SUMÁRIO
I. A Contribuição do Serviço Rodoviário (CSR) é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo porque, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos, o que não acontece, na medida em que não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e as invocadas finalidades de redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
II. O Tribunal Arbitral é competente para conhecer do pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito do pedido de revisão dos actos tributários de liquidação da CSR, uma vez que este tributo deve ser tratado como imposto para efeitos da Portaria 112-A/20111 de 22.3, por não haver um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparecendo, por isso, a natureza de contribuição financeira.
III. A não identificação dos actos de liquidação da CSR cuja devolução é pedida resulta na ineptidão da petição por ficar por demonstrar a existência desses actos e o efectivo pagamento do tributo, o que impossibilita também a demonstração da repercussão e da verificação da tempestividade do pedido de revisão oficiosa em que assenta o pedido de pronúncia arbitral.
DECISÃO ARBITRAL
I.Relatório
1.A..., Unipessoal L.da, titular do NIPC ..., com sede social sita na ..., ..., ..., ...-... ... veio requerer, ao abrigo do disposto nos art. os 2.º/1 a), 5.º/2, 6.º/1 e 10.º e seguintes do DL 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) em conjugação com o art. 95.º da Lei Geral Tributária (LGT) e com os art. os 99.º e 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributária (CPPT) a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre o indeferimento tácito da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) do pedido de revisão oficiosa n.º ...2024..., na parte que respeita à legalidade da liquidação da Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR), subjacente às liquidações do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), que lhe foram imputadas, enquanto repercutida, no abastecimento das suas viaturas, nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, no valor total de 46.522,94 €.
2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.
3.Em 10 de Julho de 2024 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
4.A Requerida, logo em 29 de Julho de 2024 dirigiu ao Ex.mo Presidente do CAAD um requerimento solicitando a identificação dos actos de liquidação cuja legalidade e Requerente pretendia ver sindicada, o qual foi remetido para o Tribunal Arbitral a constituir por ser esse o órgão competente para a sua apreciação.
5.De acordo com o preceituado nos art.os 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
6.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 17 de Setembro de 2024.
7.Em 18 de Outubro de 2024 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por excepção e impugnação, juntando o processo administrativo.
8.Em 26 de Novembro de 2024 foi fixado prazo de 10 dias para a Requerente se pronunciar sobre as excepções invocadas pela AT, o que ocorreu em 13 de Dezembro seguinte.
9.Em 12 de Fevereiro de 2015 foi proferido despacho dispensando a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, e a apresentação de alegações escritas.
Posição da Requerente
10.A Requerente enviou no dia 19 de Dezembro de 2023, através de carta registada um pedido de revisão oficiosa, nos termos do art. 78.º/1 da LGT, dirigido ao Senhor Director da Alfândega do Freixeiro, no qual requereu a revisão da liquidação da CSR paga por esta sociedade nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, respectivamente nos valores de € 8.400,54, € 14.094,73, € 14.713,68 e € 16.395,96, por força da ilegitimidade da liquidação desse imposto incluída no imposto especial sobre o consumo de produtos petrolíferos, repondo a legalidade nos termos julgados pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e subsequentes decisões do CAAD sobre esta mesma matéria, com o consequente pedido de reembolso.
11.Esse procedimento tributário deveria ter sido concluído no prazo de quatro meses (art. 57.º/1 da LGT), sendo que o incumprimento desse prazo faz presumir o seu indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial (art. 57.º/5 LGT).
12.A Requerente é uma sociedade por quotas constituída em 2002, cujo objecto social consiste em: operador de vending. Comércio a retalho por outros métodos não efectuados em estabelecimentos, bancas, feira ou unidades móveis de vendas; Comércio e distribuição de produtos alimentares e bebidas, incluindo produtos de charcutaria, snacks e refeições pré-cozinhadas. A actividade de comércio por grosso de equipamento de protecção individual, máscaras, viseiras, luvas e gel desinfectante. A actividade de comércio a retalho e de equipamento de protecção individual, máscaras, viseiras, luvas e gel desinfectante em loja. Produção de snacks, sandwichs, produtos de pastelaria, e alimentos embalados destinados a serem vendidos no retalho em livre serviço.
13.No âmbito da prossecução destas actividades empresariais, a Requerente dispõe de uma frota de veículos e de máquinas.
14.Nos anos de 2019, 2020, 2021 e 2022, a Requerente adquiriu, com o subsequente consumo, 418.548,08 litros de gasóleo e 736,76 litros de gasolina, conforme resulta das tabelas seguintes:
Descritivo
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2019
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2020
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2021
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2022
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Total
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Gasóleo (litros)
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11878,96
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126 979,55
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132 555,66
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147 133,91
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418 548,08
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CSR por litro
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0,111
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0,111
|
0,111
|
0,111
|
0,111
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CSR (€)
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1 318,56 €
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14 094,73 €
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14 713,68 €
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16 331,86 €
|
46 458,84 €
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Descritivo
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2019
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2020
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2021
|
2022
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Total
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Gasolina (litros)
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|
736,76
|
736,76
|
CSR por litro
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0,087
|
0,087
|
CSR (€)
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64,10 €
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64,10 €
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15.No custo de cada litro de gasóleo adquirido e consumido pela Requerente está incluído um montante de CSR, no valor de € 0,111 €, enquanto no custo de cada litro de gasolina adquirido e consumido pela Requerente está incluído um montante de CSR no valor de 0,087 €.
16.A CSR foi criada pela Lei 55/2007, de 31 de Agosto (alterada pelas Leis 67-A/2007, de 31 de Dezembro, 64-A/2008, de 31 de Dezembro, 64-B/2011, de 30 de Dezembro, 66-B/2012, de 31 de Dezembro, 83-C/2013, de 31 de Dezembro, 82-B/2014, de 31 de Dezembro, 7-A/2016, de 30 de marco, e 24-E/2022, de 30 Dezembro), cessando a sua vigência com a entrada em vigor do art. 3.º deste último diploma.
