SUMÁRIO:
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A parte do lucro, tributável em IRC, oriunda de uma atividade empresarial realizada no estrangeiro através de um estabelecimento estável ou realidade económica similar não está sujeita ao pagamento da derrama municipal por falta de legitimidade de um qualquer município português para a tributar.
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Nos demais casos (vg. rendimentos passivos oriundos do estrangeiro), a tributação em derrama municipal deve ter lugar por, dada a ausência de uma estrutura empresarial localizada no estrangeiro, tais rendimentos serem, legalmente, localizados no município da sede do sujeito passivo.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., com sede em ..., n.º ..., ...-... Lisboa, NIPC..., veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I -RELATÓRIO
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O pedido
A Requerente impugna parcialmente a autoliquidação que fez da derrama municipal relativa ao exercício de 2022, a qual se encontra plasmada na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC n.º... .
Em concreto, entende que liquidou e pagou mais € 420.237,70 do que o legalmente devido.
Consequentemente, pede a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa por si apresentado e, ainda, a condenação da requerida no pagamento de juros indemnizatórios computados a partir do dia 9 de maio de 2025.
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O litígio
A Requerida indeferiu o pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente. Da respetiva fundamentação, salientamos:
- A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante total obtido pelo sujeito passivo ou, perante a comprovação de que esse valor integra uma parte obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser apenas a parte do lucro tributável obtido em território nacional.
- A base de incidência da derrama coincide, assim, com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos residentes que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola e aos não residentes que possuam estabelecimento estável situado em território português (n.º 1 do RFALEI e art.º 3.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código do IRC
- Verifica-se, assim, que, para além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável sujeito à derrama, bem como quanto à respetiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias, quer das diversas alíneas do art.º 14.º do RFALEI, quer do disposto no art.º 18.º da mesma Lei, não consta qualquer exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional.
-(…) Em face do exposto, parece-nos que o lançamento de derrama municipal, por regra, imperativa, deve incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também, sobre rendimentos provenientes de fonte estrangeira.
- Analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação.
Por seu lado, a Requerente contesta este entendimento, sustentando, em resumo, o seguinte:
- a derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP.
- o n.º 1 artigo 18.º da Lei das Finanças das Autarquias Locais, estabelece o seguinte: «Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
- os rendimentos, obtidos no estrangeiro não estão, de modo algum, conexos com atividade comercial prosseguida em território nacional, pelo que não se poderão considerar como decorrentes do exercício da atividade económica na área geográfica dos municípios portugueses onde a Requerente se encontra presente.
- deste modo, os rendimentos de fonte estrangeira foram indevidamente considerados na base de incidência da derrama municipal, tendo, por conseguinte, a Requerente suportado derrama em excesso.
Invoca, no sentido do seu entendimento, o ac. do STA no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021 (que adiante analisaremos) e várias decisões arbitrais na esteira daquele[1].
A Requerida deduziu ainda uma exceção, a qual será adiante analisada.
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Tramitação processual
O pedido foi aceite em 25/09/2024.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 03/12/2024
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Por despacho de 06/02/2025, foi prescindida a realização da reunião a que se refere o art.º 18º do RJAT bem como a produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs.
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Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
A seguir se conhecerá da exceção invocada pela Requerida.
Não foram alegadas nem detetadas outras questões suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito.
d.1) Exceção da incompetência do tribunal arbitral por violação da “portaria de vinculação”
Alega a Requerida, em resumo:
- Estabelece a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, no seu Art.º 2.º alínea a), que a Requerida se encontra vinculada às pretensões arbitrais que tenham por objeto a apreciação pretensões relativas a impostos cuja administração lhe esteja cometida, «com excepção das pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».
- Entende que o legislador poderia ter limitado a exclusão prevista no citado artigo à expressão «que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa», nada mais distinguindo, o que não sucedeu, existindo, antes, a referência expressa de prévio recurso à via administrativa nos termos dos art.ºs 131.º a 133.º do CPPT, ou seja, mediante apresentação de reclamação graciosa.
