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Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Sílvia Oliveira e Dr. Fernando Marques Simões (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 28-01-2025, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... ... (doravante “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a apreciação da legalidade e anulação das liquidações adicionais de IVA n.ºs 2023..., 2023... e 2023..., respetivamente dos períodos de 2019/07, 2019/08 e 2019/10, no montante global de € 144.790,65 e respetivas liquidações de juros compensatórios n.ºs 2023..., 2023 ... e 2023..., no montante global de € 22.124,45.
A Requerente pede o reembolso do valor que considera indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
Subsidiariamente, a Requerente pede que se efectue reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 20-11-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 09-01-2025, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 28-01-2025.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e que se deve efectuar reenvio prejudicial para o TJUE.
Por despacho de 07-03-2025, foi decidido rejeitar a perícia requerida pela Requerente e dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
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A Requerente é um sujeito passivo de IVA, enquadrado no regime normal mensal de tributação, que desenvolve a sua atividade económica no setor farmacêutico, comercializando produtos farmacêuticos, químicos e farmacêuticos e produtos fitossanitários, integrando o Grupo B...;
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A Requerente comercializa os seus produtos farmacêuticos maioritariamente junto de hospitais que integram o Sistema Nacional de Saúde (“SNS”);
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O Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde e a Indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA um Acordo, a que a Requerente aderiu (anexo 2 ao RIT, cujo teor se dá como reproduzido);
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Nos termos da cláusula 5.ª do Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA e da declaração de adesão, a Requerente concretizou a sua contribuição trimestralmente na proporção da quota de mercado do ano anterior, mediante a emissão de notas de crédito em benefício das entidades do SNS e que compensaram ou liquidaram as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades;
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Com referência aos períodos de tributação de Julho, Agosto e Outubro de 2019, ao abrigo do Acordo entre o Estado Português e a APIFARMA, a Requerente emitiu notas de crédito, que, refletindo a redução do preço inicialmente praticado na venda de bens a entidades que integram o SNS;
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A Requerente emitiu notas de crédito no total de € 2.557.968,18, com bases tributáveis no total de € 2.413.177,53 e com IVA no valor de € 144.790,65, nos termos do quadro que segue:
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Nas Declarações Periódicas de IVA de Julho, Agosto e Outubro de 2019, a Requerente regularizou a seu favor o montante total de € 144.790,65;
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Foi efectuada uma inspecção tributária à Requerente, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2022..., de 27 de Outubro de 2022, da qual resultaram correções em sede de IVA no montante global de € 144.790,65, referentes a imposto que, alegadamente, a Administração Tributária entendeu ter sido indevidamente regularizado a favor da Requerente, relevado no campo 40 das declarações periódicas de Julho, Agosto e Outubro de 2019;
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Nessa inspecção tributária foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) – cfr. cópia do referido relatório de inspeção tributária, que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:
V. Descrição dos factos e fundamentos das correções/irregularidades
V.1 CORREÇÃO DO IMPOSTO – IVA
V.1.1 A SUSTENTABILIDADE DO SISTEMA NACIONAL DE SAÚDE (SNS), A CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA (CEIF) E O ACORDO ENTRE O ESTADO E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA (ACORDO)
Enquadramento Legal da contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica (CEIF)
A Lei do Orçamento do Estado para 2015 (Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro) veio introduzir, através do seu artigo 168.º, o regime que cria a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica. Em matéria de liquidação e pagamento da CEIF, foi publicada a Portaria n.º 77-A/2015, de 16 de março, que aprovou o modelo de declaração da CEIF - Declaração Modelo 28 - e as respetivas instruções de preenchimento.
A CEIF é devida pelas entidades que procedam à primeira alienação a título oneroso, em território nacional, de medicamentos de uso humano, sejam elas titulares de autorização ou registo de introdução no mercado, ou seus representantes, intermediários, distribuidores por grosso ou apenas comercializadores de medicamentos ao abrigo de autorização de utilização excecional, ou de autorização excecional.
A base tributável da contribuição é obtida a partir do total das vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre (n.º 1 do artigo 3.º), sujeita à taxa aplicável consoante o tipo de medicamento, oscilando entre 2,5% e 14,3%. São deduzidas ao valor do montante da contribuição as despesas de investigação e desenvolvimento (n.º 4 do artigo 3.º) desde que realizadas em território nacional e devidas e pagas a contribuintes portugueses e até ao limite da contribuição.
A Declaração Modelo 28 deve ser preenchida e enviada pelos sujeitos passivos não isentos da CEIF por transmissão eletrónica de dados (no Portal das Finanças) durante o mês seguinte ao trimestre a que respeita a liquidação da contribuição, considerando-se a Declaração apresentada na data da sua submissão. O pagamento
da CEIF é feito através da referência de pagamento gerada após a submissão da Declaração Modelo 28.
A receita obtida com a contribuição é consignada ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), gerido pela Administração Central do Sistema de Saúde I.P. (ACSS), constituindo sua receita própria.
O artigo 312.º, da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (OE-2019) refere que “mantém-se em vigor em 2019 a contribuição extraordinária sobre a indústria farmacêutica, cujo regime foi aprovado pelo artigo 168.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, na sua redação atual.”
Ao abrigo do n.º 2 do artigo 5.º do Regime da CEIF encontram-se isentas do pagamento da contribuição as entidades que adiram, individualmente e sem reservas, mediante declaração da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P.( INFARMED) ao acordo estabelecido entre o Estado Português e a indústria farmacêutica com vista à sustentabilidade do SNS, mediante a fixação de valores máximos para a despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica.
Enquadramento Legal do Acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica (ACORDO)
Em 15 de março de 2016, foi assinado um Acordo entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica com o intuito de atingir os objetivos orçamentais de despesa pública com medicamentos em ambulatório, incluindo subsistemas, e hospitalar do SNS com vista a garantir a sustentabilidade do SNS e no qual é determinado o valor da contribuição financeira a cargo das empresas aderentes (200 milhões de euros) assim como o nível dos limites das datas das dívidas vencidas e não pagas que o Ministério da Saúde se compromete a liquidar em cada exercício.
Este acordo foi alvo de aditamento em 3 de fevereiro de 2017, produzindo efeitos a 1 de janeiro, e em 30 de abril de 2019, foi assinado um novo acordo cuja cláusula única prevê: “O Acordo celebrado no dia 15 de março de 2016 e referente ao triénio 2016-2018, entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde e a indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA, é aplicado para o ano de 2019 nos mesmos termos e condições que vigoraram no ano de 2018, sendo a adesão por parte das empresas da indústria farmacêutica realizada nos termos da Cláusula 4 (declaração de adesão ao Acordo) do Acordo de 2016.”
As empresas da Indústria Farmacêutica aderentes ao Acordo aceitam, por essa via, colaborar no esforço de sustentabilidade da despesa pública em medicamentos, mediante o pagamento de uma contribuição na parte que exceder os objetivos de despesa pública com medicamentos. Em contrapartida, o Ministério da Saúde compromete-se, entre outras medidas de simplificação administrativa no mercado dos medicamentos, a pagar a dívida contabilizada e vencida das empresas aderentes.