17.Enquanto vigorou, e de acordo com o artigo 3.º/2 da Lei 55/2007, a CSR visava financiar a rede rodoviária nacional a cargo da EP – Estradas de Portugal, EPE, actual Infraestruturas de Portugal, SA (IP, SA), no que respeita à respectiva concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento, constituindo a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional (sendo esta verificada pelo consumo dos combustíveis, dada a impossibilidade de medição da distância concreta percorrida, bem como quais as vias transitadas por cada utilizador). Era devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), na LGT e no CPPT, com as devidas adaptações.
18.No entanto, sendo o ISP um IEC, o encargo da CSR acabava por recair efectivamente sobre o consumidor final, in casu, a aqui Requerente.
19.Ora, quem suporta o encargo do imposto por repercussão legal, ainda que não seja sujeito passivo da relação jurídica tributária, mantém o direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias contra os actos de liquidação que geram a repercussão (económica) – cf. art. 18.º/4 a) da LGT.
20.A legitimidade da Requerente decorre ainda do disposto no art. 9.º/1 do CPPT quando refere que têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.
21.Não sendo a Requerente o sujeito passivo do imposto, nem o directo responsável pela sua liquidação, mas apenas a entidade que suporta o encargo por efeito da repercussão, não lhe compete o ónus de identificação e de comprovação dos actos de liquidação repercutidos, nem a prova da conexão entre os actos de liquidação e as facturas de compra que revelam a repercussão do imposto (proc. 676/2023-T, 12 de Março de 2024).
22.A CSR é um imposto, pelo que o Tribunal Arbitral é competente, em razão da matéria, para a apreciação da ilegalidade dos respectivos actos de liquidação e correlativos actos de repercussão (proc. 534/2023-T, 490/2023-T), já que não se identifica qualquer contraprestação destinada – ainda que de forma indirecta e presumida – aos sujeitos passivos da CSR que permita configurar este tributo como uma contribuição financeira, nem tão-pouco se verifica qualquer motivação extrafiscal que justifique a incidência da CSR (proc.os 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022-T, 702/2022-T, 4/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T). Nessa qualidade é arbitrável.
23.O TJUE proferiu em 7 de Fevereiro de 2022 um despacho que declara que o regime legal da CSR viola a Directiva 2008/118/CE relativa ao regime geral dos IEC’s.
24.Na sequência desta decisão, têm sido apresentados pelos sujeitos passivos de ISP diversos pedidos restituição da CSR liquidada nos últimos anos, sendo que os Tribunais Arbitrais que têm analisado esta temática têm considerado, na sua grande maioria, que os sujeitos passivos têm legitimidade processual para contestar tais liquidações.
25.Para além de legitimar os sujeitos passivos, as decisões proferidas recentemente pelo CAAD, têm entendido de que também os repercutidos/clientes finais têm legitimidade para contestar os valores suportados de CSR, declarando a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR e condenando a Autoridade Tributária à restituição das prestações indevidamente pagas (proc.os 564/2020-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 374/2023-T, 465/2023-T e 486/2023-T).
26.Por outro lado, o art. 8.º/4 da Constituição da República Portuguesa determina que [a]s disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. Deste modo, o Direito Comunitário prevalece sobre o Direito Interno Português e é directamente aplicável em território nacional.
27.Nestes termos, cabe ao tribunal declarar a ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, bem como, a título mediato, a ilegalidade, e por consequência, a sua anulação, das liquidações de CSR aqui impugnadas e seus actos de repercussão.
28. Isso mesmo decorre do art. 163.º/1, do Código do Procedimento Administrativo, ex vi art. 2.º c), da LGT quando refere que são anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção.
29.Além de proceder à anulação das liquidações de CSR aqui visadas, deverá ainda o tribunal determinar as inerentes consequências legalmente previstas e, entre elas, além da devolução deste imposto pago pela Requerente, enquanto repercutida, está o ressarcimento desta através dos exigíveis juros indemnizatórios, conforme plasmado nos art.os 43.º e 100.º da LGT, bem como no art. 61.º do CPPT, conforme decorre do art. 24.º/5 do RJAT.
Posição da Requerida
30.A AT começa por chamar à atenção para o facto de a Requerente apresentar facturas para demonstrar ter suportado a CSR quando delas não resulta qualquer acto impugnável, já que só os Documentos de Introdução ao Consumo (DIC) contêm os elementos que permitem o cálculo e a liquidação desse tributo – não havendo coincidência ou sequência temporal na emissão de ambos, nem sequer sendo emitidas obrigatoriamente pelo mesmo sujeito passivo.
31.Ora, a Requerente no presente pedido de pronúncia arbitral vem solicitar a apreciação da legalidade das liquidações respeitantes a CSR incidentes sobre o sujeito passivo que a liquidou, contudo, não só não identifica as DIC e os actos de liquidação cuja legalidade pretende ver sindicada, como não identifica quem foi(ram) o(s) efectivo(s) sujeito(s) passivo(s) responsável(eis) pela introdução no consumo dos combustíveis rodoviários que adquiriu, ao longo de todo o período em causa, à sua fornecedora.
32.Limita-se, portanto, a juntar com o PPA as facturas de aquisição de combustíveis à sua fornecedora (Repsol Portuguesa, Lda.), a qual é titular de estatuto fiscal no âmbito do ISP, podendo, enquanto tal, ter sido sujeito passivo de ISP/CSR, nas liquidações em causa. Mas nem isso é seguro, pois nada obsta que aquela fornecedora tenha acordado a colocação do produto nos depósitos do entreposto fiscal de outro(s) operador(es) económico(s) – titular(es) desse estatuto.
33.Nada prova, portanto, quem terá suportado originária e efectivamente o encargo da liquidação da CSR, pois que só a partir daí será possível atestar da sua repercussão a jusante e, além disso, fazer a reconstrução integral do circuito de (re)venda para efeitos de apuramento de quem suportou, a final, o encargo total ou parcial, da CSR liquidada.
