a este Tribunal que a existência de um saldo de caixa desta dimensão numa pequena/micro empresa não é um facto normalmente desconhecido de um sócio-gerente, com funções executivas efetivas, que pode não ter conhecimentos técnicos de contabilidade, mas não deixa de controlar os fluxos financeiros e a tesouraria, essenciais para a manutenção da sociedade e a realização de pagamentos aos seus colaboradores e fornecedores. De salientar, ainda, que as afirmações do sócio-gerente, que assume não ter conhecimentos técnicos de contabilidade, sobre os movimentos contabilísticos, limitam-se a reproduzir a tese que lhe é mais favorável, desonerando-o de tributação e a tentar transferir (diga-se, sem sucesso) para a empresa de contabilidade a responsabilidade pelos eventos tributáveis, sem contudo especificar, com um só caso sequer, que pagamento(s) e a que fornecedor(es) não foram objeto de relevação contabilística em 2021 ou em anos anteriores. Nem, para tal, foi junta qualquer prova documental. 

 

Por último, foi questionado o representante da empresa que faz a contabilidade da Requerente, D..., que exerce a profissão de contabilista certificado. Este começou por responder que uma parte do saldo acumulado da conta caixa e de fornecedores, em 2021, da Requerente, provinha de anos anteriores, tendo, no final do depoimento acabado por referir, de forma diversa, que o “bolo de caixa” foi criado essencialmente em 2020, afirmação que contraria o alegado pela própria Requerente em direito de audição (ponto E da matéria de facto), em concreto, que o saldo da conta de fornecedores e o seu reflexo na conta caixa remontam, pelo menos, a 2017. Mais acrescenta que fez o lançamento na conta dos sócios para evitar a tributação autónoma (à taxa de 50%, mais gravosa) do saldo da conta caixa.

 

Explicou o elevado saldo de caixa em erros da contabilidade, por ter registado (indevidamente) os recebimentos e pagamentos com base no descarregamento da plataforma do e-Fatura e não com suporte nos documentos entregues pela Requerente. Disse que faltavam sempre documentos, nomeadamente os referentes aos pagamentos.

 

 

 

Os depoimentos em apreço seguem a narrativa da Requerente, mas não fornecem elementos concretos do ocorrido, além de estarem desacompanhados de qualquer suporte documental o que, estando em causa pagamentos, devia ser possível através da confrontação de extratos bancários, contas-correntes de fornecedores, entre outros elementos.

 

Na verdade, não foi feita qualquer tentativa, pela Requerente, de evidenciar os pagamentos a fornecedores, alegadamente não registados na contabilidade, nomeadamente através dos referidos extratos bancários, contas-correntes e outros que normalmente se encontram na disponibilidade dos sujeitos passivos. De notar também que se verificam diversas inconsistências nos depoimentos, nomeadamente no que se refere ao momento em que os alegados erros contabilísticos ocorreram, ou à falta de entrega de documentos.

 

            Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

 

            IV.       Direito

 

            1.    Questões a Decidir

 

            A questão discutida nos presentes autos respeita à verificação dos pressupostos de aplicação da presunção consagrada no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS e do enquadramento, a título de rendimento de capitais (categoria E), ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, alínea h) do Código do IRS, dos valores lançados (saldo a débito) na conta corrente dos sócios da Requerente.

            Neste âmbito, importa aferir se a presunção consagrada no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS pressupõe que a AT demonstre que os lançamentos efetuados em contas correntes dos sócios não respeitam a mútuos, prestação de trabalho ou exercício de cargos sociais.

 

            2.         Lucros e Adiantamentos de Lucros -  Presunção Consagrada no Art. 6.º, n.º 4 do Código do IRS

           

            O legislador, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, consagrou uma definição geral de rendimentos de capitais – artigo 5.º, n.º 1 do Código do IRS, com o seguinte teor: “Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias”.

 

            A lista, de natureza exemplificativa, dos ganhos que se encontram sujeitos à categoria E de IRS encontra-se prevista no artigo 5.º, n.º 2 do Código do IRS, que inclui, na sua alínea h) os “lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º”.

