Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 900/2024-T
Data da decisão: 2025-04-03   Outros 
Valor do pedido: € 7.928.694,24
Tema: Adicional de solidariedade sobre o setor bancário; capacidade contributiva; igualdade tributária; inconstitucionalidade.
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Sumário

I. O ASSB, constante do anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, é um imposto criado no contexto de resposta à crise pandémica, incidente sobre o passivo e sobre o valor nocional dos instrumentos derivados fora do balanço das instituições de crédito, e que, nos termos da lei, visa a compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras.  

II. O ASSB não tem na sua base um facto tributário revelador de capacidade contributiva das instituições de crédito. Por essa razão, o Regime do ASSB viola o princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária, consagrado nos artigos 13.º, 103.º, n.º 1 e 104.º da CRP.

III. O passivo das instituições de crédito constitui um critério de diferenciação inadequado à consecução das finalidades da lei fiscal, sejam elas entendidas como puramente financeiras ou redistributivas. Por essa razão, o Regime do ASSB viola o princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio, que decorre do artigo 13.º da CRP.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros José Poças Falcão, Marta Vicente e José Luís Ferreira, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 01-10-2024, acordam no seguinte:

I - Relatório

1. A..., S.A. (doravante, abreviadamente designada por “Requerente”), com o número de identificação fiscal ..., com sede na ..., n.º ..., Porto, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.

2. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede:

(i) anulação dos atos tributários de autoliquidação do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (doravante, ASSB) referente aos anos de 2022 (Documento n.º 02) e de 2023 (Documento n.º 3);

(ii) a condenação da AT na restituição dos montantes de ASSB indevidamente pagos pela Requerente, na quantia de € 7.928.694,24, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).

4. O pedido de constituição de Tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação.

5. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os Signatários como Árbitros do Tribunal arbitral coletivo, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo devido.

6. Foram as partes notificadas dessa designação, em 11-09-2024, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11.º, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 01-10-2024.

7. Em 02-10-24, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT). O Despacho foi notificado na mesma data.

8. A Requerida veio apresentar resposta, em 05-11-2024, remetendo o processo administrativo.

9. Em 08-11-2024, foi proferido despacho arbitral a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, e concedendo às partes o prazo simultâneo de 10 (dez) dias para a produção de alegações escritas, de facto e de direito, com conclusões expressas. Requerida e Requerente apresentaram alegações escritas em 22-11-2024. 

 

II - Síntese da posição das partes

10. Compulsado o pedido arbitral, a Requerente considera, em síntese, que:

a) O ASSB é um imposto especial e direto sobre o setor bancário, apesar de partilhar a base de incidência objetiva e subjetiva com a Contribuição sobre o setor bancário (CSB), qualificada pelo Tribunal Constitucional como uma contribuição financeira. Inexiste, com efeito, qualquer bilateralidade difusa ou genérica na estrutura do tributo, o que significa que os montantes liquidados a título de ASSB não são contrapartida de uma prestação administrativa, individual ou grupal, de que as entidades do setor bancário sejam beneficiárias. Esta conclusão é corroborada pela jurisprudência arbitral, pela Recomendação n.º 4/B/2023 da Provedora de Justiça e pela jurisprudência constitucional (Acórdão n.º 149/2024). Sendo o ASSB um imposto, a apreciação da legalidade dos atos de autoliquidação reentra no âmbito material de competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo do RJAT (artigo 2.º, n.º 1, a) do RJAT) – cf. pontos 1.º a 30.º do PPA.

b) O regime jurídico do ASSB (constante do anexo VI à Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, doravante “Regime do ASSB”) viola os princípios constitucionais da igualdade tributária e da capacidade contributiva. Isto acontece porque o ASSB, ao incidir exclusivamente sobre as entidades do setor bancário, impõe um tratamento discriminatório, injustificado e arbitrário a uma categoria de contribuintes (artigo 2.º do Regime do ASSB) – cf. pontos 44.ºa 87.º do PPA.

c) O Regime do ASSB viola os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 13.º, 18.º, n.º 2, 103.º e 104.º da CRP. Efetivamente, uma vez que a incidência objetiva do ASSB mimetiza a incidência objetiva da CSB, existe dupla tributação jurídica doméstica, da qual resulta uma tributação excessiva e desproporcionada das entidades do setor bancário – cf. pontos 88.º a 97.º do PPA.

d) Finalmente, o Regime do ASSB viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade. O ASSB incide sobre o chamado “património negativo” das entidades do setor bancário, ou seja, sobre o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e sobre o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço (artigo 3.º do Regime do ASSB). Contudo, o património negativo não constitui uma manifestação de capacidade contributiva à luz da Constituição, não se confundindo nem com o rendimento, nem com o património, nem com o consumo (artigo 104.º CRP). A Constituição não admite a tributação do património negativo dos contribuintes, tal como referido pela Provedora de Justiça, na recomendação já mencionada – cf. pontos 98.º a 112.º do PPA.