34.Prossegue a AT insistindo na conveniência em explicar a repercussão de impostos indirectos. Estes, não constituindo despesa vaiável, não entram no custo marginal, constituindo despesa constante, que entra no custo médio. Ora, este custo é um conceito de carácter económico que corresponde ao valor dos recursos utilizados numa organização, incluído no conceito de gasto. Donde, qualquer imposto/contribuição irá integrar os custos do seu Sujeito Passivo através da repercussão (ceteris paribus da actividade económica).
35.No entanto, esta repercussão implica que o imposto/contribuição perca a sua natureza tributária para assumir uma natureza exclusivamente económica, de custo.
36.Daí que tenha sido introduzida a figura da repercussão legal, à qual o legislador atribui relevância jurídico-tributária. Mas, neste caso, o legislador pretendeu manter os efeitos do imposto/contribuição no âmbito da relação tributária.
37.Isso já não acontece quando a tributação visa ainda desincentivar o seu consumo excessivo reduzindo, desse modo, as externalidades negativas a eles associadas, como é o caso dos impostos especiais sobre o consumo. Nestes, a repercussão económica é o efeito pretendido pelo legislador, terminando a relação jurídico-tributária com o pagamento do tributo.
38.No mesmo sentido, o princípio da legalidade fiscal proíbe interpretações segundo considerações económicas.
39.Ora, no caso da CSR, o legislador não pretendeu atribuir qualquer efeito jurídico à repercussão, exactamente porque se deixa de se estar perante um tributo, para ficar perante um custo do bem, cujo preço vai ser suportado pelo consumidor, que não assume outra qualquer posição jurídica em matéria tributária, que já findou, não existindo interesse legítimo, interesse legalmente protegido, nem se atende à capacidade contributiva do consumidor, mas apenas à sua capacidade económico-financeira.
40.Procede, depois a AT, em sede de enquadramento da situação, explicando a criação da CSR pela Lei 55/2007, a qual assumia a finalidade de financiar a rede rodoviária nacional, no que respeitava à respectiva concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento. Essas funções eram atribuídas à EP – Estradas de Portugal, EPE, entidade que, na sequência do Decreto-Lei 91/2015, foi incorporada, por fusão, na Rede Ferroviária Nacional – REFER, EPE., que foi transformada em sociedade anónima, assumindo a designação Infraestruturas de Portugal, SA.
41.Na prática, aquando da tributação dos produtos petrolíferos e energéticos era aplicada uma taxa de ISP à qual acrescia o montante legalmente estabelecido a título de CSR. Essas taxas eram, nos termos do art. 7.º da Lei 55/2007, estabelecidas por portaria conjunta nos termos do Código dos Impostos Especiais de Consumo, por forma a garantir a neutralidade fiscal e o não agravamento do preço de venda dos combustíveis em consequência da criação da contribuição de serviço rodoviário.
42.Essas taxas foram estabelecidas pela Portaria 16-C/2008, de 9.01, sendo facto gerador do ISP a produção em território nacional desses produtos petrolíferos, a sua entrada no território, quando proveniente de outro Estado-membro da UE, ou a sua importação, sendo exigível no momento da introdução no consumo.
43.As introduções no consumo (formalizadas através da DIC, processada por transmissão electrónica de dados nos termos do art. 10.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo - CIEC), efectuadas num determinado mês pelos sujeitos passivos que detivessem um dos estatutos previstos no CIEC, eram globalizadas no mês seguinte, numa única liquidação, processada de forma automática (art. 10.º-A do CIEC), sendo estes notificados da liquidação do imposto até ao dia 15 do mês da globalização, devendo o tributo ser pago até ao último dia útil do mês em que foi notificada a liquidação (art. 11.º e 12.º do CIEC).
44.Estes produtos introduzidos no consumo e já declarados nas respectivas e-DIC seram, por sua vez, encaminhados para uma multiplicidade de destinos e/ou clientes, sendo que, após essa introdução no consumo e consequente liquidação das imposições, podiam surgir vários intervenientes na cadeia de abastecimento/comercial até à chegada do produto ao consumidor final (grossistas, distribuidores, e outros revendedores, designadamente, postos de abastecimento).
45.Prossegue, depois, a AT, defendendo-se por excepção,
46.E começa por invocar a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria, lembrando que a sua vinculação à jurisdição dos tribunais arbitrais ocorre nos termos da Portaria 112-A/2011, de 22.3, sendo que no objecto desta vinculação, definido pelo art. 2.º, se refere a apreciação das pretensões relativas a impostos. Apenas impostos, portanto, deixando de fora outras contribuições ou tributos, como é o caso da CSR.
47.Fundamenta o seu entendimento no facto de o legislador não ter enquadrado a CSR no conceito, tal como é referido no art. 4.º da LGT. Cita, a propósito, o entendimento convergente de alguma jurisprudência do CAAD (nomeadamente do Conselheiro Lopes de Sousa no proc. 31/2023-T – reiterada nas decisões dos proc.os 508/2023- T, 520/2023-T e 675/2023-T –, o qual encontra do regime definido na Portaria 112-A/2011 um intuito claramente restritivo que impõe uma leitura no mesmo sentido).
48.Nestes termos (estando a CSR excluída da arbitragem tributária por força do disposto nos art.os 2.º e 3.º do RJAT e art. 2.º da Portaria 112-A/2011, pelas quais a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais se reporta apenas à apreciação de pretensões relativas a impostos, não abrangendo os tributos que devam ser qualificados como contribuição), não se encontra verificada a arbitrabilidade da questão em apreço. Ou seja, os tribunais arbitrais do CAAD não são materialmente competentes para conhecer do mérito do pedido em apreço, o que prejudica o conhecimento do mérito da causa.
