SUMÁRIO
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A liberdade de circulação de capitais é estabelecida pelo artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) como uma liberdade fundamental que impõe a proibição de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-membros e entre Estados-membros e países terceiros, como os EUA.
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A liberdade de circulação de capitais goza de primazia normativa sobre o direito interno, cabendo aos poderes públicos legislativos e administrativos a tomada das medidas internas de transposição, execução e aplicação, consoante os casos, do direito primário e secundário relevante, de forma a assegurar a efetividade da livre circulação de capitais.
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As normas do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º do EBF, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal diferenciado para os OICs que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia ou de País Terceiro, violam o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Rita Correia da Cunha, Magda Feliciano e José Nunes Barata, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:
I – RELATÓRIO
A..., Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”) constituído de acordo com o direito norte-americano, com o número de contribuinte português ..., com sede em ..., ..., ...Nova Iorque, Estados Unidos da América (“o Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“AT” ou “Requerida”), com vista à anulação do acto de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada, que manteve na ordem jurídica a retenção da fonte de IRC referente ao ano de 2022, efetuada a título definitivo através das guias n.º ... (2022-05), no montante de € 507.512,96, e n.º ... (2022-12), no montante de € 270.996,07, por vício de violação de lei, em concreto por violação do Direito da União Europeia e da Constituição da República Portuguesa.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite em 27 de Agosto de 2024 pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
O Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 4 de Novembro de 2024.
A Requerida, tendo sido notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, para apresentar a sua resposta, veio sustentar, em 9 de dezembro de 2024, a improcedência do PPA e a manutenção na ordem jurídica dos atos tributários impugnados. Na mesma data, a Requerida juntou o processo administrativo (“PA”).
Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal Arbitral dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, através de despacho proferido em 14 de janeiro de 2025, tendo sido notificado o Requerente para exercer o contraditório, o que veio a fazer, a 31 de janeiro de 2025.
Por despacho de 25 de fevereiro de 2025, o Requerente foi notificado para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, e as partes notificadas de que a decisão arbitral seria proferida até ao final do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT.
II - ARGUMENTOS DAS PARTES
Os argumentos trazidos aos autos centram-se, fundamentalmente, na questão da conformidade da aplicação da taxa de retenção na fonte aos dividendos de fonte portuguesa distribuídos ao Requerente, na qualidade de não residente fiscal em Portugal, com a liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE.
A este propósito, entende o Requerente:
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Entende o Requerente que decorre do Acórdão do TJUE, de 17.03.2022, que correu termos sob o n.º C-545/19 (AllianzGI-Fonds AEVN), o seguinte: “O artigo 63.° TFUE [relativo à liberdade de circulação de capitais] deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.
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Esta linha de entendimento foi mais recentemente firmada, em definitivo, pelo Acórdão uniformizador de jurisprudência proferido em 28 de setembro de 2023, no âmbito do processo n.º 93/19.7BALSB.
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A jurisprudência tem igualmente sido unânime no reconhecimento da aplicação da liberdade de circulação de capitais nas relações com Países Terceiros (cfr. Acórdão do TJUE Sanz de Lera, processos apensos C-163/94, C-165/94 e C-250/94, de 15.12.1994, Acórdão do TJUE FII Group Litigation, processo C-446/04, de 12.12.2006 e Acórdão do TJUE Emerging Markets Series, processo C-190/12, de 10.04.2014).
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Para efeitos de aferir se uma legislação nacional como a que está em causa (artigo 22.º do EBF) constitui uma restrição à liberdade de circulação de capitais, proibida pelo artigo 63.º do TFUE, urge responder às seguintes três perguntas: A legislação interna prevê uma diferença de tratamento entre residentes e não residentes? Essa diferença de tratamento é suscetível de estar abrangida pelo artigo 63.º do TFUE? A diferença de tratamento que resulta da legislação interna é suscetível de dissuadir as entidades não residentes de realizarem investimentos naquele outro Estado – Portugal?
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Quanto à primeira questão, entende o Requerente que resulta inquestionável que existe uma diferença de tratamento conferida pela legislação fiscal portuguesa, entre os OIC residentes e os OIC não residentes, na tributação de dividendos de fonte portuguesa.
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No que respeita à comparabilidade das situações, enquanto critério na avaliação da conformidade de determinado normativo com o Direito da UE, cumpre clarificar, em linha com o que vem sendo professado pelo TJUE, que a partir do momento em que um Estado Membro estende a sua soberania tributária a contribuintes não residentes, sujeitando, de modo unilateral ou por via convencional, a imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente a dividendos que recebam de uma sociedade residente, a situação dos contribuintes não residentes é comparável à situação dos contribuintes residentes (v., neste sentido, Acórdãos do TJUE de 14 de dezembro, Denkavit International e Denkavit France, C-170/05, parágrafo 35; de 20 de outubro de 2011, Comissão/Alemanha, C-284/09, parágrafo 56; de 17 de setembro de 2015, Miljoen e o., C-10/14, C-14/14 e C-17/14, parágrafo 67; e de 17 de março de 2022, AlliaznGI-Fonds AEVN, C-545/19).