            A técnica normativa utilizada para a tipificação dos rendimentos de capitais, de enumeração aberta, procura concatenar a luta contra a evasão fiscal com a previsibilidade para os contribuintes dos rendimentos sujeitos à categoria de IRS.  O seu fundamento teleológico encontra-se nas constantes mutações dos produtos financeiros, circunstância que podia abrir a porta à evasão[1].

            Deste modo, os factos geradores de rendimentos de capitais são descritos pelo legislador em função do resultado económico produzido e não atendem ao tipo de negócio subjacente[2].

 

            Importa igualmente destacar que na categoria de rendimentos de capitais, vertida na norma de incidência objetiva, cabem os “frutos” e as “vantagens económicas”.

 

            O artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS consagra uma presunção de rendimentos de capitais nos seguintes moldes: “Os lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros”.

 

            Estamos perante uma presunção em matéria de incidência, ilidível, como prevê o próprio artigo 6.º do Código do IRS, no seu n.º 5: “As presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira”. Solução que também se extrai do preceituado no artigo 73.º da LGT, segundo o qual “[a]s presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”, e da própria conformação constitucional do princípio da igualdade tributária, na sua manifestação de capacidade contributiva, como reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional (v., a título de exemplo, o Acórdão 452/2003, de 14 de outubro de 2003).

 

            Para Xavier de Basto[3]: “A previsão de presunções deriva da própria natureza dos rendimentos de capitais, alguns deles de relativamente fácil sonegação. Assim, em certos casos, a lei presume a existência desses rendimentos, não aceitando, por exemplo, sem prova, que os contratos que lhes dão origem sejam qualificados de gratuitos, não produzindo, portanto, rendimento. As presunções, todavia, como é hoje regra geral do direito fiscal, estabelecida no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, são ilidíveis, isto é, admitem prova em contrário.”.

 

            Nesta linha, sustenta Paula Rosado Pereira[4] que: […] o legislador fiscal considerou não ser possível abdicar da adoção de algumas presunções relativamente aos rendimentos de capitais. Entre as razões subjacentes ao recurso a tais presunções, conta-se a dificuldade sentida pela AT, face à natureza específica dos rendimentos desta categoria, em assegurar a eficiência da tributação. As presunções desempenham a função de facilitar a prova da AT relativamente à existência de certos rendimentos e à respetiva quantificação. […] é possibilitada a ilisão das presunções estabelecidas – o que se afigura absolutamente essencial para a constitucionalidade do regime em apreço. […] Para que se verifique a ilisão da presunção, é necessário que, por qualquer das formas acima referidas, se provem factos, condições ou taxas de juro distintos dos que resultariam da aplicação da presunção”.

 

            O mérito da solução legal é fácil de explicar. Como assinala Sérgio Vasques:

 

“A experimentação dos novos impostos sobre o rendimento mostrou-nos ao longo dos últimos anos os vícios que podem rodear o modelo da tributação de rendimentos reais e a necessidade que há de o temperar quando se trata de gerir uma fiscalidade de massas. Ainda que tenham uma função residual no sistema, as presunções tributárias são empregues hoje como ferramenta elementar na simplificação do sistema, no combate à evasão mais grosseira e no tratamento dos esquemas mais sofisticados de planeamento abusivo.

 

A doutrina ultrapassou também a glorificação do rendimento real e reconhece agora que o uso de presunções, absolutas ou relativas, não contraria por definição o princípio da capacidade contributiva, sendo por vezes o que lhe garante eficácia mínima. […] A tributação do rendimento real, diz-nos Xavier de Basto, é compatível com alguma «normalização» do apuramento da matéria coletável.”, relembrando que o Tribunal Constitucional se pronunciou, no Acórdão 452/2003, de 14 de outubro de 2003, sobre a não inconstitucionalidade da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS e o seu caráter ilidível – cf. Sérgio Vasques, IVA, Direito à Dedução e Presunções Tributárias: a Jurisprudência do CAAD, Cadernos IVA 2017, Almedina, 2017, p. 481-483.

 

            O juízo presuntivo em que assenta o artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, depende da comprovação do facto-base que é, neste caso, o de serem (terem sido) lançados valores em contas correntes dos sócios sujeitos à condição negativa de não resultarem (terem resultado) de outra causa jurídica, especificamente de não derivarem de “mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais”.

