Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 923/2024-T
Data da decisão: 2025-04-04  IRC  
Valor do pedido: € 219.954,50
Tema: IRC – Valor do processo – Competência do Tribunal Arbitral Singular
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Sumário:

  1. Para determinar o valor da causa relativamente a impugnações da matéria coletável em que não haja imposto a pagar deve aplicar-se a alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A, do CPPT e não a alínea a).
  2. A referida alínea b) impõe que a determinação do valor da causa se faça segundo o critério objetivo nela consagrado, ficando, pois, afastada a possibilidade de essa determinação ser feita em função de um critério subjetivo na disponibilidade do contribuinte (como por exemplo, a aplicação da taxa de IRC aplicável ao valor das correções contestadas).
  3. A incompetência relativa do tribunal arbitral singular em razão do valor é de conhecimento oficioso (artigo 104.º, n.º 2, do CPC) e configura uma exceção dilatória (artigo 577.º, alínea a) do CPC) que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576.º, n.º 2, do CPC).

 

 

DECISÃO ARBITRAL

I.RELATÓRIO

  1. A..., LDA., titular do NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ... (doravante, a “Requerente”), veio nos termos e para os efeitos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1 e 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, “RJAT”), em conjugação com o artigo 99.º, alínea a) e o artigo 102.º, n.º 1, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante, “CPPT”), requerer a constituição do tribunal arbitral, com a intervenção de árbitro singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, a “Requerida” ou “AT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade do ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante, “IRC”) com o n.º 2024..., relativo ao ano de 2019, do qual não resultou montante a pagar.
  2. De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a) e 6.º, n.º 1, do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  3. O Tribunal Arbitral foi constituído no CAAD, em 8 de outubro de 2024, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
  4. Notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua resposta em 18 de novembro de 2024 e o processo administrativo em 10 de dezembro de 2024.
  5. Em 14 de janeiro de 2024, pelas 10:00 horas, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, na qual prestou depoimento a testemunha da Requerente B... . Na reunião arbitral foram ainda as partes notificadas para, querendo, apresentarem alegações escritas, o que apenas foi feito pela Requerente, em 29 de janeiro de 2025, que reiterou os argumentos já anteriormente avançados no pedido de pronúncia arbitral.
  6. Em 18 de março de 2025 foi proferido despacho arbitral, tendo em consideração o princípio da cooperação e o princípio da livre condução do processo, bem como o disposto no n.º 2 do artigo 29.º do RJAT, notificando as partes para, querendo, se pronunciarem quanto à exceção de incompetência do tribunal arbitral singular no prazo de 5 dias e informando (para evitar uma decisão surpresa) que o sentido mais provável da decisão a proferir pelo presente Tribunal seria da sua incompetência atendendo: i) à jurisprudência arbitral já devidamente estabilizada quanto à interpretação das regras referentes à determinação do valor do processo de arbitragem tributária, e ii) ao facto de a Requerente ter indicado como valor do processo o montante de € 46.085,45, de a liquidação de IRC contestada não apurar valor a pagar e de a correção à matéria tributável cuja anulação a Requerente pretende ascender ao montante de € 219.954,50.
  7.  A Requerente respondeu ao despacho em 24 de março de 2025, sustentando que o tribunal arbitral singular é competente para decidir o mérito do presente pedido de pronúncia arbitral, e a Requerida respondeu ao despacho em 27 de março de 2025, peticionando que seja julgada verificada a exceção de incompetência do tribunal arbitral singular em função do valor da causa.