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Esclareceu o TJUE, no referido acórdão que “há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C-338/11 a C-347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C-375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação directa entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C-342/10, EU:C:2012:688, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C-641/17, EU:C:2019:960, n.° 87)” (cfr. AllianzGI- Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 78).
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Assim, “[a] necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”, que é em tudo idêntico ao caso dos presentes autos arbitrais (cfr. Acórdão do TJUE AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 81).
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Nestes termos, tendo o regime interno que impõe a aplicação de retenção na fonte a dividendos distribuídos a um OIC não residente – como o Requerente – (enquanto se prevê que os dividendos distribuídos a OIC residentes estão isentos dessa retenção) sido expressamente e sem reservas julgado incompatível com o Direito da UE no passado dia 17 de março de 2022, impõe-se a anulação dos atos de retenção na fonte sindicados, por força do princípio do primado consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP.
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Face a tudo o acima exposto e, em concreto, face à situação fáctica objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, é evidente que deveria a reclamação graciosa previamente apresentada pelo ora Requerente ter sido julgada integralmente procedente, por se mostrarem ilegais os atos de retenção na fonte de IRC incidentes sobre os pagamentos de dividendos relativos ao ano de 2022, por violação do princípio do primado consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, o que motivará a integral procedência do presente pedido arbitral, concluindo-se pela anulação dos atos tributários ora sindicados e pelo direito do Requerente à restituição do imposto indevidamente suportado, acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos nos termos do artigo 43.º da LGT, tudo com as demais consequências legais.
Por sua vez, a AT defende, em suma, o seguinte:
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O regime que resulta da jurisprudência do TJUE não é aplicável ao Requerente - pessoa coletiva constituída de acordo com a legislação norte-americana - por falta de enquadramento com o disposto no n.º 1 do artigo 22.º do EBF.
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Ora, no caso em apreço, conforme informado, o Requerente é residente fiscal nos Estados Unidos da América e, não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF.
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Acresce que, a Requerente não tem sequer estabelecimento estável em Portugal pelo que não se lhe podia sequer aplicar a interpretação em coerência com o regime geral dos OIC, que são OIC que se constituem e operem em Portugal, através, conforme previsto e permitido pela legislação portuguesa, de um estabelecimento estável de uma entidade gestora autorizada noutro Estado Membro da União Europeia.
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Ainda no Acórdão Marks & Spencer (C-446/03), o TJUE concluiu que a residência pode constituir um fator justificador das normas fiscais que implicam uma diferença de tratamento entre contribuintes residentes e não residentes.
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Aliás, o TFUE refere expressamente que “a proibição de todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros (art. 63º, nº 1, do TFUE), não prejudica os Estados-Membros de “Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido” [art. 65.º, n.º 1, alínea a), do TFUE] (Acórdão do STA proferido no processo n.º 01435/12, em 20.02.2013).
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Também o Supremo Tribunal Administrativo (STA), no âmbito do processo n.º 0654/13, de 27 de novembro, referiu que: “Resulta da jurisprudência comunitária que embora da legislação nacional decorra, em abstrato, uma restrição à livre circulação de capitais não consentida pelo art. 56º do Tratado da Comunidade Europeia (atual art. 63º TFUE), importa averiguar se essa restrição, consubstanciada em maior tributação de entidade não residente, será neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação.”
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No presente caso, não parece estarmos em presença de situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente.
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Assim, os rendimentos auferidos por não residentes sem estabelecimento estável em Portugal, no caso em apreço os dividendos, estão sujeitos a tributação em Portugal, nos termos do ponto 3) da alínea c) do n.º 3 do art.º 4.º do CIRC através da retenção na fonte a título definitivo - nos termos dos art.º 94.º n.º 1 al. c), n.º 3 al. b) e n.º 5 – à taxa de 25% prevista pelo art.º 87.º n.º 4, ambos do CIRC.
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A Autoridade Tributária está vinculada ao respeito do princípio (sacramental) da legalidade, conforme dispõe o artigo 266.º, n.º 2, da CRP e artigo 55.º da LGT, consubstanciando-se na obediência à lei e ao direito.
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Sendo certo que, no caso sub judice, em face da matéria de facto e dos documentos juntos aos autos entende-se que o Requerente não fez prova da discriminação proibida.
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E ainda que o Requerente não conseguisse recuperar o imposto retido na fonte em Portugal no seu estado de residência (Estados Unidos da América), também não está demonstrado que o imposto não recuperado pelo Fundo não possa vir a ser recuperado pelos investidores.