49.Mesmo que se admitisse a competência do Tribunal Arbitral para a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, essa incompetência material ressurgiria como resultado do facto de o Tribunal Arbitral não poder pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR (cf. proc.os 296/2023-T, 297/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 633/2023-T, 673/2023-T, 688/2023-T, 793/2023-T, 844/2023-T, 847/2023-T, 848/2023-T, 861/2023-T, 863/2023-T, 882/2023-T, 887/2023-T, 953/2023-T, 989/2023-T, 1017/2023-T, 1044/2023-T, 1063/2023-T, 1064/2023-T, 7/2024-T, 33/2024-T, 46/2024-T, 62/2024-T, 105/2024-T, 116/2024-T, 121/2024-T, 142/2024-T).
50.Prossegue, depois a Requerida invocando a ilegitimidade processual e substantiva da Requerente, por não ser esta o sujeito passivo que procedeu à introdução no consumo dos produtos no território nacional, provando o pagamento dos respectivos ISP/CSR.
51.No caso, seria às empresas que procederam a essa introdução no consumo que caberia identificar os actos de liquidação e solicitar, em caso de erro, a sua revisão, com vista ao reembolso dos montantes cobrados (art.os 15.º e 16.º do CIEC, ex vi art. 5.º/1 da L 55/2007; tb. art. 78.º/1 da LGT), já que estamos na presença de impostos monofásicos.
52.Não se encontram, portanto, reunidos os pressupostos para a revisão dos actos tributários, porquanto tal direito não se encontra incluído na esfera jurídica do repercutido económico ou de facto, não podendo a entidade, em que alegadamente teria sido repercutido o imposto, apresentar pedido de revisão ou de reembolso por erro. Assim, não sendo a Requerente sujeito passivo nos termos e para o efeito do disposto no art. 4.º do CIEC, não tem legitimidade, nos termos supra, nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral.
53.Esta situação é reforçada pelo facto de a Requerente não ser também o sujeito passivo que suporta o encargo do imposto por repercussão legal, pelo que, a falta de legitimidade decorre também do disposto no art. 18.º/4 a) da LGT.
54.É que, no caso, não existe repercussão legal, mas meramente de facto ou económica. Os sujeitos passivos poderão eventualmente, no âmbito das suas relações comerciais proceder (ou não), à transferência, parcial ou total, da carga fiscal para outrem (os seus clientes), tendo em conta a política de definição dos preços de venda e as consequências para a sua actividade. Mas a isso não estão obrigados por lei.
55.Conclui-se, portanto, pela ilegitimidade da Requerente, no sentido de diversas decisões arbitrais (proc. 296/2023-T, 332/2023-T, 375/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T e 490/2023-T, 681/2023-T e 633/2023-T), já que esta não é o sujeito passivo de ISP/CSR e não integra a relação tributária subjacente à liquidação, ou liquidações, contestadas, não sendo devedora, nem estando obrigada ao seu pagamento ao Estado. Está a jusante do sujeito passivo na cadeia económica (que, em termos jurídicos, não é um terceiro substituído). Tal como se referiu anteriormente, não suportou a contribuição por repercussão legal, nem tão pouco corresponde ao consumidor final, pelo que não tem legitimidade nem para apresentar pedido de revisão oficiosa nem o pedido arbitral, nos termos do art. 15.º/2 do CIEC e do art. 18.º/3 e 4 a) da LGT.
56.Na verdade, não há repercussão legal, mas meramente económica, a qual pode bem apresentar uma natureza regressiva (se os vendedores suportam eles próprios, através da diminuição do preço dos bens, o custo adicional gerado pelo agravamento do imposto), o que reforçará a ilegitimidade dos repercutidos.
57.De facto, não existe no âmbito da CSR um acto tributário de repercussão legal, subsequente e autónomo do(s) acto(s) de liquidação de ISP/CSR, sendo que as facturas não corporizam actos de repercussão de CSR, apenas titulando operações de compra e venda de combustíveis, sendo que o valor pago a título de CSR pelo sujeito passivo de ISP/CSR, pode, ou não, ter sido repercutido, no preço pago pelos adquirentes dos combustíveis.
58.Além disso, resulta das próprias afirmações da Requerente que esta repassa, necessariamente, no preço dos produtos vendidos, os gastos em que incorre, nomeadamente com a aquisição de combustíveis, pelo que as entidades potencialmente lesadas com o encargo da CSR, serão os consumidores finais de tais bens e não esta (conforme é reconhecido pela jurisprudência do CAAD: proc.os 296/2923-T, 297/2023-T, 332/2023-T, 365/2023-T, 375/2023-T, 376/2023-T, 408/2023-T, 438/2023-T, 466/2023-T, 467/2023-T, 490/2023-T, 537/2023-T, 604/2023-T, 633/2023-T, 673/2023-T, 681/2023-T, 688/2023-T, 710/2023-T, 736/2023-T, 844/2023-T, 847/2023-T, 848/2023-T, 861/2023-T, 863/2023-T, 872/2023-T, 882/2023-T, 887/2023-T, 922/2023-T, 950/2023-T, 953/2023-T, 956/2023-T, 981/2023-T, 987/2023-T, 988/2023-T, 989/2023-T, 1017/2023-T, 1034/2023-T, 1036/2023-T, 1039/2023-T, 1044/2023-T, 1063/2023-T, 1064/2023-T, 5/2024-T, 7/2024-T, 6/2024-T, 33/2024-T, 50/2024-T, 62/2024-T, 94/2024-T, 105/2024-T, 107/2024-T, 116/2024-T, 121/2024-T, 142/2024-T, 165/2024-T, 166/2024-T e 259/2024-T).
59.A AT levanta ainda um problema prático concorrente: caso se aceite que a Requerente tenha legitimidade para efectuar o pedido de revisão e de anulação parcial da liquidação do ISP, reclamando o reembolso da CSR alegadamente suportada, poder-se-ia estar perante uma situação de ilegítima, infundada e indevida restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades intervenientes no ciclo de comercialização com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.