Assim a indústria farmacêutica encontra-se sujeita, subjetiva e objetivamente à CEIF, estando isenta desta contribuição, se vierem a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo supramencionado entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica, mediante declaração do INFARMED, conforme decorre do n.º 2 do artigo 5.º do Regime da CEIF.
Para o exercício de 2019 a A..., Lda., subscreveu a declaração de Adesão ao Acordo, em 13 de maio de 2019 (vd. Anexo 2). No capítulo II desta declaração é definida a forma de repartição e apuramento da contribuição pela B..., Lda., que é efetuada por remissão ao Regime da CEIF, nos seguintes termos:
“3. A repartição da contribuição devida pela Indústria Farmacêutica por cada empresa titular de autorização de introdução no mercado de medicamentos ou empresa representante local ou responsável pela comercialização de medicamentos em Portugal, conforme definido pela APIFARMA, far-se-á nos seguintes termos:
3.1. A contribuição de cada empresa, associada e aderente, será calculada pela aplicação de percentagens sobre a despesa pública com medicamentos.
3.2. As percentagens a aplicar são as constantes no Regime de Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, aprovadas pelo artigo 312.º, da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro.
4.O apuramento anual previsto n.º 7 da cláusula 3.ª do Acordo de 2016 é realizado com base nos valores da despesa pública com medicamentos no SNS no ano de 2019 fornecidos pelo INFARMED, sendo-lhe aplicável as taxas previstas no Regime de Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica no artigo 312.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, até ao limite que resultaria da aplicação da referida
Lei ao total do ano de 2019, para cada empresa aderente ao Acordo.”
A esta contribuição é deduzido o valor das despesas de investigação e desenvolvimento (n.º 5 da cláusula 3.ª do Acordo assinado em 15 de março de 2016).
É ainda definido na declaração de adesão as formas de pagamento da contribuição, nos seguintes termos:
“5. Compete a cada empresa aderente proceder à liquidação e pagamento da contribuição devida, com base no apuramento e repartição efectuada.
6.O pagamento da contribuição pode ser feito das seguintes formas:
6.1. Emissão de notas de crédito correspondentes ao valor devido apurado, emitidas a favor das entidades do SNS, proporcionalmente ao valor por si facturado a estas entidades, no período respectivo, nos termos da Cláusula 5.ª do Acordo de 2016. As notas de crédito serão de imediato compensadas, por liquidação das facturas mais antigas, vencidas e não pagas. A nota de crédito terá obrigatoriamente a menção ao acordo e dela será enviada cópia à ACSS, ao cuidado do Departamento de Gestão Financeira (DGF), e à APIFARMA.
6.2 Transferência bancária para o NIB ....”
Ou seja, nos casos em que as empresas farmacêuticas vendam medicamentos a hospitais do SNS, a contribuição financeira pode ser paga mediante a emissão de notas de crédito. Na prática, o que isto significa é que a empresa farmacêutica tem de emitir notas de crédito para encontro de contas com os valores em dívida aos hospitais, de modo a reduzir o montante devido pelos hospitais, pela aquisição de medicamentos às empresas farmacêuticas.
Por sua vez, no caso de medicamentos vendidos a grossistas ou/em farmácias a consumidores finais, o valor da contribuição financeira é pago através de transferência bancária a favor da ACSS.
Comparação entre a CEIF e o valor resultante da adesão ao Acordo
O princípio da igualdade concretiza-se na proibição do legislador adotar um tratamento desigual para um grupo de destinatários da norma em relação a outro grupo de destinatários, não obstante a inexistência de qualquer diferença justificativa do tratamento desigual.
Como se expôs anteriormente, a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF) criada em 2015 e os Acordos estabelecidos entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica desde 2012, têm ambos como objetivo garantir a sustentabilidade orçamental e financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS), baixando a despesa pública em medicamentos.
Ora, se estas contribuições financeiras têm os mesmos objetivos, é de esperar que as suas repercussões na esfera das empresas que pagam a CEIF e das empresas que, alternativamente por aderirem aos acordos, procedem ao pagamento de uma contribuição financeira (muito embora na maioria dos casos a mesma se concretiza através da emissão de notas de crédito que impliquem menos recebimentos das instituições do SNS), sejam as mesmas do ponto de vista económico e fiscal.
Se os objetivos, assim como a forma de apuramento, se apresentam como sendo idênticos, então o seu efeito financeiro também tem de ser, rigorosamente idêntico, não podendo o contribuinte através da sua operacionalização obter qualquer vantagem.
Enquadramento do acordo e sua contabilização pela A..., Lda.
Durante o ano de 2019 a A..., Lda., emitiu notas de crédito relativas às seguintes comunicações da APIFARMA, pela sua adesão ao ACORDO:
Recolheram-se cópia das referidas comunicações da APIFARMA (vd. Anexo 3), relação das notas de crédito emitidas pela A..., Lda. (Vd. Anexo 4), cópia exemplificativa de notas de crédito emitidas (Vd. Anexo 5) e sua contabilização.
Constatou-se que o sujeito passivo emitiu notas de crédito no total de 2.557.968,18 € (com bases tributáveis no total de 2.413.177,53 € e com IVA no valor de 144.790,65€):
A A..., Lda. refletiu contabilisticamente, as contribuições/notas de crédito emitidas em 2019, resultantes do ACORDO:
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A débito da conta #2433000 IVA Liquidado pelo montante do IVA regularizado a seu favor mencionado nas notas de crédito, no total de 144.790,65 €;
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A débito da conta #71811- Vendas – Descontos e Abatimentos- no total de
2.413.177,53 €;
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A crédito da conta #2111100 Hospitais do SNS, pelo valor total das notas de crédito.
Em termos declarativos nas Declarações Periódicas de IVA o sujeito passivo regularizou a seu favor o montante total de 144.790,65€, nos períodos de julho, agosto e outubro de 2019.
Na prática isto significa que a A..., Lda., considerou uma contribuição no montante de 6.037.676,71€ como contribuição financeira, valor inferior ao que estava obrigada por via do valor aceite referente ao Acordo da APIFARMA (6.182 467,36 €, - vd. quadro acima).
(...)
X. Direito de Audição
(...)
Em relação às alegações do sujeito passivo reiteramos o já mencionado no projeto de relatório.
Em 2015 entrou em vigor a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), cujo principal objetivo é o de garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, na vertente dos gastos com medicamentos.
A CEIF resulta da aplicação de uma determinada taxa sobre o volume de vendas de medicamentos para o SNS e incide sobre um grupo específico de produtores e comercializadores da indústria farmacêutica.
Paralelamente à existência da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), em 2016 (à semelhança do que se verificou em anos anteriores desde 2012), foi assinado um Acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde e a Indústria Farmacêutica que visa contribuir para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
As empresas que aderiram a esse Acordo, através da APIFARMA, comprometem-se a colaborar para atingir os objetivos orçamentais anuais de despesa pública com medicamentos em ambulatório e hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, com vista a garantir a sustentabilidade do SNS.
À semelhança da CEIF, esta contribuição tem a natureza jurídica de contribuição financeira, uma vez que existe um benefício na sua aplicação - a receita vai permitir a sustentabilidade do SNS. Além disso, permite que as necessidades financeiras associadas ao SNS sejam satisfeitas junto dos produtores e comercializadores da indústria farmacêutica (liquidação das dívidas vencidas e não pagas a estes fornecedores de medicamentos).
