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SUMÁRIO:
I- O artigo 103.º, n.º 4 do Código do IRS, devidamente interpretado no contexto sistemático em que se insere, consagra a responsabilidade solidária do substituto pelo imposto não retido e não pelas importâncias não retidas.
II – Por esse motivo, para que o substituto possa ser responsabilizado pelo
imposto não retido, é necessário, em primeiro lugar, determinar o respetivo quantum através da emissão de uma prévia liquidação de retenção na fonte ao
substituído.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Professora Doutora Carla Castelo Trindade (presidente), Dr. João Taborda da Gama e Dra. Maria Antónia Torres (vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo no processo identificado em epígrafe, acordam no seguinte:
I – Relatório
A..., S.A, NIPC..., com sede na..., n.º ..., ..., ..., ..., ...-... Algés, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciação e declaração de ilegalidade, e consequente anulação, da liquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) nº 2024..., referente ao exercício de 2020, com um valor total a pagar de € 121.413,07.
Fundamenta, a Requerente, o pedido nos seguintes termos:
A Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção tributária, de natureza externa, tendo por âmbito, nomeadamente, as retenções na fonte de IRS relativas ao período de 2020.
No Projeto de Relatório, a inspeção considerou que as importâncias pagas a título de ajudas de custo e/ou compensação pela deslocação em viatura própria ao serviço da entidade empregadora reuniam, em substância, os pressupostos para qualificação como complemento da remuneração, tendo todos os montantes considerados pela ora Requerente como compensação por deslocação em viatura própria e como ajudas de custo sido requalificados como remuneração de trabalho, no montante correspondente a € 1.167.173,11.
Consequentemente, a AT apurou as retenções na fonte de IRS que alegadamente deveriam ter sido feitas pela Requerente sobre esse montante.
A ora Requerente alegou, em sede de direito de audição, que é uma empresa especializada na realização de projetos e empreendimentos, públicos e privados, nos domínios das infraestruturas, da urbanização e edifícios, incluindo atividades de planeamento, conceção, licenciamento, gestão e fiscalização/supervisão de obras, e que, à data, em 2020, a ora Requerente tinha obras dispersas e a decorrer pelo território português, e em Moçambique e Cabo Verde.
Portanto, face aos serviços prestados, em particular de Fiscalização e de Coordenação de Segurança em Obra, a Requerente entendeu ter demonstrado que tinha naturalmente de deslocar Técnicos para efetuar essas tarefas, já que não é possível, de forma remota, efetuar tais serviços, sendo que o seu quadro de pessoal, era essencialmente constituído por engenheiros, fiscais de obras e técnicos de segurança.
Continua a Requerente dizendo que esses técnicos, na maior parte dos casos, tinham de permanecer por largos períodos de tempo no local da obra, sendo que, para além das necessárias deslocações a obras, os quadros técnicos e administradores da Requerente fizeram também trabalhos de prospeção de clientes, tiveram reuniões com organismos oficiais, em particular, câmaras municipais, nos locais onde decorriam as obras, etc.
Concluí dizendo que, assim sendo, inevitavelmente, os seus colaboradores tinham de fazer deslocações ao serviço da entidade empregadora, tiveram de permanecer deslocados nos locais das obras, tendo assim direito à atribuição de ajudas de custo e, em vários casos, à compensação pela deslocação em viatura própria.
No Relatório Final, os serviços da inspeção tributária admitiram a necessidade de deslocação de 88 dos 103 trabalhadores, tendo considerado que a Requerente não comprovou alegadas incongruências relativas a 15 trabalhadores.
Consideraram os serviços da inspeção tributária, de uma forma genérica, e sem especificar relativamente a cada trabalhador, que:
E, em consequência, a Requerida determinou o montante que entendeu que deveria ter sido retido objeto de retenção na fonte, tendo emitido à ora Requerente a contestada liquidação de retenções na fonte de IRS para o exercício de 2020.