60.Na verdade, sem a possibilidade de se identificar o registo de liquidação correspondente às transacções posteriores, a Requerida poderia vir a ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR a qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia comercial de combustíveis: desde o sujeito passivo de imposto, passando pelos grossistas, distribuidores e revendedores, até ao consumidor final (tenham ou não estes suportado os valores em causa) – tal como se referiu no voto de vencida da decisão do proc. 491/2023-T.
61.A AT invoca, de seguida, a ineptidão do pedido arbitral por falta de objecto, dado não estarem identificados os actos tributários objecto do pedido (as liquidações e as alegadas repercussões), conforme determina o art. 10.º/2 b) do RJAT. – questão que, aliás, havia referido logo no requerimento apresentado ainda antes da constituição do tribunal (cf. supra § 4).
62.De facto, a Requerente limita-se a apresentar facturas de aquisição de combustíveis às suas fornecedoras, sem identificar quaisquer actos de liquidação de ISP/CSR praticados pela AT, ou as DIC submetidas pelos sujeitos passivos de imposto.
63.Por outro lado, os documentos juntos aos autos pela Requerente não fazem referência a quaisquer elementos dos alegados actos de repercussão da CSR, nem permitem esclarecer os termos que foram definidos na relação contratual entre os sujeitos passivos e os restantes intervenientes na cadeia de comercialização, acerca da repercussão no âmbito das transacções comerciais referentes ao fornecimento de combustíveis pelo sujeito passivo aos posteriores intervenientes.
64.Nestas circunstâncias, o pedido arbitral não preenche nem satisfaz os pressupostos legais de aceitação, uma vez que viola o artigo 10.º/2 b) do RJAT, devendo, consequentemente, ser declarado inepto.
65.Atente-se que, com os dados indicados pela Requerente, seria impossível à Requerida identificar os actos e factos essenciais omitidos por aquela. Assim, a introdução no consumo é feita diariamente, mas as declarações são globalizadas mensalmente para efeitos de liquidação, e a alfândega competente não coincide necessariamente com a sede/domicílio do sujeito passivo (que pode apresentar as suas declarações em mais do que uma). Além disso, o combustível abrangido por uma liquidação é destinado a uma multiplicidade de clientes.
66.Por outro lado, após a introdução no consumo e consequente liquidação das imposições, podem ainda existir vários intervenientes na cadeia de comercialização até ao consumidor final (grossistas, distribuidores, e outros revendedores, designadamente, postos de abastecimento), pelo que, é totalmente impossível à AT identificar os actos de liquidação subjacentes à declaração dos produtos para o consumo, que vão sendo transaccionados ao longo da cadeia de comercialização.
67.Donde, apenas o sujeito passivo (que declarou os produtos para consumo a quem foi liquidado o imposto e que efectuou o correspondente pagamento) reúne condições para identificar os actos de liquidação.
68.Não existe sequer uma correspondência entre as quantidades de produtos introduzidos no consumo e as quantidades de produto adquiridas pela Requerente aos seus fornecedores, até porque a unidade de tributação é de 1000 litros tendo em conta a temperatura de referência de 15.º C (art. 91.º do CIEC) sendo que, nas vendas subsequentes desses produtos, as quantidades consideradas são-no em função da temperatura observada no momento, o que origina oscilações, não sendo, por isso, possível fazer tal conversão.
69.Verifica-se, portanto, a excepção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer acto tributário, violando o requisito do art. 10.º/2 b) do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, conforme resulta dos art.os 186.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º b) e 278.º/1 b) do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância.
70.Subsiste, ainda, uma manifesta contradição entre o pedido e a causa de pedir porquanto a Requerente vem pedir, por um lado, a anulação de actos de liquidação não identificados e o indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, mas a causa de pedir é a repercussão da CSR, por não conformidade com as normas da União Europeia, e o consequente reembolso do encargo suportado. Fica, assim, por estabelecer qualquer conexão entre aquilo que a Requerente alega e aquilo que documentou, o que gera alguma ininteligibilidade na indicação do pedido e uma contradição entre o pedido e a causa de pedir – com a consequente ineptidão da petição.
71.A Requerida prossegue invocando, depois, a caducidade do direito de acção, a qual decorrerá da falta de indicação dos actos de liquidação, o que impede a aferição da tempestividade do pedido de revisão oficiosa das liquidações, já que o prazo previsto no art. 78.º/1 da LGT se conta a partir do termo do prazo de pagamento do imposto, tendo por referência a data do acto de liquidação.
72.Ora, a tempestividade da apresentação do pedido arbitral decorre da tempestividade do pedido de revisão, o que, face à não identificação dos actos tributários, é impossível.
73.De qualquer forma, a intempestividade sempre decorreria do facto de a Requerente pretender sindicar as aquisições efectuadas nos anos de 2019 a 2022, quando o prazo de 120 dias para apresentação de reclamação graciosa, a contar partir do termo do prazo do pagamento do ISP/CSR (art. 78.º/1, 1.ª parte, da LGT), se encontrava largamente ultrapassado em 29.12.2023.
74.Será por isso que a Requerente apresenta um pedido de revisão oficiosa, meio previsto no art. 78.º/1, 2.ª parte, da LGT, de modo a fazer-se valer do prazo de 4 anos aí previsto, o que sempre será infundado, dado que a Requerida, se encontra adstrita ao princípio da legalidade, pelo que sempre efectuou as liquidações em estrita observância dos normativos legais em vigor à data dos factos, não existindo, portanto, qualquer erro imputável aos serviços.
75.Ou, mesmo que assim se não entenda, a intempestividade decorreria do facto de, no âmbito dos IEC, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas deverem ser apreciados à luz do disposto nos art.os 15.º a 20.º do CIEC, em 21 de Julho 2023, já teria terminado o prazo de 3 anos previsto no art. 15.º/3 do CIEC para requerer o reembolso do alegado valor pago por repercussão económica de CSR, pelo menos no que se refere a todas as aquisições efectuadas pela Requerente em datas anteriores a 29.12.2020.