II.MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

  1. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
  1. Em sede de inspeção tributária foi efetuada uma correção à matéria tributável de IRC do ano de 2019 da Requerente no montante de € 219.954,20 decorrente de um gasto não aceite fiscalmente originado pela “(…) perda, em tribunal, de um imóvel que havia sido objeto de permuta em 2007, e que após vários recursos foi proferida decisão desfavorável pelo Supremo Tribunal de Justiça e transitada em julgado (…)” (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto como documento n.º 3 pela Requerente);
  2. Para sustentar a referida correção os serviços de inspeção tributária consideraram que “(…) tratando-se de uma permuta, com a anulação deste negócio, o SP deveria, igualmente, efetuar na contabilidade o reconhecimento da possibilidade de reaver o imóvel permutado (artigo U-...), o que não efetuou. Ora, o sujeito passivo não apresentou prova de ter contestado judicialmente a recuperação do direito ao imóvel que deu em permuta. A ser assim, no período em análise não se verificaria o apuramento de qualquer gasto fiscal (…) O gasto registado pelo SP não pode ser considerado gasto fiscalmente aceite no período em análise, uma vez que com o reconhecimento da existência de um processo judicial em curso, em 2009, onde efetivamente se verifica o risco da perda, possibilitaria nesse período o reconhecimento do gasto, via constituição de uma provisão para processos judiciais em curso, conforme estabelecido no n.º 1 al. a) art.º 39.º do CIRC (…). Aliás, em 2009, iniciando-se e encontrando-se em curso processo judicial, como já referido, o sujeito passivo deveria ter constituído a respetiva provisão, o que não aconteceu. Assim, o sujeito passivo deveria ter registado um gasto no período de 2009, constituindo a respetiva provisão, para fazer face a obrigações e encargos derivados do processo judicial em curso, nos termos do art. 39.º, n.º 1, al. a) do CIRC. Conclusão: De acordo com o acima exposto, no período em análise (2019) não se verifica o apuramento de qualquer gasto fiscal, uma vez que tal gasto deveria ter sido reconhecido em período de tributação anterior (2009). É devida correção de € 219.954,50, nos termos do art. 18.º do CIRC, a qual será acrescida ao apuramento do resultado tributável declarado (…) (cfr. Relatório de Inspeção Tributária junto como documento n.º 3 pela Requerente);
  3. Na sequência da inspeção tributária foi emitida a liquidação de IRC n.º 2024..., de 16.04.2024, que não originou valor de imposto a pagar e fixou o prejuízo fiscal em € 31.096,31;
  4. A Requerente não se conformou com a correção promovida pelos serviços de inspeção tributária e apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que originou a presente instância arbitral, no qual requer a anulação da referida correção no montante de € 219.954,20. 

A.2. Factos dados como não provados

  1. Não existem factos relevantes para a decisão que não tenham sido considerados provados.

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada 

  1. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).  
  2. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (art. 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT). 
  3. Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o Processo Administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. 
  4. Tendo em consideração a verificação da exceção, conforme abaixo se demonstrará, não foi relevado o depoimento da testemunha prestado na reunião arbitral a que alude o artigo 18.º do RJAT.
  5. Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada. 

III.SANEAMENTO

  1. O pedido foi tempestivamente apresentado nos termos do previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, em conformidade com o disposto nos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e dos artigos 1.º, 2.º e 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. O processo arbitral não enferma de nulidades.
  2. Todavia, atendo ao valor do processo, o presente Tribunal Singular não é materialmente competente para apreciar o pedido.
  3. Apesar de a Requerente ter indicado como valor do processo o montante de € 46.085,45, o valor do presente processo é de € 219.954,50, que corresponde ao montante cuja anulação se requer.