Por sua vez, a Requerida alega que no âmbito da referida inspecção, os SIT procuraram aferir se os rendimentos pagos a título de ajudas de custo e deslocações em viatura do próprio, e assim registados contabilisticamente, diziam respeito a efetivas ajudas de custo/deslocações em viatura própria, com a finalidade de ressarcir o funcionário pelas despesas que suportou com deslocações ao serviço da empresa, não sujeitas a IRS, ou se os mesmos configuraram rendimentos da categoria A de IRS encapotados e, como tal, sujeitos a IRS.
Os SIT verificaram nas Declarações Mensais de Remuneração (DMR´s) que, no exercício em análise, a empresa suportou gastos registados como “ajudas de custos e deslocações em viatura própria”, no montante global de € 1.078. 637,01, pagas aos órgãos sociais e empregados.
Concluiu a Requerida que, relativamente à maioria dos trabalhadores - quer através das DMR’s, quer através dos recibos de vencimento –, em simultâneo com o pagamento de ajudas de custo, o sujeito passivo suportava gastos com o subsídio de refeição, em todos os dias úteis dos meses.
Mais, da análise efetuada aos documentos de suporte identificados como “mapas de ajudas de custo” verificaram-se diversas incongruências entre a natureza destes custos de compensação por deslocação em viatura própria e a legislação que lhe é aplicável. Em concreto, apurou a AT que as importâncias pagas a cada trabalhador eram de montante fixo ou, em alguns casos, com pequenas oscilações, ao longo dos meses do ano, inclusive no mês de férias, porquanto eram pagas compensações nos 12 meses do ano, de onde se conclui que se o trabalhador estava de férias, nunca poderia fazer deslocações ao serviço da empresa para auferir ajudas de custo.
Nos extratos das contas identificados como 6242 - “Combustiveis Gasóleo”, 62422-“Combustiveis Gasolina”, 625- “Deslocações, Estadas e Transportes”, averiguou a AT ainda que, apesar de ser pago aos trabalhadores valores sob a designação de “ajudas de custo / deslocações em viatura própria” a Requerente, na verdade, reembolsou os trabalhadores relativamente a gastos suportados pelos próprios.
Conforme se verifica no RIT, a Requerente designou como ajudas de custo pagamentos referentes a combustível, almoços, parqueamento e portagens, mediante a apresentação de faturas por pelos trabalhadores, facto que contraria o disposto legalmente, já que deverá a empresa, ou reembolsar despesas, ou pagar ajudas de custo e deslocação em viatura própria.
Aferiu-se também que existiam viaturas indicadas nos mapas de autorização de despesa, no exercício de 2020, que já tinham sido alienadas a terceiros, facto que obsta que sejam caracterizadas como ajudas de custo.
Continua a Requerida dizendo que, conforme é possível verificar através do RIT: “alguns mapas não identificam a viatura, outros não identificam o proprietário, outros identificam viaturas já alienadas pelo próprio trabalhador, em anos anteriores a 2020”. Constatou-se também que algumas das viaturas identificadas nos mapas como sendo propriedade dos trabalhadores pertencem ao sujeito passivo em análise. Tal como identifica o relatório inspetivo: “(…) verificou-se através dos registos contabilísticos, nomeadamente autorizações de reembolso de despesas ao trabalhador em causa: as revisões e gasóleo das viaturas utilizadas pelo(s) mesmo(s) - (... e ...) as quais são propriedade da A...”.
No que diz respeito às viaturas que os trabalhadores indicavam ser utilizadas para as referidas deslocações, tal como se relatou no ponto V.5 do PRIT e atual RIT, confirmou-se mediante cruzamento de informação com o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP (IMT), que os quilómetros que as viaturas registavam aquando das inspeções periódicas obrigatórias, não suportavam os quilómetros indicados nos mapas como percorridos ao serviço da entidade empregadora, superando estes, em muito, os quilómetros que a viatura registava aquando da referida inspeção periódica.
