Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 938/2024-T
Data da decisão: 2025-03-19  IRS  
Valor do pedido: € 30.716,44
Tema: IRS – Residência fiscal
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Sumário:

  1. O conceito de domicílio fiscal não se confunde com o conceito de residentes para efeitos de IRS;

 

  1. Não se verificando, no ano a que os rendimentos respeitam, qualquer dos requisitos de que o artigo 16.º do Código do IRS faz depender a qualificação de “residente” das pessoas singulares, não pode a pessoa em causa qualificar como residente fiscal em Portugal.

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. Relatório

A..., titular do número de identificação fiscal (“NIF”)..., residente na ..., ..., ..., ...-... Lisboa, e, por isso, abrangido pela competência territorial do Serviço de Finanças de Lisboa –... (“Requerente”), veio, nos termos e para os efeitos dos artigos 95.º, n.º 1 e 2 da Lei Geral Tributária (“LGT”), e dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“RJAT”), apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral imediatamente contra os atos de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa por si apresentada e, mediatamente, contra as liquidações adicionais de IRS relativas ao exercício de 2014 e em que se incluiu a correspondente liquidação de juros compensatórios (n.º 2016...), mediante o qual se apurou o valor global a pagar de € 30.716,44 que está na origem daquela revisão.

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).

  1. Constituição do Tribunal Arbitral

O pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”).

Pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD foi comunicada a constituição do presente tribunal arbitral coletivo em 14-10-2024, nos termos da alínea c) do número 1, do artigo 11.º do RJAT.

  1. História Processual

No pedido de pronúncia arbitral o Requerente pede, em síntese, a anulação das decisões de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado e dos atos de liquidação de IRS e de juros compensatórios subjacentes e ora impugnados, sendo o Requerente tributado em sede de IRS e com referência a 2014 sobre o rendimento por si declarado e com base no seu estatuto, naquele ano, de «Não Residente», e a condenação da AT ao reembolso do imposto pago em excesso pelo Requerente, acrescido de juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da LGT, tudo com as devidas consequências legais.

Como fundamento da sua pretensão, o Requerente alega, em suma, que permaneceu em Espanha em 2014 mais de 183 dias, o que o impede, forçosamente, de ter permanecido mais de 183 dias em Portugal e que, em 31-12-2014, não possuía habitação em condições que pudessem fazer supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual, na medida em que, desde junho de 2014, o Requerente teve a sua residência permanente em Madrid. Conclui o Requerente que, em 2014, não lhe era aplicável qualquer das normas do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS que impõem qualificação de um contribuinte como «Residente», decorrendo os atos impugnados de manifesto erro de facto e de direito da AT e padecendo os mesmos de vício de violação daquela norma legal. Neste sentido, alega o Requerente que, naquele ano, a sua tributação em Portugal segundo o princípio da universalidade e com recurso às taxas progressivas do artigo 68.º do Código do IRS encontra-se automaticamente excluída. Em consequência, entende o Requerente que, ao abrigo das normas plasmadas no artigo 13.º e 16.º do Código do IRS, devem as liquidações de IRS e de juros compensatórios em crise ser anuladas por padecerem de vício de violação de lei e resultarem de erro de facto e de direito da AT, sendo, diferentemente, o Requerente tributado em 2014 como «Não Residente» e com referência ao rendimento por este incluído na declaração de substituição apresentada em agosto de 2015.

Foi proferido despacho arbitral, tendo em vista a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.

A Requerida apresentou a sua resposta, tendo aí alegado, por exceção, existir erro na forma de processo, porquanto a impugnação judicial não se mostra alegadamente o meio idóneo para aferir do indeferimento (tácito) do pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação identificado, pedindo a absolvição da instância da Fazenda Pública.