 

11. A Requerida respondeu nos seguintes termos:

a) A Requerida alega que o ASSB é um imposto (indireto) que pretendeu mitigar o impacto económico da resposta à crise pandémica. Ao contrário do que invoca a Requerente, não há violação do princípio da igualdade e do princípio da capacidade contributiva, porquanto a diferenciação de tratamento estabelecida pelo legislador assenta num critério objetivo, razoável e justificado (ponto 88.º da Resposta).

b) O ASSB incide sobre um bem tributário, ou seja, tem subjacente uma manifestação de capacidade contributiva prevista na Constituição, uma vez que se trata de um imposto sobre o consumo (ponto 167.º da Resposta). O valor do passivo e dos derivados fora de balanço traduz, efetivamente, a realidade económica relevante dos sujeitos passivos visados e é um fator que “permite mensurar, de forma rigorosa, a sua capacidade contributiva” (ponto 126.º da Resposta). Contrariamente ao decidido no Acórdão n.º 469/2024, do Tribunal Constitucional, o ASSB é um sucedâneo do IVA no setor bancário, com a diferença que, ao invés de assentar no volume de negócios, assenta no valor do passivo e dos derivados fora do balanço.

c) A AT avança ainda que, mesmo que o Tribunal arbitral entenda coisa diversa, não são devidos juros indemnizatórios, nem à luz do n.º 1 do artigo 43.º da LGT – porque não existiu “erro imputável aos serviços” – nem à luz da al. d) do n.º 3 do mesmo preceito legal – dado que sobre as normas do Regime do ASSB não recaiu nenhuma declaração de inconstitucionalidade nos termos dos artigos 281.º e 282.º da CRP e não está em causa o desrespeito por normas constitucionais diretamente aplicáveis ao contribuinte, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (ponto 188.º da Resposta).

 

III – Saneamento

12. O Tribunal arbitral foi regularmente constituído face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, al. a) do RJAT. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). O processo não enferma de nulidades.

 

IV – Matéria de facto

§1 – Factos provados 

13. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

A. A Requerente é uma instituição de crédito devidamente autorizada pelo Banco de Portugal para o exercício da atividade bancária, residente, para efeitos fiscais, em Portugal, liderando o Grupo B... .

B. Em 27-06-2022, a Requerente procedeu à autoliquidação de ASSB referente a 2022, mediante a submissão da declaração Modelo 57 (Documento n.º 2), no montante de € 3.862.941,78.

C. Em 30-06-2022, a Requerente procedeu ao pagamento do tributo liquidado por referência ao ano de 2022 (Documento n.º 5).

D. A autoliquidação referente ao ASSB de 2022 teve por base a média dos saldos finais do passivo de cada mês do ano de 2022, no montante de € 19.314.111.012,05, e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço de € 239.151.533,36 (Documento n.º 2).

E. Em 28-06-2023, a Requerente procedeu à autoliquidação de ASSB referente a 2023, mediante submissão da declaração Modelo 57 (Documento n.º 3), no montante de € 4.065.752,46.

F. Na mesma data, a Requerente procedeu ao pagamento do tributo liquidado por referência ao ano de 2023 (Documento n.º 6).

G. A autoliquidação referente ao ASSB de 2023 teve por base a média dos saldos finais do passivo de cada mês do ano de 2023, no montante de € 20.328.065.969,68, e o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço de € 278.541.474,96 (Documento n.º 3).

H. Em 12-04-2024, a Requerente apresentou reclamação graciosa pedindo a anulação daqueles dois atos de autoliquidação.

I. Em 24-04-2024, a Requerida emitiu um ofício com um projeto de indeferimento da reclamação graciosa, notificando a Requerente para efeitos do exercício do direito de audiência prévia (Documento n.º 7).

J. Em 27-05-2024 foi a Requerente notificada do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada (Documento n.º 1).

L. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 24-07-2024.

 

§2 – Factos não provados

14. Não existem factos não provados com relevo para a causa.

 

§3 – Fundamentação da decisão da matéria de facto

15. Os factos dados como provados resultam exclusivamente da prova documental junta com o PPA e do processo administrativo.

 

V – Matéria de direito

16. As questões de direito a decidir no presente pedido de pronúncia arbitral têm exclusivamente que ver com diversas inconstitucionalidades materiais assacadas ao Regime do ASSB. No entender do Tribunal arbitral, essas questões são duas.

Em primeiro lugar, a questão de saber se o regime do ASSB, ao incidir sobre o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e sobre o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço [artigo 3.º, a) e b) do Regime do ASSB], tem subjacente um facto revelador da força económica do contribuinte, o que é o mesmo que perguntar se o regime do ASSB respeita o princípio da capacidade contributiva enquanto pressuposto ou condição da tributação, à luz dos artigos 13.º, 103.º, n.º 1 e 104.º da CRP. Em segundo lugar, a questão de saber se o regime do ASSB, ao incidir exclusivamente sobre as instituições de crédito (artigo 2.º, n.º 1 do Regime do ASSB), implica violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva desta feita enquanto critério da tributação.[1]

17. A estas duas questões soma-se uma terceira – a que o Tribunal arbitral só responderá na medida em seja negativa a resposta às primeiras duas – que é a de saber se o regime do ASSB, ao incidir sobre um facto tributário que também é objeto de uma contribuição financeira (a CSB), implica violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva enquanto limite da tributação, conjugados com o princípio da proporcionalidade e com a garantia constitucional da propriedade privada (artigos 18.º, n.º 2 e 62.º da CRP).