Reitera assim a Requerida que, esta constatação, por si só, confirma que os quilómetros indicados como percorridos ao serviço da empresa não o foram efetivamente, o que, por sua vez, confirma que os pagamentos em causa traduziam, na realidade, um complemento de remuneração dos trabalhadores.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi regularmente constituído em 25 de outubro de 2024.
Tendo sido devidamente notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, em 4 de dezembro de 2024, tendo-se defendido por impugnação.
Em 19 de fevereiro de 2025, o Tribunal arbitral proferiu despacho a dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a notificar as partes para, querendo, apresentarem alegações escritas, direito que ambas as partes optaram por não exercer.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe, então, apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
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Requerente é uma sociedade com sede em Algés, que se dedica à realização de projetos e empreendimentos, públicos e privados, nos domínios das infraestruturas, da urbanização e edifícios, incluindo atividades de planeamento, conceção, licenciamento, gestão e fiscalização/supervisão de obras.
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Em 2020, a ora Requerente tinha obras dispersas e a decorrer pelo território português e em Moçambique e Cabo Verde.
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Por força da sua actividade pagou, nesse ano, ajudas de custos e compensações por deslocação em viatura própria aos seus funcionários.
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A Requerente foi objeto de um procedimento de inspeção tributária, de natureza externa, tendo por âmbito, nomeadamente, as retenções na fonte de IRS relativas a esse ano.
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A referida inspecção visou aferir, nomeadamente, se os rendimentos pagos a título de ajudas de custo e deslocações em viatura do funcionário, e assim registados contabilisticamente, diziam respeito a efetivas ajudas de custo/deslocações em viatura própria, com a finalidade de ressarcir o funcionário pelas despesas que suportou com deslocações ao serviço da empresa, não sujeitas a IRS, ou se os mesmos configuram rendimentos da categoria A de IRS encapotados, e como tal sujeitos a IRS.
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No Projeto de Relatório, os serviços de inspeção tributária consideraram que a totalidade das importâncias pagas a título de ajudas de custo e/ou compensação pela deslocação em viatura própria ao serviço da empresa reuniam, em substância, os pressupostos para qualificação como complemento da remuneração.
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No Relatório Final, os serviços de inspeção tributária admitiram a necessidade de deslocação de 88 dos 103 trabalhadores, tendo considerado que a Requerente não comprovou incongruências que foram identificadas relativamente a 15 trabalhadores.
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E, em consequência, a Requerida determinou o montante que entendeu que deveria ter sido retido, tendo emitido e dirigido à Requerente a liquidação de Retenções na fonte de IRS, para o exercício de 2020, no montante de € 121.413,07 sindicada nos presentes autos.
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A AT emitiu, assim, diretamente, a liquidação de retenções na fonte de IRS à Requerente, sem que antes tenha emitido qualquer liquidação referente a tais factos tributários aos respetivos trabalhadores objecto da correcção.
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A Requerente foi citada para o Processo de Execução Fiscal n.º ...2024..., para cobrança coerciva da dívida.
-
Em 12 de agosto de 2024, a Requerente remeteu à AT o original do seguro-caução n.º ... para evitar o prosseguimento da cobrança coerciva.
Factos não provados
Não há factos não provados que se considerem relevantes, no caso concreto, para a decisão da causa.
Motivação da matéria de facto
O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão da causa e discriminar os factos provados e não provados, não tendo de se pronunciar quanto a todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, determinada com base nas posições assumidas pelas partes e nas várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
Matéria de direito
Entende-se que a matéria controvertida que foi sujeita à apreciação deste Tribunal, se resume à análise de duas questões essenciais:
- Se existe um facto tributário que determine uma liquidação adicional de retenções na fonte de IRS dirigida à Requerente como sujeito passivo;
- Se os montantes em causa consubstanciam ou não ajudas de custo.
Então vejamos.
O artigo 103.º n.º 4 do Código do IRS refere que:
“Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.” (sublinhado nosso).