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Por conseguinte, considerando-se que, à luz do disposto no artigo 348.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar direito estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo, o Requerente não fez prova da discriminação proibida, pelo que só se pode defender a improcedência do pedido, por falta de prova da impossibilidade de neutralização da discriminação contestada.
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Recordando a este propósito os Acórdãos do STA proferidos nos processos n.º 1192/13, de 21.05.2015, n.º 1435/12, de 9.07.2014, n.º 884/17, de 12.09.2018, e o já citado processo n.º 19/10.3BELRS, de 7.05, defende a AT que é manifesto que os actos de retenção na fonte de IRC ora mediatamente controvertidos devem ser mantidos na ordem jurídica, tendo ficado claramente demonstrado que a argumentação aduzida no pedido de pronúncia arbitral deverá improceder, não se reconhecendo, em consequência, o direito a quaisquer juros indemnizatórios.
III – SANEAMENTO
O PPA é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, n.º 3, alínea b), todos do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não padece de nulidades ou de quaisquer outros vícios que o invalidem, podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
Considerando a prova junta aos autos e que o Requerente exerceu o direito ao contraditório relativamente à resposta ao PPA submetida pela Requerida, o Tribunal Arbitral dispensa a apresentação de alegações finais escritas.
IV - DO MÉRITO
QUESTÃO DECIDENDA
A questão decidenda consiste em determinar a conformidade das normas relevantes do Código do IRC e do EBF em vigor à data dos factos tributários relativas ao regime de tributação dos dividendos auferidos pelo OIC em causa com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais. Por outras palavras, em causa está saber se a retenção na fonte em IRC sobre os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a OICs estabelecidos em Países Terceitos (in casu, nos EUA), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OICs estabelecidos e domiciliados em Portugal, viola o artigo 63.º do TFUE.
MATÉRIA DE FACTO
Factos provados
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O Requerente é um fundo de investimento mobiliário constituído e a operar de acordo com o direito norte-americano, com residência fiscal nos Estados Unidos da América (“EUA”) (cfr. Documento n.º 1 junto ao PPA).
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A gestão do Requerente é levada a cabo pela entidade C... LLC, sociedade residente, para efeitos fiscais, nos EUA (cfr. alegado no artigo 2.º do PPA, e não contestado pela Requerida).
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O Requerente detém investimentos financeiros em Portugal, consubstanciados na detenção de participações sociais em sociedades residentes em Portugal (cfr. alegado no artigo 3.º do PPA, e não contestado pela Requerida).
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Em 2022, o Requerente auferiu dividendos distribuídos pela sociedade B... SGPS, S.A., na qualidade de acionista desta sociedade residente em Portugal (cfr. alegado no artigo 4.º do PPA, e não contestado pela Requerida).
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Os dividendos recebidos no decorrer do ano de 2022 foram sujeitos a tributação por retenção na fonte liberatória, à taxa de 15% prevista no Acordo para Evitar a Dupla Tributação (“ADT”) celebrado entre Portugal e os Estados Unidos da América, no montante global de € 778.509,03, conforme demonstrado na seguinte tabela:
Ano da Retenção
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Valor Bruto do Dividendo
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Data de Pagamento
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Taxa de Retenção na Fonte
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Guia de pagamento
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Retenção na fonte (ADT) (€) – 15%
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2022
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3 308 236,32
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19.05.2022
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15%
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…
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496 235,45
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2022
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75 183,42
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19.05.2022
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15%
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…
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11 277,51
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2022
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1 806 640,45
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23.12.2022
|
15%
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…
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270 996,07
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TOTAL
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778 509,03
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(cfr. alegado no artigo 7.º do PPA e Documento 2 junto ao PPA).
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Em 02.02.2024, o Requerente deduziu reclamação graciosa (autuada com o n.º ...2024...) contra os actos de retenção na fonte supra identificados, defendendo a anulação dos mesmos com fundamento na discriminação injustificada no que respeita ao tratamento fiscal dado a Organismos de Investimento Colectivo (OIC) que se constituam e operem de acordo com a legislação de outro Estado Membro ou de um Estado Terceiro (“OICS não residentes”) (cfr. Documento n.º 3 junto ao PPA).
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Em 24.05.2024, o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa fundada no entendimento de que “(…) não cabe à AT invalidar ou desaplicar o direito nacional em consequência de decisões do TJUE, substituindo-se ao legislador para além daquilo que possa considerar-se uma interpretação razoável, e de que:
“(…) no que diz respeito aos OIC não residentes (que não disponham de um estabelecimento estável em território português), os mesmos não têm enquadramento na atual previsão do n.º 1 do art.º 22.º do EBF e, consequentemente, dos n.ºs 2, 3 e 10 da referida norma legal.