Neste âmbito, a APIFARMA tem como função comunicar às empresas aderentes as respetivas contribuições a pagar trimestralmente, conforme estabelecido no Acordo e no Anexo de adesão, sendo essa contribuição calculada com base na classificação dos medicamentos e nos valores do SNS.
Tanto a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica como os Acordos estabelecidos entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica têm como objetivo comum garantir a sustentabilidade orçamental
e financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS), baixando a despesa pública em medicamentos.
Deste modo, tanto as empresas que pagam Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica como as empresas que, em alternativa, aderirem aos Acordos devem contribuir de uma forma equitativa, face às vendas que efetuaram, para a sustentabilidade orçamental e financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Na legislação que aprovou a CEIF existe uma norma que isenta do seu pagamento as empresas aderentes aos Acordos, mas os Acordos fazem remissão para o Regime da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, relativamente à repartição e apuramento da contribuição pelos aderentes. Isto é, nenhuma empresa que reúna as condições de obrigatoriedade de contribuir para o SNS pode deixar de o fazer.
Ou seja, as empresas que efetuam a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica e as empresas aderentes aos Acordos e contratos de Adesão, apuram de forma idêntica a contribuição que têm de efetuar, sendo que a liquidação e pagamento se processam de forma diferente.
Dado as duas contribuições prosseguirem os mesmos objetivos, serem apuradas de forma idêntica e contribuírem, embora de uma forma não direta, para a melhoria da situação económica e financeira das empresas a ela sujeitas (pela existência de contrapartidas como sejam o saneamento das dívidas dos hospitais, diminuição das barreiras administrativas na política do medicamento…) é espectável e indispensável que ambas as contribuições sejam equivalentes nos resultados obtidos e respeitem o princípio da igualdade dos tributos.
Se os objetivos, assim como a forma de apuramento, se apresentam como sendo idênticos, então o seu efeito financeiro também tem de ser rigorosamente idêntico, não podendo o contribuinte através da sua operacionalização obter qualquer vantagem.
Encontra-se estipulado no Acordo assinado entre o Estado Português e a Indústria Farmacêutica (APIFARMA), assim como na declaração de adesão e comunicados efetuados pela APIFARMA aos seus associados que o pagamento da contribuição se realiza de duas formas alternativas:
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Emissão de nota de crédito no montante da contribuição apurada (proporcionalmente ao valor faturado a cada entidade do SNS no período objeto de pagamento) contra a liquidação de faturas (emitidas ao SNS) não pagas e vencidas por critério de antiguidade;
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Pagamento por transferência bancária a favor da ACSS da contribuição apurada, no caso do valor das faturas não pagas e vencidas ser inferior ao valor da contribuição.
Assim, só no caso do valor das faturas emitidas ao SNS que se encontram em dívida para a empresa aderente ser inferior ao valor apurado para efeitos de contribuição, se verificará um fluxo financeiro de saída, da empresa aderente para a ACSS e consequentemente um recebimento efetivo por parte desta entidade a título de
contribuição no âmbito do Acordo.
Caso contrário, apenas se verifica uma diminuição da dívida do SNS para com a empresa aderente em valor equivalente ao da contribuição por via do efeito da emissão das notas de crédito.
Quer isto dizer que, com base no acordo, a A... em vez de entregar ao Estado o quantitativo a que está obrigada, vai receber menos esse montante por parte dos seus clientes (hospitais do SNS).
Como está bem claro no Acordo a forma de pagamento não consubstancia qualquer desconto relativamente a vendas efetuadas anteriormente.
Os efeitos obtidos pelo Estado são equivalentes em termos de resultado final (quer sejam emitidas notas de crédito quer haja pagamentos efetivos): no primeiro caso, diminui o saldo da dívida do SNS em medicamentos;
no segundo caso, o montante em dinheiro recebido permitirá fazer face aos compromissos financeiros do SNS, ou seja, com grande probabilidade, solver dívidas dos fornecedores de medicamentos.
Em ambos os casos, o objetivo de melhorar a sustentabilidade financeira e orçamental do SNS é atingido, assim como se espera também que o impacto económico e financeiro nas empresas aderentes seja equivalente. Se assim não fosse, ou seja, se o resultado económico não fosse igual para ambos os casos (menos recebimento = não pagamento), violar-se-iam os princípios da equivalência e da igualdade subjacentes ao pagamento da contribuição a favor do Estado, entre aderentes ao Acordo consoante esses tivessem créditos vencidos ou não ao SNS.
Para que essa desigualdade não aconteça, a nota de crédito deve funcionar apenas e tão só como um documento de quitação dos créditos não pagos e vencidos, e não como um documento de desconto do valor da faturação anteriormente emitida. Em concreto, o que se verifica é uma liquidação das faturas mais antigas em dívida e não uma retificação do valor tributável das mesmas, ou seja, o pagamento da contribuição por parte da A... concretiza-se através do não recebimento dos valores faturados mais antigos, vencidos e não pagos.
O Código do IVA, no seu artigo 1.º, n.º 1, sujeita a imposto sobre o valor acrescentado as transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo agindo como tal.
Para aferir da sujeição a imposto das operações, importa verificar se estão reunidas as condições objetivas e subjetivas da incidência do imposto sobre o valor acrescentado. No caso em apreço, a operação de pagamento da contribuição teria de se qualificar como prestação de serviços ou de uma entrega de bens a título oneroso e ser efetuada por um sujeito passivo agindo como tal.
Dado que a contribuição financeira prevista pelo Acordo não configura a contrapartida de um valor individualizável prestado pela ACSS por intermédio das entidades do SNS às empresas da indústria farmacêutica em relação às quais se possa considerar as importâncias entregues como a respetiva contraprestação ou sinalagma, está obviamente ausente o elemento objetivo que compõe o âmbito de incidência do IVA.
Neste sentido tem-se pronunciado o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), delimitando perante prestações de serviços para efeitos de IVA, que os montantes entregues constituam uma contrapartida efetiva de um serviço individualizável, fornecido no âmbito de uma relação jurídica em que sejam trocadas prestações recíprocas.
É o caso do acórdão Apple & Pear (processo n.º 102/86 do TJUE) onde estava em causa um organismo de direito público, o Apple & Pear Development Concil, que tinha por missão promover a produção de pêra e maçã de Inglaterra e País de Gales e cuja atividade era financiada por contribuições obrigatórias, devidas pelos produtores em função da área de cultivo. O TJUE entendeu não ser tributável a atividade levada a cabo pelo Apple & Pear Development Concil e isto por duas razões.
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mostra-se impossível identificar o beneficiário concreto do serviço prestado pela entidade pública por ter uma atividade difusa que aproveita a todo o setor.
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falta uma relação clara entre as contribuições devidas pelos produtores e as vantagens que aqueles serviços de promoção lhes possam trazer.
Sérgio Vasques1, de entre toda a jurisprudência comunitária existente sobre esta matéria, dá uma ênfase especial a este acórdão.
Sobre esta temática, no processo C-13/93, caso Tolsma, o TJUE só considera que uma prestação de serviço é efetuada a título oneroso, e assim sujeita a IVA, “se existir entre o prestador e o beneficiário uma relação jurídica durante a qual são transacionadas prestações recíprocas constituindo a retribuição recebida pelo prestador o contravalor efetivo fornecido ao beneficiário.”
