Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 646/2024-T
Data da decisão: 2025-03-26  IRS  
Valor do pedido: € 9.293,01
Tema: IRS. Caducidade do direito de ação. “Tonnage tax”. Decreto-Lei nº 92/2018, de 13 de novembro. Isenção das remunerações de tripulantes de navios e embarcações. Sociedades residentes noutro Estado Membro da UE.
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I - No caso de ser deduzida reclamação graciosa, sem que tenha havido indeferimento expresso, o direito de impugnar (pedido de constituição do tribunal arbitral) nasce a partir da formação da presunção do indeferimento tácito. Todavia, há sempre a possibilidade de impugnar antecipadamente, antes da formação do indeferimento tácito, desde que o pedido de constituição do tribunal arbitral seja apresentado ainda dentro do prazo de 90 dias a partir do termo do pagamento voluntário, o que não sucedeu no caso da liquidação contestada relativa ao ano de 2019.

 

II - A isenção de IRS prevista no art.º 4º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, que institui o Regime do Registo de navios e embarcações simplificado e de determinação da matéria coletável é aplicável a um sujeito passivo que prestou atividade de marinheiro a bordo de uma embarcação registada na Dinamarca e explorada por entidade residente no mesmo país, estando reunidos todos os restantes requisitos para a aplicação do regime.

 

III – O artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei 92/2018, de 13 de novembro, que prevê a isenção de IRS aplicável aos tripulantes, deve ser interpretado no sentido de exigir que os navios ou embarcações se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime de tonnage tax português ou por um outro regime análogo em vigor num Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Pedro Miguel Bastos Rosado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:  

 

I. Relatório

 

1.  A..., contribuinte fiscal n.º ..., casado com B..., residente na Rua ..., n.º ..., ...-... Vila do Conde, doravante designado por Requerente, apresentou, em 15 de maio de 2024, pedido de pronúncia arbitral, tendo por objecto os seguintes atos praticados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”):

(i) liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2023...., relativa ao ano de 2019, nos termos da qual resultou um valor total a pagar de € 5.028,08, incluindo imposto e juros compensatórios, na sequência do  indeferimento tácito (presumido) da reclamação graciosa apresentada que manteve inalterado aquele ato de liquidação; e,

(ii) liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2023..., relativa ao ano de 2022, nos termos da qual resultou um valor total a pagar de € 4.264,93, incluindo imposto e juros compensatórios, na sequência da decisão expressa de indeferimento da reclamação graciosa apresentada que manteve inalterado aquele ato de liquidação, cujas anulações pretende, mais peticionando a restituição integral dos valores indevidamente pagos, acrescido de juros indemnizatórios, sendo Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante também designada por Requerida ou AT.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 17 de maio de 2024, e posteriormente notificado à AT.

 

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou, em 8 de julho de 2024, o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo legal.

 

4. Em 8 de julho de 2024, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 26 de julho de 2024.

 

6. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida apresentou resposta em 6 de agosto de 2024, tendo junto o “processo administrativo” (adiante designado apenas por PA).

 

7. Na sua resposta a AT suscitou a exceção da caducidade do direito de ação.

 

8. Em 9 de agosto de 2024, o Requerente exerceu o contraditório quanto à matéria de exceção suscitada pela Requerida na sua resposta.

 

9. Por despacho de 28 de setembro de 2024 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinou-se que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas, o Requerente no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho, e a Requerida no prazo de 10 dias contado da notificação das alegações da Requerente, ou da falta de apresentação das mesmas.

 

10. As partes não apresentaram alegações.

 

11. Por despacho de 24 de janeiro de 2025, o Tribunal determinou a prorrogação por dois meses do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ao abrigo do disposto no seu n.º 2.

 

II. Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. O Tribunal é competente.

 

 

III. Matéria de fato

 

1. Fatos provados

 

Dão-se como provados os seguintes fatos relevantes para a decisão:

 

A) O Requerente, nos anos de 2019 e 2022, prestou a atividade profissional de marinheiro de primeira classe, ao abrigo de um contrato individual de trabalho ao serviço da entidade empregadora denominada  C... A/S;

 

B) A sociedade C... A/S tinha, às datas dos factos tributários, residência fiscal na Dinamarca;

 

C) A sociedade C... A/S encontrava-se abrangida pelo regime especial de tributação designado por “Tonnage Tax”, ao abrigo da lei dinamarquesa, nos anos de 2019 e de 2022;

 

D) Nos anos de 2019 e de 2022, o Requerente exerceu a sua atividade profissional a bordo a bordo dos navios “...”, “...” e “...”, com pelo menos 50% da tripulação europeia ou do Espaço Económico Europeu, por um período superior a 90 dias;

 

E) Em 22 de novembro de 2023, a AT emitiu a liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2019, que incluiu rendimentos de trabalho dependente no estrangeiro (Dinamarca), no montante de € 28.473,47, no montante a pagar de € 5.028,08 (imposto e juros compensatórios).