- Dos elementos referidos não alcança outra solução que não a de que a Requerida apenas se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais se o pedido de declaração de ilegalidade de ato de liquidação tiver sido precedido de recurso à via administrativa de Reclamação Graciosa.
- Tendo o pedido de pronúncia arbitral sub judice por objeto uma autoliquidação e tendo sido precedido de pedido de Revisão Oficiosa (e não de reclamação graciosa). haveria que concluir não poder o tribunal arbitral conhecer do pedido.
- Invoca a favor do seu entendimento alguma jurisprudência arbitral (antiga, acrescentamos nós).
A Requerida respondeu, invocando argumentos que estão em linha com o que a seguir se dirá, concluindo pela improcedência da exceção.
Apreciando,
A argumentação da AT era corrente há alguns anos. Era de supor que tivesse sido abandonada atenta a uniformidade da jurisprudência (dos tribunais estaduais, começando pelo STA, e dos tribunais arbitrais) que posteriormente, se formou concluindo pela improcedência de uma tal exceção.
O ponto de partida é a razão de ser das reclamações necessárias, o porquê de, em alguns casos – em desvio à regra geral - nomeadamente estando em causa autoliquidações, existirem reclamações necessárias, i. e., o recurso ao processo de impugnação, nos tribunais arbitrais ou judiciais, ter que ser precedido de reclamação administrativa.
Tal razão de ser é fácil de descortinar: a autoria dos atos de autoliquidação é do sujeito passivo, sem qualquer intervenção da Administração Tributária; a obrigatoriedade de recurso à via administrativa previamente à via judicial permite à Administração Tributária ter, pela primeira vez, a oportunidade de apreciar a legalidade dos atos tributários em questão.
De facto, não faria sentido a AT surgir, em processo judicial ou arbitral, como Requerida relativamente a atos que não praticou e não teve, antes, oportunidade de se pronunciar.
Considerando a ratio da norma, impõe-se concluir que o «recurso prévio à via administrativa» se tem que entender como abrangendo qualquer procedimento tributário – independentemente da sua designação formal – em que seja dada oportunidade à Administração Tributária de se pronunciar sobre a legalidade dos atos tributários antes de a questão ser presente a tribunal.
Por serem equivalentes para a realização deste desiderato, há que equiparar, para este efeito, o pedido de revisão oficiosa à reclamação graciosa.
Restará acrescentar que no sentido da equiparação do pedido de revisão oficiosa à reclamação graciosa como via de acesso à tutela impugnatória se vem pronunciando o STA, desde o acórdão de 12 de julho no processo n.º 0402/06: Assim, é de concluir que, apesar de não ter sido deduzida reclamação graciosa, nos termos do artº 152.º do CPT, a Impugnante podia pedir a revisão oficiosa, dentro do prazo legal em que a Administração Tributária a podia efectuar e podia impugnar contenciosamente a decisão de indeferimento.
No mesmo sentido se orientam decisões arbitrais mais recentes[2] e escritos doutrinais de referência[3].
Acrescentaremos ainda que a interpretação extensiva da alínea a) do art.º 2.º portaria n.º 112-A/2011, corresponde à melhor interpretação conforme à Constituição, a qual aponta para que sejam sufragados os entendimentos da lei que melhor permitam a efetivação dos princípios constitucionais, no caso o da tutela judicial efetiva.
Pelo que improcede a invocada exceção.
II- FACTOS
II.1 – Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
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A Requerente exerce, a título principal, a atividade seguradora e resseguradora em território nacional.
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A Requerente aufere também rendimentos de fonte estrangeira decorrentes da aplicação de capital em diversos instrumentos financeiros e outros investimentos.
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Com referência ao período de tributação de 2020, liquidou derrama municipal no montante de € 749.213,31, tomando por base a totalidade do seu lucro tributável.