 

            O artigo 349.º do Código Civil define as presunções como “ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” e estas consubstanciam um meio de prova, pois invertem o ónus que resultaria da previsão do artigo 342.º do mesmo Código, segundo o qual “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

 

            Como declara o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de julho de 2024, no processo n.º 920/21.9BEPRT, a presunção permite deduzir um facto desconhecido a partir de um facto conhecido e dispensar a prova do facto que se desconhece. “Nos procedimentos com estrutura inquisitória, servem para dispensar a entidade que decide do ónus de averiguação desse facto, pelo que operam a montante da instrução.

 

            Aduz-se no citado aresto que as normas que distribuem o ónus probatório têm uma função distinta das presunções, pois “servem para resolver uma situação de incerteza acerca de qualquer ponto de facto depois de consultadas as provas, decidir como se fosse conhecido que o mesmo ocorreu ou não ocorreu. Pelo que operam a jusante da instrução. São regras de decisão [sobre esta matéria, pode ver-se MANUEL DE ANDRADE, in «Noções Elementares de Processo Civil», Coimbra Editora 1993, pág. 198].”

 

            E, ainda, que: “parece-nos incontroverso que as presunções de incidência em rendimentos de capitais derivam da própria natureza destes rendimentos e, em especial, do facto de alguns deles serem de fácil sonegação. Assim, a finalidade prosseguida com esta norma é a de combater os abusos e assegurar a eficiência na tributação, desonerando a Administração Tributária do ónus de averiguar factos normalmente reservados, que ocorrem na relação entre a sociedade e os sócios.

 

            Ora, uma interpretação da norma em causa [artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS] que condicionasse o funcionamento da presunção à demonstração de que os lançamentos em contas correntes dos sócios não têm certas causas (mútuos concedidos, trabalho prestado ou o exercício de cargos sociais), não só agravaria o ónus de averiguação da Administração, como também relegaria o funcionamento da presunção para situações marginais, reduzindo significativamente a sua eficácia e atentando, assim, contra a própria finalidade com que foi instituída.

 

            Devendo o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e não podendo considerar-se acertada uma solução legislativa que, na prática, conduza a um resultado que contrarie a finalidade com que foi instituída, a interpretação adotada na sentença recorrida na norma em causa não pode, por isso, ser aqui validada.

 

            Em contraponto (e pelas mesmas razões), julgamos que deve ser validada a interpretação da mesma norma que é proposta pela Recorrente. E segundo a qual a presunção dela constante funciona enquanto a causa jurídica da sua atribuição não for expressamente declarada ou revelada.”

 

           

 

 

            3.         Análise Concreta

           

            No caso concreto, a AT demonstrou que foi escriturada, a 31 de dezembro de 2021, a favor dos sócios, a quantia de € 100.000,00 que, deduzida, do saldo de abertura a crédito, se cifrou no valor de € 87.631,77 (saldo a débito), facto que não é controvertido.

 

            Deste modo, a Requerida satisfez o ónus de alegar e provar o pressuposto constitutivo da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, o “facto-base”, a saber: que foi escriturada em conta-corrente a favor dos sócios da Requerente a quantia (líquida) de € 87.631,77. De onde se deduz o facto presumido: a colocação dessa importância à disposição dos sócios, a título de adiantamento por conta de lucros, tributada como rendimento de capitais – artigo 5.º, n.º 1 e 2, alínea h) do Código do IRS.

 

            Em linha com o acima exposto e também sufragado no Acórdão do TCA Norte, de 27 de novembro de 2014, no processo n.º 279/09.2BEPRT, “quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (art. 350º/1 do Código Civil). Mas para que o beneficiário de uma presunção legal a possa invocar – e assim ficar dispensado de provar o facto a que ela conduz –, tem previamente de provar determinado facto – o facto base”.

 

            Demonstrado, como foi, o facto-base, competia à Requerente, para afastar a presunção, evidenciar que aquela quantia escriturada a favor dos sócios tinha origem em mútuos (da Requerente aos sócios), na prestação de trabalho ou no exercício de cargos sociais.