Vejamos,

  1. De acordo com a Requerente “Na presente impugnação está em causa a liquidação de IRC de 2019 que não tem valor a pagar, em virtude dos prejuízos fiscais elevados que a Impugnante tem direito a deduzir”, sendo claro que o montante cuja anulação se pretende é de € 219.954,50, correspondente à correção à matéria coletável ao exercício de 2019 promovida pela administração tributária.
  2. No entanto, a Requerente indicou como valor da causa o montante de € 46.085,45, alegando que tal corresponde à “importância que se pretende anular (…) imposto (IRC) relativo à correção à matéria coletável no valor de € 219.954,50, que é de € 46.085,45”.
  3. Com efeito, de acordo com o exposto pela Requerente no requerimento apresentado em 24 de março de 2025, “Para determinar o valor da ação, a Requerente aplicou a taxa de IRC de 21% ao valor das correções efetuadas de 219.954,50€ apurando-se, assim, o valor do imposto a pagar que resultaria daquelas correções, não fosse a circunstância de a Requerente ter prejuízos fiscais. Entende, portanto, a Requerente que o valor da ação é de €46.085,45 (219.954,50€ x 21%) que corresponde ao valor do imposto que resulta das correções efetuadas”.
  4. Ora, não é pelo facto de uma liquidação de imposto não apurar imposto a pagar que se deve ficcionar o imposto que seria aplicável para determinar o valor da ação.
  5. Tal como é afirmado em Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17.01.2019, proferido no âmbito do processo 62/18.4BCLSB, “(…) para que a alínea a) possa ser aplicável é necessário que estejam reunidas duas condições: (i) que haja liquidação que determine um montante de imposto a pagar superior a zero e que (ii) essa liquidação seja impugnada. É que a norma apela a um conceito restrito de liquidação, isto é, refere-se ao resultado positivo da operação aritmética de aplicação de uma determinada taxa de imposto à matéria colectável e não propriamente a essa operação aritmética. Caso contrário cair-se-ia no absurdo de em situações em que não se apura imposto a pagar se admitir que o valor da causa pudesse ser igual a zero”.
  6. O mesmo entendimento foi confirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 14.10.2020, proferido no mesmo processo n.º 062/18.4BCLSB.
  7. O referido aresto pronunciou-se – em sede de recurso de revista – sobre a seguinte questão “(…) saber se, quando é impugnado um ato tributário de liquidação de tributos, que não apura imposto a pagar na decorrência das correções à matéria tributável que são controvertidas, o valor da causa deve corresponder ao valor das correcões contestadas, nos termos da alinea b) do n.° 1 do artigo 97.°-A do CPPT, como entendeu o Tribunal recorrido, ou se, como entende o Recorrente, deve fazer-se apelo ao disposto na alínea a) do nº1 do artigo 97.°-A do CPPT conjugado com o disposto nos artigos 296º e 297º do CPC e nos artigos 31º e 32º do CPTA e considerar-se como “importância cuja anulação se pretende” o montante do imposto que se deixara previsivelmente de pagar nos exercícios seguintes (…)”.
  8. Determinando que “Na senda de Jorge Lopes de Sousa, in CPPT Anotado, vol II, em anotação ao artigo 97º-A, secundado pelo EPGA, entendemos que só quando da fixação da matéria tributável não resulte o apuramento de imposto a pagar é que se será de adoptar o critério do “valor contestado” para determinar o valor da ação, e, nos demais casos, o valor a atender condirá com o valor da prestação pecuniária que se pretende ver anulada, o que vale por dizer, que apenas nos casos em que está em causa o acto de fixação da matéria tributável [al. b)] ou o ato de fixação dos valores patrimoniais [al. c)] é que o critério a atender é o “valor contestado”.

Por assim ser, quanto às situações abrangidas pela alínea a) do nº1 do artigo 97º-A do CPPT, é pacífico que as mesmas se atêm à expressão monetária da “utilidade económica imediata do pedido”.

O mesmo já não sucede quanto às situações abarcadas pelas alíneas b) e c) em que o benefício obtido se relaciona, em ambas, com o valor do imposto que for apurado em posteriores colectas pelo que nesses casos deve prevalecer o critério geral consagrado no já referido nº1 do artigo 296º do CPC, segundo o qual é de atender à “utilidade económica imediata do pedido” que equivalerá ao “valor contestado” que se pretende ver anulado ou alterado, sendo certo, como enfatiza o EPGA, que uma vez que o legislador podia ter definido outro critério de concretização do valor pecuniário do benefício nestes casos e não o fez, não há fundamento, para adoptar ajustamentos na concretização desse valor, com base nos princípios da adequação e proporcionalidade.