Assim, sendo a contribuição financeira/entrega de meio monetários pelos aderentes ao Acordo à entidade pública que centraliza as operações financeiras do SNS, a ACSS, não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA, tratando-se, por conseguinte, de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto.
Refira-se novamente que, através da emissão das notas de crédito, a A... apenas liquida uma parte dos créditos em dívida por parte do SNS em montante igual ao valor da contribuição que teria de entregar ao Estado (caso não estivesse no Acordo).
Ora esta situação não se enquadra nas situações previstas no n.º 7 do artigo 29.º do CIVA em conjugação com n.º 2 do artigo 78.º do mesmo diploma, pois, em termos práticos, a operação de pagamento da contribuição não se consubstancia num abatimento ou desconto sobre o valor das suas vendas uma vez que não se verifica
uma diminuição do valor tributável das operações ativas anteriormente realizadas conforme previsto no artigo 16.º do CIVA.
O valor da faturação anteriormente realizada ao SNS e sobre a qual o sujeito passivo liquidou o respetivo IVA, não sofreu qualquer diminuição, apenas foi objeto de liquidação financeira por parte do SNS através do mecanismo da emissão de um crédito em seu favor, a título de contribuição financeira (leia-se a título de substituição da CEIF – contribuição a que a A... está sujeita, face à atividade exercida).
A emissão destas notas de crédito traduz o pagamento da contribuição financeira a que a A... está obrigada e como tal nunca poderão dar lugar à regularização de IVA, por parte do fornecedor, pois não tem enquadramento nas situações previstas no artigo 78.º ou em qualquer outro artigo do Código do IVA.
A situação em que o credor prescinde do recebimento da contraprestação, em substituição de um não pagamento, não é uma situação em que tenha havido uma alteração do valor tributável da operação que ocorreu anteriormente, tal como se verificaria se estivéssemos perante um desconto ou devolução dos produtos anteriormente faturados. Também não se trata de um caso de incobrabilidade do valor faturado por um dos processos referidos no artigo 78.º n.º 7 ou no n.º 4 do artigo 78.º-A, ambos do CIVA.
É a própria forma de apuramento da contribuição financeira em favor do SNS que, como já foi referido, segue a metodologia preconizada na CEIF, a qual determina que a sua base tributável incide sobre o total das vendas de medicamentos realizadas em cada trimestre, sendo que esse valor de venda “corresponde à parte do preço de venda ao público, deduzido do imposto sobre o valor acrescentado (IVA).” (alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do regime da CEIF).
Ora, se a contribuição financeira a liquidar ao ACSS se materializa em meios monetários, sendo por isso uma operação excluída da sujeição a IVA, então, forçosamente a nota de crédito que a concretiza não tem enquadramento em sede deste imposto.
As notas de crédito emitidas no âmbito do ACORDO, reportam-se à contribuição financeira devida nos termos do mencionado Acordo, e são equivalentes. em termos de produção de efeitos a uma entrega em dinheiro por parte da A... ao Estado, tal como o faria se pagasse a CEIF.
Considerando que a emissão das notas de crédito foi a forma escolhida pela A... PORTUGAL para efetuar o pagamento da contribuição devida pelo referido ACORDO, procedeu relativamente ao ano de 2019 à emissão de notas de crédito aos hospitais do SNS, no montante de €2.557.968,18 (2.413.177,53 +144.790,65) que inclui
regularização do IVA, no montante de €144.790,65.
A emissão dessas notas de crédito não podem ser objeto de liquidação de IVA dada a natureza da operação que lhe está subjacente: “NC no âmbito do Acordo celebrado entre os Ministérios das Finanças, da Economia e da Saúde e a Indústria Farmacêutica , para o ano de 2019” (ver anexo n.º5).
A A... Portugal ao proceder assim à emissão de notas de crédito como se fosse um abatimento ao valor das suas vendas, permitiu que esta empresa efetuasse sob a forma de IVA, a recuperação do valor a que está obrigada a entregar ao Estado em termos de CEIF (leia-se no caso em concreto: contribuição estipulada no Acordo).
CONCLUSÃO
Conclui-se assim, que a empresa deduz / regulariza indevidamente IVA a seu favor, infringindo os artigos 19º e 20.º do Código do IVA, uma vez que a contribuição financeira devida pelos aderentes ao Acordo, não constitui a contrapartida de uma prestação de serviços ou transmissão de bens, tal como definidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do CIVA, tratando-se de uma operação fora do âmbito de aplicação do imposto.
Assim, analisado o teor da exposição apresentada pela A..., neste procedimento inspetivo, no âmbito do exercício do direito de audição, conclui-se que a factualidade apresentada e os argumentos expendidos não são suscetíveis de alterar a posição adotada pela AT e espelhada no projeto de relatório, pelo que se entende que não deverão ser alteradas, passando a definitivas, as correções de IVA, para o exercício de 2019, referidas no Capítulo V, no valor de 144 790,65 €, nos seguintes períodos de imposto:
Vai ser elaborado o Documento de Correção DCU para o exercício 2019.
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Em concretização das referidas correções, foram emitidas as liquidações adicionais de IVA n.ºs 2023 ..., 2023 ... e 2023 ..., respetivamente dos períodos de 2019/07, 2019/08 e 2019/10, no montante global de € 144.790,65 e respetivas liquidações de juros compensatórios n.ºs 2023..., 2023... e 2023 ..., no montante global de € 22.124,45 (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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Em 14-11-2023, a Requerente pagou as quantias liquidadas (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
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A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações, nos termos que constam do documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A reclamação graciosa, que tem o n.º ...2024..., foi indeferida por despacho de 17-04-2024, proferido pelo Chefe de Divisão de Serviço Central, da Unidade dos Grandes Contribuintes, com os fundamentos que constam do documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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A Requerente apresentou recurso hierárquico da decisão da reclamação graciosa nos termos que constam do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;
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O recurso hierárquico não foi decidido até 18-11-2024, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto
2.2.1. Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
2.2.2. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo, para além de afirmações das Requerentes que não são questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto.
3. Matéria de direito
A Requerente é uma empresa da indústria farmacêutica associada da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica, a APIFARMA, e que, no ano de 2019, vendeu fármacos a entidades do Serviço Nacional de Saúde.
A Requerente aderiu ao acordo entre o Estado Português, representado pelos Ministros das Finanças, da Economia e da Saúde e a Indústria Farmacêutica, representada pela APIFARMA, previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º da CEIF (doravante designado como “acordo APIFARMA”).
Para efeito de pagamento da «contribuição de acordo com o volume de vendas» prevista no n.º 1 deste artigo 5.º, a Requerente emitiu notas de crédito em benefício das entidades do SNS e que compensaram ou liquidaram as faturas mais antigas anteriormente emitidas a estas entidades, no total de € 2.557.968,18, com bases tributáveis no total de € 2.413.177,53 e com IVA no valor de € 144.790,65.