Ademais, por impugnação, a Requerida defende que se encontra preenchido o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, ou seja, a permanência do Requerente em território português, no ano de 2014, em mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, por estar enquadrado, naquele ano, como residente fiscal em Portugal, gozando a AT de presunção de residência em território português, ao abrigo do disposto no citado normativo do Código do IRS. A Requerida defende que se limitou a cumprir com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, por forma a considerar o Requerente como residente em território nacional no ano de 2014, e como tal, sujeito a tributação pela totalidade dos rendimentos obtidos naquele ano, incluindo os obtidos fora de Portugal, nos termos do artigo 15.º do Código do IRS. Por outro lado, considera a Requerida que da prova produzida nos presentes autos, não resultou que o Requerente logrou efetivamente, provar que, no ano de 2014, tinha a sua residência em Espanha, uma vez que tais documentos não são aptos para ilidir a presunção de residência constante no aludido normativo. Considera, ainda, a Requerida que o Requerente não apresentou prova que permaneceu em Espanha mais de 183 dias, ao abrigo do disposto no artigo 15.º, n.º 1 e 2, da Convenção entre Portugal e Espanha. Conclui a Requerida que concluir que a liquidação de IRS em crise nos autos, foi efetuada de acordo com os preceitos do Código do IRS, sem violar qualquer disposição da Convenção para evitar a Dupla Tributação (“CDT”) entre Portugal e Espanha.

Sustenta, ainda, a Requerida que a liquidação de juros compensatórios em apreço nos autos, se encontra devidamente fundamentada, porquanto a demonstração do respetivo cálculo que neles foi feita, permitiu ao Requerente o cabal esclarecimento da sua “ratio”, concluindo que se verifica a imputabilidade exigida para a responsabilização pelo pagamento de juros compensatórios, conforme estipulado no artigo 35.º da LGT.

Concluiu a Requerida dever improceder a pretensão do Requerente, por não provada, com as devidas consequências legais, juntando o processo administrativo e 9 documentos.

  1. Saneamento
  1. Do alegado erro na forma do processo

A Requerida sustenta na sua Resposta que «[a] presente impugnação judicial foi apresentada na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão formulado pelo Impugnante, ao abrigo do art.º 78º da LGT. Afigura-se-nos, porém, não ser o processo de impugnação judicial, a forma processual adequada para sindicar a legalidade daquele ato.»

Refere, ainda, a Requerida que o indeferimento (tácito) do pedido de revisão apresentado pelos sujeitos passivos não cabe na previsão das diversas alíneas do artigo 97.º do CPPT que tem como epigrafe “Processo Judicial Tributário” e que a impugnação contenciosa deste tipo de atos (atos administrativos que não comportem a apreciação de atos de liquidação), é feita, atualmente, através da ação administrativa (artigo 37.º do CPTA).

Conclui a Requerida que a presente impugnação judicial não se mostra o meio idóneo para aferir do indeferimento (tácito) do pedido de revisão oficiosa do ato de liquidação, formulado nos termos da segunda parte, do n.º 1, do artigo 78.º da LGT, o que constitui erro na forma de processo e determina a absolvição da instância da Fazenda Pública.

Como bem sabe a AT, é pacífico, quer na jurisprudência, quer na doutrina existente sobre esta matéria, que a impugnação judicial (ou arbitral) não é o meio adequado para requerer a anulação de ato proferido em processo de revisão oficiosa apenas nos casos em que não seja apreciada a legalidade do ato de liquidação subjacente (designadamente, por razões de intempestividade ou ilegitimidade do requerente). Tal entendimento decorre, quer da jurisprudência, quer da doutrina, invocada pela própria Requerida na sua resposta.

Assim, a leitura que a AT faz da doutrina e da jurisprudência que invoca na sua resposta é errada.

Vejamos:

Nos presentes autos o pedido de revisão oficiosa tem por objeto o ato de liquidação oficiosa de IRS de 2014 que o Requerente considerava (e considera) ilegal. Não tendo havido pronúncia da AT, passados quatro meses sobre o pedido de revisão oficiosa da liquidação de IRS, considera-se este tacitamente indeferido, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º LGT.

O indeferimento tácito da AT comporta em si mesmo uma tomada de posição sobre a alegada ilegalidade, razão pela qual tem os mesmos efeitos que resultariam de um indeferimento expresso, pelo que é forçoso concluir que a AT conheceu, tacitamente, da legalidade do ato.

Nas palavras Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado, Vol I e II, Áreas Editora, «[…] estando-se perante indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa, que tem por objecto directo acto de liquidação, é de considerar que o acto ficcionado conhece da legalidade de acto de liquidação e, por isso, o meio processual adequado para a sua impugnação contenciosa é o processo de impugnação judicial, nos termos das alíneas d) e para) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, de que é meio alternativo o processo arbitral».

No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, destacando, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), proferidos nos processos nºs 0420/09 e 01950/13, reconhecendo-se em ambos a possibilidade de impugnação judicial do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa.