 

F) Em 25 de janeiro de 2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de IRS do ano 2019, tendo dado origem ao procedimento n.º ...2024...;

 

G) O procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024... não foi decidido até 15 de maio de 2024, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo;

 

H) Em 11 de outubro de 2023, o Requerente apresentou declaração modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2022, que inclui que incluiu rendimentos de trabalho dependente no estrangeiro (Dinamarca), no montante de € 29.714,18, que deu origem à liquidação n.º 2023..., no montante a pagar de € 4.264,93 (imposto e juros compensatórios);

 

I) Em 08 de janeiro de 2024, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de IRS do ano 2022, tendo dado origem ao procedimento n.º ...2024...;

 

J) Em 15 de fevereiro de 2024, foi proferido pela AT despacho de indeferimento no procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024..., que foi notificado ao ora requerente, na pessoa da sua mandatária, em 22 de fevereiro de 2024, através do ofício n.º 2024... de 15 de fevereiro de 2024;

 

L) O Requerente efetuou o pagamento das quantias de liquidadas de IRS relativas aos anos de 2019 e 2022.

 

2. Fatos não provados e fundamentação da matéria de fato dada como provada e não provada

 

Relativamente à matéria de fato, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os fatos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os fatos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os fatos provados baseiam-se nos documentos juntos pelo Requerente com o seu pedido de pronúncia arbitral (PPA) e nos documentos constantes do processo administrativo (PA), cuja autenticidade não foi colocada em causa, bem como nas posições assumidas pelas partes nos articulados apresentados.

 

Dão-se por integralmente reproduzidos, para os devidos efeitos,  todos os documentos juntos pelo Requerente no PPA e os constantes do PA.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

  1.  Matéria de Direito

 

1. A exceção – caducidade do direito de ação

 

Importa apreciar previamente a exceção da caducidade do direito de ação suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sua Resposta.

 

Na sua Resposta, a Requerida veio dizer que o Requerente “opta por impugnar, no presente PPA, as liquidações de IRS n.ºs 2023... e 2023..., respeitantes aos anos de 2019 e 2022, cujo o prazo de pagamento terminou em 10.01.2024 e 22.11.2023, respetivamente” e que “(…) não peticiona, a final, a anulação do indeferimento tácito da reclamação n.º ...2024... e o indeferimento expresso da reclamação n.º ...2024...”.

 

Assim, no entender da Requerida, “(…) não tendo o Requerente sindicado os atos em segundo grau, inexiste o apoio que poderia firmar a tempestividade do pedido e, consequentemente, a possibilidade de o Tribunal apreciar o pedido formulado relativamente aos atos de liquidação impugnados”, pelo que “(…) estando os poderes de cognição do Tribunal limitados pelo pedido, e não o podendo, como é óbvio exceder, fica o Tribunal impedido de apreciar e declarar (o que quer que seja) relativamente ao pedido concretizado, por o mesmo ser intempestivo.”.

 

Acrescenta que estando os poderes de cognição do Tribunal limitados pelo pedido, fica o Tribunal impedido de apreciar e declarar a ilegalidade e consequente anulação dos atos de liquidação, por intempestividade, devendo, nestes termos, a AT ser absolvida da instância e ser  julgada procedente a exeção de caducidade do direito de ação.

 

Em 9 de agosto de 2024 veio o Requerente exercer o contraditório relativamente à exceção deduzida pela AT, tendo aí pugnado pela tempestividade de apresentação do pedido.

 

O Requerente alega que a “questão que o Requerente submete à apreciação deste tribunal consiste em saber se da legalidade do acto tributário sindicado” e que “(E)ssa apreciação pode ocorrer tanto com a impugnação contenciosa ou pedido de pronúncia arbitral imediato, como com a impugnação contenciosa ou pedido de pronúncia arbitral subsequente a uma decisão de indeferimento da reclamação graciosa, uma vez que num e noutro caso o objecto do processo e o pedido de anulação são dirigidos à apreciação da legalidade do acto tributário sindicado.”.

 

Acrescenta, referido-se a diversa jurisprudência, que “ainda que o Requerente tivesse indicado no petitório final que o pedido de impugnação tinha como objecto o despacho de indeferimento do acto de reclamação tal não obstava a que o tribunal conhecesse dos vícios do acto de liquidação”, uma vez que “nos casos em que a impugnação judicial tem por objecto imediato a decisão de indeferimento, a liquidação reclamada, constitui o seu objecto mediato, desta forma, ambos constituem objecto de tal impugnação.”.

 

Entende o Tribunal que, neste ponto e com a argumentação deduzida, não assiste razão à Requerida.

 

Com efeito, ao longo do pedido de pronúncia arbitral são diversas as referências às reclamações graciosas e às disposições legais que permitem legitimar a sua atuação.