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Na esteira do Acórdão do TJUE, no âmbito do n.º 10 do art.º 22.º do EBF, estão incluídos OIC constituídos nos demais Estados-membros e, por maioria de razão, os OIC constituídos nos demais Estados-membros da UE e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
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Pelo que, nos parece viável uma interpretação jurídica conforme ao direito europeu, segundo a qual no âmbito da dispensa de retenção, estarão incluídos os OIC’s não residentes e que operem em território português através de um estabelecimento estável aqui situado.
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Ora, no caso em apreço, conforme informado, o Reclamante não é residente fiscal e não dispõe de estabelecimento estável em Portugal, pelo que, não se encontra enquadrado no n.º 1 do art.º 22.º do EBF.”
(cfr. Documento n.º 4 junto com o PPA).
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Em 26.08.2024, o Requerente apresentou o PPA que deu origem aos presentes autos.
Factos não provados
Não existem factos alegados com relevância para a decisão da causa que não tenham sido dados como provados.
Fundamentação da fixação da matéria de facto
Ao Tribunal incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é definida tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como resulta do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Tendo em conta as posições assumidas pelas partes, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7, e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental e o PPA junto aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Na resposta ao PPA, a Requerida refere que o imposto retido ao Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera do Requerente, bem como na esfera dos investidores (cfr. artigos 43.º e 44.º). A este propósito, cumpre notar que, se é verdade que a tributação no Estado de Residência pode, em certas circunstâncias, ser relevante para aferir da compatibilidade de retenções na fonte com o TFUE, também é verdade que esta questão não foi suscitada na decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada. Assim sendo, não cumpre ao Tribunal Arbitral apreciar a legalidade ou ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada (e dos atos de retenção na fonte a ela subjacentes), com este fundamento, à luz do princípio da proibição da fundamentação a posteriori, princípio este reconhecido de forma consistente pelo Doutro Supremo Tribunal Administrativo em vários Acórdãos, entre os quais:
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Acórdão de 28.10.2020, processo n.º 02887/13.8BEPRT: “o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori”.
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Acórdão de 15.05.2013, processo n.º 01429/12: “(...) não é de admitir a fundamentação à posteriori, apenas sendo de atender à fundamentação contextual, ou seja, aquela que se integra no próprio ato, pois que, praticado um ato com determinada fundamentação, a apreciação contenciosa da sua legalidade tem de se fazer em face dessa mesma fundamentação”.
MATÉRIA DE DIREITO
Com o presente processo cabe aferir da conformidade da retenção na fonte em IRC de 15% sobre os dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal (REN) a OICs estabelecido num país terceiro (in casu, EUA), simultaneamente isentando de tributação a distribuição de dividendos a OICs estabelecidos e domiciliados em Portugal, com os princípios estabelecidos no TFUE, em particular com o artigo 63.º do TFUE que garante a liberdade de circulação de capitais.
Tal como resulta da matéria de facto assente, o Requerente é uma pessoa coletiva constituída como um fundo de investimento mobiliário ao abrigo da lei dos EUA, e residente nos EUA, sendo, para efeitos de IRC, um sujeito passivo não residente e sem estabelecimento estável em território português. Em 2022, o Requerente auferiu dividendos com fonte em território português, tendo estes dividendos sofrido uma retenção na fonte no montante total de € 778.509,03.
Os OIC são atualmente regulados pelo Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Coletivo (“RJOIC”), aprovado pela Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, que transpôs parcialmente para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2011/61/UE, do Parlamento e do Conselho de 8 de junho de 2011, relativa aos gestores de fundo de investimento alternativo e a Diretiva n.º 2013/14/UE, do Parlamento e do Conselho de 21 de maio de 2013, relativa aos gestores de fundos de investimento alternativo no que diz respeito à dependência excessiva relativamente às notações de risco. E na sequência da entrada em vigor do RJOIC, foi igualmente alterado o regime fiscal dos OIC pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 janeiro.
Nessa medida, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, “Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1”.
Tendo a AT através da Circular 6/2015, de 17 de Junho esclarecido quanto ao artigo 22.º do EBF que: “Esta exclusão abrange todos os rendimentos, realizados ou potenciais, que tenham a natureza de rendimentos de capitais, prediais ou mais-valias, incluindo, nomeadamente, as menos-valias realizadas ou potenciais, os rendimentos vencidos e ainda não recebidos, os rendimentos e gastos decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos financeiros e imóveis que integram o património do fundo, bem como os gastos ou perdas associados a variações cambiais, os quais consubstanciam, por natureza, rendimentos daquelas categorias e, de acordo com o normativo contabilístico aplicável aos OIC, devem ser contabilizados conjuntamente com os ativos que lhes deram origem.”