Assim, na linha da jurisprudência e da doutrina referida, é de entender que o ato ficcionado quando ocorre indeferimento tácito de pedido de revisão oficiosa é um ato que comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação cuja revisão foi pedida, dando resposta negativa aos fundamentos invocados, pelo que o meio contencioso adequado para o impugnar é o processo de impugnação judicial e o processo arbitral.

Em conformidade, conclui-se que o indeferimento tácito ficciona um ato de indeferimento expresso pela AT, ambos impugnáveis por recurso à ação de impugnação judicial ou à apresentação de constituição de tribunal arbitral.

Nestes termos, improcede a exceção de erro na forma do processo, invocada pela Requerida.

Assim, o Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

  1. Matéria de facto
  1.  Matéria de Facto Provada

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  1. Em junho de 2014, o Requerente deslocou a sua residência de Portugal para Espanha, onde passou a residir e a exercer a sua atividade profissional;
  2. O Requerente celebrou com a sociedade B..., S.L. (“B...”) contrato de trabalho por tempo indeterminado, com data de início de 26-06-2014;
  3. A sociedade B... tem sede em Madrid na ..., Madrid;
  4. Nos termos da cláusula 1.ª do mencionado contrato, o trabalho foi prestado em Madrid, na ..., Madrid;
  5. O Requerente comprometeu-se a uma jornada de trabalho de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, i.e., a prestação de trabalho foi feita a tempo inteiro;
  6. Em 26-06-2014, foi atribuído ao Requerente um número de segurança social espanhol pelo Ministério do Emprego e da Segurança Social de Espanha;
  7. Em 27-06-2014, o Requerente solicitou a sua inscrição como residente em Espanha junto da AT daquele país (Agencia Tributaria), indicando ter a sua residência permanente na ...,  ..., Madrid;
  8. Em 27-06-2014, o Requerente apresentou junto da «Agencia Tributaria» declaração de opção pelo «Régimen especial aplicable a los trabajadores esplazados a território español» aplicável aos residentes naquele país;
  9. Em 27-06-2014, o Requerente inscreveu-se junto do Consulado Português naquela cidade;
  10. Em 02-07-2014, o Requerente solicitou a alteração da sua morada para Espanha.
  11. O Requerente entregou a sua declaração relativa ao «Impuesto sobre la Renta de las Personas Físicas», com referência àquele ano, na qualidade de residente em Espanha, em 2014.
  12. Em 26-04-2015, o Requerente apresentou a declaração de rendimentos, modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2014, com a identificação ...-2014-...-..., indicando a situação pessoal de “não residente” e inscrevendo rendimentos da categoria A;
  13. Tendo-se verificado a existência de divergências relativas ao rendimento declarado, à residência fiscal declarada e à retenção na fonte devida, foi o contribuinte notificado no sentido de comprovar os elementos inscritos na Modelo 3.
  14. Na sequência da notificação da existência de divergência entre a sua declaração e os registos da AT, o Requerente apresentou, em 19-08-2015, a declaração de substituição, registada sob o no ...-2014-... -..., corrigindo os rendimentos declarados da Categoria A;
  15. Em 21-08-2015, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2015..., onde foi apurada uma coleta líquida de € 51.641,00;
  16. Em 06-01-2016, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2016..., em que se apurou uma coleta líquida de € 88.805,59, e um montante a pagar de € 30.716,44.
  17. Em junho de 2019, o Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa (processo n.º ...2019...), ao abrigo do regime previsto na segunda parte, do n.º 1, do artigo 78.º da LGT contra a referida liquidação;
  18. Não tendo o pedido de revisão sido objeto de qualquer decisão no prazo legalmente previsto, e presumindo o seu indeferimento tácito, nos termos e em conformidade com o estatuído no artigo 57.º, n.º 1 e 5 da LGT, o Requerente apresentou impugnação judicial.
  1. Matéria de Facto Não Provada

Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

  1. Motivação da Decisão da Matéria de Facto

Conforme resulta da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, ao Tribunal Arbitral incumbe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes.

Desta forma, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objeto do litígio, tal como decorre do artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Nestes termos, tendo em conta as posições assumidas pelas partes e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos anteriormente elencados.