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A Requerente não poderia autoliquidar a derrama municipal de forma diversa atentas as limitações inerentes ao sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira, o qual, no cálculo da derrama municipal, impõe a consideração do lucro tributável total apurado.
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O lucro tributável apurado pela Requerente, inclui rendimentos (de capital e mais-valias mobiliárias) auferidos pela Requerente no estrangeiro no montante total de 28.422.192,99 EUR.
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Em 14/07/2021, a Requerente procedeu ao pagamento da totalidade do imposto autoliquidado.
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A Requerente deduziu pedido de revisão oficiosa, restrita a parte da autoliquidação relativa a derrama municipal, tal como ora impugna, a qual foi expressamente indeferida em 24 de junho de 2024, pelos fundamentos que já acima se deixaram sumariados.
Os factos dados como provados decorrem da documentação junta aos autos, não tendo sido objeto de qualquer divergência entre as partes.
Não se deu por provado o quantitativo da derrama municipal a cuja devolução, em caso de procedência do pedido, a Requerente terá direito a reaver, uma vez que é competência própria da AT proceder à respetiva quantificação em sede de execução de sentença.
II.2 – Factos não provados
Não existem factos dados como “não provados” relevantes para a decisão da causa.
III- O DIREITO
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A causa de pedir
A Requerente funda o seu pedido na invocação da ilegitimidade de um qualquer município português para exigir o pagamento da parte da liquidação da derrama que impugna por “falta de conexão territorial”, uma vez que estão em causa rendimentos oriundos do estrangeiro.
Ou seja, a Requerente põe em causa o direito à tributação do município onde se situa a sua sede (e a de qualquer outro município português) relativamente aos rendimentos oriundos do estrangeiro.
A posição da AT louva-se nas normas de incidência real da derrama municipal, as quais remetem para as normas de incidência do IRC, as quais, por sua vez, estabelecem um âmbito mundial dessa tributação (worlwide income) relativamente aos sujeitos passivos residentes em Portugal.
É bom de ver que a aplicação das regras de incidência está condicionada à existência de legitimidade para tributar. Não existindo tal legitimidade, ainda que apenas parcialmente – relativamente a rendimentos oriundos do estrangeiro – fica, sem mais, excluída a aplicação das regras de incidência, seja elas quais forem.
Portanto, a validade da posição sustentada pela AT– a qual, em abstrato, se nos afigura correta – depende, in casu, de um pressuposto, o da improcedência da causa de pedir invocada pela Requerente.
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A jurisprudência
Desde sempre foi pacífica a ideia de que, coincidindo a incidência real da derrama municipal com a do IRC, os rendimentos obtidos fora do território português estariam sujeitos, também, a tributação pelo primeiro dos referidos impostos.
A dissonância surge, ao que cremos pela primeira vez ao nível do STA, no processo n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021.
Pela sua importância, transcrevemos o respetivo sumário
I - O reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar que o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
II - As derramas municipais têm, para legitimação, de se ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo…
III - Em situações de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo.
IV - O lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).
Importará salientar o seguinte:
O que estava em causa nesse aresto era (citamos): Do resultado do GRUPO A…………….., no valor total de € 65.181.876,87, resultou provado que € 52.079.027,80 resultam de rendimentos gerados exclusivamente pelas Sucursais e Estabelecimento Estável da Sociedade ora RECORRENTE (individualmente considerada), constituídos em Angola, Moçambique e Argélia (sublinhado nosso).
Portanto, mesmo perfilhando a posição de princípio assumida em tal acórdão, há que saber se a conclusão por ele sufragada é transponível para uma situação factual diferente, que é a dos presentes autos – a de rendimentos oriundos do estrangeiro obtidos sem intermediação de um estabelecimento estável ou realidade económica equivalente sita noutro país.
E, adiantamos desde já, a conclusão pode ser diferente sem qualquer contradição com o decidido pelo STA, dada evidente falta de identidade factual.