A Requerente entende que a AT não lhe poderia ter liquidado os montantes de retenção na fonte em sede de IRS antes de ter procedido à notificação dos devedores originais (ou seja, cada um dos trabalhadores) e esgotada essa via para pagamento da liquidação sub judice.
Já a Requerida tem um entendimento diferente sobre o disposto no artigo 103.º n.º 4 do Código do IRS. Refere que, conforme consta do Relatório do OE 2007, que introduziu o número do artigo em análise, refere-se expressamente a instituição de um regime de responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação.
A questão central a decidir é então, precisamente, saber se o IRS que se alega não ter sido retido, sobre os montantes pagos a título de ajudas de custo, poderá ser liquidado, e o seu pagamento exigido, diretamente e em primeira instância, à própria Requerente, ao abrigo da norma prevista no artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, ou se em vez disso deveria ter sido exigido aos seus trabalhadores.
Ora, esta questão foi já tratada em vários processos deste tribunal arbitral, designadamente, os processos n.ºs 743/2023-T, 616/2019-T e 539/2017-T e 119/2015-T, cuja jurisprudência adoptamos, por com ela concordarmos.
Vejamos,
De acordo com o prescrito na Lei Geral Tributária (LGT) podem-se distinguir dois tipos de solidariedade tributária, com tratamentos distintos entre ambas.
Por um lado, e de acordo com o artigo 21.º da LGT, temos a solidariedade que ocorre “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, denominada “solidariedade passiva” ou “originária”, na medida em que existe uma ligação direta de cada um dos obrigados solidários ao facto gerador da obrigação de imposto.
Por outro lado, no artigo 22.º, n.º 2 da LGT, temos um outro tipo de solidariedade, que se poderá qualificar como sendo “não originária”, e que passa pela responsabilização de terceiros pela dívida tributária do sujeito passivo originário. Aqui os pressupostos do facto tributário não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é – por definição – sujeito passivo originário.
Aderimos, porque de acordo com a mesma, à Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015-T, e seguida, posteriormente, em vários outros acórdãos deste tribunal arbitral, em que se estabeleceu o seguinte: “Este tipo de casos – do artigo 22.º, n.º 2 da LGT – é distinto do primeiro – a que alude o artigo 21.º da mesma Lei, não restarão dúvidas, já que nesta última situação, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, todos os obrigados serão sujeitos passivos originários do imposto, na medida em que, justamente, os pressupostos do facto tributário se verificam em relação a todos eles, enquanto que na hipótese a que alude o artigo 22.º, n.º 2 da LGT, confessadamente, estão em causa terceiros, que não o sujeito passivo originário do imposto.”
E continua. “Ou seja: nos casos em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, como, por exemplo, na tributação do agregado familiar em sede de IRS, teremos uma situação de solidariedade tributária originária; nos casos em que “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, mas que, por força da lei, aquele é solidariamente responsável pela dívida tributária, e eventuais acessórios, do devedor originário – como acontece no caso dos gestores de bens ou direitos de não residentes – teremos uma situação de solidariedade tributária não originária.”
“A análise da distinção entre aqueles dois tipos de solidariedade tributária que resultam da LGT, não carece de ser iniciado do zero, já que a doutrina civilística, estudiosa da matéria de longa data, detectou já a comunhão de fim das obrigações solidárias, como um dado incontornável a ter em conta na matéria, sendo tido, inclusivamente, como um pressuposto da genuína solidariedade (…)”.
“Trata-se de casos que têm por objecto a mesma prestação e em que ao credor é reconhecida a faculdade de exigir de qualquer dos devedores a prestação integral…”.
“Exemplos deste tipo de situações são o caso do operário atropelado em serviço, que poderá exigir a indemnização quer ao atropelante, quer à entidade patronal; o caso do comerciante furtado, que poderá exigir a reparação do prejuízo quer ao ladrão, quer ao vigilante que, negligenciou os seus deveres de vigia; ou o caso da vítima de incêndio, que poderá exigir a reparação do prejuízo quer ao incendiário, quer à seguradora que previamente contratou para cobrir esse risco”.