Cumpre, assim, analisar se o artigo 22.º do EBF, ao excluir de tributação os dividendos auferidos por OIC residentes em território nacional, e sujeitar a retenção na fonte os dividendos auferidos por entidades equivalentes não residentes, configura uma restrição à livre circulação de capitais, nos termos do artigo 63.º do TFUE.
Sem mais delongas, adiante-se desde já que entende este Tribunal Arbitral que assiste razão ao Requerente quando defende que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OIC constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OIC constituídos segundo a legislação de países terceiros (como sejam os EUA), viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE, em linha com jurisprudência arbitral recente nesta matéria: Decisão Arbitral de 20-09-2023, processo n.º 12/2023-T; Decisão Arbitral de 23-02-2024, processo n.º 777/2023-T; Decisão Arbitral de 28-03-2024, processo n.º 840/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 577/2023-T; Decisão Arbitral de 12-04-2024, processo n.º 842/2023-T; Decisão Arbitral de 15-04-2024, processo n.º 849/2023-T; Decisão Arbitral de 21-05-2024, processo n.º 839/2023-T; Decisão Arbitral de 11-06-2024, processo n.º 60/2024-T; Decisão Arbitral de 24-06-2024, processo n.º 850/2023-T.
Relembre-se a jurisprudência do STA vertida no Acórdão de 13/09/2023, processo n.º 715/18.7BELRS (subscrita por vários Acórdãos subsequentes do mesmo Tribunal, designadamente nos processos: 0802/21.4BELRS, de 08/05/2024; 0806/21.7BELRS e 0755/19.9BELRS, ambos de 29/05/2024; e 0757/19.5BELRS de 05/06/2024). E mais recentemente também pelo STA no processo n.º 01676/20.8BELRS, de 11/07/2024. E na mesma senda deste último Acórdão, por se aderir aos fundamentos expressos no citado no Acórdão do STA de 13/09/2023, remete-se para o mesmo, destacando-se o excerto que de seguida se transcreve:
“Como referimos, o Tribunal recorrido assentou a sua decisão no acórdão do TJUE, de 17 de março de 2022, proferido no processo C-545/19. Sobre este acórdão a AT não se pronuncia nas suas conclusões de recurso, designadamente não afasta a doutrina que dele emana ao caso em apreço.
Ora, no acórdão em referência estava em causa um reenvio prejudicial apresentado no âmbito de um litígio que opunha a AllianzGI-Fonds AEVN à Autoridade Tributária e Aduaneira (Portugal), a respeito da retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas relativo aos anos de 2015 e 2016. E discutia-se a compatibilidade do artigo 22.º do EBF com o artigo 63.º (livre circulação de capitais) do TFUE, tendo o TJUE concluído que:
O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado - Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
Esta jurisprudência, proferida relativamente a uma OIC de um país Membro da União Europeia, aplica-se manifestamente a uma OIC de um País Terceiro, uma vez que por força do artigo 63.°, n.° 1, do TFUE, a livre circulação de capitais aplica-se tanto aos fluxos de capitais entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e países terceiros, sem nenhuma condição de reciprocidade (Acórdão de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen (C-436/08 e C-437/08). Esta característica distingue a livre circulação de capitais de todas as outras liberdades do mercado interno, uma vez que estas se aplicam exclusivamente no território dos Estados-Membros.” (negrito nosso)
Daqui se retira, de forma clara, que o artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro, viola o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, quando torna aplicável o regime aí previsto apenas a OIC constituídos à luz da legislação portuguesa, excluindo os que o foram segundo as demais legislações dos Estados Membros da EU ou de países terceiros. In casu, os dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal a um OIC residente num Estado terceiro, são objeto de retenção na fonte, quando, ao invés, os dividendos distribuídos a um OIC que se constitua e opere de acordo com a legislação nacional não estaria sujeito a essa mesma retenção.
Ainda quanto à questão da comparabilidade, recorde-se que a AT veio alegar, na sua resposta, que tais situações não são comparáveis, defendendo que o tratamento fiscal é diferenciado entre um OIC que se constitua e operem de acordo com a legislação nacional e um OIC não residente, porquanto o primeiro é tributado em sede de Imposto do Selo (verba 29 TGIS) e o último não. Porém, no Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferido no processo C-545/19, AllianzGI-Fonds AEVN, foi decidido que tal circunstância é irrelevante, na medida em que não colocam os fundos de investimentos residentes numa situação objetivamente diferente dos fundos de investimento não residentes, tal como resulta dos parágrafos 53 a 58 do referido Acórdão, que se passam a transcrever:
“53 - A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.
54 Além disso, como salientou a advogada-geral no n.o 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C-252/14, EU:C:2016:402).
55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente. 56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.
57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.o , n.o 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.
58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.o 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.o TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado-Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado-Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.”