Adiantamos desde lá: pensamos que parte da jurisprudência arbitral citada pela Requerente se limitou a louvar-se no sumário de tal acórdão do STA, sem cuidar da relevância da realidade factual sub judice em cada um desses casos.
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A derrama municipal como imposto acessório do IRC
A derrama municipal era tradicionalmente havida como um imposto acessório, dependente do IRC (anteriormente, da Contribuição Industrial), com caraterísticas de excecionalidade[4], revestindo a natureza de um adicional. A relação de dependência da derrama relativamente ao IRC era evidente na medida em que, incidindo sobre a coleta do imposto principal, a sua exigência apenas tinha lugar quando e na medida em que houvesse tributação naquele imposto. Ou seja, na prática, a derrama era como que uma sobretaxa do IRC, revertendo o seu produto a favor do município da sede do sujeito passivo.
A partir de 2007 a situação alterou-se: a derrama municipal passou a revestir a natureza de adicionamento, a ser calculada com base no lucro tributável, apurado segundo as regras do IRC (e não com base na coleta deste imposto). O mesmo é dizer que pode haver lugar a tributação em derrama sem haver lugar ao pagamento de IRC.
O que tem levado a jurisprudência (e alguma doutrina) a concluir que “É certo que, de acordo com a actual redacção da LFL de 2007, se trata (a derrama municipal) claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito activo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas) (…) (Ac. STA de 2 de fevereiro de 2011, proc. n.º 0909/10)
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O princípio da autotributação
Outro ponto que entendemos frisar: a derrama municipal é expressão principal do princípio de autotributação ao nível local.
A Lei prevê que os municípios, através do decisão do respetivos órgãos deliberativos podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 /prct., sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território (art.º 18º, nº 1, da Lei 73/2013, que estabelece o regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais).
Importa salientar este ponto: a legitimidade para a criação deste imposto pertence aos municípios, uma vez que é seu o poder essencial de decidir, em cada ano, se a tributação neste imposto vai ou não acontecer relativamente aos sujeitos passivos residentes /estabelecidos na respetiva área tributária.
Estamos perante um poder tributário relativo à própria existência prática do imposto (à correspondente ablação tributária) que pertence aos municípios, ao arrepio do que resultaria de em entendimento estrito do princípio da legalidade fiscal, na sua dimensão formal de reserva de Lei da Assembleia da República.
Segundo alguns autores, estamos mesmo perante um verdadeiro costume constitucional, que se imporia ao dizer expresso do art.º 103, nº 2, da CRP: o exercício da soberania fiscal não pertence em exclusivo à Assembleia da República, as assembleias municipais exercem-na também, ainda que de forma limitada, relativamente a impostos municipais, no caso a derrama municipal.
Situação que, a nosso ver, não belisca o fundamento da atribuição à Assembleia da República do poder originário de criar impostos, pois o princípio da autotributação também é respeitado quando as assembleias municipais (também elas, tal qual a AR, eleitas por sufrágio direto) exercem soberania fiscal relativamente a impostos estritamente conexos com o seu território.
Sublinhar, por fim, que é a “conexão” da manifestação de capacidade contributiva que a derrama municipal visa tributar com a área geográfica do município sede do sujeito passivo que determina a legitimidade (da respetiva assembleia municipal) para tal tributação.
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O princípio do benefício
Importará, também, relevar que o fundamento da derrama municipal é o princípio de benefício
Muito embora, constitucionalmente, todos os impostos tenham de incidir sobre manifestações de capacidade contributiva (no caso, a existência de lucro tributável), aos impostos municipais é apontada uma (outra) razão de ser. No caso da derrama municipal, ser uma contrapartida das condições para exercício de uma atividade empresarial a que cada município oferece às empresas aí localizadas.[5]A derrama visa assim financiar os Municípios, pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respetivos municípios de sociedades comerciais (infraestruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.