 

Fá-lo no artigo 7º (“Por não se conformar com as apontadas liquidações de IRS, o Requerente apresentou as necessárias e respetivas reclamações graciosas dos atos de liquidação ora em crise”), no artigo 8º (“Fê-lo em 08.01.2024 relativamente ao ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e juros compensatórios relativo ao período de 2022, e em 25.01.2024 relativamente ao ato de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) e juros compensatórios relativo ao período de 2019 – conforme documentos 9 e 10, que se juntam em anexo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido”), no artigo 9º (“Por despacho proferido em 15.02.2024 o Requerente foi notificado da decisão de indeferimento da Reclamação referente ao ano de 2022 – conforme documento 11, que se junta em anexo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.”) e no artigo 10º (“Quanto à reclamação graciosa apresentada pela liquidação referente ao ano de 2019, ainda não obteve qualquer decisão, beneficiando assim da presunção de indeferimento tácito nos termos e para os efeitos do disposto no nº5 do Art.º 57.º da LGT, bem como do previsto no Art.º 76.º e na alínea d) do Art.º 102.º, ambos do CPPT.”).

 

Ou seja, depreende-se deste articulado que o Requerente, ao discutir a ilegalidade dos atos tributários de liquidação (atos mediatos), não prescindiu de contestar os atos imediatos de indeferimento expresso e de indeferimento tácito presumido das reclamações graciosas.

 

Como se concluiu, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 28 de outubro de 2009, proferido no âmbito do processo n.º 0595/09:

[a] reclamação graciosa tem como objecto um acto de liquidação. Nos casos em que a reclamação graciosa é expressamente indeferida, o objecto do processo de impugnação judicial é, formal e directamente, o acto de indeferimento, que manteve a liquidação que foi objecto da reclamação, mas, o objecto real da impugnação, o acto cuja legalidade está em causa apurar, é o acto de liquidação que foi mantido pelo acto de indeferimento da reclamação”.

 

No mesmo sentido, determina o Acórdão do STA, de 16 de novembro de 2011, proferido no processo n.º 0723/11 que “o processo de impugnação judicial instaurado na sequência e por causa de indeferimento expresso de uma reclamação graciosa tem por objecto imediato esse mesmo indeferimento e por objecto mediato o acto de liquidação cuja anulação é visada a final.”.

 

Veja-se, igualmente, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA/S”) datado de 17 de março de 2016, proferido no âmbito do processo n.º 08998/15, que aprecia inclusivamente um recurso interposto contra uma decisão do CAAD relativamente à mesma exceção. Neste acórdão do TCA-S, é mencionado que “o prazo para impugnar (o prazo de 90 dias que a Impugnante dispunha para formular o pedido de constituição arbitral), nas situações em que houve reclamação graciosa seguida de decisão expressa, se conta da notificação desta última decisão e não do terminus do prazo de pagamento voluntário da liquidação”, acrescentando que “há uma estreita relação e interdependência entre os objectos mediato e imediato e que a apreciação ou interpretação do pedido nestas situações não pode deixar de relevar essas circunstâncias de facto e direito” e destacando que “como igualmente se reconhece na sentença recorrida, a questão da existência da reclamação, ainda que não traduzida expressamente na formulação do pedido [o que até nem foi o caso da Requerente], não foi olimpicamente ignorada pela Impugnante”.

 

O Conselheiro Jorge Lopes de Sousa refere a este respeito que “formando-se indeferimento tácito ou havendo lugar a notificação do indeferimento expresso da reclamação graciosa, os contribuintes dispõem sempre de um prazo de 90 dias para o efeito de apresentação do pedido de pronúncia arbitral.” (JORGE LOPES DE SOUSA, Guia da Arbitragem Tributária – Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Coimbra: Almedina, 2017, p. 163).

 

A decisão arbitral do CAAD proferida no processo n.º 592/2016-T, de 11 de maio de 2017, debruçou-se, igualmente, sobre a questão de saber: “[m]as o que acontece se o contribuinte, tendo reclamado graciosamente do ato de liquidação, e visto indeferida essa reclamação, vier, aproveitando o prazo contado desse indeferimento, impugnar a liquidação, sem pedir, simultaneamente, a anulação do ato de indeferimento? (…) Para a AT, como viu, o resultado é a caducidade do direito de ação. Não do direito de ação contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa – esta estaria em prazo – mas do direito de ação contra o ato de liquidação. A escorreita argumentação da AT é aliciante, mas não nos parece que conduza à solução adequada. Como se viu, a mera impugnação do ato de indeferimento da reclamação graciosa seria de todo inconsequente, pois não arrastaria o apagamento do ato de liquidação. Deveriam, pois, em rigor, ser impugnados ambos os atos – imediatamente, o de indeferimento da reclamação; mediatamente, o de liquidação. Mas o que o tribunal apreciaria seriam, antes de tudo, os fundamentos opostos à liquidação, pois sem isso, pelas razões expostas, nenhuma tutela jurisdicional efetiva seria dada aos direitos do impugnante. O ato de indeferimento da reclamação, não tendo feito mais do que manter, administrativamente, o de liquidação, cairia por si, pois os vícios da liquidação transmitem-se-lhe – como ato secundário, ele será ilegal por não ter reconhecido, devendo fazê-lo, a ilegalidade da liquidação. De tudo isto resulta que a relevância do ato de indeferimento da reclamação graciosa tem a ver, mais do que com a sua (i)legalidade, com a fixação do prazo para a impugnação da liquidação. Consequentemente, a petição em que se pede apenas a declaração de ilegalidade da liquidação, sem formular idêntico pedido relativamente ao indeferimento da reclamação (apesar de, no caso, se lhe ter amplamente referido e exposto os fundamentos da sua ilegalidade), enferma apenas de uma imperfeição que, aliás, o tribunal podia ter convidado a corrigir, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, alínea c), do RJAT.”.