  1. Questão a decidir

A questão que cabe apreciar no âmbito do presente processo prende-se com a legalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentada pelo Requerente contra o ato de liquidação de IRS também impugnado e, muito concretamente, determinar se o Requerente cumpria, ou não, com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS para ser considerado “residente”, para efeitos fiscais, em território nacional no ano de 2014, e como tal, ficar aqui sujeito a tributação pela totalidade dos rendimentos obtidos naquele ano, incluindo os obtidos fora de Portugal.

  1. Matéria de direito
  1. Da legalidade do ato de liquidação de IRS

Está em causa a legalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa pelo Requerente contra o ato de liquidação oficiosa de IRS decorrente da alteração promovida pela Requerida do estatuto de “residente” para “não residente”, para efeitos fiscais, em Portugal.

O Requerente alega que AT não justificou ou procurou demonstrar os pressupostos da correção por si efetuada, bastando-se, ao que pode o Requerente apurar, com o facto de a alteração da residência do Requerente para Espanha no ano de 2014, apenas ter sido registada pelos serviços em meados de julho de 2014, apesar de ter sido requerida pelo Requerente em data anterior.

O Requerente faz notar que o Impugnante solicitou aquela alteração em 2 de julho de 2014, sendo que, mais relevante ainda, foi em meados de junho de 2014, que se mudou para Espanha, onde exerceu funções em empresa espanhola durante todo o restante ano de 2014, demonstrando estes factos através de vários documentos juntos aos autos.

Segundo o Requerente, era à AT que caberia demonstrar que o Requerente foi, naquele ano de 2014, residente em Portugal, na medida em que só tal permitiria justificar a sua atuação, isto é, a alteração da declaração de rendimentos apresentada e que goza de presunção de veracidade, considerando que fez prova bastante do seu estatuto de “não residente” em Portugal, no ano de 2014.

O Requerente defende, ainda, que com referência a 2014 e ante os critérios indicados no artigo 4.º da CDT celebrada com o Reino de Espanha, teria de ser dada preponderância e julgar relevante a residência em Espanha, dado que, naquele ano, a habitação do Requerente aí se situou e foi aí que desenvolveu a totalidade das suas atividades económicas, ou seja, aí teve o seu centro de interesses vitais.

Por seu turno, a Requerida contesta a posição do Requerente, não lhe assistindo razão, porquanto o Requerente se encontrava inscrito no Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes (“SGRC”) da AT como “residente” em Portugal até 18-07-2014, data em que promoveu a alteração do seu estatuto para “não residente”.

Neste contexto, considera a Requerida que se encontra preenchido o requisito previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, ou seja, a permanência do Requerente em território português, no ano de 2014, em mais de 183 dias, seguidos ou interpolados.

A Requerida refere, por outro lado, que o Requerente não logrou provar que, no ano de 2014, tinha a sua residência em Espanha e, nessa medida, a liquidação de IRS impugnada não padece de qualquer ilegalidade, pelo que deverá manter-se na ordem jurídica.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

Nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Código do IRS: «[f]icam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos

Nesse seguimento, determina o n.º 1 do artigo 15.º do mesmo código que: «[s]endo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território

O n.º 2 do referido normativo estabelece que «[t]ratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português».

Deste modo, estabelece-se o princípio da tributação pelo rendimento mundial para os residentes em território português, sem prejuízo dos mecanismos de eliminação de dupla tributação jurídica, decorrentes quer das CDT, quer da própria legislação interna.

O conceito de residência, para efeitos de IRS, consta, no direito interno, do artigo 16.º, n.º 1, do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos, nos seguintes termos:

«1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, em 31 de Dezembro desse ano, de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de Dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direcção efectiva nesse território;

d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português

Assim, a residência configura-se como um conceito basilar em termos de determinação da sujeição pessoal ao IRS.

Por seu turno, o artigo 19.º da LGT, na redação em vigor à data dos factos, prescrevia o seguinte: «1 – O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;

b) Para as pessoas colectivas, o local da sede ou direcção efectiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal.

2 – O domicílio fiscal integra ainda a caixa postal electrónica, nos termos previstos no serviço público de caixa postal electrónica.

3 – É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

4 – É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.

5 – Os sujeitos passivos residentes no estrangeiro, bem como os que, embora residentes no território nacional, se ausentem deste por período superior a seis meses, bem como as pessoas colectivas e outras entidades legalmente equiparadas que cessem a actividade, devem, para efeitos tributários, designar um representante com residência em território nacional.