 

§1. Enquadramento legal e jurídico-constitucional

18. O ASSB foi criado pelo anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, que procedeu à segunda alteração à Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Orçamento do Estado para 2020), em contexto de crise pandémica. Integrava, por isso, o Programa de estabilização e social, aprovado em anexo à Resolução de Conselho de Ministros n.º 41/2020, de 4 de junho, que continha um conjunto de medida excecionais (“com um horizonte temporal até ao fim de 2020”) de reação à emergência sanitária e económica e de preparação da recuperação económica. Entre elas contava-se, segundo ponto 4.3.5 do Programa, a criação de um adicional de solidariedade sobre o setor bancário, cuja receita estaria adstrita à cobertura dos custos da resposta pública à crise, através da sua consignação ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social.

19. O Regime do ASSB consigna a respetiva receita ao dito Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (artigo 9.º). O artigo 1.º do mesmo Regime dispõe que o Adicional “tem por objetivo reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social”. Contudo, o mesmo dispositivo esclarece que esse reforço opera como “forma de compensação pela isenção de imposto sobre o valor acrescentado aplicável à generalidade dos serviços e operações financeiras, aproximando a carga fiscal suportada pelo setor financeiro à que onera os demais setores”.

Esta configuração, e a subsistência daquele regime legal para lá da crise pandémica, ilustram que subjacente ao ASSB esteve, não só um propósito conjuntural de reação a uma situação de crise, mas também um propósito estrutural de compensação do que, para o legislador, se configura como uma iniquidade na repartição dos encargos públicos. O que afasta, portanto, que o ASSB seja concebido como uma medida excecional e temporária, que possa por isso beneficiar da maior tolerância constitucional geralmente associada aos tributos com estas caraterísticas (ex. Acórdão n.º 7/2019, a propósito da Contribuição extraordinária sobre o setor energético, ou o Acórdão n.º 572/2014, a propósito da Contribuição Extraordinária de Solidariedade, ambos do Tribunal Constitucional).[2] Esta asserção é corroborada pela UTAO, que, no Relatório de apreciação da segunda proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2020, adiantou que o ASSB “não tem a ver com a Covid-19” (Relatório n.º 13/2020, de 15-06-2020, p. 3, disponível online).

20. Estruturalmente, o ASSB incide as instituições de crédito sedeadas em território português ou sobre filiais ou sucursais em Portugal de instituições de crédito com sede principal e efetiva fora do território português (artigo 2.º, n.º 1, a), b) e c) do Regime do ASSB). O Adicional incide sobre o passivo apurado e aprovado pelos sujeitos passivos e sobre o valor nocional dos instrumentos financeiros derivados fora do balanço (artigo 3.º, a) e b) do Regime do ASSB), com as exceções enunciadas no artigo 4.º. Apesar das semelhanças, em termos de incidência subjetiva e objetiva, entre o ASSB e a Contribuição sobre o Setor Bancário (CSB), criada pelo artigo 141.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, e prorrogada nos anos seguintes, os dois tributos não se confundem.

21. A CSB é tributo com apoio no Direito da União, criado no rescaldo da crise financeira internacional que se iniciou em 2007, cuja receita está alocada ao financiamento de medidas de resolução bancária a adotar pelo Banco de Portugal, isto é, de medidas de “resgate” a bancos em dificuldade (Fundo de resolução). À CSB subjaz, portanto, uma opção de mutualização financeira, de acordo com a qual os custos de eventuais medidas de resolução bancária necessárias para atenuar os riscos sistémicos devem ser suportados pelos operadores económicos do setor, através de uma contribuição financeira, e não pelos contribuintes, através de impostos. Por essa razão, a CSB foi qualificada pelo Tribunal Constitucional como uma contribuição financeira, e não como um imposto (Acórdão n.º 268/2021, do Tribunal Constitucional).

22. O Tribunal Constitucional ajuizou que o passivo das instituições de crédito, enquanto indicador do risco sistémico que aquelas instituições suscitam no sistema bancário, é uma base tributável em linha com o princípio da equivalência. Como a jurisprudência vem deixando claro, a equivalência é o critério em que se projeta a igualdade tributária nos tributos bilaterais como são as contribuições financeiras (ex. Acórdão n.º 344/2019, do Tribunal Constitucional).

23. Ora, idêntica conclusão não pode extrair-se do regime do ASSB. Este tributo, como sublinhou o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 149/2024, não tem manifestamente as caraterísticas de uma contribuição financeira. Dito de outro modo, ao contrário do que sucede na CSB, o facto tributário que subjaz ao ASSB não é uma qualquer prestação administrativa de que serão presumíveis beneficiárias as instituições de crédito, mas antes – como o regime do tributo esclarece – um propósito de compensação de uma (alegada) desigualdade estrutural causada pela isenção de IVA. Não havendo prestação administrativa – seja ela individual ou grupal, efetiva ou difusa – nem estando esta identificada no Regime do ASSB, é de afastar a qualificação do tributo como contribuição financeira e, a fortiori, como taxa. O Tribunal arbitral sublinha que esta qualificação não é contestada nem pela Requerente nem pela Requerida: ambas reconhecem que o ASSB é um imposto, embora divirjam quanto à sua natureza direta (Requerente) ou indireta (Requerida).

 

§2. Da inconstitucionalidade do Regime do ASSB por violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva enquanto pressuposto da tributação

24. A Requerente constrói o argumento no sentido de que o artigo 3.º do regime do ASSB, ao determinar que o imposto incide sobre o chamado “património negativo” das instituições de crédito, viola o princípio constitucional da legalidade enquanto tipicidade. Um imposto sobre o património negativo não tem por objeto nenhum dos três índices de capacidade contributiva previstos na Constituição – rendimento, consumo ou património (artigo 104.º CRP).