 

            Não tem, pois, qualquer suporte a tese da Requerente (artigo 16.º do ppa) de que “sobre a AT impende o ónus de provar que os lançamentos em conta corrente dos sócios não resultam de “mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais” e que “apenas após tal prova, poderá invocar a presunção de qualificação de tais lançamentos como distribuições ou adiantamentos por conta de lucros”.

 

            Sendo que a Requerente nada provou quanto à causa e origem do referido lançamento e, muito menos, que o mesmo tenha provindo de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais.

 

            A Requerente limitou-se a arguir, sem, porém, provar, situações de erros de contabilização nas contas de fornecedores e de caixa, que o lançamento na conta de sócios efetuado a 31 de dezembro de 2021, ele próprio qualificado também como um erro pela Requerente, visaria retificar. Não concretiza nenhuma situação demonstrativa dos alegados erros, nomeadamente através de documentos (contas correntes de fornecedores, recibos, reconciliação bancária, entre outros), chegando a afirmar que o mencionado lançamento teve o objetivo de evitar a tributação (mais gravosa) do saldo da conta caixa [por via da tributação autónoma].

 

            Por outro lado, sobre a atribuição dos putativos erros à empresa de contabilidade, mesmo que aqueles fossem demonstrados (que não foram), essa circunstância não desoneraria a Requerente das suas obrigações jurídico-tributárias perante o credor tributário.

 

            Conclui-se, assim, ser insubsistente a alegação de que a AT não poderia ter em conta os valores que a Requerente declarou na sua contabilidade por terem como objetivo a regularização de situações pretéritas incorretas. Este entendimento deriva não só da força probatória das declarações do contribuinte (artigo 75.º da LGT), como da ilegitimidade de a Requerente vir esgrimir um argumento quando não contribui para o esclarecimento da natureza, valores e datas dos fluxos financeiros, não apresentando uma alternativa válida.

 

            Noutra linha argumentativa, a Requerente vem invocar que o facto de, nos termos do disposto no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais, não existirem lucros distribuíveis no quantitativo de € 87.631,77, nem deliberação social de atribuição de adiantamentos por conta de lucros às acionistas, afastaria a qualificação de rendimentos de capitais. Não pode aderir-se a esta conceção de índole formalista e desprovida de suporte nas normas de incidência de IRS.

 

            A questão jurídica da admissibilidade da distribuição de lucros, designadamente no tocante ao cumprimento de rácios de capitais próprios ou outros indicadores, não é recortada como condição negativa pela norma de incidência do artigo 5.º do Código do IRS ou pelo artigo 6.º, n.º 4 do mesmo diploma. Aliás, se tal entendimento fosse procedente, estava aberto o caminho para o desfecho paradoxal de se tributarem como rendimentos de capitais os adiantamentos por conta de lucros efetuados de acordo com a legislação comercial, deixando-se sem qualquer tributação aqueles que fossem feitos em infração dessas regras. O princípio geral que rege o direito fiscal é o de que a ilicitude ou irregularidade não compromete a tributação que seja devida, de acordo com o preceituado no artigo 10.º da LGT. Além do mais, como se disse acima, as normas de incidência em exame não postulam, como pressuposto ou condição da tributação, a observância dos requisitos previstos no artigo 297.º do Código das Sociedades Comerciais ou a existência de uma deliberação em Assembleia Geral de acionistas.

 

            Pelo que, estando assumido que o lançamento em causa (conta corrente #2685 – (Rest.) Acionistas/Sócios, por contrapartida da conta da conta 11 – Caixa da empresa) foi efetuado em conta dos sócios e não estando demonstrada nos autos a causa desse lançamento, o mesmo configura, face ao teor do artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS, a disponibilização de lucros ou adiantamento de lucros aos sócios da Requerente, pelo que esta devia ter retido na fonte o IRS à taxa de 28%, nos moldes preconizados pela Requerida.

 

            Acautelado, como está, que a norma constante no artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS não consagra uma presunção inilidível, é manifesto que não ocorre ofensa do princípio da capacidade contributiva (ínsito no princípio da igualdade), nem a Requerente indica como e em que dimensão tal princípio resultaria violado.