“Nota característica destas situações, é que o cumprimento da obrigação perante o credor por um dos devedores, em certos casos extingue a responsabilidade dos restantes, enquanto noutros não. Assim, se, nos exemplos supra, o atropelante, o ladrão ou o incendiário repararem os danos, a entidade patronal, o vigilante ou a seguradora, respectivamente, ver-se-ão exonerados de qualquer obrigação; já se forem estes últimos a satisfazerem, perante o credor, a obrigação que lhes cabe, a obrigação dos restantes permanecerá, respondendo eles pela totalidade da obrigação, perante o devedor que cumpriu perante o credor (…)”.
“Como conclui o Ilustre Mestre Antunes Varela (…), “quando, na intenção das partes ou no espírito da lei, exista comunhão de fim a unir as obrigações, ou seja, colaboração dos devedores ao serviço do mesmo interesse do credor, há solidariedade; quando, pelo contrário, não há comunhão de fim, mas simples coincidência de fins das prestações, assente uma disjunção ou num escalonamento sucessivo das obrigações, falta a solidariedade (havendo apenas uma pluralidade de obrigações independentes, destinadas à satisfação do mesmo interesse do credor), embora alguns preceitos das obrigações solidárias possam ser aplicados, por analogia, ao tratamento jurídico de tais situações.”
“Retornando ao domínio do direito fiscal, e aplicando aqui a doutrina que se vem de referir, concluir-se-á que nas situações que acima se designaram como de solidariedade originária, estaremos perante casos de verdadeira comunhão de fim, fundada na comunhão do próprio facto tributário, justificativa da aplicação directa dos preceitos civis relativos à solidariedade”.
“Já nas situações que acima se designaram como de solidariedade não-originária, o que verificará é a referida coincidência de fins, como, retornando ao exemplo dos gestores de bens ou direitos de não residentes, decorre da circunstância de o cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo originário (não residente, no exemplo) exonerar o responsável solidário (gestor, no mesmo exemplo), enquanto que o cumprimento pelo responsável solidário (gestor), não exonerará o sujeito passivo originário da sua obrigação (que persistirá, agora, perante aquele, por via do direito de regresso), o que poderá justificar a aplicação, por via da analogia, das partes do regime geral da solidariedade, na medida em que tal se justifique”.
“Pode-se concluir, assim, face ao quadro legal positivo, com suficiente segurança, que as diferenças entre os dois tipos de solidariedade tributária detectada, relacionados essencialmente com as circunstâncias de:
-
num deles (artigo 21.º da LGT) haver uma comunhão no facto tributário entre os devedores (que, como tal, assumirão a qualidade de sujeitos passivos originários do imposto), com a consequente existência de um nexo relacional entre eles, em termos de o cumprimento da obrigação tributária por qualquer deles, gerar o direito de regresso do cumpridor sobre os restantes;
-
enquanto noutro (artigo 22.º/2 da LGT), o facto tributário se verifica apenas quanto a um devedor (ou, academicamente, a um grupo de devedores), que se assume como sujeito passivo originário, pelo que, cumprindo este a obrigação tributária, nenhum direito lhe caberá contra os restantes, que, por seu lado, cumprindo, poderão exigir do(s) devedore(s) originário(s) o pagamento de quanto lhes foi imposto pagar;
são justificativas de um tratamento distinto, na medida em que as diferenças verificadas o justifiquem.”
Vejamos então como se aplica o disposto no artigo 103.º, n. º4 do CIRS, à luz destes dois conceitos de responsabilidade, aos autos em concreto.
Como já referido, o nº 4 do artigo 103.º do CIRS estabelece que “tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados, nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido».
Esta norma visa especificamente os pagamentos de rendimentos que constituam «remunerações» como deixou claro o Relatório do Orçamento do Estado para 2007, em que se refere, na página 29, o seguinte:
“Responsabilidade Solidária
Instituição de um regime de responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação (v.g. ajudas de custo).”