Conclui-se, assim, que também aqui não assiste razão à Requerida.
Quanto à questão da neutralização, ainda que a mesma tivesse sido apreciada em sede de reclamação graciosa (o que não sucedeu), sempre seria de considerar que não se encontram verificados os requisitos da mesma. Senão vejamos.
A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte (in casu, Portugal) através da atribuição de uma vantagem no Estado da Residência (in casu, EUA) levanta-se quando as partes discutem se as retenções na fonte relativas aos dividendos de fonte portuguesa percecionados pela Requerente deram lugar a um crédito de imposto, parcial ou total, no Estado de Residência (EUA).
Esta questão tem sido discutida em vários Acórdãos do TJUE relativamente à tributação de dividendos pelo Estado da Fonte e, essencialmente, consiste em saber se o Estado da Fonte pode manter uma retenção na fonte sobre dividendos aparentemente discriminatória e não eliminar a dupla tributação económica nacional se a tributação do detentor das participações sociais pelo Estado de Residência for “neutralizada” através de um crédito de imposto atribuído por uma CDT.
Note-se que o TJUE tem sido consistente em rejeitar a neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição unilateral de uma vantagem no Estado da Residência (i.e., uma vantagem conferida pela legislação nacional do Estado da Residência, por oposição a uma vantagem conferida ao abrigo de uma CDT), rejeitando, assim, a noção de que o tratamento discriminatório no Estado da Fonte depende de uma análise integrada da situação global do contribuinte, ou seja, de uma análise que combine a tributação resultante da legislação nacional do Estado da Fonte e do Estado da Residência. Este entendimento radica no princípio de que os Estados-Membros não podem exercer a sua soberania fiscal de forma a introduzir uma discriminação contrária às regras do Direito da União Europeia.
Todavia, o TJUE tem vindo a reiterar que, para aferir o tratamento discriminatório no Estado da Fonte, é necessário analisar a situação do contribuinte à luz não só da legislação nacional do Estado da Fonte mas também da CDT celebrada entre o Estado da Fonte e o Estado da Residência, dado que os preceitos da dita CDT integram o sistema fiscal do Estado da Fonte, e devem ser considerados para determinar se o Estado da Fonte exerceu a sua soberania fiscal de forma conforme às regras do Direito da União Europeia. Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do TJUE de 7 de outubro de 2005, processo C-379/05 (Amurta v. Inspecteur van de Belastingdienst):
“78. Deste modo, o Reino dos Países Baixos não pode invocar a existência de um benefício concedido unilateralmente por outro Estado‑Membro, a fim de se eximir às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado.
79. Em contrapartida, não se pode excluir que um Estado‑Membro consiga garantir o cumprimento das suas obrigações resultantes do Tratado, celebrando uma convenção destinada a evitar a dupla tributação com outro Estado‑Membro (v., neste sentido, acórdão Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).
80. Na medida em que o regime fiscal resultante de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tomá‑lo em consideração a fim de dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao juiz nacional (v., neste sentido, acórdão de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C‑265/04, Colect., p. I‑923, n.° 51; e acórdãos, já referidos, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, n.° 71, Denkavit Internationaal e Denkavit France, n.° 45, assim como Test Claimants in the Thin Cap Group Litigation, n.° 54).
(…)
83. Assim, compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração a CDT no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais salientada no n.° 28 do presente acórdão, no âmbito da resposta à primeira questão
84. Há assim que responder à segunda questão que um Estado‑Membro não pode invocar a existência de um crédito integral de imposto, concedido unilateralmente por outro Estado‑Membro a uma sociedade beneficiária estabelecida neste último Estado‑Membro, a fim de se eximir à obrigação de evitar a dupla tributação económica dos dividendos resultantes do exercício do seu poder de tributação, numa situação em que o primeiro Estado‑Membro evita a dupla tributação económica dos dividendos distribuídos às sociedades beneficiárias estabelecidas no seu território. Quando um Estado‑Membro invoca uma convenção celebrada com outro Estado‑Membro, destinada a evitar a dupla tributação, cabe ao órgão jurisdicional nacional determinar se há que tomar em consideração essa convenção no litígio no processo principal e, sendo caso disso, verificar se esta convenção permite neutralizar os efeitos da restrição à livre circulação de capitais”. (sublinhado nosso)
A questão da neutralização do tratamento discriminatório no Estado da Fonte através da atribuição de uma vantagem no Estado da Residência ao abrigo de uma CDT foi também especificamente discutida no Acórdão do TJUE de 14 de dezembro de 2006, processo C‑170/05 (Denkavit Internationaal BV v. Ministre de l’Économie):
“42 Com as suas segunda e terceira questões, que importa examinar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pretende, no essencial, saber se a resposta à primeira questão pode ser diferente por, ao abrigo da convenção franco‑neerlandesa, a sociedade‑mãe residente nos Países Baixos poder, em princípio, imputar no imposto por si devido neste Estado o imposto cobrado em França e, portanto, a retenção na fonte provir simplesmente da repartição das competências fiscais entre os referidos Estados‑Membros, a qual não pode ser criticada à luz dos artigos 43.° CE e 48.° CE, mesmo que a sociedade‑mãe residente nos Países Baixos esteja impossibilitada de proceder à imputação prevista pela referida convenção.