 

É esta a posição do Tribunal, seja na situação de indeferimento expresso, seja na situação de se formar indeferimento tácito (presumido).

 

A petição em causa enferma apenas, no limite, de uma imperfeição que o tribunal podia ter convidado a corrigir, ao abrigo do disposto no artigo 18.º, alínea c), do RJAT, e que não o fez por entender desnecessário.

 

Por outro lado, como resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, o objeto do processo arbitral é o ato de liquidação e não a decisão da reclamação graciosa, pelo que sempre se dirá que o Requerente não tinha de impugnar os indeferimentos expresso e tácito, mas sim os atos de liquidação que delas eram objeto.

 

Como resulta do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, "o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado" "no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico".

 

Por conseguinte, é manifesto que o prazo limite de pagamento não é o único termo inicial do prazo para pedir a constituição de Tribunal Arbitral e que o podem ser quaisquer dos factos indicados no artigo 102.º do CPPT.

 

Entre os factos suscetíveis de definirem o termo inicial do prazo para impugnar atos de liquidação inclui-se a notificação dos atos que podem ser objeto de impugnação autónoma, o que sucede com as decisões de reclamações graciosas ou de pedidos de revisão oficiosa, como resulta do preceituado nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da LGT e do artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do CPPT.

 

Ainda na alínea d) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, prevê-se igualmente como termo inicial desse prazo a «formação da presunção de indeferimento tácito».

 

Nos casos em que são impugnados atos de liquidação na sequência de indeferimento expresso, é da nortificação da dessa decisão de indeferimento expresso que se conta o prazo para apresentação de pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

E, nos casos em que são impugnados atos de liquidação na sequência de indeferimento tácito, é da sua formação que se conta o prazo para apresentação de pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Ainda nos termos do art. 20.º, n.º 1, do CPPT, os prazos do procedimento tributário e de impugnação judicial contam-se nos termos do art. 279.º do Código Civil, assim deixando clara a natureza procedimental destes prazos, para efeito da sua contagem.

 

- Quanto à liquidação de IRS com o n.º 2023..., que inclui juros compensatórios, relativa ao ano de 2019:

 

O prazo de pagamento voluntário desta liquidação terminou em 10 de janeiro de 2024.

 

Ora, em 25 de janeiro de 2024, foi instaurado o procedimento de reclamação graciosa, pelo que o Requerente apresentou a reclamação, dentro do prazo de 120 dias previsto no n.º 1 do artigo 70.º do CPPT.

 

A reclamação graciosa que precede o presente pedido de pronúncia arbitral deu entrada num momento em que o prazo de decisão expressa da Administração Tributária é de quatro meses, findos os quais se presume o indeferimento tácito do pedido (art. 57.º nºs 1 e 5 da LGT).

 

Por conseguinte, volvidos quatro meses após a apresentação da reclamação graciosa, presume‑se o indeferimento tácito da mesma, momento esse, por sua vez, relevante para o cálculo e início da contagem do prazo de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial, segundo o disposto no art. 57.º, n.º 5, da LGT e 106.º do CPPT.

 

Nos termos do art. 57.º, n.º 3, da LGT, no procedimento tributário, os prazos são contínuos e contam-se nos termos do Código Civil.

 

Tendo a reclamação graciosa dado entrada no serviço competente no dia 25 de janeiro de 2024, o cômputo do termo – 4 meses – fixa-se a 25 de maio de 2024, de acordo com o art. 279.º, alínea d) do Código Civil.

 

No caso em apreço, formar-se-ia indeferimento tácito em 25 de maio de 2024, sendo no dia seguinte que se iniciaria o prazo para deduzir pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Em caso de presunção de indeferimento tácito, o prazo para formular o pedido de constituição de tribunal arbitral é de 90 dias, de acordo com o art. 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e art. 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT.

 

Todavia, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral em 15 de maio de 2024, antes se formar o indeferimento tácito (presumido), o que só ocorreria em 25 de maio de 2024.

 

Pelo que que o Requerente não pode beneficiar do prazo para o pedido constituição do tribunal arbitral se, em 15 de maio de 2024, quando o termo inicial desse prazo apenas ocorre com a «formação da presunção de indeferimento tácito».

 

Sem prejuízo, haveria sempre a possibilidade de apresentar o pedido de constituição do tribunal arbitral antecipadamente, antes do indeferimento tácito, desde que a impugnação fosse  deduzida ainda dentro do prazo de 90 dias a partir do termo do pagamento voluntário. [art.102.º, n. º1, al. a) do CPPT].