25. A Requerida contesta esta avaliação, sublinhando que o ASSB é um imposto sobre o consumo, um sucedâneo do IVA no setor bancário. Reconhece que, para que o imposto traduza efetivamente à força económica do sujeito passivo, é obrigatório que incida sobre realidades economicamente relevantes que, “tradicionalmente”, se reconduzem ao rendimento, ao património ou ao consumo (ponto 123.º da Resposta). O passivo das instituições de crédito é um indicador fidedigno de capacidade contributiva das instituições de crédito, revelando a “dimensão da sua presença no mercado”. Contrariamente ao volume de negócios, o passivo e o valor nocional dos derivados são critérios mais acertados “para se estabelecer uma correlação com a atividade bancária com o objetivo de tributar o seu valor acrescentado” (pontos 119.º e 132.º da Resposta). Por essa razão, os derivados constituem a componente principal da receita do Financial Transactions Tax proposto pela Comissão Europeia em 2011 (ponto 128.º da Resposta). A escolha destes critérios encontra inscrição na ampla margem de conformação do legislador fiscal (ponto 149.º da Resposta).

26. Para o Tribunal Arbitral, a questão de constitucionalidade formulada pela Requerente e contestada pela Requerida reconduz-se, no fundo, a uma eventual violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva enquanto pressuposto da tributação. Assim, enquanto condição ou pressuposto da tributação, o princípio da capacidade contributiva reclama que o imposto incida sobre bens fiscais ou factos reveladores da força económica do contribuinte, reconduzíveis sinteticamente ao rendimento, ao património e ao consumo (artigo 104.º CRP). Serão, por isso, inconstitucionais as decisões legislativas que assentem na tributação de realidades ou pressupostos inexistentes, fictícios ou que não sejam índices adequados de capacidade contributiva (Acórdãos n.ºs 308/2001 e 178/2023, do Tribunal Constitucional).

A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma “efetiva conexão” entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto. É por força desta asserção que se acham constitucionalmente proibidas as presunções absolutas ou inilidíveis em matéria fiscal, porquanto impedem o contribuinte de provar a inexistência da capacidade contributiva visada na respetiva lei (Acórdãos n.ºs 348/97, 211/2003 ou 211/2017, todos do Tribunal Constitucional).

27. O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 469/2024, enjeitou que a incidência objetiva do ASSB pudesse reconduzir-se a algum dos “clássicos indicadores de capacidade contributiva”. Rejeitou, de igual forma, quaisquer semelhanças entre o ASSB e os impostos sobre atividades financeiras (Financial activities taxes) ou os impostos sobre transações financeiras (Financial transactions taxes). O Juiz Conselheiro Rui Guerra da Fonseca entendeu, pelo contrário, em declaração de voto aposta àquele aresto, que a mera existência de elementos do passivo bancário “faz presumir uma certa aptidão para a criação de valor que, ainda que estática, o legislador considera reveladora de capacidade contributiva”. Como se viu, a AT, na Resposta, qualifica o ASSB como um imposto indireto sobre o consumo, ao ponto de advogar que o passivo é um melhor índice de valor acrescentado que o próprio critério do volume de negócios.

28. A Requerida tem razão quando argumenta que, no rescaldo da crise financeira de 2008, foram apresentadas várias propostas de Diretiva por parte da Comissão Europeia no sentido da introdução de um Imposto sobre transações financeiras [COM (2011)594; COM (2013) 71]. Essas propostas partem do pressuposto de que o setor financeiro está “subtributado”, e de que um imposto sobre transações financeiras poderia desincentivar comportamentos especulativos, estabilizar os mercados financeiros e reforçar o financiamento do orçamento da União, chamando o setor financeiro a contribuir de forma mais equitativa para a despesa pública. Contudo, olhando ao teor dessas propostas, percebe-se que o que está em causa não é um imposto sobre o passivo, mas um imposto sobre transações brutas de vários instrumentos financeiros (artigo 2.º (2) da Proposta de DIRETIVA DO CONSELHO que aplica uma cooperação reforçada no domínio do imposto sobre as transações financeiras [COM (2013) 71]).

Por sua vez, o imposto sobre as atividades financeiras conhece vários modelos (segundo o estudo levado a cabo pelo FMI): modelos em que surge como um IVA especial do setor financeiro, modelos em que surge como um imposto sobre os lucros do setor financeiro cifrados acima de determinado montante (“rendas”) e modelos em que surge como um imposto sobre a assunção de riscos excessivos pelo setor financeiro. Uma vez mais, nenhum destes impostos, dos quais existem concretizações na Islândia, na Dinamarca ou no Reino Unido, pressupõe a tributação do passivo estático das instituições de crédito.[3]

29. Isto a demonstrar que, não obstante a margem de conformação devida ao legislador fiscal, há que concluir que o ASSB não tem na sua base um facto tributário revelador de capacidade contributiva das instituições de crédito, ou pelo menos um facto que, com “um mínimo de coerência lógica”, possa reconduzir-se às manifestações sintéticas de rendimento, consumo (despesa) ou património.