6 – Independentemente das sanções aplicáveis, depende da designação de representante nos termos do número anterior o exercício dos direitos dos sujeitos passivos nele referidos perante a administração tributária, incluindo os de reclamação, recurso ou impugnação.

7 – O disposto no número anterior não é aplicável, sendo a designação de representante meramente facultativa, em relação a não residentes de, ou a residentes que se ausentem para, Estados membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que esse Estado membro esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia.

8 – A administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor.

9 – Os sujeitos passivos do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas com sede ou direção efetiva em território português e os estabelecimentos estáveis de sociedades e outras entidades não residentes, bem como os sujeitos passivos residentes enquadrados no regime normal do imposto sobre o valor acrescentado, são obrigados a possuir caixa postal eletrónica, nos termos do n.º 2, e a comunicá-la à administração tributária no prazo de 30 dias a contar da data do início de atividade ou da data do início do enquadramento no regime normal do imposto sobre o valor acrescentado, quando o mesmo ocorra por alteração.

10 – O Ministro das Finanças regula, por portaria, o regime de obrigatoriedade do domicílio fiscal electrónico dos sujeitos passivos não referidos no n.º 9.»

Resulta assim da Lei que os conceitos de domicílio fiscal e de residente para efeitos de IRS não são sinónimos.

Como ensina Alberto Xavier (Direito Tributário Internacional, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 281): «[a] noção de residência ou domicílio para efeitos de delimitação da esfera de incidência das normas tributárias de cada Estado é também distinta da noção de domicílio tributário de direito interno e que é um domicilio especial pelo qual a lei refere a um lugar bem determinado, o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres estabelecidos pelas normas tributárias, localizando o sujeito passivo com vista a fixar a circunscrição territorial em cuja área se situem os serviços de administração competentes para a prática de actos relativos à situação fiscal do contribuinte

Assim, a relevância do conceito de domicílio fiscal previsto no artigo 19.º da LGT situa-se ao nível dos contactos entre o contribuinte e a AT.

Por isso, se prevê no artigo 43.º, n.º 2, do CPPT, que a «[…] falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação expedidos nos termos dos artigos anteriores, devido ao não cumprimento do disposto no n.º 1 [comunicação da alteração do domicílio], não é oponível à administração tributária, sem prejuízo do que a lei dispõe quanto à obrigatoriedade da citação e da notificação e dos termos por que devem ser efetuadas.»

Refira-se, aliás, que este dever de comunicação, previsto quer no n.º 1 do artigo 43.º do CPPT quer no artigo 19.º, n.º 3, da LGT, não se trata de formalidade ad substanciam, o que significa que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação (Cf., entre outros, Acórdão do TCA Sul, Proc. 2369/09.7 BELRS, de 11.11.2021).

Como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo (“TCA”) Norte, de 17.09.2015 (Processo: 00546/10.2BEVIS): «[É] ponto assente que o conceito de residência não se confunde com o conceito de domicílio fiscal, definido no artigo 19º da LGT como local da residência habitual, pois que o conceito de domicílio fiscal não tem em vista determinar a lei tributária aplicável a certa situação, mas tão só fixar territorialmente os serviços (locais e regionais) da administração tributária competentes para lidar com o contribuinte no que se refere à sua situação tributária

Como se refere na decisão arbitral do CAAD, proferida no âmbito do processo n.º 129/2023-T, de 30-06-2023: «[T]al significa que a residência assume a posição de elemento de conexão de maior relevo no âmbito do direito fiscal internacional, e bem assim no direito fiscal interno, além de que é o factor “residência” que determina quais as normas tributárias aplicáveis - de entre as normas de vários Estados (concorrentes) - e que delimita definitivamente o âmbito da incidência do imposto, demarcando também a extensão das obrigações tributárias dos contribuintes

Assim, para determinar a residência fiscal do Requerente, importa antes de mais analisar se à luz do disposto no artigo 16.º do Código do IRS, aquele pode ser considerado residente fiscal, em Portugal, em 2014.

Ora, resulta de toda a factualidade provada, através da documentação junta aos presentes autos, que o Requerente celebrou com a sociedade B... contrato de trabalho por tempo indeterminado, com data de início de 26-06-2014, para trabalhar em Madrid, na ..., Madrid, 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira (i.e., a prestação de trabalho a tempo inteiro).

Ou seja, pelo menos desde 26-06-2014, o Requerente passou a residir em Espanha para prestar trabalho, a tempo inteiro, para a sua entidade empregadora, a sociedade B..., tendo permanecido, portanto, pelo menos 189 dias, em Espanha naquele ano.