 

            À face do exposto conclui este Tribunal Arbitral pela improcedência da ação. De notar que, em relação ao pedido de anulação do ato tributário por ilegalidade da “decisão de avaliação indireta da matéria coletável”, independentemente do que antecede, o mesmo é manifestamente improcedente, tendo em conta que a liquidação de IRS controvertida não teve por base uma matéria coletável presumida pela AT, mas os valores diretamente inscritos na contabilidade pela própria Requerente, inexistindo qualquer “decisão de avaliação indireta”.

 

* * *

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – v. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

V.        Decisão

 

            À face do exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar a ação arbitral improcedente in totum, com a manutenção da liquidação adicional de IRS e juros compensatórios inerentes, referentes ao período de tributação de 2021, no valor global de € 26.755,30, com as legais consequências.

 

 

VI.       Valor do Processo

 

Fixa-se ao processo o valor de € 26.755,30 correspondente ao valor da liquidação de IRS (por retenção na fonte), incluindo juros compensatórios, cuja anulação a Requerente pretende e não contestado pela Requerida, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

 

 

VII.     Taxa de Arbitragem

 

            Dada a modalidade de designação de árbitro pelo sujeito passivo, a taxa de arbitragem, no montante de € 6 000,00 (seis mil euros), foi paga e constitui encargo da Requerente, nos termos do disposto no artigo 5.º do RCPAT e da Tabela de Custas a este anexa.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de março de 2025

 

 

Os árbitros,

 

Alexandra Coelho Martins, relatora

 

 

 

 

Clotilde Celorico Palma

(vencida, nos termos da declaração infra)

 

 

Jorge Carita

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Voto de vencida

 

Como passamos a expor, não nos podemos rever nos fundamentos e conclusões constantes da decisão em apreço.

 

  1. Factos provados

 

Não podemos concordar com os factos dados como provados no presente processo, não se tendo, a nosso ver, valorado devidamente a prova testemunhal produzida e as dúvidas suscitadas que colocam manifestamente em crise a presunção ora em causa.

Com efeito, tal como referiu a testemunha C..., gerente da sociedade, não teve conhecimento dos factos em apreço senão após a ocorrência do procedimento inspectivo, sendo que não ocorreu qualquer distribuição efectiva da sociedade para a sua conta.

De acordo com o esclarecimento prestado pelo Contabilista Certificado responsável pela contabilidade da Requerente D..., o valor do saldo de caixa resulta de valores que vinham já, em cerca de 15%, 20%, de 2020.

Tal como afirmou, fez a contabilidade em conformidade com o sistema e-factura, num conhecido período conturbado de COVID 19, e o exercício de 2020 foi encerrado quando na realidade faltavam documentos, pelo que os saldos das contas bancárias não correspondiam com os saldos de caixa, tendo-se apercebido apenas em 2021 desta situação, sem, contudo, ter informado o seu cliente. Apenas aquando do procedimento de inspecção é que se voltou a recordar do assunto, tendo informado o seu cliente e procedido à correspondente regularização.

Tal como declarou, não há qualquer documentação que, no decurso da acção inspectiva, evidenciasse quaisquer distribuições da sociedade para os sócios, facto este que nem sequer foi invocado nem posto em crise pela Requerida.

Cremos, assim, estar perante uma clara incúria do Contabilista Certificado, que, aliás, o assumiu expressamente no seu depoimento.

Não existem motivos para pôr em causa a veracidade e imparcialidade dos depoimentos prestados.

 

  1. Da relevância da prova testemunhal no caso em apreço

 

Tal como refere António Lima Guerreiro em anotação ao artigo 72.º da LGT: "O órgão instrutor tem a liberdade de escolha das diligências de prova apropriadas à descoberta da verdade material (...) É, no entanto, ao órgão instrutor que compete, em última instância, a opção pelos meios probatórios indispensáveis à descoberta da verdade material, não estando vinculada à iniciativa dos interessados. Pode, assim, rejeitar as diligências probatórias por estes solicitadas, no caso de, fundamentadamente, entender elas serem desprovidas de interesse para a resolução do procedimento, sem prejuízo da possibilidade de reclamação ou impugnação da decisão final do procedimento pelos lesados, por motivo de violação do princípio do inquisitório."[5]