Por esse diapasão, propendemos para considerar que o acórdão recorrido foi assertivo ao perfilhar o entendimento de que, conquanto na ação proposta no CAAD em 12/06/2017 tenha sido formulado o pedido de anulação do ato tributário, “com o consequente reembolso do imposto pago indevidamente, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios”, da demonstração da liquidação notificada ao sujeito passivo não resultava qualquer liquidação de IRC, por falta de lucro tributável, por terem sido reconhecidos prejuízos fiscais e, por isso, ainda que o objecto da impugnação seja o ato de liquidação em termos genéricos (cujo valor de € 13.333,84 euros exigido ao sujeito passivo se prende com tributações autónomas, que não foram objecto de impugnação), a impugnação incide propriamente sobre o ato de fixação da matéria tributável, cujo resultado terá repercussão no montante dos prejuízos fiscais apurados (com reflexos no eventual reporte nos exercícios seguintes).Todavia, não se segue que o cômputo dos eventuais benefícios do reporte de prejuízos nos exercícios seguintes deva ser considerado para efeitos de fixação do valor à causa na medida em que se trata de um facto futuro e incerto.
In casu, porque da fixação da matéria tributável não resultou o apuramento de imposto a pagar, como resulta claramente da previsão da alínea b) do nº1 do artigo 97º-A, o critério relevante só pode ser o do “valor contestado”.

É que, como é incontroverso, o critério contemplado na alínea a) do nº1 do artigo 97º-A do CPPT, pressupõe que da fixação da matéria tributável resulte imposto a pagar, de jeito a poder determinar-se a importância que se pretende ver anulada, o que não é cotejável com a situação dos autos.

É que, o que se questionavam no processo arbitral eram as correcções feitas à matéria colectável que não se reflectiram em qualquer imposto a pagar, pois apenas relevaram no plano dos prejuízos fiscais, diminuindo o valor dos mesmos a reportar.
Por assim ser, tal como se considera no aresto recorrido e sustenta também a recorrida e o EPGA, a utilidade económica do pedido a não é aferível pelo valor que a recorrente encontrou mediante a aplicação de uma taxa ao montante das correcções impugnadas o qual sempre seria meramente hipotético porquanto não corresponde efectivamente a uma qualquer liquidação que lhe venha a ser efectuada no futuro, uma vez que as correcções que lhe foram efectuadas apenas tiveram reflexo na diminuição dos prejuízos fiscais declarados e eventualmente a reportar que podem, ou não, ser utilizados nos próximos anos/exercícios.
De resto, é por demais evidente que os prejuízos apurados até poderão nunca vir a ser relevantes para a prática de qualquer acto de liquidação, ficando a sua eventual relevância dependente de em algum ou alguns dos períodos de tributação em que for legalmente admissível fazer o reporte dos prejuízos vir a ser apurado lucro tributável sem recurso a métodos indirectos e não existirem prejuízos referentes a outros períodos de tributação anteriores que excedam esse lucro tributável (cfr. artigo 52.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRC).

Não subsistem, pois, quaisquer dúvidas de que na situação em que o contribuinte vem impugnar as correcções que lhe foram efectivadas e que não deram origem a qualquer liquidação de imposto deve ser aplicada a al. b) do nº 1 do art. 97º-A do CPPT, dado que é o valor das correcções impugnadas que vem contestado.

Significa o antedito que estava vedado ao Tribunal Arbitral fixar um valor da causa que é simplesmente imaginário por corresponder ao valor de uma hipotética liquidação encontrada pela aplicação da taxa de IRC ao valor das correcções” (sublinhado nosso).