43 A este respeito, há que começar por recordar que, na falta de medidas de harmonização comunitária ou de convenções celebradas entre todos os Estados‑Membros nos termos do artigo 293.°, segundo travessão, CE, os Estados‑Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados‑Membros são livres de fixar, no âmbito de convenções bilaterais celebradas para prevenir a dupla tributação, os factores de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal (v., neste sentido, acórdãos Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 57, e de 19 de Janeiro de 2006, Bouanich, C‑265/04, Colect., p. I‑923, n.° 49).
44 Porém, há também que referir que, no que toca ao exercício do poder tributário assim repartido, os Estados-Membros não podem eximir-se ao respeito das regras comunitárias, tendo em conta o princípio recordado no n.° 19 do presente acórdão (acórdão Saint-Gobain ZN, já referido, n.° 58). Mais especificamente, esta repartição da competência fiscal não permite que os Estados‑Membros introduzam uma discriminação contrária às regras comunitárias (acórdão Bouanich, já referido, n.° 50).
45 No caso em apreço, uma vez que o regime fiscal resultante da convenção franco‑neerlandesa faz parte do quadro jurídico aplicável ao processo principal e que foi apresentado como tal pelo órgão jurisdicional de reenvio, o Tribunal de Justiça deve tê‑lo em consideração, de modo a dar uma interpretação do direito comunitário que seja útil ao órgão jurisdicional nacional (v., neste sentido, acórdãos de 7 de Setembro de 2004, Manninen, C‑319/02, Colect., p. I‑7477, n.° 21, Bouanich, já referido, n.° 51, e Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 71).
46 No que respeita ao tratamento fiscal resultante da convenção franco‑neerlandesa, há que recordar que uma sociedade não residente, como a Denkavit Internationaal, está em princípio autorizada, ao abrigo desta convenção, a imputar no imposto por si devido nos Países Baixos a retenção na fonte de 5% cobrada sobre os dividendos de origem francesa. Esta imputação não pode, todavia, exceder o montante do imposto neerlandês normalmente devido sobre estes dividendos. Ora, é pacífico que as sociedades‑mãe neerlandesas estão isentas pelo Reino dos Países Baixos do imposto sobre os dividendos de origem estrangeira, e portanto de origem francesa, pelo que não é concedida qualquer redução pela retenção na fonte francesa.
47 Assim, há que concluir que a aplicação conjugada da convenção franco‑neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento referida no quadro da resposta à primeira questão.
48 Com efeito, em aplicação da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente, uma sociedade-mãe estabelecida nos Países Baixos, que recebe dividendos de uma filial estabelecida em França, está sujeita a tributação através de retenção na fonte, limitada, é certo, pela referida convenção, a 5% do montante dos dividendos em questão, ao passo que uma sociedade-mãe estabelecida em França, como foi referido no n.° 4 do presente acórdão, está quase totalmente isenta dessa tributação.
49 Seja qual for a sua amplitude, a diferença de tratamento fiscal que resulta da aplicação desta convenção e desta legislação constitui uma discriminação em detrimento das sociedades‑mãe, em razão da localização da respectiva sede, incompatível com a liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado.
50 Com efeito, mesmo uma restrição à liberdade de estabelecimento, com pequeno impacto ou de menor importância, é proibida pelo artigo 43.° CE (v., neste sentido, acórdãos Comissão/França, já referido, n.° 21; de 15 de Fevereiro de 2000, Comissão/França, C‑34/98, Colect., p. I‑995, n.° 49; e de 11 de Março de 2004, De Lasteyrie du Saillant, C‑9/02, Colect., p. I‑2409, n.° 43).
51 A este respeito, o Governo francês alega que, segundo os princípios consagrados pelo direito fiscal internacional e como também decorre da convenção franco‑neerlandesa, é ao Estado de residência do contribuinte, e não ao da fonte dos rendimentos tributados, que incumbe corrigir os efeitos de uma dupla tributação.
52 Esta argumentação não pode ser acolhida, dado que não é pertinente no presente contexto.
53 Com efeito, a República Francesa não pode invocar a convenção franco‑neerlandesa, a fim de escapar às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado (v., neste sentido, acórdão de 28 de Janeiro de 1986, Comissão/França, já referido, n.° 26).