Este preceito contido no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS constitui uma excepção à regra do n.º 2 do artigo 28º da LGT, a qual é aplicável às restantes situações de retenção na fonte de rendimentos, efetuada meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final, em que se estabelece que «cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária.
No entanto, no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, prevê-se a responsabilidade do substituto como solidária ou seja, a responsabilidade originária do imposto não retido continua a caber ao substituído. O referido n.º 4 apenas estabelece que, nestes casos, a natureza da responsabilidade do substituto não é subsidiária, mas sim solidária.
Ou seja, tem de se entender que, nestes casos, o titular do rendimento sujeito a IRS, e substituído, é o responsável originário (cfr. primeira parte do artigo 28.º, n.º 2, da LGT) e que a responsabilidade tributária (cfr. artigo 22.º, n.ºs 1 e 2 da LGT) do substituto não é subsidiária, mas sim solidária (cfr. artigo 22.º, n. º4, da LGT).
Aplicando ao caso concreto a matéria de direito acima exposta, entende-se que o acto de liquidação de retenções na fonte sub judice deveria ter sido dirigido aos vários responsáveis originários (os funcionários), titulares dos rendimentos que a AT entendeu sujeitos a imposto e não, unicamente, ao responsável solidário, a ora Requerente.
Ou seja, entendendo-se que a situação sub judice não está abrangida pelo artigo 21.º, n.º 1 da LGT, dado que os pressupostos do facto tributário não se verificam em relação ao responsável solidário, não existe na esfera da Requerente facto tributário, pelo que a liquidação teria de ter sido efectuada na esfera dos sujeitos passivos originários.
Assim, retomando o que ficou dito na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015-T, como resulta da leitura da norma do artigo 103.º, n. º 4 do CIRS, em causa, o substituto é responsabilizado solidariamente pelo imposto não retido e não pelas importâncias não retidas. Com efeito, não se poderá – e o legislador não o faz - confundir imposto com importâncias retidas por conta daquele. A retenção na fonte não é um imposto, mas meramente um mecanismo de cobrança.
Para o sujeito passivo de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares trata-se de um pagamento antecipado do imposto que é devido no final de cada ano. Para a entidade que procede à sua retenção trata-se de uma dívida tributária e não do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares.
“Esta apenas procede ao desconto no vencimento do trabalhador da quantia que o estado tem a receber em sede de tributação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares desse trabalhador, incumbindo-lhe a entrega desse valor ao estado. Mas a empresa que procede à retenção na fonte não passa, por isso, a ser tributada em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Arrecada os valores de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que são devidos pelos trabalhadores/ prestadores de serviço que deve entregar nos cofres do estado.”
Assim, entende-se que na situação presente não restarão dúvidas que o substituto pode ser responsabilizado solidariamente pelo imposto, mas não pelas importâncias não retidas. E isso implica, necessariamente, uma liquidação prévia de imposto efectuada ao sujeito passivo originário. Só após essa liquidação é que se consegue determinar o montante de imposto exigível pelo credor tributário, e, consequentemente, a extensão da responsabilidade solidária do substituto. Ou seja, o substituto tributário é responsável pelo imposto não retido e não pelas importâncias que não reteve retidas.
E voltando à Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015-T:
“Assim, e concretizando, se estiver em falta uma retenção de 100, e, liquidado o imposto nos termos do CIRS, resultar, por exemplo:
-
a existência de um imposto a pagar de 120, o substituto será solidariamente responsável por 100;
-
a existência de um imposto a pagar de 60, o substituto será solidariamente responsável por 60, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100;
-
a inexistência de imposto a pagar (ou mesmo um reembolso), a responsabilidade solidária do substituto será nula, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100.”