A Requerente regularizou a seu favor o IVA no valor de € 144.790,65, nas liquidações dos períodos de Julho, Agosto e Outubro de 2019, por entender, em suma, que o que pagou a título daquela «contribuição» constitui uma diminuição da base tributável, para efeitos do n.º 7 do artigo 29.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º do CIVA.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, em inspecção que efectuou à Requerente, entendeu, em suma, que o princípio da igualdade impõe que «as repercussões na esfera das empresas que pagam a CEIF e das empresas que, alternativamente por aderirem aos acordos, procedem ao pagamento de uma contribuição financeira (muito embora na maioria dos casos a mesma se concretiza através da emissão de notas de crédito que impliquem menos recebimentos das instituições do SNS), sejam as mesmas do ponto de vista económico e fiscal».
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
– as entidades aderentes ao Acordo aceitam, por essa via, colaborar no esforço de sustentabilidade da despesa pública do SNS na aquisição de medicamentos, mediante o pagamento de uma contrapartida, denominada de contribuição, na parte que exceda os objetivos de despesa pública com medicamentos:
– na medida em que o valor tributável de uma operação sujeita a IVA sofra alterações, o princípio da neutralidade do IVA impõe o correspondente ajustamento ao imposto autoliquidado pelo sujeito passivo, nos termos do artigo 90.º da Directiva n.º 2006/112/CE e do artigo 78.º, n.ºs 1 e 2, do CIVA;
– a contrapartida assumida pelas entidades que aderiram voluntariamente ao Acordo celebrado entre a APIFARMA e o Estado português, designada nessa sede de contribuição, concretizada através da emissão das referidas notas de crédito, não pode ser qualificada como uma prestação tributária, na forma de contribuição financeira, à luz do artigo 4.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária;
– a obrigação decorrente do Acordo celebrado entre a APIFARMA e o Estado português não tem objetivos nem tão-pouco forma de apuramento idênticos à CFEI, visando a regularização das dívidas vencidas por parte das entidades que integram o SNS e de promoção das condições para o acesso dos doentes aos medicamentos que se mostrem inovadores, compromissos que não se encontram subjacentes à CFEI;
– o pagamento de contribuição financeira não pode ser realizado através de compensação sem que haja base legal para o efeito, sob pena de violação dos artigos 40.º da LGT e 90.º-A do CPPT;
– o entendimento da Administração Tributária colide ainda com a reserva de função legislativa na criação de contribuições financeiras: à luz dos artigos 103.º e 165.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), as contribuições financeiras a favor de entidades públicas apenas podem ser criadas por lei ou decreto-lei, não podendo resultar de uma mera relação contratual;
– a contribuição referida não é uma contrapartida de um valor individualizável devido pela Administração Central do Sistema de Saúde por intermédio das entidades que integram o SNS aos sujeitos passivos de IVA do setor farmacêutico, tal pagamento tem na sua génese uma transmissão de bens a favor das entidades do SNS e encontra-se intrinsecamente conexo com tais transmissões;
– esse valor está intrinsecamente ligado a operações de transmissões de bens sujeitas a IVA, como o respetivo montante é creditado aos valores em dívida;
– a jurisprudência do TJUE dá suporte ao entendimento da Requerente.
No presente processo a Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida no RIT, dizendo ainda, em suma:
– quando se concede um desconto na venda de um produto ou na prestação de um serviço, no momento da transação, para efeitos do cálculo do IVA a liquidar, ao preço inicial da operação, deduz-se o valor do desconto concedido;
– nas situações em que o desconto é concedido após a emissão da fatura, seja qual for a natureza desse desconto - comercial ou financeiro -, há a possibilidade de corrigir o valor inicial tributável da operação. A regularização de IVA, nestas circunstâncias, é uma opção do fornecedor ou prestador dos serviços;
– ao contrário do que sucede nos descontos concedidos no momento da emissão da fatura, não existe nenhuma obrigatoriedade do valor do desconto concedido pós-fatura afetar o montante de IVA liquidado;
– a regularização de imposto é uma faculdade, que pode ser exercida nos termos e prazos estabelecidos no artigo 78.º, n.ºs 2 e 5 do Código do IVA.
– no caso concreto, a faturação é inicialmente efetuada aos hospitais sem qualquer desconto ou abatimento, não se vinculando as empresas aderentes ao Acordo a qualquer anulação ou redução de preços;
– as notas de crédito posteriormente emitidas e que aqui estão em causa referem-se à contribuição financeira, que é contratualmente estabelecida com a indústria farmacêutica, calculada segundo regras que remetem e que vêm previstas no regime da CEIF;
– a nota de crédito retifica a conta corrente (e não uma fatura concreta) das entidades do SNS sobre dívidas de anos anteriores vencidas e não pagas;
– a contribuição efetuada pela Requerente ao Estado não possui qualquer nexo de causalidade com o preço dos medicamentos anteriormente vendidos;
– as notas de crédito emitidas não são mais do que um recibo de quitação face aos montantes em dívida e por essa via objeto de pagamento, operando-se, no fundo, um “encontro de contas”;
– se não tivesse aderido ao ACORDO, a Requerente teria de pagar a CEIF, nos termos do citado regime, e, nesse caso, não haveria lugar à regularização de IVA, uma vez que se trata de uma contribuição especial, fora do âmbito do IVA, que não dá lugar a uma redução do valor tributável das operações efetuadas.
3.2. Apreciação da questão
A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2015) aprovou, no seu artigo 168.°, o regime que criou a Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF).
No artigo 5.º da CEIF estabelece-se o seguinte:
Artigo 5.º
Acordo para sustentabilidade do SNS
1. Pode ser celebrado acordo entre o Estado Português representado pelos Ministros das Finanças e da Saúde, e a indústria farmacêutica visando a sustentabilidade do SNS através da fixação de objetivos de valores máximos de despesa pública com medicamentos e de contribuição de acordo com o volume de vendas das empresas da indústria farmacêutica para atingir aqueles objetivos.
2. Ficam isentas da contribuição as entidades que venham a aderir, individualmente e sem reservas, ao acordo a que se refere o n.º 1 nos termos do número seguinte, mediante declaração do INFARMED Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
3. A isenção prevista no presente artigo produz efeitos a partir da data em que as entidades subscrevam a adesão ao acordo acima referido e durante período em que este se aplicar em função do seu cumprimento, nos termos e condições nele previstos.
4. O texto do acordo previsto no n.º 1 deve ser publicitado no sítio na internet do INFARMED Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P.
A questão essencial que é objecto deste processo é, assim, a de saber se a emissão de notas de crédito, que se reconduz a recebimento de menor contrapartida pela venda de medicamentos, constitui diminuição da base tributável do IVA, permitindo a regularização a favor do sujeito passivo nos termos dos artigos 29.º, n.º 7, e 78.º, n.ºs 1 e 2, do CIVA.
Importa também apreciar a questão da compatibilidade ou não do regime previsto no artigo 5.º da CEIF com o princípio da igualdade, que é colocada no RIT.
Estas questões já foram apreciadas em decisões arbitrais, designadamente as proferidas nos processos 216/2023-T e 644/2024-T, que se acompanham, no essencial.
3.2.1. Natureza da obrigação dos aderentes ao acordo APIFARMA e princípio da igualdade
Antes de mais, importa esclarecer que, nos casos em que há adesão, sem reservas, ao acordo para a sustentabilidade do SNS previsto no artigo 5.º da CEIF, não se constitui qualquer relação tributária, pois a tal obsta a isenção prevista no n.º 2 do mesmo artigo, quer se entenda que a norma que a prevê é um elemento negativo de incidência ( [1] ), quer se considere que a isenção é um facto impeditivo autónomo e originário, que obsta à eficácia constitutiva do facto tributário, apesar da verificação de todos os seu elementos ( [2] ).