Tal entendimento é igualmente corroborado por Jorge Lopes de Sousa em anotação ao artigo 50.º do CPPT: "É ao órgão instrutor que cabe escolher quais os meios de prova a utilizar para prova dos factos cujo conhecimento releve para a decisão, podendo determinar aos Interessados a prestação de informações, a apresentação de documentos ou coisas, a sujeição a inspecções e a colaboração noutros meios de prova (art. 89.º, n.º 1 do CPA). Porém, os interessados podem juntar documentos e pareceres e requerer a realização de diligências de prova úteis para o esclarecimento dos factos com interesse para a decisão (art. 88.º, n.º 2 do CPA). No entanto, o órgão instrutor poderá não realizar as diligências requeridas se as considerar desnecessárias para apuramento dos factos que interessam para a decisão."[6]

Ora, no presente caso resulta manifesto do depoimento das testemunhas que, no mínimo, existem dúvidas sobre o ocorrido.

Com efeito, a prova testemunhal neste caso é bastante relevante, afigurando-se-nos que as testemunhas prestaram o seu depoimento com o conhecimento pessoal, a isenção e o rigor necessários.

Tal como se decidiu na decisão arbitral de 2 de Setembro de 2019 relativa ao Processo n.º 59/2019T, em cujo colectivo participámos e foi Relator o Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, existindo dúvidas sobre a matéria de facto em causa, “O procedimento tributário deve culminar com uma decisão da administração tributária, que tem de assentar em pressupostos de facto.

Porém, pode suceder que, após a produção de prova, a administração tributária fique com dúvidas sobre a situação factual que interessa conhecer para tomar a sua decisão.

Para possibilitar à administração tributária decidir nos casos em que, após a produção de prova possível, ficar com uma dúvida insanável sobre qualquer ponto da matéria de facto, estabeleceram-se as regras do ónus da prova.

O funcionamento destas regras, assim, ocorre apenas quando, após a actividade de fixação da matéria de facto, directamente a partir dos meios de prova e indirectamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida.

Por força das regras do ónus da prova devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova. ( [7] )

(…)

O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

Assim, «o órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito» (artigo 72.º da LGT) e no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

Entre «todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos» inclui-se a prova testemunhal, que é um meio de prova admitido em direito, pois não existe qualquer norma que directa ou indirectamente afaste a sua utilização» (artigo 392.º do Código Civil).”

Tal como se conclui na presente decisão, a AT não é onerada com a demonstração de causas possíveis dos lançamentos em contas correntes dos sócios, devendo a norma do artigo 6.º, n.º 4 do Código do IRS ser interpretada no sentido de que a presunção aí consagrada funciona enquanto a causa jurídica da atribuição das quantias lançadas em contas correntes de sócios não for declarada ou revelada (v. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de julho de 2024, no processo n.º 920/21.9BEPRT).

Contudo, não podemos concordar com a afirmação peremptória de que a Requerente não fez a prova de que os lançamentos na conta de sócios foram efectuados em razão de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, daí se retirando a ilacção de que então estes deverão ser qualificados como lucros ou adiantamento dos lucros e tributados a título de rendimentos de capitais.

Com efeito, não podemos concordar que a prova testemunhal não logrou pôr em crise a presunção ora em causa, não se podendo sequer afirmar que neste caso a dúvida relevante assenta na ausência ou inércia probatória da parte onerada com a prova, não se podendo, enquanto tal, considerar fundada.

De facto, como começámos por referir, a prova testemunhal produzida aponta no sentido defendido pela Requerente, subsistindo, quanto muito, dúvidas fundadas de que o lançamento a débito, a 31 de Dezembro de 2021, da importância de € 100.000,00, na conta #2685 – “(Rest.) Accionistas (sócios)”, que resultou no saldo a débito dessa mesma conta de € 87.631,77, após dedução do saldo de abertura a crédito de € 12.368,23, corresponda a um lançamento indevido e que não tenha subjacente uma entrega real de meios financeiros aos sócios (v. artigos 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º e 20.º do ppa).

No mesmo sentido, entendemos que sempre subsistem dúvidas fundadas de que o valor a débito da conta #11 – Caixa, a 1 de Janeiro de 2021, no montante de € 102.119,11, seja o reflexo de anteriores recebimentos e pagamentos não correctamente reflectidos na contabilidade, em anos anteriores (v. artigos 23.º a 25.º do ppa).