Simplesmente, se o prazo de pagamento voluntário desta liquidação terminou em 10 de janeiro de 2024 e se o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 15 de maio de 2024, nesta última data já havia decorrido, há muito, o prazo de 90 dias a partir do termo do pagamento voluntário, cujo primeiro dia era o dia 11 de janeiro de 2024 e terminou em 9 de abril de 2024.

 

Portanto, quando deu entrada o o pedido de constituição do tribunal arbitral, não havia decisão da administração tributária, mas, também, ainda não tinha decorrido o prazo de quatro meses desde a data em que a reclamação deu entrada na AT, pelo que a impugnação foi indevidamente antecipada.

 

Neste sentido, vide o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 23 de junho de 2021, da 2ª Seção – Contencioso Tributário, proferido âmbito do processo 00221/04.7BEPRT, bem como a jurisprudência do STA aí referida (www.dgsi.pt).

 

Sendo a questão da tempestividade de conhecimento oficioso, o pedido de constituição do tribunal arbitral, relativamente à liquidação de IRS do ano de 2019, é intempestivo, verificando-se relativamente a esta liquidação a caducidade do direito de ação.

 

- Quanto à liquidação de IRS com o n.º 2023..., que inclui juros compensatórios, relativa ao ano de 2022:

 

O prazo de pagamento voluntário desta liquidação terminou em 22 de novembro de 2023.

 

Ora, em 8 de janeiro de 2024, foi instaurado o procedimento de reclamação graciosa, pelo que o Requerente apresentou a reclamação dentro do prazo de 120 dias previsto no n.º 1 do artigo 70.º do CPPT.

 

Como atrás se referiu, entre os factos suscetíveis de definirem o termo inicial do prazo para impugnar atos de liquidação inclui-se a notificação dos atos que podem ser objeto de impugnação autónoma, o que sucede com as decisões de reclamações graciosas, como resulta do preceituado nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), da LGT e do artigo 97.º, n.º 1, alínea c), do CPPT.

 

Em 15 de fevereiro de 2024, foi proferido despacho de indeferimento no procedimento de reclamação graciosa n.º ...2024..., que foi notificado ao Requerente, na pessoa da sua mandatária, em 22 de fevereiro de 2024, através do ofício n.º 2024... de 15 de fevereiro de 2024.

 

Relativamente a esta liquidação de IRS do ano de 2022, se o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 15 de maio de 2024, nesta data não havia ainda decorrido o prazo de 90 dias para a apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

Assim, quanto a esta liquidação de IRS relativa ao ano de 2022, improcede a exceção da caducidade do direito de ação suscitada pela Requerida.

 

2. Apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral

 

2.1. Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente alegou, em suma, o seguinte:

 

- que “por força do n.º 4 do citado Decreto-lei n.º 92/2018, de 13 de novembro”, os rendimentos auferidos pelo Requerente na Dinamarca beneficiam de isenção de IRS em Portugal;

 

- que a “isenção é, por força do art.º 2º, n.º 2 do citado diploma legal, aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações registadas no registo convencional português ou num outro Estado Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime”;

 

- que “o Requerente, como residente fiscal em Portugal, pode usufruir desse benefício, desde que: - Tenha permanecido como tripulante a bordo pelo período mínimo de 90 dias, em cada um dos anos aqui em causa; e - O navio ou embarcação onde trabalhou seja considerado elegível para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável”;

 

- que o Requerente provou “que trabalhou, nos anos em causa, para a empresa denominada “C... A/S”, com sede na Dinamarca, e que o período de trabalho em cada um desses anos totalizou um período superior a 90 dias” e que “a empresa “C... A/S” estava abrangida pelo “Dannish Tonnage Tax Scheme” nos anos em causa.”;

 

A AT defende, em suma, o seguinte:

 

- que “o Requerente não demonstra, nem alega, que os navios em que foi tripulante, optaram pelo regime especial de determinação da matéria coletável previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro”;

 

- que "não figura a entidade C... A/S, como sujeito passivo de IRC, nem, tão pouco, terá optado pelo regime previsto no Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro”.

 

2.2. Da legalidade da liquidação de IRS relativa ao ano de 2022

 

Está apenas em causa discutir e julgar da legalidade da liquidação de IRS relativa ao ano de 2022, uma vez que, como de decidiu anteriormente, o pedido de constituição do tribunal arbitral, relativamente à liquidação de IRS do ano de 2019, é intempestivo, verificando-se relativamente a esta liquidação a caducidade do direito de ação.

 

Assim, a única questão a apreciar nos presentes autos é a de saber se o regime fiscal instituído pelo art.º 4º do Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, que institui o Regime do Registo de navios e embarcações simplificado e de determinação da matéria coletável é aplicável a um sujeito passivo que prestou atividade de marinheiro a bordo de uma embarcação registada na Dinamarca e explorada por uma entidade residente na Dinamarca, portanto não sujeita a IRC em Portugal, estando reunidos todos os restantes requisitos para a aplicação do regime. E, consequentemente, se se deve aplicar a isenção aos rendimentos do Requerente obtidos na Dinamarca, como tripulante de navios, prevista nºs 2 e 3 do artigo 4º do referido Decreto-Lei.