76.Donde, forçoso será concluir que a falta de identificação dos actos tributários em crise tem como efeito, entre outros, a impossibilidade de se aferir em pleno da tempestividade do pedido de revisão oficiosa e de reembolso, por alegado pagamento de valores a título de alegada repercussão económica da CSR, e, consequentemente, da tempestividade do pedido arbitral, o que consubstancia uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido. Ou, se assim não se entender, sempre subsistirá uma excepção dilatória nos termos dos art.os 89.º/1, 2 e 4 k) do CPTA, o que conduz à absolvição do pedido ou da instância.
77.Respondendo, depois, por impugnação, a AT insiste no facto de a Requerente não fazer prova de que pagou e suportou integralmente o encargo da CSR, por repercussão (sendo que esse ónus recaía sobre si, nos termos do art. 74.º da LGT).
78.Ora, a própria jurisprudência do CAAD tem convergido no sentido de que a prova desses factos (a repercussão efectiva da CSR e, bem assim de que a Requerente é o consumidor final) seria essencial e cabia à Requerente (cf. 452/2023-T).
79.Ora, das facturas apresentadas pela Requerente apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR, sendo absolutamente omissas nesse aspecto.
80.Além disso, as facturas referem a existência de descontos (sem descritivo dos mesmos) o que denota falta de rigor e suscita dúvidas quanto à própria presunção da repercussão da CSR.
81.A insuficiência probatória das facturas para efeitos de repercussão tem sido reconhecida na jurisprudência do CAAD (proc.os 359/2023-T, 363/2023-T, 452/2023-T, 717/23-T, 784/2023-T, 790/2023-T, 801/2023-T, 808/2023-T, 860/2023-T, 874/2023-T, 890/2023-T, 914/2023-T, 1029/2023-T, 1048/2023-T, 1049/2023-T, 1058/2023-T, 38/2024-T, 63/2024-T, 73/2024-T, 104/2024-T, 131/2024-T, 135/2024, 141/2024-T, 151/2024-T, 168/2024-T, 186/2024-T).
82.Ressurge, neste enquadramento, o risco de, por falta de identificação dos actos relevantes, se estar a admitir restituição reiterada de elevadas quantias monetárias a diversas entidades intervenientes no ciclo de comercialização com base nos mesmos (alegados) factos, sem qualquer possibilidade de controlo.
83.Finalmente, ainda em sede de impugnação, a AT recorda que o cálculo do imposto pago ao ser feito com base nos litros de combustível é incorrecto dadas as variações da litragem decorrentes da temperatura ambiente (conforme se referiu anteriormente – cf. supra § 68),
84.A AT debruça-se depois sobre o Despacho do TJUE de 7 de Fevereiro de 2022 no proc. C-460/21, explicando que a análise deste se limitou aos termos específicos das questões colocadas, sem ter analisado a CSR com profundidade, não havendo, em rigor, qualquer decisão judicial que considere ilegal a CSR, pelo que também não existe qualquer erro imputável aos serviços da Requerida.
85.Por outro lado, ao contrário do que afirma a Requerente, subsiste um motivo específico subjacente à CSR, em sede de diminuição da sinistralidade rodoviária.
Posição da Requerente relativamente às excepções
86.Pronunciando-se relativamente às excepções invocadas pela AT, a Requerente começa por lembrar que, relativamente à pretendida incompetência do tribunal arbitral, a maioria das decisões são no sentido do reconhecimento dessa mesma competência.
87.Sobre a pretendida ilegitimidade, a Requerente recorda também diversas decisões arbitrais (859/2023-T e 465/2023-T).
88.Pronunciando-se sobre a ineptidão da petição, a Requerente recorda o afirmado na referida decisão do proc. 465/2023-T. Os termos desta decisão são ainda invocados para defender a inexistência da invocada caducidade.
89.Conclui, assim, pela improcedência das excepções.
II.Saneamento
90.O tribunal foi regularmente constituído e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e encontram-se regularmente representadas (art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).
91.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito, remetendo-se o tratamento das excepções para a análise da matéria de Direito.
III.Matéria de facto
Factos provados
92.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
-
A Requerente é uma sociedade por quotas constituída em 2002, cujo objecto social consiste na actividade de operadora de vending.
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No período compreendido entre 2019 e 2022, a Requerente adquiriu 418 548,08 litros de gasóleo e 736,76 litros de gasolina.
-
Alegando ter sido integralmente repercutido sobre si o montante de 46.522,94 € de CSR através das facturas emitidas pelos fornecedores, a Requerente apresentou em 19 de Dezembro de 2023 um pedido de revisão oficiosa com vista à revisão das liquidações de CSR e o consequente reembolso.
-
Esse pedido foi tacitamente indeferido.
-
Em 8 de Julho de 2024 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.
Factos não provados
93.Com relevância para a questão a decidir, ficou por provar:
-
Quais os valores de CSR liquidados e pagos pelos sujeitos passivos;
-
Que a CSR tenha sido repercutida total ou parcialmente na Requerente;
94.Os factos elencados supra foram dados como provados, ou não-provados, com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos.
95.Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123.º/2 do CPPT e art.os 596.º/1 e 607.º/3 e 4 do Código de Processo Civil - CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º/1 a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. art.os 13.º do CPPT, 99.º da LGT, 90.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA e art.os 5.º/2 e 411.º do CPC).
96.Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência - cfr. art. 16.º e) do RJAT e art. 607.º/4 do CPC, aplicável ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.
97.Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do art. 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação - cfr. art. 607.º/5 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT.
98.Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade que se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.
99.O tribunal considera que as facturas dos fornecedores de combustível, apresentadas pela Requerente não identificam os originais sujeitos passivos de ISP e de CSR, não podendo substituir-se a documentos que possam comprovar a liquidação conjunta destes tributos pelos sujeitos passivos: as Declarações de Introdução no Consumo, ou o Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou documentos que, ao menos, permitissem identificar, com um mínimo de certeza, quem foram esses sujeitos passivos originários.