O que, como veremos, assume particular relevância no caso em apreciação.
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A legitimidade para tributar
Em concreto, a questão coloca-se relativamente a rendimentos oriundos do estrangeiro obtidos por uma entidade sediada em Portugal (necessariamente, num município português).
A pergunta que se coloca é saber se tal município tem ou não legitimidade para os tributar.
A questão não se coloca, nos mesmos termos, relativamente a rendimentos gerados em Portugal: neste caso, a tributação em derrama municipal é legítima, por existência do elemento de conexão relevante. O tema será então o da repartição do lucro que serve de base à incidência deste imposto quando a atividade empresarial do sujeito passivo se reparta por vários municípios.
Como vimos, resulta da “lógica” da derrama municipal, tendo expressão literal no nº 1 do art.º 18.º da Lei do Regime Financeiro das Autarquias Locais), que a legitimidade da tributação se refere aos rendimentos gerados na área do município.
O que bem se compreende, porquanto só relativamente a empresas presentes no espaço municipal é que se pode falar da prestação de serviços e outros bens pelo ente públicos, geradores do benefício que, materialmente, legitima esta tributação local.
É também o grau de presença em cada município que legitima a intervenção autónoma da respetiva assembleia municipal, o exercício dos poderes de autotributação atrás referidos.
Importará clarificar o significado de rendimentos gerados.
Está em causa – cremos que incontestavelmente - a localização da fonte económica do rendimento, o lugar onde efetivamente é levada a cabo a atividade dele geradora.
Não está em causa, portanto, a fonte financeira de tais rendimentos, o local onde são pagos, onde se situa a entidade devedora ou a pagadora.
O mesmo é dizer que, no nosso entendimento, não basta o facto de o a entidade devedora estar situada no estrangeiro, aí exercer a sua atividade, (de se tratar de rendimentos oriundos do estrangeiro) para os excluir da tributação em derrama municipal. Para tal tributação não ter lugar, tais rendimentos têm de provir de uma atividade empresarial realizada no estrangeiro pelo sujeito passivo, ser gerados fora de Portugal.
O mesmo é dizer que entendemos que apenas nos casos em que seja possível localizar no estrangeiro a atividade geradora do rendimento é que este ficará excluído de tributação em Derrama Municipal.
Um rendimento, integrando o lucro tributável e IRC, será imputável à atividade no estrangeiro de um residente em Portugal quando decorrer da atividade de um estabelecimento estável situado no estrangeiro.
Existindo no estrangeiro um estabelecimento estável, uma qualquer instalação fixa através da qual seja exercida uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, nenhuma dúvida existirá quanto à localização da fonte económica dos rendimentos assim obtidos. E nenhuma dúvida existirá, também, quanto à não existência de um qualquer benefício (disponibilização de infraestruturas, prestação de serviços, etc.) resultante da atividade do município português que se arroga do direito à tributação.
Esta linha de pensamento, que pensamos estar em consonância com o citado acórdão do STA, foi sustentada, ao que cremos pela primeira vez, por José Carlos Abreu na sua monografia A Tributação dos Estabelecimentos Estáveis [6], a qual continua a ser referência principal sobre o tema: Defendemos assim que, para efeitos de derrama, ao lucro tributável total apurado pela empresa deve ser expurgado o lucro obtido através do estabelecimento estável localizado no estrangeiro.
Relativamente a rendimentos obtidos no estrangeiro (melhor, oriundos do estrangeiro) sem intermediação de um estabelecimento estável ou realidade económica equivalente há que concluir que, por falta de suficiente elemento de conexão, os mesmos se consideram como tendo sido obtidos no município onde se localiza a sede do sujeito passivo, em obediência ao que dispõe (presunção legal) o nº 13 do art.º 18º da Lei do Regime Financeiro das Autarquias Locais
O que corresponderá, em geral, à realidade: os rendimentos obtidos sem intermediação de um estabelecimento estável corresponderão, por regra, a rendimentos passivos, nomeadamente rendimentos de capitais. Tais rendimentos resultarão, as mais das vezes, de uma atividade, ainda que mínima, realizada em Portugal, onde se situa a sede da sociedade. Serão aí que serão tomadas as decisões de investimento, feita a gestão da carteira de títulos, a emissão da documentação relativa aos montantes recebidos, etc. Será aí que serão suportados os custos inerentes.