“A única – e fundamental – diferença introduzida pela norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, ora em causa, é a alteração do tipo de responsabilidade tributária do substituto, do regime regra da responsabilidade subsidiária (decorre da regra geral do artigo 22.º/4 da LGT, e específica do artigo 28.º/2 da mesma Lei), para o regime excepcional da responsabilidade solidária, e não uma alteração do objecto daquela mesma responsabilidade tributária”.
“Por isso, e em suma, no caso do artigo 103.º/4 do CIRS, em análise, o substituto não se torna responsável por nada diferente do que já o era, nos termos do artigo 28.º/2 da LGT, apenas variando o grau de responsabilidade, pelo mesmo, por assim dizer, objecto”.
“Tudo isto, bem se compreenderá, se se atender às regras próprias do cálculo do imposto devido em sede de IRS, e à circunstância de o respectivo funcionamento normal poder, com facilidade, gerar situações em que o imposto devido pelo sujeito passivo originário, seja nulo ou, não o sendo, inferior à retenção devida. Daí que, apenas liquidado, devidamente, o IRS devido pelo(s) sujeito(s) passivo(s) originários, e contrastado com este o montante das importâncias cuja retenção foi devida, seja possível determinar a extensão da responsabilidade solidária do substituto, sob pena de se poderem gerar situações de enriquecimento injustificado para a Fazenda Pública (…)”.
Ora, assim sendo, conclui-se que, no caso em apreço, a AT tratou a Requerente como se fosse a titular do rendimento a tributar, ao invés dos seus trabalhadores. A Requerente só poderia ser demandada em primeira linha, como defende a Requerida, pelas dívidas de imposto de cada um dos trabalhadores, que ilegalmente não reteve, e não pelas importâncias que ela própria não reteve. Mas a Requerida limitou-se liquidar o montante que calculou de uma potencial retenção que, segundo o seu entendimento, deveria ter sido efectuada pela Requerente sobre as referidas remunerações pagas aos trabalhadores.
Assim, inexistia facto tributário ao nível da Requerente, pelo que a liquidação em questão padece do vício de violação de lei, devendo, portanto, ser anulada. E, assim sendo, fica prejudicada, por inútil, a pronúncia deste Tribunal quanto às demais questões colocadas.
III - Indemnização por prestação de garantia indevida
A Requerente, além do pedido de declaração de ilegalidade e anulação do acto de liquidação, pediu que lhe fosse reconhecido o direito a indemnização por garantia indevidamente prestada.
Provou-se que a Requerente foi citada para o Processo de Execução Fiscal n.º ...2024... para cobrança coerciva da dívida e, em 12 de agosto de 2024, remeteu à AT o original de um seguro-caução para evitar o prosseguimento da cobrança coerciva.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida, consta do artigo 53.º da LGT, e estabelece o seguinte:
“Artigo 53.º - Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”
No caso em apreço, e na sequência do acima referido, é manifesto que o erro subjacente à liquidação de IRS é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira. Ao que acresce que tem sido entendimento pacífico entre a doutrina e a jurisprudência considerar o seguro-caução como equivalente à garantia bancária, na medida em que implica que o interessado suporte uma despesa cujo montante vai aumentando durante o período de tempo em que vai ser mantida.
Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada, com vista à suspensão da execução fiscal n.º ...2024..., no valor correspondente às despesas comprovadas com a sua emissão e manutenção.
III - Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, declarar a
ilegalidade e anulação total do ato de liquidação de retenções na fonte de IRS, no
montante de €121.413,07;
b) Condenar a Requerida no pagamento de indemnização pela garantia prestada pela
Requerente, com vista à suspensão da execução fiscal n.º ...2024..., no valor correspondente às despesas comprovadas com a sua emissão e manutenção;
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
Valor da causa
Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 121.413,07, tal como indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida.
Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 3.060,00 a suportar pela Requerida, em conformidade com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de março de 2025
O Árbitro Presidente
Carla Castelo Trindade
O Árbitro Vogal
João Taborda da Gama
O Árbitro Vogal
Maria Antónia Torres