IV.Matéria de Direito
100.Reconhece este tribunal que a CSR é um tributo que contraria a Directiva 2008/118 relativa ao regime geral dos impostos especiais de consumo.
101.De facto, pré-existindo um imposto sobre os produtos petrolíferos (o ISP), o Estado português apenas poderia fazer incidir novo imposto sobre os mesmos produtos se este tivesse em vista motivos específicos (cf. art. 1.º/1 a) e 2 da referida directiva), o que não acontece, já que a mera afectação do produto desse tributo ao financiamento da concessionária da rede rodoviária nacional não é suficiente, mesmo se associada à redução da sinistralidade e de sustentabilidade ambiental.
102.Na verdade, não existe uma relação directa entre a utilização das receitas e essas finalidades (já que o produto da CSR não se destina exclusivamente ao financiamento de operações que supostamente concorrem para a realização desses dois objectivos), nem é evidente uma real vontade de desencorajar a utilização quer da rede, quer dos principais combustíveis rodoviários, pelo que subsiste uma finalidade puramente orçamental.
103.As directivas são actos através dos quais os órgãos competentes da União impõem aos Estados-membros a transposição do respectivo regime, ou seja, a adopção de actos subsequentes que adeqúem a sua ordem jurídica às regras por elas fixadas. Por não se dirigirem aos particulares, entende-se genericamente que não podem ser invocadas por estes como tendo criado direitos na respectiva esfera jurídica (não têm, portanto, efeito directo).
104.A jurisprudência europeia reconheceu, todavia, uma excepção (ac. 17.12.70 SACE, proc. 33/70): tratando-se de disposições precisas e incondicionais de directivas, a não transposição destas (ou a transposição incorrecta) no prazo por elas estabelecido, permite aos particulares invocá-las contra entes públicos (efeito directo vertical) – já que, caso contrário, esses entes estariam a retirar vantagem de um incumprimento das obrigações gerais face ao Direito da União, privando esses mesmos particulares de direitos que teriam sido constituídos na sua esfera jurídica se a transposição tivesse ocorrido nos termos previstos.
105.Essa será a situação em apreço: a proibição constante do art. 1.º da Directiva 2008/118 pode ser invocada pela Requerente para arguir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR que a contrariam, por não se verificarem os necessários motivos específicos.
106.Isso mesmo foi reconhecido explicitamente pelo TJUE – a quem cabe determinar em exclusivo a interpretação do Direito da União (art. 267.º TFUE) – no Despacho de 2.2.2022 (Vapo Atlantic SA c. Autoridade Tributária, proc. C-460/21).
107.Ora, o Direito da União aplica-se na ordem interna portuguesa nos termos por ele definidos (art. 8.º/4 da Constituição), sendo que esses termos determinam a sua prevalência sobre o Direito nacional, por força do princípio do primado (ac. 15.07.1964 Costa c. ENEL, proc. 6/64 e Declaração sobre o primado do direito comunitário, anexa ao TFUE).
108.Neste enquadramento, dúvidas não subsistirão quanto à ilegalidade genérica dos actos de liquidação da CSR.
109.Não obstante, no caso em apreço, são arguidas pela AT diversas excepções. A saber: a incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria (por não se tratar de um imposto mas de mera contribuição), a ilegitimidade das Requerentes (por não serem os sujeitos passivos da CSR mas meras repercutidas), a ineptidão da petição inicial (por falta de objecto, dada a não identificação dos actos tributários cuja nulidade é arguida) e a caducidade do direito de acção (por não ser possível efectuar contagem dos prazos dado não haver identificação – e consequentemente data – dos actos de liquidação).
110.Relativamente à pretendida incompetência do Tribunal Arbitral reconhece-se que a Portaria de vinculação à jurisdição arbitral (Port.ª 112-A/2011 de 22.3) estabelece duas limitações: as pretensões relativas a impostos de entre aquelas que se enquadram na competência genérica dos tribunais arbitrais e a impostos cuja administração esteja acometida à AT. Conclui-se, portanto, que essa vinculação se reporta a qualquer das pretensões mencionadas no art. 2.º/1 do RJAT que respeitem a impostos, com exclusão de outros actos tributários.
111.As contribuições financeiras são tributos com uma estrutura paracomutativa, dirigidas à compensação de prestações presumivelmente provocadas ou aproveitadas pelos contribuintes, distinguindo-se das taxas que são tributos rigorosamente comutativos e que se dirigem à compensação de prestações efectivas (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2015, Coimbra, p. 287). Não há dúvida que se distinguem dos impostos.
112.No caso da CSR, esta visa financiar a rede rodoviária nacional (afectando-se, para esse efeito, as receitas dela decorrentes à Infraestruturas de Portugal SA, a qual assume esse encargo), sendo devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP), aplicando-se o CIEC à sua liquidação, cobrança e pagamento (nos termos do art. 5.º/1 da Lei 55/2007 de 31.8).
113.Dificilmente pode considerar-se a CSR como uma contribuição financeira, já que não tem como pressuposto uma prestação a favor de um grupo de sujeitos passivos por parte de uma pessoa colectiva. Ela é estabelecida a favor da Infraestrururas de Portugal, SA, mas os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis) não são os destinatários da actividade dessa empresa (que consiste na concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede de estradas – cf. art. 3.º/2 da Lei 55/2007).
114.Inexistindo um nexo específico entre o benefício emanado da actividade pública titular da contribuição (a Intraestruturas de Portugal, SA) e os sujeitos passivos (as empresas comercializadoras de combustíveis), desaparece essa natureza de contribuição financeira, devendo, por isso, ser assumida como um imposto, para efeitos do art. 2.º/1 do RJAT.
115.Segue-se, nesta questão, a orientação maioritária do CAAD, a qual reconhece na CSR um verdadeiro imposto e, por isso integrando a competência arbitral (por todos, v. proc. 465/2023-T).