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Decidindo:
Transpondo as considerações anteriores para o caso concreto temos que não foi, sequer, alegada a existência de uma sucursal, de um estabelecimento estável ou de uma qualquer outra estrutura economicamente equivalente situado no estrangeiro, à qual deva ser imputada a obtenção dos rendimentos (mais valias) em causa nos presentes autos.
Mais ainda, não foi alegado e/ou demonstrado que a fonte económica das mais-valias (segundo o alegado pela Requerente, estão em causa participações em fundos detentores de ativos hoteleiros) esteja situada fora do território português.
Estamos perante rendimentos passivos, como a Requerente confessa ao afirmar serem rendimentos decorrentes da aplicação de capital em diversos instrumentos financeiros e outros investimentos, o que, como é normal, não terá implicado a existência de uma qualquer estrutura diretamente afeta à sua obtenção.
É assim de aplicar (diretamente ou por evidente identidade de razões) o disposto no nº 13 do art.º 18º da Lei do Regime Financeiro das Autarquias Locais: Nos casos não abrangidos pelo n.º 2[7], considera-se que o rendimento é gerado no município em que se situa a sede ou a direção efetiva do sujeito passivo ou, tratando-se de sujeitos passivos não residentes, no município em que se situa o estabelecimento estável onde, nos termos do artigo 125.º do Código do IRC, esteja centralizada a contabilidade.
Em suma, os rendimentos em causa, porque não imputáveis a estabelecimentos estáveis ou similares e localizados no estrangeiro, têm-se por localizados no município onde se situa a sede da Requerente, o qual, por tal razão, tem legitimidade para os tributar em derrama municipal.
IV- DECISÃO ARBITRAL
Pelo exposto, conclui-se pela improcedência do pedido principal e, consequentemente, dos demais, porque daquele dependentes.
Valor: € 420.237,70
Custas arbitrais, no montante de € 6.732,00, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento.
28 de fevereiro de 2025
Os árbitros
Rui Duarte Morais [8]
Adelaide Moura
Ricardo Marques Candeias
[1] A Requerente juntou aos autos, em 12/02/2025, cópia de decisão arbitral noutro processo, em que também é Requerente, o qual concluiu pela procedência do pedido.
Muito embora reconhecendo o enorme valor que é a segurança jurídica que resulta da uniformidade das decisões judiciais/arbitrais, o certo é que estamos perante uma controvérsia já longa, existindo sobre o tema decisões de diferentes sentidos. Assim, haverá que aguardar pela uniformização de jurisprudência que ao STA cumprirá fazer.
[2] A Requerente refere, como exemplos, as decisões arbitrais n. 143/2016-T, de 15 de novembro de 2016; 473/2017-T, de 8 de abril de 2018; 668/2016-T, de 7 de julho de 2017; 577/2016- T, de 1 de junho de 2017; e 39/2017-T, de 30 de junho de 2017.
[3] CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, 2016, páginas 97 a 99 e 101.
[4] A sua receita teria de ser consignada, pelo município beneficiário, a “melhoramentos urgentes a realizar no município”.
[5] Uma lógica algo semelhante à das modernas contribuições financeiras.
[6] José Carlos Abreu, A Tributação dos Estabelecimentos Estáveis, Vida Económica, 2012, pág.148.
[7] O qual dispõe: Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município (…) (sublinhados nossos).
[8] Alterei a minha posição relativamente à que subscrevi no acórdão arbitral 29/2024.