Não vingam os ganhos de “eficiência” invocados pela AT para justificar a similitude entre a base de incidência subjetiva e objetiva da CSB, por um lado, e do ASSB, por outro (ponto 118.º da Resposta). O legislador poderia, sem atrito para o princípio da capacidade contributiva enquanto pressuposto da tributação, criar um imposto com a configuração dos impostos sobre transações ou operações financeiras a que acima se fez referência. Não pode é, peticionando a intenção de introduzir um imposto com esse recorte, criar um tributo unilateral (o ASSB) que mimetiza a base tributável de um tributo bilateral (a CSB), a pretexto de razões de eficiência. A constitucionalidade de um imposto depende dos seus pressupostos e da sua estrutura, e não de razões de conveniência ou eficiência ou das intenções do legislador.

30. Idêntica conclusão valerá se se considerar que o passivo constitui um “indicador” que faz presumir a existência de rendimento, de consumo ou de património. Efetivamente, não são toleradas, à luz jurisprudência constitucional (Acórdãos n.ºs 348/97, 211/2003 ou 211/2017, todos do Tribunal Constitucional), presunções inilidíveis ou insuscetíveis de prova em contrário em matéria fiscal, sob pena de, no limite, o imposto incidir sobre o “vazio”, isto é, sobre realidades não reveladoras de força económica.

31. Assim, o Tribunal arbitral julga inconstitucional e, consequentemente, recusa a aplicação da norma do artigo 3.º do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária, consagrado nos artigos 13.º, 103.º, n.º 1 e 104.º da CRP. Verificada a ilegalidade abstrata dos atos de autoliquidação de ASSB referentes aos anos de 2022 e 2023, devem os mesmos ser anulados, o que se declara.

 

§3. Da inconstitucionalidade do Regime do ASSB por violação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva enquanto critério da tributação.

32. A Requerente argumenta que o regime do ASSB, ao incidir exclusivamente sobre as instituições de crédito (artigo 2.º do Regime do ASSB), viola os princípios da igualdade e da capacidade contributiva, discriminando injustificadamente o setor bancário relativamente aos demais setores de atividade económica. A discriminação assenta na circunstância de haver outros setores igualmente isentos de IVA e que não integram a incidência subjetiva do ASSB nem de outro imposto semelhante. A isenção de IVA é uma isenção incompleta: as instituições de crédito, não liquidando IVA sobre as operações isentas, não podem deduzir o IVA suportado a montante, aquando da aquisição dos bens e serviços necessários à realização da atividade (ponto 81.º do PPA). Além disso, os produtos bancários, mesmo isentos de IVA, estão, por regra, sujeitos a Imposto do Selo.

A atividade económica não pode constituir critério material de justificação de um tratamento diferenciado (ponto 70.º do PPA), nem tão-pouco a necessidade excecional e temporária de resposta à crise pandémica, visto que a medida foi apresentada como uma medida permanente, de diversificação das fontes de financiamento da segurança social (ponto 77.º do PPA).

33. A Requerida contesta a inconstitucionalidade assacada ao regime do ASSB, argumentando que a diferença de tratamento – analisada à luz do princípio da proibição do arbítrio (enquanto concretização do princípio geral da igualdade) – se mostra plenamente justificada pela isenção de IVA de que gozam as instituições de crédito à luz do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA. A medida destina-se, portanto, a reduzir a discrepância entre a carga fiscal suportada pelo setor financeiro e aquela que onera os demais setores de atividade sujeitos e não isentos de IVA. Neste sentido, ao contrário dos setores não financeiros, o setor bancário não contribui para o chamado IVA social, isto é, para a parcela de receita de IVA adstrita à realização de despesas com prestações sociais (ponto 44.º do PPA).

O facto de a isenção de IVA ser incompleta não tem o significado que a Requerente lhe atribui (ponto 55.º da Resposta). Só uma pequena parte da atividade financeira das instituições de crédito está sujeita a tributação indireta por banda do Imposto do Selo (ponto 63.º da Resposta), cuja receita – ao contrário de parte do IVA – não está adstrita ao financiamento da segurança social e tem um peso pouco significativo no produto bancário. O tratamento de privilégio de que gozam as instituições de crédito “suscita não só questões de perda de receita fiscal”, como também de “desigualdade na distribuição do esforço tributário” (ponto 77.º da Resposta).

Uma vez que todas as isenções de IVA constituem entorses ao princípio da igualdade, ao introduzir o ASSB o legislador está, na verdade, a repor a igualdade (ponto 80.º da Resposta). O legislador não está proibido de introduzir outros impostos sobre o consumo, à semelhança do que se tentou com o imposto sobre as transações financeiras (ponto 83.º da Resposta).

34. Como se adiantou, esta questão de constitucionalidade tem que ver com a eventual violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva enquanto critério da tributação. A conformação legal das várias categorias de tributos está sujeita ao princípio da igualdade tributária, enquanto expressão do princípio geral da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP. “No tocante aos tributos unilaterais, o critério que se afigura constitucionalmente mais adequado é o da capacidade contributiva, pois, tratando-se de exigir que os membros de uma comunidade custeiem os respetivos encargos, a solução justa é que sejam pagos na medida da força económica de cada um” (Acórdão n.º 344/2019, do Tribunal Constitucional).

Efetivamente, no domínio fiscal, os fins da ação legislativa não estão na discricionariedade do legislador. A margem de conformação legislativa quanto ao fim da norma fiscal é inexistente. Assumindo os impostos uma finalidade financeira, as normas fiscais são dirigidas à satisfação das necessidades financeiras do Estado, tal como disposto no n.º 1 do artigo 103.º da CRP e reiterado no n.º 1 do artigo 5.º da LGT.