  1. E que “Igualmente se acolhe o ponto de vista sufragado pelo acórdão recorrido e também patrocinado pelo Ministério Público, no sentido de que a bondade da tese do Recorrente apenas releva em sede de discussão do direito a constituir e não do direito constituído pois, a aprovar-se o entendimento do Recorrente, a alínea b) do artigo 97º-A do CPPT simplesmente ficaria esvaziada na sua aplicação, uma vez que não se vislumbra que outras situações poderia o legislador ter em mente que não sejam as similares à dos autos, ou seja, aqueles casos em que do acto de liquidação não resulta imposto a pagar.
    Donde que da letra do preceito em análise não resulta qualquer suporte para a tese do recorrente, e, chamando à colação os princípios gerais de interpretação jurídica ínsitos no artigo 9.° a 13° do CC, que nos dispensamos de transcrever, somos impelidos a concordar com a interpretação que o tribunal recorrido faz da norma, por quer da letra, quer do seu espírito, se dever retirar tal conclusão.

Tendo presente que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art.° 9.°, n°2 do CC), e, portanto, presumindo que o legislador consagrou a solução mais adequada (art.º 9.º, n.º 2, do Código Civil), parece que não poderá ser outra a interpretação a extrair do preceito em causa, senão a que foi vazada no acórdão sob censura.

Destarte, estabelecendo o artigo 97º-A do CPPT uma norma específica que indica o critério de determinação do valor da ação nos casos em que é contestado o ato de fixação da matéria colectável, não pode o julgador recorrer-se de outros critérios previstos noutros normativos em que está em causa a impugnação de outros atos, sob pena de violação flagrante das normas e princípios relativos à interpretação das normas consagrados no artigo 9º do Código Civil”.

  1. Também no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.03.2023, proferido no processo n.º 0540/18.5BEPRT, ficou decido que “O valor a atender na impugnação dos atos de correção da matéria tributável que não dão origem à liquidação do tributo é o valor que aí for contestado – artigo 97.º-A, n.º 1, alínea b), do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
  2. Assim, no presente processo, impõe-se concluir que, uma vez que não foi apurado um valor a pagar, para determinar o valor da causa deve considerar-se o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, correspondendo ao valor da correção efetuada pelos serviços de inspeção tributária cuja anulação a Requerente pretende, que ascende a € 219.954,50.
  3. Daqui resulta que o valor da causa ultrapassa o dobro do valor da alçada do Tribunal Central Administrativo, pelo que o tribunal competente é o tribunal coletivo (artigo 5.º, n.º 3, alínea a), do RJAT) e não o tribunal singular.
  4. Ou seja, a determinação do valor do processo, nos termos expostos, resulta na incompetência relativa do presente tribunal singular em razão do valor, a qual é de conhecimento oficioso (artigo 104.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), e configura uma exceção dilatória (artigo 577.º, alínea a) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT), que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo 576.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT).
  5. Por ser pertinente na situação sub judice  - embora extravase os poderes decisórios deste Tribunal -, atendendo ao invocado pela Requerente no requerimento apresentado em 24 de março de 2025 – “(…) caso seja declarada procedente a exceção, o que só por mera cautela de patrocínio se concede, sempre terá a Requerente direito a prosseguir o processo em sede de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos dos artigos 18º do CPPT e 24º do RJAT” – acompanha-se o decidido no processo n.º 197/2022-T, que se reproduz de seguida:

“(…) a possibilidade de remessa oficiosa dos autos ao tribunal competente não está comtemplada no âmbito da justiça arbitral.

Tal como foi afirmado no Acórdão arbitral proferido no âmbito do Processo n.º 197/2019-T, «[n]os termos do RJAT, no CAAD funciona apenas um tribunal, que decide em coletivo ou em singular, em função do valor da causa ou da indicação de árbitro por parte do sujeito passivo (artº 5º) pelo que o cumprimento desta última possibilidade de remessa do processo é inviável».