116.A AT, ainda sobre a pretendida incompetência do tribunal arbitral, entende que este também não poderá conhecer do pedido, por este pretender discutir a legalidade do regime da CSR no seu todo e a sua desconformidade com o Direito da União.
117.Este reparo assenta num evidente equívoco já que, conforme se referiu, a efectiva desconformidade da CSR com a Directiva 2008/118 integra a competência do tribunal arbitral, por afectar a validade das liquidações desse tributo, da mesma maneira que essa validade poderia ser afectada por desconformidade com normas de direito interno, dado o regime de vigência do Direito da União.
118.Improcede, portanto, a excepção de incompetência do tribunal.
119.Relativamente às outras excepções invocadas pela Requerida (ilegitimidade das Requerentes, ineptidão da petição e caducidade do direito de acção), abordar-se-ão conjugadamente a partir de um elemento que, da análise do processo e da jurisprudência (nem sempre convergente) que vem surgindo na matéria, parece determinante: a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários impugnados.
120.Essa identificação, conforme se referiu supra (§ 99), não resulta das facturas dos fornecedores de combustível apresentadas pela Requerente, já que nenhuma referência nelas surge sobre originais sujeitos passivos de ISP e de CSR (os quais constarão das Declarações de Introdução no Consumo, ou do Documento Administrativo Único/Declaração Aduaneira de Importação ou eventualmente de outros documentos que lograssem tal identificação com um mínimo de certeza).
121.Ora, essa identificação é imprescindível, já que a pretendida devolução dos montantes pagos em sede de CSR se funda na nulidade do acto de liquidação (que fundamenta o pedido de revisão oficiosa). E se dificilmente pode ser apreciado o vício do acto sem se demonstrar a sua existência, impossível será conferir da sua efectiva repercussão.
122.Assume, no entanto, a Requerente que tendo as compras das mercadorias ocorrido na vigência da Lei 55/2207, a sujeição à CSR seria obrigatória, o que, genericamente se poderia aceitar – conquanto ignoremos que se trata de mera presunção de facto.
123.Todavia, o que está em questão, mais do que saber se os combustíveis em causa foram ou não presumivelmente sujeitos a CSR, será saber, também, quem terá suportado esses encargos originária e efectivamente, pois só a partir daí será possível atestar da sua existência e, além disso, conferir se foram efectivamente pagos e repercutidos na Requerente.
124.É que, não havendo repercussão legal da CSR facto (por não ser expressamente determinada na lei), esse efeito não poderá presumir-se, carecendo de prova, a qual depende - novamente - da identificação dos actos tributários de liquidação originários.
125.Chega-se, assim, à ilegitimidade da Requerente, a qual, não sendo sujeito passivo, mas mero repercutido (eventual) de facto, terá de demonstrar essa repercussão. E a prova desta só poderá fazer-se a partir dos actos tributários da liquidação da CSR. Não sendo os mesmos identificados, impossível se torna a demonstração da repercussão.
126.Atente-se que este Tribunal Arbitral não afasta a possibilidade de uma eventual repercussão, mas também não dispensa a sua demonstração, a qual depende - como se referiu - da identificação dos actos tributários originais de liquidação.
127.Neste ponto, releva o argumento da AT quando salienta o risco de o pedido de devolução de CSR poder ser feito por todos os intervenientes no processo de comercialização dos combustíveis.
128.Esse risco só é controlável na medida em que, sendo identificados os actos tributários originais de liquidação, possa ser conferida a efectiva repercussão do imposto, a qual determinará o titular do direito à sua devolução, com exclusão dos demais (na medida em que tenham repercutido, a montante e não tenham sido repercutidos, a jusante, se surgirem no referido processo).
129.Neste ponto, será excessivo pretender que seja a AT a identificar os actos tributários em causa por força de um dever genérico de colaboração. Esse dever não pode equivaler (como parece pretender a Requerente) a uma verdadeira inversão do ónus da prova. E, por outro lado, nada impede que os consumidores obtenham dos seus fornecedores cópias das DIC, ou que estes efectuem essa mesma diligência, caso não tenham sido eles a fazer tal declaração.
130.Atente-se, finalmente, a que a referida imprescindibilidade da identificação do acto tributário se justifica ainda enquanto elemento essencial para a conferência dos prazos relevantes.
131.De facto, a contagem do prazo para o pedido de revisão oficiosa (e subsequentemente para a apresentação do pedido arbitral), dependem da identificação dos actos tributários de liquidação. Sem estes será impossível fazer-se a necessária conferência. Trata-se, conforme se referiu anteriormente, de um elemento de prova cuja produção compete ao interessado.
132.Nestes termos, entende o tribunal que, a imprescindibilidade da identificação dos actos tributários cuja declaração de nulidade é requerida faz com que a inexistência dessa identificação torne a petição inepta por falta de objecto - art. 186.º e 576.º/2 do CPC ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT - para além de conduzir simultânea e subsidiariamente à ilegitimidade das Requerentes, tornando ainda impossível conferir da tempestividade do exercício do direito de revisão do acto e do pedido arbitral (art. 576º/2 e 3 e 577.º a) ex vi art. 29.º/1 e) do RJAT).
133.A procedência das excepções impede o conhecimento da demais matéria da presente acção arbitral.
V.Decisão
Em face do supra exposto, decide-se
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Considerar totalmente improcedente o pedido, por procedência das excepções de ineptidão da petição, ilegitimidade e caducidade do direito de acção, com as consequências legais;
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Condenar a Requerente no pagamento integral das custas do presente processo.
VI.Valor do processo
A Requerente indicou como valor da causa o montante de 46.522,94 €, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
VII.Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 2.142 € (dois mil cento e quarenta e dois euros), a pagar pela Requerente, nos termos dos art.os 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 12 de Março de 2025
O Árbitro
Rui M. Marrana
Texto elaborado em computador.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.