35. Consequentemente, cada um deve pagar impostos na medida da sua força económica ou capacidade para pagar. Neste sentido, contribuintes com idêntica capacidade contributiva devem pagar idêntico imposto (igualdade horizontal); contribuintes com diferente capacidade contributiva devem pagar diferente imposto (igualdade vertical) [ex. Acórdãos n.ºs 590/2015 e 378/2018, do Tribunal Constitucional]. Quaisquer desvios a este critério de tributação – isto é, quaisquer situações em que o legislador substitua o critério da capacidade contributiva por outro critério de comparação ou tertium comparationis – serão escrutinados à luz do princípio da proibição do arbítrio (Acórdãos n.ºs 695/2014 e 306/2010, do Tribunal Constitucional).

36. A proibição do arbítrio é uma norma de controlo negativo das diferenças de tratamento estabelecidas pelo legislador ordinário e que não têm por base “categorias suspeitas” como as elencadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Nos seguintes termos: o legislador está constitucionalmente autorizado a estabelecer diferenciações de tratamento entre pessoas ou situações, desde que não sejam arbitrárias e tenham um fundamento sério e razoável. O que se reclama, dito de outro modo, é que o critério de comparação erguido pelo legislador tenha conexão com o fim ou com a teleologia do regime jurídico instituído. Portanto, é a partir do sentido e do fim da lei que devem ser deduzidas as diferenças admissíveis e justificáveis entre duas pessoas ou situações (Acórdãos n.º 590/2015 e 378/2018, do Tribunal Constitucional).

37. Entendeu o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 469/2024, que a diferenciação de tratamento implicada no ASSB violava a proibição do arbítrio legislativo. Ou seja, a decisão do legislador, pela sua manifesta arbitrariedade, extravasou a margem de conformação que a Constituição lhe confere nestas matérias. A fundamentação, aliás próxima da Recomendação n.º 4/B/2023 da Provedora de Justiça, foi a seguinte:

“As entidades do setor financeiro não têm um benefício que justifique o imposto pela circunstância de algumas operações serem isentas de IVA. Desde logo, tratar-se de uma isenção incompleta não é algo secundário nesta análise (...). Acresce que a isenção de IVA é, como vimos, tendencialmente alternativa da sujeição a imposto do selo.

Neste contexto, pode questionar-se em que medida as instituições de crédito com sede principal e efetiva da administração situada em território português, as filiais (...) e as sucursais (...) – que já são sujeitas a IRC e à CSB – se encontram numa posição particular, face a outros sujeitos isentos de IVA (alguns com isenções completas) que torne justificada a sujeição a um segundo imposto, sem que se encontre uma resposta minimamente satisfatória, muito menos quando a justificação do legislador passa por “reforçar os mecanismos de financiamento do sistema de segurança social”, que nenhuma relação aparente tem com a isenção de IVA, que, só por si, insiste-se, também não se afiguraria justificação bastante para tributar, ou melhor, para diferenciar tributando.”

38. As propostas de Diretiva da Comissão Europeia referidas supra dão suporte ao argumento de que o setor financeiro beneficiou, pelo menos nos anos anteriores à crise financeira de 2008, de elevada rendibilidade, e que esta pode ser o resultado de “uma (implícita ou explícita) rede de segurança proporcionada pelos governos, combinada com a regulamentação do setor financeiro e a isenção do IVA” (cf. exposição de motivos Proposta de DIRETIVA DO CONSELHO que aplica uma cooperação reforçada no domínio do imposto sobre as transações financeiras [COM (2013) 71]). Esta elevada rendibilidade poderá ter sido atenuada pelo estabelecimento, em vários países, de contribuições de estabilização financeira, que no caso português se traduziu na criação da CSB, e pela sujeição das operações financeiras a Imposto do Selo (cf. Relatório n.º 13/2020 da UTAO, de apreciação da segunda proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2020, p. 14).

39. Circunstâncias excecionais poderão justificar a introdução de impostos especiais, isto é, de impostos cuja incidência subjetiva se circunscreve a uma categoria de contribuintes, como sucedeu no pós-pandemia com a contribuição de solidariedade temporária sobre a energia (Regulamento (UE) 2022/1854, do Conselho), regulamentada pela Lei n.º 24-B/2022, de 30 de dezembro). Do que aí se tratou foi de uma intervenção de emergência destinada a contrariar os lucros extraordinários daquele setor e a atenuar os efeitos económicos diretos dos elevados preços da energia nos orçamentos das autoridades públicas, nos clientes finais e nas empresas em toda a União. Mas tais contribuições de solidariedade foram excecionais e estritamente temporárias (cf. considerandos 13 e 14 do Regulamento (UE) 2022/1854, do Conselho). Acresce que, sendo o propósito do ato legislativo da União gerar receitas adicionais, num espírito de solidariedade e de redistribuição de rendimentos entre os mais favorecidos e os mais desfavorecidos pela crise energética de 2020, a base tributável destes impostos foram os “lucros excedentários” das empresas do setor, ou seja, os lucros situados acima de um aumento de 20 % dos lucros tributáveis médios gerados nos quatro exercícios fiscais anteriores (artigo 15.º do Regulamento (UE) 2022/1854, do Conselho).