Não tendo natureza tributária a contribuição prestada ao abrigo do acordo APIFARMA, ela não se confunde com a CEIF, não é uma forma alternativa de pagamento desta contribuição financeira, pois, para os aderentes, não chega a constituir-se uma obrigação tributária.
Assim, como se diz na decisão arbitral proferida no processo n.º 216/2023-T:
– não é irrelevante se o pagamento é feito ao abrigo do Regime da CEIF, ou nos termos dos Acordos APIFARMA, nem tão pouco é irrelevante qual o método de pagamento escolhido pelas entidades aderentes, ao abrigo deste último, uma vez que se trata de regimes substantivamente diferentes, com implicações distintas, não existindo quaisquer indícios de que o legislador pretendia que assim não fosse.
– a letra da lei é um elemento irremovível da interpretação, não podendo em circunstância alguma, quer seja por lapso ou desídia do legislador, ser afastado, conforme resulta expressamente do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil que consagra que “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (…).”
– e, de acordo com o elemento literal, resulta que o legislador, ao criar a Contribuição extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica, não pretendeu que a mesma substituísse as disposições do Acordo APIFARMA em vigor.
– do teor literal dos regimes não se extrai que o custo para as entidades sujeitas à Contribuição Extraordinária tenha, ou deva, ser semelhante ao custo suportado pelas entidades aderentes ao Acordo APIFARMA.
Para além de não haver qualquer elemento literal de que se possa depreender que o encargo para as entidades que aderem ao acordo APIFARMA tenha de ser igual ao que suportam as que não aderem, afigura-se claro que há razão para tratamentos distintos dos aderentes e não aderentes, pois a adesão «sem reservas», que é exigida para a relevância do acordo, afastará tendencialmente a forte litigiosidade inerente à generalidade das imposições de natureza tributária (que tem existido também em relação à CEIF), dispensando o Estado de suportar os encargos com a administração da justiça necessária para resolver os litígios e permitindo-lhe que seja atingido mais rapidamente o objectivo da diminuição das despesas com medicamentos que são adquiridos pelas entidades do SNS.
Por isso, há razão para distinguir entre as duas situações a nível dos encargos para as empresas da indústria farmacêutica e para privilegiar as que aderem ao acordo APIFARMA, o que basta para afastar a violação do princípio da igualdade.
De resto, tendo natureza opcional o regime previsto no artigo 5.º da CEIF para quem adere ao acordo APIFARMA, o princípio da igualdade não exige que seja o mesmo o encargo suportado por quem adere e quem não adere ao regime, pois aderentes e não aderentes ficam, naturalmente, com obrigações diferentes, que são consequência da respectiva opção.
Para assegurar o princípio da igualdade em situações de opção, basta apenas que seja assegurada a identidade das condições de acesso ao regime opcional e não seja dado tratamento discriminatório, por um lado, a todos os que aderiram, e, por outro lado, a todos os que não aderiram, discriminação essa o que, neste caso, não é sequer objecto de controvérsia.
Assim, a pluralidade de regimes e as diferenças deles resultantes não são incompatíveis com o princípio da igualdade.
3.2.2. Questão da violação do princípio da neutralidade
É nesta perspectiva de a contribuição prevista no acordo APIFARMA não ter natureza tributária que há que apreciar a questão de saber se as notas de crédito emitidas pela Requerente consubstanciaram uma redução do valor tributável em IVA das transmissões efectuadas pela Requerente susceptível de redução, nos termos do CIVA e também da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, que é de hierarquia superior ao CIVA, por força do preceituado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Os artigos 73.º, 78.º, 79.º e 90.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho estabelecem o seguinte:
Artigo 73.º
Nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.º a 77.º, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações.
Artigo 78.º
O valor tributável inclui os seguintes elementos:
a) Os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos, com excepção do próprio IVA;
b) As despesas acessórias, tais como despesas de comissão, embalagem, transporte e seguro, exigidas pelo fornecedor ao adquirente ou ao destinatário.
Para efeitos da alínea b) do primeiro parágrafo, os Estados-Membros podem considerar despesas acessórias as que sejam objecto de convenção separada.
Artigo 79.º
O valor tributável não inclui os seguintes elementos:
a) As reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado;
b) Os abatimentos e bónus concedidos ao adquirente ou ao destinatário, no momento em que a operação se realiza;
c) As quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso das despesas efectuadas em nome e por conta destes últimos, e que sejam registadas na sua contabilidade em contas de passagem.
O sujeito passivo deve justificar o montante efectivo dos encargos referidos na alínea c) do primeiro parágrafo e não pode proceder à dedução do IVA que eventualmente tenha incidido sobre eles.
Artigo 90.º
1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.
Os artigos 16.º, 29.º, n.º 7, e 78.º, n.ºs 1 e 2, do CIVA estabelecem o seguinte, no que aqui interessa:
Artigo 16.º
Valor tributável nas operações internas
6 - Do valor tributável referido no número anterior são excluídos:
(...)
b) Os descontos, abatimentos e bónus concedidos;
(...)
Artigo 29.º
Obrigações em geral
(...)
7 - Quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão, deve ser emitido documento retificativo de fatura.
(...)
Artigo 78.º
Regularizações
1 - As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo.
2 - Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.
SÉRGIO VASQUES ensina:
Nos termos do artigo 79.º da Directiva IVA, o valor tributável exclui as reduções de preço resultantes de desconto por pagamento antecipado. Esta regra constitui mera projecção do princípio geral a que está subordinada no IVA a fixação do valor tributável: o IVA incide sobre o valor efectivo das operações tributáveis, pretendendo onerar o gasto real feito com a aquisição de bens e serviços, pelo que toda a redução de preço de que o adquirente beneficie deve ser expurgada do valor tributável, deva-se essa redução de preço à realização de pagamento antecipado ou a qualquer outro motivo. Em suma, o preço-alvo almejado pelo operador económico é irrelevante, só relevando o preço real.
É neste preciso sentido que o artigo 79° exclui do valor tributável os abatimentos e bónus que sejam concedidos ao adquirente no momento em que a se realize uma operação.
Com esta norma, mais ampla, pretende-se abranger toda a redução de preço facultada ao adquirente no momento em que se realiza uma operação tributável, qualquer que seja a sua forma ou designação. Intuitiva no que tem de mais importante, esta norma serve para distinguir entre as reduções do preço feitas até à realização da operação tributável e as reduções de preço que ocorram cm momento posterior. Se a redução do preço é feita até ao momento em que se realiza a operação, expurga-se a redução do valor tributável nos termos do artigo 79%; já se a redução se produz em momento posterior, e qualquer que seja a razão para o efeito, manda o artigo 90 que se reduza o valor tributável da operação em conformidade mas agora nas condições fixadas pelos estados-membros.
A esta luz, a emissão de notas de crédito pela Requerente, em cumprimento da sua obrigação decorrente do Acordo APIFARMA, reduzindo o montante da dívida das entidades do SNS, implica a efectiva diminuição do valor tributável da operação.