 

  1. Conclusão final

 

Conforme se conclui no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 10 de Março de 2016 (Processo n.º 12843/15): “II – O ónus da prova, que não se confunde com um dever de provar, é um instituto de direito material regulado nos artigos 342º ss do Código Civil atual, que pode ser definido como a regra de julgamento da causa segundo a qual, num contexto processual onde sobressaem os princípios do inquisitório (artigo 411º do Código de Processo Civil) e da aquisição processual (artigo 413º do Código de Processo Civil), a parte (autor ou réu) que invoque a seu favor uma situação jurídica tem contra si o risco de não serem adquiridos no processo os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, são idóneos a fazer nascer a situação jurídica favorável invocada, ficando, assim, essa parte processual sujeita à improcedência da sua pretensão no caso de insuficiência da aquisição processual dos factos fundamentadores da situação jurídica invocada.”

De harmonia com o disposto no artigo 100.º do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, quando não foram utilizados métodos indirectos, “sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.” (cfr., nomeadamente, Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul exarados nos Processos n.º 07452/14, de 18 de Junho de 2015, n.º 09370/16, de 28 de Abril de 2016, n.º 0560/2005, de 24 de Maio de 2005, e n.º 04417/10, de 1 de Fevereiro de 2011, entre outros).

Em conformidade com jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a dúvida fundada sobre a existência e quantificação do facto tributário, que determina a aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, tem de resultar da prova produzida nos autos pela parte onerada com o ónus da prova (que no caso concreto é a Requerente): “IV - Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado (artº 100º, nº 1 do CPPT).” – cfr. Acórdão de 1 de Junho de 2011, Processo n.º 211/11.

Ora, tal como salientam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, cit., p. 415), “O due process positivado na Constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa (…), mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.”

Face ao exposto, existindo na situação controvertida, manifestamente, dúvidas fundadas, cremos que resulta a final do exposto que, neste caso, não se pode afirmar com segurança ter sido produzida prova clara consolidada no sentido pretendido pela AT, pelo que, em nosso entendimento, estamos perante uma situação de fundadas dúvidas sobre os fundamentos subjacentes às liquidações impugnadas.

Com efeito, em nosso entendimento, foi produzida prova testemunhal pela Requerente que permite suscitar a dúvida fundada sobre a existência do aludido lançamento indevido que não tenha subjacente uma entrega real de meios financeiros aos sócios, bem como sobre o reflexo de anteriores recebimentos e sobre pagamentos não correctamente reflectidos na contabilidade, em anos anteriores, pelo que tem este tribunal arbitral amparo legal para convocar a estatuição do citado artigo 100.º, n.º 1, do CPPT.

Pelo exposto, justificar-se-ia, no mínimo, a anulação das liquidações de IRS impugnadas, com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto, nos termos do disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, que determina que “São anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção.”

 

 

Lisboa, 19 de Março de 2025

 

A Árbitra Vogal

 

Clotilde Celorico Palma

 

 

 



[1] V. José Guilherme Xavier de Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pp. 230-231. Afastando-se da natureza anti-abusiva desta presunção, Gustavo Lopes Courinha, considera que “tem como desiderato facilitar a qualificação jurídica dos rendimentos (como lucros ou adiantamentos dos mesmos) […]. Quer dizer: não se vislumbrando causa para qualificar os lançamentos em conta enquanto rendimentos da Categoria A ou como mútuo, opera a qualificação presuntiva das quantias enquanto remunerações dos sócios enquanto tal.” – v. declaração de voto no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 11 de julho de 2024, processo n.º 0920/21.9BEPRT.

[2] V. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS, 2.ª edição, Almedina, 2008, p. 101.

[3] V. José Guilherme Xavier de Basto, op.cit, p. 338.

[4] V. Paula Rosado Pereira, Manual de IRS, 2.ª edição, Almedina, 2019, pp. 136-138.

[5] António Lima Guerreiro in Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2001, pp. 323 e ss, em anotação ao artigo 72º da LGT.

[6] Jorge Lopes de Sousa in Código do Procedimento e do Processo Tributário anotado, 4ª edição, Vislis Editores, 2003, em anotação ao artigo 50.º