40. O princípio da proibição do arbítrio reclama que a diferenciação de tratamento imposta pelo legislador tenha uma justificação racional, apurada a partir da coerência (ou da ausência de incoerência) entre o critério de diferenciação selecionado pelo legislador e o fim subjacente à medida legislativa. Ora, é precisamente essa coerência ou racionalidade que falta ao regime jurídico do ASSB, na conjugação dos seus artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, ou seja, na articulação entre a finalidade do tributo e a sua incidência objetiva e subjetiva. Como avançado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 469/2024, o ASSB prefigura-se como um “tributo puramente destinado à angariação de receita”, ou pelo menos como um tributo que pretende aumentar a contribuição das instituições de crédito para o financiamento de um setor da despesa pública, que é a segurança social.

41. O Tribunal arbitral não adentrará na questão de saber se o setor financeiro está, ou não, “subtributado”, nem se a isenção de IVA configura uma vantagem ou desvantagem para as instituições do setor. Seja como for, se o propósito do ASSB é financeiro ou de reforço do contributo para a despesa pública numa ótica redistributiva ou de solidariedade, salta à evidência a incoerência do regime jurídico do ASSB. Não se percebe, com efeito, por que razão o legislador considerou que o passivo das instituições de crédito – considerado um indicador fiável de “risco sistémico” destas entidades – constitui um critério de diferenciação adequado à consecução das finalidades da lei fiscal, sejam elas entendidas como puramente financeiras ou redistributivas.[4] O legislador estabeleceu uma diferenciação de tratamento que, independentemente da posição relativa do setor bancário, é manifestamente incoerente e irracional, extravasando a margem de conformação de que prima facie beneficiaria nesta matéria.

42. Assim, o Tribunal arbitral julga inconstitucionais e, consequentemente, recusa a aplicação das normas conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio, consagrado no artigo 13.º da CRP. Verificada a ilegalidade abstrata dos atos de autoliquidação de ASSB referentes aos anos de 2022 e 2023, devem os mesmos ser anulados, o que se declara.[5]

 

§4. Do pedido de condenação em juros indemnizatórios

43. A par dos pedidos de anulação dos atos de autoliquidação de ASSB, e do consequente reembolso da importância que indevidamente pagou em excesso, a Requerente pede ainda que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

44. Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Na al. d) do n.º 3 do mesmo preceito pode ler-se o seguinte: “3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...) d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.

45. A necessidade de incluir a al. d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT (Lei n.º 9/2019, de 1 de fevereiro) justifica-se pelo facto de à AT, enquanto autoridade administrativa, não ser reconhecido, via de regra, o poder de desaplicar normas jurídicas desconformes com a CRP. Este é um poder-dever que a CRP reserva aos tribunais, nos termos do artigo 204.º da CRP. Logo, a aplicação pela AT de uma norma inconstitucional não pode ser qualificada como um “erro imputável aos serviços”, na aceção do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, mas como uma decorrência inevitável do funcionamento do princípio constitucional da legalidade da administração (artigo 266.º, n.º 2 CRP).[6]

46. O problema em torno da interpretação da al. d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT está presente na jurisprudência do STA. Alguns acórdãos pugnam no sentido de que aquela norma exige uma decisão do Tribunal Constitucional que julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária (ex. acórdão do STA de 15-01-2025, processo n.º 0107/22.3BELRS). Outros acórdãos bastam-se com um julgamento de desaplicação da norma com fundamento na sua inconstitucionalidade proferido por um Tribunal Tributário no exercício da competência de fiscalização de constitucionalidade das normas, vertida no artigo 204.º da CRP (ex. acórdão do STA de 12-02-2025, processo n.º 01527/16.8BELRS).

47. No caso concreto, visto que existem decisões do Tribunal Constitucional que julgaram inconstitucionais as normas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, do Regime do ASSB, os pressupostos para a condenação em juros indemnizatórios mostram-se preenchidos, mesmo que se adote a interpretação mais exigente do STA.

48. Pelo que deve haver lugar, no presente caso, ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos da al. d), do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, devidos desde a data do pagamento indevido até à data de emissão da correspondente nota de crédito (artigo 61.º, n.º 5 CPPT).

 

VI – Decisão

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar inconstitucionais e, consequentemente, recusar a aplicação das normas dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 3.º, n.º 1, do Regime que cria o Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário, contido no Anexo VI da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, por violação do princípio da igualdade, na dimensão de proibição do arbítrio, e por violação do princípio da capacidade contributiva, enquanto decorrência do princípio da igualdade tributária; e em consequência:
  2. Julgar procedente o pedido arbitral;
  3. Anular os atos de autoliquidação de ASSB referentes aos anos de 2022 e 2023, condenando a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago;
  4. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, devidos desde a data do pagamento indevido até à data de emissão da correspondente nota de crédito;
  5. Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

VII – Valor do processo

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 7.928.694,24, valor atribuído pela Requerente, sem contestação da AT.

 

VIII – Custas

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4.º, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em € 98.838,00, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se o Ministério Público, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT.

 

Lisboa, 3 de abril de. 2025

 

Os Árbitros

 

(José Poças Falcão – Árbitro Presidente)

 

______________________

(Marta Vicente – Árbitro Adjunto)

 

 

____________________________

(José Luís Ferreira - Árbitro Adjunto)

Com declaração de voto

 

Declaração de voto

 

Não acompanho a decisão do colectivo, dado que teria decidido de forma diferente quanto ao momento a partir do qual são contados os juros indemnizatórios.