 

O Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 42/2018, de 9 de Agosto, são relativos à introdução no ordenamento jurídico português da denominada “Taxa de Tonelagem” (“tonnage tax”).

 

Este diploma veio estabelecer um regime especial de determinação da matéria coletável, com base na tonelagem de navios (“tonnage tax”), um regime fiscal e contributivo próprio para a atividade marítima, assim como um registo de navios e embarcações simplificado.

 

Em especial, a “tonnage tax” isenta os tripulantes das embarcações elegíveis do pagamento de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) se estiverem a bordo pelo menos 90 dias num período de tributação.

 

Estabelece o artigo 4º do citado Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, o seguinte:

 

“1 -Estão isentas do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) as remunerações auferidas, nessa qualidade, pelos tripulantes dos navios ou embarcações considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável.

2 - Não obstante o disposto no número anterior, quando estejam em causa navios que efetuam serviços regulares de passageiros entre portos do Espaço Económico Europeu, só podem beneficiar do regime previsto no presente artigo os respetivos tripulantes que tenham nacionalidade de um Estado-Membro da União Europeia ou de um Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.

3 - A isenção prevista no número anterior está condicionada à permanência do tripulante a bordo pelo período mínimo de 90 dias em cada período de tributação.

4 - O disposto no número anterior não prejudica o englobamento dos rendimentos isentos, para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 22.º do Código do IRS.”

 

A questão aqui em apreço foi já objeto de análise por vários tribunais a funcionar no CAAD, nomeadamente nas decisões arbitrais proferidas no processo n.º 355/2023, de 23 de janeiro de 2024 e no processo n.º 667/2023, de 24 de abril de 2024.

 

Por entendermos que a jurisprudência arbitral aí produzida tem manifesta aplicação no caso em apreço e por concordarmos com a aplicação que fazem do direito aos fatos fixados, iremos transcrever as mesmas nas partes relevantes.

 

Na decisão arbitral proferida no processo n.º 355/2023, de 23 de janeiro de 2024, pode ler-se:

“O art.º 1º do DL Decreto Lei n.º 92/2018, de 13 de Novembro, enuncia que o diploma institui um regime especial determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios e embarcações, um regime fiscal e contributivo aplicável aos tripulantes e um registo simplificado de navios e embarcações.

O art.º 2º, nº 2 estipula que “o capítulo III é aplicável aos tripulantes de navios e embarcações registadas no registo convencional português ou num outro Estado Membro da União Europeia ou do espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime.

O “capítulo III”, a que se refere o citado art.º 2º nº 2, diz respeito e tem por epígrafe os “benefícios fiscais e contributivos dos tripulantes.”

No art.º 4º, inserido no “capítulo III”, o nº 1 dispõe:

“Estão isentas do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) as remunerações auferidas, nessa qualidade, pelos tripulantes dos navios ou embarcações considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável.”

Com base nestas disposições, o que se conclui é que o regime de isenção estipulado no nº 1 do art.º 4º do DL 92/2018 se aplica, por força do nº 2 do art.º 2º, tanto a navios e embarcações registadas no registo convencional português como num outro Estado Membro da União Europeia ou do espaço Económico Europeu. A Dinamarca é um Estado Membro da União Europeia, logo, neste tocante, a situação fática é qualificável para a aplicação do regime.

É certo que a mesma disposição acrescenta que é necessário que os navios ou embarcações sejam “utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável” e estejam “afetos às atividades previstas neste regime”.

Mas tendo em atenção que os navios e embarcações podem ficar abrangidos pelo regime quer estejam registadas em Portugal, quer estejam registadas noutro país que seja estado membro da União Europeia ou que se situe no Espaço Económico Europeu, tendo ainda em atenção que o regime fiscal designado “tonnage tax” foi criado, como se diz no preâmbulo do diploma para as empresas detentoras de navios que sejam estratégica e comercialmente geridos a partir de um Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, o que leva a concluir que o regime fiscal “tonnage tax” tem origem e dimensão europeias, o propósito do regime, ao nível europeu, ficaria desvirtuado se apenas os residentes do país proprietário da embarcação pudessem auferir do regime fiscal de isenção sobre as remunerações.

É assim de acolher a tese do Requerente de que basta que a empresa proprietária da embarcação, sendo residente num país da EU ou do EEE em que vigora um regime de “tonnage tax”, se tenha acolhido a essa forma de tributação, para que os tripulantes, verificados que sejam todos os outros requisitos, possam beneficiar da isenção prevista no art.º 4º, nº 1.

Assim sendo, há que considerar verificados todos os requisitos legais para a aplicação do regime de isenção previsto no art.º 4, nº 1 do DL 92/2018 às remunerações auferidas pelo Requerente na sua atividade de marinheiro nos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021, pelo que são desconforme com a lei as liquidações impugnadas e, reflexamente, as decisões recaídas sobre as reclamações graciosas apresentadas contra as mesmas.” (sic).