Constitui também facto assente que o Requerente apenas alterou a sua morada para Portugal, em 02-07-2014. Contudo, se é certo que a Requerida poderá invocar in casu a presunção de residência em território português no ano de 2014, luz do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, não é menos certo que tal presunção pode ser ilidida, mediante prova bastante.

Para este efeito, o Requerente apresentou o aludido contrato de trabalho, bem como prova do pedido de número de segurança social espanhol pelo Ministério do Emprego e da Segurança Social de Espanha, da sua inscrição como residente em Espanha junto da administração fiscal daquele país (Agencia Tributaria), indicando ter a sua residência permanente na ..., ..., Madrid, e da sua inscrição junto do Consulado Português naquela cidade.

A Requerida não impugnou especificamente nenhum dos documentos juntos pelo Requerente, designadamente quanto ao seu teor ou à sua veracidade.

Acresce que as declarações feitas pelos sujeitos passivos se presumem verdadeiras e de boa fé, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 75.º da LGT.

Em consequência, inexistindo motivo ou qualquer razão para duvidar, quer do alegado pelo Requerente, quer da prova junta aos presentes autos, é forçoso concluir que não se pode presumir a residência fiscal do Requerente, em Portugal, a luz do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.

Também não foi demonstrado que o Requerente dispunha em 2014 de casa própria em Portugal. Donde decorre que, também, com base no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, não é possível qualificar o Requerente como residente fiscal, em Portugal.

Não sendo o Requerente nem tripulante, nem exercendo funções de carácter público, também não é o Requerente residente fiscal, em Portugal, com base na Lei, isto é, com base nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS.

Em conformidade, deve o Requerente ser considerado “não residente” para efeitos fiscais em Portugal no ano de 2014, não cabendo determinar a residência fiscal prevalecente pela aplicação dos critérios previstos na CDT aplicável, por se considerar não existir uma situação de conflito de dupla residência fiscal.

Assim, considera este Tribunal ter ficado provado que, no ano de 2014, o Requerente tinha a sua residência em Espanha e, nessa medida, a qualificação do Requerente como residente fiscal, em Portugal, realizada pela AT não tem suporte na Lei.

Face ao exposto, conclui-se que o ato de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa e as liquidações de IRS e de juros compensatórios impugnados enfermam de vícios determinativos da sua ilegalidade, pelo que deverá ser determinada a sua consequente anulação.

  1. Dos juros indemnizatórios

O Requerente pede, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços, nos termos do artigo 43.º da LGT.

Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, na parte aqui aplicável, «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido».

No caso em apreço, concluiu-se, nos termos acima expostos, que quer a decisão de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentada contra os atos de liquidação de IRS, relativas ao exercício de 2014, e em que se incluiu a correspondente liquidação de juros compensatórios, padecem do vício de violação de lei que lhe são imputados no pedido de pronúncia arbitral apresentado pelo Requerente, havendo lugar ao pagamento de juros indemnizatórios pois a ilegalidade daquele ato é imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, o praticou sem suporte legal.

Consequentemente, tem o Requerente direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente, à taxa dos juros legais prevista no artigo 559.º do Código Civil e, atualmente, na Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril (artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT).

  1. Questões de conhecimento prejudicado

Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, «as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)».

Em face da solução dada às questões relativas à determinação da residência fiscal do Requerente no ano de 2014 e ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor do Requerente, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões, nomeadamente as relativas à ilegalidade da liquidação de juros compensatórios, por falta de fundamentação.

  1. Decisão

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, decide o presente Tribunal Arbitral:

  1. Julgar totalmente improcedente a exceção de erro na forma do processo, invocada pela Requerida;

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, anulando-se as decisões de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado e o ato de liquidação de IRS e de juros compensatórios;

 

  1. Condenar a Requerida ao reembolso do imposto pago em excesso pelo Requerente, acrescido de juros indemnizatórios devidos nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

  1. Valor do processo

Fixa-se ao processo o valor de € 30.716,44, em conformidade com o disposto no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por remissão do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

  1. Custas arbitrais

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante de custas arbitrais em € 1.836,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Requerida.

Notifique-se.

Lisboa, 19 de março de 2025

 

O Tribunal Arbitral,

 

Sérgio Santos Pereira