54 Ora, a aplicação conjugada da convenção franco-neerlandesa e da legislação neerlandesa pertinente não permite evitar a tributação em cadeia a que está sujeita, diversamente de uma sociedade‑mãe residente, uma sociedade‑mãe não residente, nem, portanto, neutralizar os efeitos da restrição à liberdade de estabelecimento salientada no quadro da resposta à primeira questão submetida, como se concluiu nos n.os 46 a 48 do presente acórdão.
55 Com efeito, enquanto as sociedades‑mãe residentes beneficiam de um regime fiscal que lhes permite evitar uma tributação em cadeia, como foi recordado no n.° 37 do presente acórdão, as sociedades‑mãe não residentes estão, pelo contrário, sujeitas a este tipo de tributação dos dividendos distribuídos pelas suas filiais estabelecidas em França.” (sublinhado nosso)
Não obstante alguma inconsistência na aplicação do conceito de neutralização que se discute,[1] vários Acórdãos demonstram que o TJUE tem decidido, de forma consistente, que as CDTs devem ser consideradas para determinar a existência de um tratamento discriminatório: Acórdão do TJUE de 19 de novembro 2009, processo C-540/07 (Commission v. Italy), Acórdão do TJUE de 3 de junho 2010, processo C-487/08 (Commission v. Spain), Acórdão do TJUE de 17 de setembro de 2015, processos C-10/14, C-14/14 and C-17/14 (Miljoen).
Ora, no caso sub judice, é claro e evidente que a aplicação da CDT entre Portugal e os EUA, nos termos da qual parte dos dividendos auferidos pelo Requerente foi sujeita a uma taxa de retenção na fonte reduzida (15%), não resultou na neutralização da diferença de tratamento, resultante da legislação nacional portuguesa, entre os dividendos auferidos por OICs com residência fiscal em Portugal e os dividendos auferidos pelo Requerente.
Importa também recordar o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, bem como o relevo que assume a jurisprudência do TJUE na garantia de uma aplicação uniforme do Direito da União Europeia nos diversos Estados-Membros, por via do mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE. Não há dúvida de que, estando em causa questões de Direito da União Europeia, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os tribunais nacionais (neste sentido, por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02, e de 27-11-2018, proferido no âmbito do processo n.º 46/13.9TBGLG.E1.S1).
O Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Daqui se retira que os tribunais nacionais (incluindo os tribunais arbitrais) têm o poder-dever de desaplicar as normas de direito interno que se revelem contrárias a normas de Direito da União Europeia, desde que estas respeitem os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14).
Pelo exposto, e considerando a incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito de aplicação os OIC constituídos segundo a legislação de Países Terceiros, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal Arbitral declara ilegais e anula as liquidações de IRC por retenção na fonte contestadas, e o ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente (autuada com o n.º ...2024...), por vício de violação de lei, consubstanciado na violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, do artigo 8.º, n.º 4, da CRP, em conformidade com o artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
V – JUROS INDEMNIZATÓRIOS
O Requerente peticiona pela anulação dos atos tributários e, em consequência, pelo reconhecimento do direito à restituição da retenção na fonte suportada e pelo pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, de acordo com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.
Da se retira que, na sequência da anulação dos atos impugnados, o Requerente terá direito a ser reembolsado do imposto indevidamente pago (€ 778.509,03), o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
O n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao estabelecer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. Este entendimento decorre do princípio da tutela jurisdicional efetiva e da correspondente ampliação dos poderes conformadores da jurisdição administrativa e tributária.
Dispõe o artigo 43.º, n.º 1, da LGT que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Relativamente ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o STA no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07/04/2021:
“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.
Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.”
In casu, a AT decidiu a reclamação graciosa apresentada em 02.02.2024 no prazo de quatro meses previsto no artigo 57.º da LGT. Assim, os juros indemnizatórios devidos ao Requerente, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e artigo 61.º, n.º 5 do CPPT, começam a contar da data da notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ou seja, em 24.05.2024.
VI – DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
-
Anular os atos tributários de retenção na fonte contestados, no montante total de € 778.509,03, por violação da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE;
-
Anular a decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2024..., por violação da liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE;
-
Condenar a AT Requerida à restituição da quantia de € 778.509,03;
-
Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante de € 778.509,03, a partir de 24.05.2024, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e artigo 61.º, n.º 5, do CPPT.
VII – VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 778.509,03, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VIII – CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 11.322,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
CAAD, 18 de março de 2025
O Tribunal Arbitral Coletivo,
Rita Correia da Cunha
(Presidente)
Magda Feliciano
(Árbitra Adjunta)
José Nunes Barata
[1] Veja-se a análise contida no artigo do Professor Georg Kofler, Tax Treaty “Neutralization” of Source State Discrimination under the EU Fundamental Freedoms?, Bulletin for International Taxation (December 2011), pp. 684 et seq.