 

Por sua vez, na decisão arbitral proferida no processo n.º 667/2023, de 24 de abril de 2024, é referido:

“Ora, nos termos do preâmbulo do DL 92/2018, que institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios e embarcações, um regime fiscal e contributivo aplicável aos tripulantes e um registo de navios e embarcações simplificado ( designado por “tonnage tax”), refere-se que este regime visa «(…) promover a marinha mercante nacional, com vista a potenciar o alargamento do mercado português de transporte marítimo e o desenvolvimento dos portos nacionais e da indústria naval, a criação de emprego, a inovação e o aumento da frota de navios que arvoram a bandeira portuguesa, com o consequente aumento da receita fiscal.»

Assim, nos termos do artigo 1.º do DL 92/2018, este regime «(…) institui um regime especial de determinação da matéria coletável com base na tonelagem dos navios e embarcações, um regime fiscal e contributivo aplicável aos tripulantes e um registo simplificado de navios e embarcações.»

No que respeita aos benefícios fiscais aplicáveis a tripulantes, o artigo 4.º, n.º 1, do DL 92/2018 determina que «Estão isentas do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRS) as remunerações auferidas, nessa qualidade, pelos tripulantes dos navios ou embarcações considerados para efeitos do regime especial de determinação da matéria coletável.»

Contudo, o artigo 4.º, n.º 2, do DL 92/2018, clarifica que «(…) quando estejam em causa navios que efetuam serviços regulares de passageiros entre portos do Espaço Económico Europeu, só podem beneficiar do regime previsto no presente artigo os respetivos tripulantes que tenham nacionalidade de um Estado-Membro da União Europeia ou de um Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu.». Nestes casos, a isenção fica condicionada à permanência do tripulante a bordo pelo período mínimo de 90 dias em cada período de tributação, nos termos do n.º 3 da referida disposição legal.

Por sua vez, no preâmbulo destaca-se que «A criação de um regime fiscal especial («tonnage tax») para as empresas detentoras de navios que sejam estratégica e comercialmente geridos a partir de um Estado-membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu e estejam afetos ao exercício da atividade de transporte marítimo de mercadorias e pessoas incide num aspeto essencial da decisão dos agentes económicos e incentiva de forma direta o investimento, potenciando o alargamento do mercado português de transporte marítimo, a inovação, a criação de emprego e o aumento da receita fiscal e da frota de navios que arvoram a bandeira portuguesa, contribuindo igualmente para o aumento da competitividade do transporte marítimo europeu.

O regime fiscal proposto para os tripulantes e a fixação de uma taxa contributiva global reduzida visam incentivar o investimento e promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades para os jovens e fomentando a formação de um  número suficiente de marítimos que obste à atual escassez de recursos humanos com as habilitações necessárias, devido em parte à inexistência de saídas profissionais.»

Importa, ainda, salientar que o artigo 2.º, n.º 2, do DL 92/2018 explicita que o capítulo III (onde se insere o mencionado artigo 4.º) é aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações registados no registo convencional português ou num outro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime.

Ora, conforme decorre dos factos assentes, o Requerente foi tripulante de um navio ou embarcação nos períodos de 2020 e 2021, tendo permanecido a bordo, em cada um daqueles períodos de tributação, pelo período igual ou superior a 90 dias, preenchendo, desta forma, os requisitos ínsitos no artigo 4.º, n.º 3, do DL 92/2018.

O navio ou embarcação, no qual o Requerente foi tripulante no referido período, é elegível para efeitos do regime de tonnage tax, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do DL 92/2018.

Por fim, a B..., nos períodos em referência, optou e encontrava-se abrangida pelo regime de tonnage tax dinamarquês.

Neste plano, conforme decorre do artigo 2.º, n.º 2, do DL 92/2018, o artigo 4.º do DL 92/2018 é aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações registados no registo convencional português ou num outro Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu utilizados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável e afetos às atividades previstas neste regime.

Neste sentido, e ao contrário do que alega a Requerida, da leitura conjugada do artigo 2.º, n.º 2, do DL 92/2018 com o preâmbulo deste mesmo diploma, não resulta a obrigatoriedade de sujeição a imposto em Portugal, por parte das entidades responsáveis pelas atividades elegíveis.

Aliás, o preâmbulo do DL 92/2018 salienta que «O regime fiscal proposto para os tripulantes e a fixação de uma taxa contributiva global reduzida visam incentivar o investimento e  promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades para os jovens e fomentando a formação de um número suficiente de marítimos que obste à atual escassez de recursos humanos com as habilitações necessárias, devido em parte à inexistência de saídas profissionais.» (sublinhado nosso)

Ou seja, no que ao regime fiscal especial para tripulantes diz respeito, o objetivo da sua aprovação foi o de promover o trabalho no setor do transporte marítimo em Portugal, criando oportunidades de trabalho, para os sujeitos passivos residentes em território nacional, independentemente de as entidades que exercem essas atividades se encontrarem, ou não, estabelecidas em Portugal ou serem aqui sujeitas a imposto.