 

Na sua resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira defende, com razão, estar vinculada ao cumprimento da lei, assim se eximindo de avaliar a conformidade constitucional das leis que lhe incumbe cumprir. Assim, não lhe pode ser imputado qualquer erro que justifique, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, o pagamento de juros. Todavia, haverá que aplicar o entendimento fixado no Acórdão do Pleno do STA de 30 de Janeiro de 2019 (Processo 0564/18.2BALSB):

para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP”.

 

Nos termos da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, também são devidos juros indemnizatórios:

Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.”.

 

A interpretação desta norma pelo STA (Acórdãos de 10 de Abril de 2024, Processo n.º 0845/17.2BELRS, e de 11 de Julho de 2024, Processo n.º 0697/14.4BELRS) é o de que “a norma em apreço exige que exista uma decisão do Tribunal Constitucional que julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária”, se bem que não necessariamente no caso em que se determina o pagamento de juros ao seu abrigo.

Todavia, permanece a dúvida quanto ao momento a partir do qual são devidos os juros, nos casos - como sucede no presente pedido de pronúncia arbitral - em que não tenha havido declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

Entendo que em tais casos, a contagem dos juros deve realizar-se a partir do trânsito em julgado a que a norma se refere, i. e. da presente decisão de procedência do pedido de pronúncia arbitral de pagamento de juros indemnizatórios. Sendo sabido que da mesma cabe recurso obrigatório por parte do Ministério Público, pelo que o tal trânsito em julgado decorrerá do juízo do Tribunal Constitucional.

Conforme resulta do probatório, a Requerente pagou o imposto (por si autoliquidado) em 30 de Junho de 2022 e 28 de Junho de 2023

As decisões de inconstitucionalidade fundam-se nos Acórdãos n.os 469/2024, de 19 de Junho,  592/2024, de 24 de Setembro e 737/2024, de 22 de Outubro.

Que tiveram seguimento nas Decisões Sumárias n.os 436/2024, de 15 de Julho, 458/2024, de 29 de Julho, 460/2024, de 30 de Julho; 549/2024 e 551/2024, de 20 de Setembro, 618/2024, de 17 de Outubro, 625/2024, de 22 de Outubro, 688/2024, de 28 de Novembro, 694/2024, de 29 de Novembro, 714/2024, de 10 de Dezembro e 1/25, de 2 de Janeiro).

A contagem do prazo de pagamento de juros indemnizatórios precede, entre 1 a 2 anos, a primeira decisão do Tribunal Constitucional, i. e. à data em que realizaram os pagamentos não havia ainda qualquer juízo sobre a constitucionalidade do ASSB. E a primeira dessas decisões, sem força obrigatória geral (a par das demais que lhe sucederam), não seria aplicável, retroactivamente, ao presente pedido de pagamento de juros indemnizatórios.

 

José Luís Ferreira

 



[1] A ideia de capacidade contributiva como pressuposto, critério e limite da tributação é conhecida da doutrina nacional, como demonstram os textos de, entre outros, J. M. Cardoso da Costa, “O princípio da capacidade contributiva no constitucionalismo português e na jurisprudência do Tribunal Constitucional”, Boletim de Ciências Económicas, vol. 57, 2018, pp. 1159-1186; ou Sérgio Vasques, “Capacidade contributiva, rendimento e património”, Fiscalidade, n.º 23, 2005, pp. 15-45 (p. 18). Também é mobilizada na jurisprudência constitucional, como evidenciam os Acórdãos n.ºs 211/2017 e 378/2018.

 

[2] Filipe Vasconcelos Fernandes, “O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 149/2024 e o futuro do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 42, 2023, pp. 3-16 (p. 9).

[3] Paulo Ataíde Archer, “O Imposto Europeu sobre transações financeiras e o sistema financeiro: contributo para a compreensão da sua relação”, Working Papers, Boletim de Ciências Económicas, Instituto Jurídico, Coimbra, 2015, p. 86 ss.; Gabriela Lagos Rodríguez, “Financial Transaction Tax in Europe”, EC Tax, 2021-4, p- 150-165; John Grall / Photis Lyandrou, “The European Commission’s Proposal for a Financial Transactions Tax: A Critical Assessment”, Journal of Common Market Studies, 52, no. 2, 2014, p. 234-249.

[4] Há quem desassocie a finalidade puramente financeira da finalidade redistributiva, remetendo esta última para o princípio da socialidade e, consequentemente, para a “extrafiscalidade” – Sérgio Vasques. “Capacidade contributiva, rendimento e património”, Fiscalidade, n.º 23, 2005, pp. 15-45 (p. 31).  

[5] Em sentido idêntico – e com fundamentação próxima – cf. as decisões arbitrais de 29-06-2023, referente ao processo n.º 21/2023-T; de 21-03-2023, referente ao processo n.º 598/2022-T; 16-10-2023, referente ao processo n.º 324/2023-T; de 24-05-2024, referente ao processo n.º 15/2024-T, entre outras.

[6] Hugo Flores da Silva, “Desenvolvimentos sobre juros indemnizatórios: a ilegalidade ou inconstitucionalidade das normas habilitantes da tributação”, Cadernos de Justiça Tributária, n.º 42, 2023, pp. 17-27 (p. 20).