Como se diz nos acórdãos arbitrais proferidos nos processos n.º 217/2023-T e 644/2024-T:
– efetivamente, in casu, as associadas da APIFARMA, aderentes ao Acordo não dispõem da totalidade da contrapartida dos medicamentos vendidos, mas apenas de uma parte do montante final pago, após dedução dos montantes pagos no contexto do Acordo.
– por obediência ao princípio de prevalência da substância sobre a forma, consagrado, nomeadamente, como cânone de interpretação e aplicação das normas tributárias, no artigo 11.º, n.º 3, da LGT, impõe-se que se dê primazia à verdade material e à substância económica dos factos.
– o preço atribuído pela Requerente aos bens transmitidos encontra-se, por força do Acordo APIFARMA, sujeito a uma redução posterior, apurada em função das fórmulas de cálculo que constam daquele Acordo, pelo que se sabe antecipadamente que o preço dos bens será objecto de redução, apenas não se sabe de quanto no momento em que se realiza a transmissão. É uma situação de alguma forma próxima do ‘rappel’: No momento da operação tributável sabe-se que haverá abatimento ao preço, não se sabe é quanto;
– a contrapartida efectiva e final é determinada posteriormente ao momento da transmissão dos bens e contém, por virtude da adesão ao acordo APIFARMA, um abatimento em potência, faltando apenas determinar o respectivo valor;
– e o valor desse abatimento - como é bom de ver -, afecta determinantemente o valor tributável das operações tributáveis sobre que incide, reduzindo-o.
Para efectuar a regularização baseada em descontos determinados a posteriori, do tipo rappel, não é imprescindível que nas notas de crédito se faça referência às facturas, bastando que os sujeitos passivos identifiquem o período temporal a que se refere. ( [3] )
Estas conclusões são corroboradas pela jurisprudência do TJUE:
– acórdão do TJUE de 20-12-2017, processo C-462/16:
32 Em seguida, deve igualmente recordar-se que o artigo 90.º, n.º 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, obriga os Estados-Membros a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído, pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a Administração Fiscal não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao que o sujeito passivo recebeu (acórdão de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C-337/13, EU:C:2014:328, n.º 22 e jurisprudência referida).
34 No presente caso, resulta da decisão de reenvio que, por força da legislação nacional, a empresa farmacêutica tem de conceder descontos às empresas de seguros de saúde privados, relativamente aos produtos farmacêuticos sujeitos a prescrição médica cujo preço estas reembolsaram total ou parcialmente aos seus segurados, em função da percentagem de reembolso, nas mesmas proporções que as previstas para as empresas de seguro de saúde obrigatório. A Administração Fiscal não reconhece este desconto como uma redução do valor tributável.
35 Assim, em razão da referida legislação, a Boehringer Ingelheim Pharma pôde dispor de um montante que corresponde ao preço de venda destes produtos às farmácias, diminuído do referido desconto. Não seria, pois, conforme com a Diretiva IVA que a matéria coletável com base na qual é calculado o IVA devido pela empresa farmacêutica, enquanto sujeito passivo, fosse mais elevada do que o montante que esta acaba por receber. Se assim fosse, o princípio da neutralidade do IVA em relação aos sujeitos passivos, de que a empresa farmacêutica faz parte, não seria respeitado (v., neste sentido, acórdão de 24 de outubro de 1996, Elida Gibbs, C-317/94, EU:C:1996:400, n.º 28).
36 Por conseguinte, o valor tributável aplicável à Boehringer Ingelheim Pharma enquanto sujeito passivo deve ser constituído pelo montante correspondente ao preço a que vendeu os produtos farmacêuticos às farmácias, diminuído do desconto concedido às empresas de seguros de saúde privados quando estas tiverem reembolsado aos seus segurados as despesas que eles suportaram na compra dos referidos produtos.
39 (...) resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o artigo 90.o, n.º 1, da Diretiva IVA não pressupõe uma alteração posterior das relações contratuais, para esta disposição ser aplicável. Com efeito, esta obriga, em princípio, os Estados-Membros a reduzir o valor tributável, sempre que, depois de efetuada uma operação, o sujeito passivo não receba uma parte ou a totalidade da contraprestação.
46 (...) O desconto concedido, por força de uma lei nacional, por uma empresa farmacêutica a uma empresa de seguros de saúde privados implica, na aceção do referido artigo, uma redução do valor tributável a favor desta empresa farmacêutica, quando sejam efetuadas entregas de produtos farmacêuticos por intermédio de grossistas a farmácias que efetuam essas entregas a pessoas cobertas por um seguro de saúde privado que reembolsa aos seus segurados o preço de compra dos produtos farmacêuticos.
– acórdão do TJUE de 06-10-2021, Boehringer Ingelheim RCV GmbH & Co, processo C-717/19:
39 Importa recordar, antes de mais, que o princípio de base do sistema do IVA assenta no facto de o IVA se destinar unicamente a onerar o consumidor final e a ser perfeitamente neutro em relação aos sujeitos passivos que intervêm no processo de produção e de distribuição anterior à fase de tributação final, independentemente do número de transações ocorridas (v., neste sentido, Acórdão de 3 de maio de 2012, Lebara, C-520/10, EU:C:2012:264, n.° 25).
40 Em virtude do artigo 73.° da Diretiva IVA, o valor tributável compreende, nas entregas de bens e nas prestações de serviços, tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro (...).
41 Resulta do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, que visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, que os Estados-Membros estão obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo sempre que este não receba, depois de efetuada uma transação, uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, segundo o qual o valor tributável é constituído pela contrapartida efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu [Acórdão de 15 de outubro de 2020, E. (IVA – Redução do valor tributável), C-335/19, EU:C:2020:829, n.° 21 e jurisprudência referida].
51 (...) importa unicamente que o sujeito passivo não tenha recebido a totalidade ou parte da contrapartida dos seus produtos.
61 Importa, consequentemente, que as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades tributárias, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitem às que permitem provar que, depois de efetuada a transação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contrapartida. A este respeito, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se é esse o caso das formalidades exigidas pelo Estado-Membro em questão (Acórdão de 11 de junho de 2020, SCT, C-146/19, EU:C:2020:464, n.° 37 e jurisprudência referida).
65 (...), os princípios da neutralidade do IVA e da proporcionalidade exigem que o Estado-Membro em causa permita que o sujeito passivo demonstre, através de outros meios, perante as autoridades fiscais nacionais, que a operação que dá direito à redução do valor tributável foi efetivamente realizada (v., neste sentido, Acórdão de 26 de janeiro de 2012, Kraft Foods Polska, C-588/10, EU:C:2012:40, n.° 40). Isto é tanto mais assim quando, como no caso em apreço, a transação em causa foi celebrada com uma entidade estatal.
– acórdão do TJUE de 12-09-2024, processo C-248/23, Novo Norsisk A/S:
30 Nos termos do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, os Estados-Membros são obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida. Esta disposição constitui a expressão de um princípio fundamental da Diretiva IVA, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a autoridade tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C-717/19, EU:C:2021:818, n.° 41 e jurisprudência referida).