Por outro lado, importa destacar que o artigo 4.º, n.º 1 do DL 92/2018, que prevê a isenção de IRS aplicável aos tripulantes, exige, apenas, que os navios ou embarcações se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime especial de determinação da matéria coletável.

Deste modo, não especificando aquela disposição legal que as referidas entidades têm de ter exercido a opção pelo regime de tonnage tax português, o artigo 4.º, n.º 1 do DL 92/2018 deverá ser interpretado no sentido de o mesmo ser aplicável aos tripulantes de navios ou embarcações que se encontrem registados por pessoas coletivas que exerçam a opção pelo regime de tonnage tax português ou por um outro regime análogo em vigor num Estado-Membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu.

Ademais, entende este Tribunal que a eventual condição da sujeição a imposto em Portugal, apenas deverá reporta-se às disposições relativas à fiscalidade da atividade de transporte marítimo (i.e., ao artigo 3.º do DL 92/2018) e não, também, aos benefícios fiscais e contributivos aplicáveis aos tripulantes. Ou seja, apenas a aplicação do artigo 3.º do DL 92/2018, referente ao regime especial de determinação da matéria coletável aplicável às atividades de transporte marítimo, está dependente de a pessoa coletiva se encontrar sujeita a imposto em Portugal e ter optado pelo regime de tonnage tax português aprovado pelo DL 92/2018.

 

Assim, acompanhando a fundamentação e o decidido nos mencionados processos arbitrais, a atuação da AT subjacente à liquidação impugnada relativa ao ano de 2022 enferma de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de fato e de direito, com manifesta e errónea interpretação das regras aplicáveis do citado Decreto-Lei n.º 92/2018, de 13 de novembro, em especial do artigo 4º, uma vez que os rendimentos obtidos pelo Requerente na Dinamarca, no ano de 2022, estariam isentos de IRS em Portugal. .

 

Este vício justifica a anulação da liquidação impugnada, na parte em que tributou rendimentos isentos, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

O indeferimento expresso da reclamação graciosa em questão enferma do mesmo vício, já que mantém a liquidação, com os fundamentos que constam do despacho de indeferimento.

 

Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, impõe-se concluir que a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) em crise, relativa ao ano de 2022, é ilegal, devendo ser anulada.

 

2.3. Da legalidade da liquidação de juros compensatórios

 

A liquidação de juros compensatórios têm como pressuposto a respetiva liquidação de IRS (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enferma do mesmo vício que afeta esta, justificando-se também a sua anulação.

 

3. Pedido de restituição da quantia paga e juros indemnizatórios

 

O Requerente formula pedido de restituição das quantias arrecadadas pela Requerida, bem como de pagamento de juros indemnizatórios.

 

No artº 6º do PPA, o Requerente refere que “Apesar de não se conformar com as apontadas liquidações de IRS, o Requerente efetuou o pagamento das quantias ali em causa.”.

 

A Requerida não põe em causa o pagamento do imposto, limitando-se a concluir que o pedido de pronúncia arbitral deverá ser julgado improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida de todos os pedidos.

 

Está em causa, como se viu, apenas a liquidação de IRS, relativa ao ano de 2022, que inclui que incluiu rendimentos de trabalho dependente no estrangeiro (Dinamarca), no montante de € 29.714,18, com o montante a pagar de € 4.264,93 (imposto e juros compensatórios);

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Por outro lado, dependendo o direito a juros indemnizatórios de direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito ao reembolso dessas quantias.

 

Por isso, o Requerente tem o direito de ser reembolsada desta quantia, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».

 

Pelo exposto, procede o pedido de reembolso da quantia de € 4.264,93.

 

A ilegalidade desta liquidação é imputável à AT, pois emitiu-a por sua iniciativa, com errada interpretação da lei.

 

Consequentemente, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, relativamente ao montante a reembolsar.

 

Os juros indemnizatórios serão pagos desde a data em que o Requerente efetuou o pagamento até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

V.        Decisão         

 

De harmonia com o exposto, o Tribunal Arbitral Singular decide o seguinte:

 

  1. Julgar parcialmente procedente a exceção de caducidade do direito de ação suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, relativamente à liquidação de IRS do ano de 2019, por intempestividade; 
  2. Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à questão da ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2023..., relativa ao ano de 2022;
  3. Anular esta liquidação de IRS nº 2023..., bem como a inerente liquidação de juros compensatórios;
  4. Anular o despacho de indeferimento expresso do procedimento de reclamação graciosa nº. ...2024...;
  5. Julgar parcialmente procedente o pedido de reembolso das quantias pagas, no montante de € 4.264,93, e condenar a Administração Tributária a pagar este montante ao Requerente;
  6. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los ao Requerente, nos termos referidos no ponto IV. 3. desta decisão arbitral;
  7. Condenar as Partes nas custas do processo, nos termos do ponto VII desta decisão arbitral.

 

 

VI. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €  9.293,01, indicado pelo Requerente sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VII. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo do Requerente na percentagem de 54,11% e a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira na percentagem de 45,89%.

 

Lisboa, 26 de março de 2025

 

O Árbitro

 

 

(Pedro Miguel Bastos Rosado)