Conforme é afirmado no Acórdão arbitral proferido no âmbito do Processo n.º 649/2021-T, «a consequência da incompetência do tribunal arbitral é apenas a da absolvição da instância, não a remessa dos articulados para outro tribunal arbitral competente».

Em alternativa, a Requerente requer que a decisão de incompetência do presente tribunal arbitral em razão de fixação oficiosa do valor da causa determine que a Requerente tem o direito de suscitar novo pedido de pronúncia arbitral sobre os atos e matéria tributária aqui discutida, nos termos e no prazo do artigo 24.º, n.º 3, do RJAT.

Não compete a este tribunal pronunciar-se sobre o destino a dar aos autos ou sobre a via processual a ser seguida para a tutela dos direitos e interesses da Requerente.

Ainda assim, importa referir que o artigo 18.º do CPPT prevê que, em caso de decisão de incompetência, «pode o interessado, no prazo de 14 dias a contar da notificação da decisão que a declare, requerer a remessa do processo ao tribunal competente».

Todavia, como assinala a doutrina, «na jurisdição arbitral esta possibilidade de remessa não afasta a necessidade de constituição de um novo tribunal, com a remuneração da atividade desenvolvida pelos árbitros de ambos os tribunais, pelo que implicará o pagamento das custas relativas às duas constituições de tribunais» [Jorge Lopes de Sousa, “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, in Nuno de Villa-Lobos e Tânia Carvalhais Pereira (Coord.), Guia da Arbitragem Tributária, 3.ª ed., 2017, Coimbra, Almedina, p. 156].

Não cabe a este tribunal, mas sim ao [eventual] tribunal arbitral coletivo que venha a ser constituído, pronunciar-se sobre o direito, invocado pela Requerente, de suscitar novo pedido de pronúncia arbitral sobre a matéria aqui em apreço, designadamente quanto aos termos e ao prazo para o seu exercício.

Situação semelhante verificou-se no âmbito do Processo n.º 197/2019-T, no qual o tribunal arbitral coletivo considerou desculpável o erro na indicação do valor do Processo n.º 281/2018-T, tendo considerado aplicável, no caso, o artigo 24.º, n.º 3, do RJAT e entendendo, consequentemente, ser tempestiva a ação arbitral em apreço”.

  1. Tal como também assinalado na decisão arbitral do processo n.º 202/2023-T:

«Com a consequência de que, não podendo exercer o seu poder jurisdicional, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre o mérito de quaisquer outras questões submetidas à sua apreciação, nem retirar quaisquer consequências do que ficou provado.

Na procedência de uma excepção dilatória, estabelece o art. 278º, 1 do CPC que:

“O juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância”».

  1. Assim, determina-se a absolvição da instância por verificação da exceção de incompetência do Tribunal, ficando prejudicada a apreciação das restantes questões.

IV.DA DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

  1. julgar procedente a exceção de incompetência relativa deste tribunal arbitral singular em razão do valor do processo;
  2. absolver a Requerida da instância;
  3. considerar prejudicada a apreciação de outras questões suscitadas; e
  4. condenar a Requerente nas custas do processo.

V.VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 219.954,50 nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea b), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.  

VI.CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, considerando, para esse efeito, o valor do processo indicado pela Requerente na data em que requereu a constituição de tribunal arbitral (€ 46.085,45)

Adere-se ao que se entendeu no Acórdão n.º 151/2013-T, de 15 de novembro, sobre a os diferentes valores para efeitos de custas: “O facto de o valor do litígio, para efeitos de determinação da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ser o que resulta da aplicação subsidiária do CPPT, não obsta a que seja outro o valor para efeitos de custas, pois trata-se de matéria que tem a ver exclusivamente com as receitas do CAAD, que é uma entidade privada”.

As custas devem ser pagas pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.   

 

Notifique-se.

Lisboa, 4 de abril de 2025.

 

 

O Árbitro,

 

João Taborda da Gama