43 No que respeita à questão de saber se os montantes pagos por empresas farmacêuticas aos organismos de segurança social por ocasião de uma venda de medicamentos subvencionados podem, no entanto, ser abrangidos pelo artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, há que recordar, por um lado, que o Tribunal de Justiça já declarou que o desconto concedido, ao abrigo de uma lei nacional, por uma empresa farmacêutica a uma empresa privada de seguros de saúde implica, na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, uma redução do valor tributável a favor desta empresa farmacêutica, quando sejam efetuadas entregas de produtos farmacêuticos por intermédio de grossistas a farmácias que efetuam essas entregas a pessoas cobertas por um seguro de saúde privado que reembolsa aos seus segurados o preço que pagaram pela aquisição dos produtos farmacêuticos (Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Boehringer Ingelheim Pharma, C-462/16, EU:C:2017:1006, n.° 46).
44 A este respeito, é irrelevante a argumentação do Governo Húngaro segundo a qual, no processo que deu origem a esse acórdão, o caráter privado da empresa de seguros de saúde constituía uma diferença primordial, ao passo que, no caso em apreço, os pagamentos controvertidos têm caráter de receita fiscal. Com efeito, como resulta do n.° 33 do presente acórdão, o beneficiário real dos pagamentos controvertidos não é a autoridade tributária, mas o NEAK, que os utiliza para a subvenção do preço de compra dos medicamentos, da mesma forma que nesse processo.
47 Com efeito, primeiro, o Tribunal de Justiça já esclareceu que o âmbito de aplicação do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA abrange as reduções de preços resultantes tanto dos contratos celebrados entre uma empresa farmacêutica e um organismo estatal do seguro de saúde como de obrigações legais como as que estão em causa no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C-717/19, EU:C:2021:818, n.ºs 48 e 49).
55 Ora, não seria conforme com o princípio da neutralidade fiscal recordado no n.° 32 do presente acórdão que o valor tributável com base na qual é calculado o IVA devido pela empresa farmacêutica, enquanto sujeito passivo, fosse mais elevada do que o montante que esta acaba por receber. Se assim fosse, este princípio não seria respeitado (v., neste sentido, Acórdão de 6 de outubro de 2021, Boehringer Ingelheim, C-717/19, EU:C:2021:818, n.° 44, e jurisprudência aí referida).
58 Tendo em conta as considerações precedentes, há que responder à questão submetida que o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual uma empresa farmacêutica que está obrigada a entregar, ao organismo estatal de seguro de saúde, uma parte do seu volume de negócios resultante da venda dos seus produtos farmacêuticos que beneficiam de um financiamento público, não tem direito de reduzir a posteriori o valor tributável a título dos montantes entregues, tendo em conta que estes são efetuados ex lege, que a sua base tributável pode ser reduzida através de dedução dos pagamentos efetuados ao abrigo de um contrato relativo ao volume da comparticipação e das despesas efetuadas pela empresa para efeitos de investigação e de desenvolvimento no setor da saúde, e que o montante devido é cobrado pela autoridade tributária, que o transfere imediatamente para o organismo estatal de seguro de saúde.
Decorre inequivocamente desta jurisprudência do TJUE que, como se diz no acórdão arbitral proferido no processo n.º 644/2024, «qualquer redução do preço ocorrida após a realização de uma operação tributável deve dar lugar à redução do respectivo valor, não permitindo o princípio da neutralidade e o princípio da igualdade de tratamento, consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que o sujeito passivo seja obrigado a pagar imposto sobre um preço superior ao que é efectivamente exigido do adquirente, independentemente do mecanismo ou da razão pela qual a redução do preço se efective - e seja esta de fonte legal ou contratual» e «o pagamento da contribuição financeira devida pela Requerente ao abrigo da Adesão ao Acordo APIFARMA, mediante a emissão de notas de crédito às entidades do SNS suas devedoras, consubstanciou uma redução do valor tributável em IVA e, em consequência, autoriza a Requerente a regularizar a seu favor o IVA mencionado naquelas notas, no ano a que se referem os actos tributários impugnados».
Por isso, a correcção efectuada, que é objecto do presente processo, enferma de vício de violação de lei, por violação do princípio da neutralidade e do artigo 90.º da Directiva n.º 2006/112/CE e 78.º, n.ºs 1 e 2, do CIVA.
Estes vícios justificam a anulação das liquidações e da decisão da reclamação graciosa que as confirmou, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
As liquidações de juros compensatórios têm como pressuposto das liquidações de IVA pelo que enfermam dos mesmos vícios.
3.3.3. Questão do reenvio prejudicial para o TJUE
A Requerente e a Autoridade Tributária e Aduaneira aventam a possibilidade de efectuar reenvio prejudicial para o TJUE.
No artigo 19.º, n.º 3, alínea b) e no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia prevê-se o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que é obrigatório quando uma questão sobre a interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no direito interno.
No entanto, não é necessário o reenvio quando a questão suscitada não é pertinente ou a disposição do direito da União em causa foi já objecto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou a correta interpretação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a nenhuma dúvida razoável (Acórdãos de 06-10-1982, Caso Cilfit, Processo 283/81, de 6 de outubro de 2021, C-561/19, n.° 33, e de 22-12-2022, processo n.º C-83/21 n.º 80).
No caso em apreço, a jurisprudência do TJUE citada, designadamente os acórdãos de 20-12-2017, processo C-462/16; de 06-10-2021, processo C-717/19, e de 12-09-2024, processo C-248/23, permite dar uma resposta segura à questão do valor tributável em casos em que o sujeito passivo não recebe a totalidade do preço, sendo essa resposta no sentido de que «os Estados-Membros são obrigados a reduzir o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contrapartida» (acórdão do TJUE de 20-12-2017, processo C-462/16, n.º 39).
Por isso, não é necessário o reenvio prejudicial sobre a aplicação à situação de facto dos critérios enunciados pelo TJUE nos acórdãos de 06-10-1982, Caso Cilfit, Processo 283/81, de 6 de outubro de 2021, C-561/19, n.° 33, e de 22-12-2022, processo n.º C-83/21 n.º 80.
Termos em que se indeferem os pedidos de reenvio prejudicial.
4. Pedido de reembolso e juros indemnizatórios
A Requerente pede a restituição do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.
Como consequência da anulação da liquidações e IVA e juros compensatórios, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias pagas, no montante total de € 166.915,10.
No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Os juros indemnizatórios devem ser contados desde 14-11-2023[4], data dos pagamentos, calculados com base na quantia de € 166.915,10, até ao integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
5. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
-
Anular as liquidações de IVA n.ºs 2023..., 2023... e 2023..., respetivamente dos períodos de 2019/07, 2019/08 e 2019/10, no montante global de
€ 144.790,65 e respetivas liquidações de juros compensatórios n.ºs 2023..., 2023 ... e 2023..., no montante global de € 22.124,45
-
Julgar procedente o pedido de reembolso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia de € 166.915,10;
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Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los à Requerente nos termos referidos no ponto 4 desta decisão arbitral;
-
Indeferir os pedidos de reenvio prejudicial.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 166.915,10, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo das Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 10-03-2025
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Sílvia Oliveira)
(Fernando Marques Simões)
[1] SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 7.ª edição, página 126 e 187, e CARDOSO DA COSTA, Curso de Direito Fiscal, 2.ª edição, 1972, página 20.
[2] ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal, I, 1981, páginas 281-282 e MANUEL HENRIQUE DE FREITAS PEREIRA, Fiscalidade, 3.ª ed., página 395.
[3] CLOTILDE CELORICO PALMA, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª edição, página 288.
[4] De acordo com o Despacho de Retificação de 2025-03-18