Decisão Arbitral
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. João Taborda da Gama e Dr. André Festas da Silva (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 24-12-2024, acordam no seguinte:
1. Relatório
A...– SUCURSAL EM PORTUGAL, com morada na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (doravante “Requerente”), titular do NIPC..., apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2024..., nem como a anulação parcial da autoliquidação de IRC referente ao período de 2021, plasmada na declaração periódica de rendimentos Modelo 22 de IRC (doravante, “declaração Modelo 22”), n.º..., de 19 de Maio de 2022, referente ao exercício de 2021, na parte relativa à derrama municipal indevidamente liquidada e entregue à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
A Requerente pede reembolso da quantia de € 99,545,41, acrescida de juros indemnizatórios.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 17-10-2024.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 06-12-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 24-12-2024.
A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que suscitou as excepções de incompetência do Tribunal Arbitral em razão da matéria, inidoneidade do meio processual, inimpugnabilidade da autoliquidação e caducidade do direito de ação e defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho de 06-02-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações, com possibilidade de a Requerente responder às excepções.
A Requerente pronunciou-se sobre as excepções.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
-
A Requerente é um sujeito passivo de IRC que tem como objeto social a prestação de serviços de investimento e mediação de seguros em Portugal, podendo ainda exercer atividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro;
-
No exercício da sua atividade, a Requerente apresentou autoliquidação de IRC plasmada na declaração Modelo 22, n.º..., referente ao exercício de 2021 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Nessa declaração, a Requerente apurou o lucro tributável de lucro tributável de € 23.568.517,58 e incluiu no campo 364 do quadro 10 das declarações, o montante de € 353.527,76 (taxa de 1,5%), suportado a título de derrama municipal;
-
Naquele valor de € 23.568.517,58 está incluído o valor de € 6.636.360,82, respeitante a rendimentos obtidos no estrangeiro pela Requerente em 2021 (inventário de títulos que consta das páginas 61 a 67 do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido);
-
Posteriormente, a Requerente entendeu que tinha liquidado em excesso o montante de € 99.545,41, a título de derrama municipal, relativa ao exercício de 2021, valor que respeita à parcela do lucro tributável proveniente de rendimentos obtidos no estrangeiro, sem qualquer utilização dos recursos colocados em Portugal pela entidade jurídica de que a Requerente é representação permanente;
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Em 05-06-2024, a Requerente entregou um pedido de revisão oficiosa, que veio a ter o n.º ...2024..., requerendo a anulação parcial do acto de autoliquidação e o correspondente reembolso do montante de € 99.545,41 que considerou indevidamente pago;
-
O pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho de 23-07-2024, proferido pelo Chefe de Divisão da Unidade dos Grandes Contribuintes, em que se manifesta concordância com uma informação que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte;
§ II. DOS FACTOS
4. Para enquadramento da situação tributária em concreto, procede-se, de seguida, a uma breve descrição dos factos:
4.1. A requerente, na declaração modelo 22, referente ao período de tributação de 2021, apurou os seguintes valores, a título de lucro tributável e de derrama municipal:
• lucro tributável de € 23.568.517,58
• derrama municipal de € 353.527,76 €
4.2. Na sequência da declaração submetida pela requerente, a AT, em 26/08/2022, emitiu a liquidação de IRC nº 2022 ..., na qual não fez nenhuma alteração em matéria de derrama municipal.
§ III. DO PEDIDO DE REVISÃO - DO (IN)CUMPRIMENTO DOS RESPETIVOS PRESSUPOSTOS
5. No artigo 78.º da LGT encontram-se previstos os pressupostos do dever de revisão dos atos tributários por parte da AT.
6. Nos vários números do referido artigo encontram-se consagradas algumas modalidades de revisão.
Reportando-nos à revisão concretamente solicitada pela requerente - a quem se reconhece legitimidade para o efeito (cf. artigo 9.º nº 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário [CPPT]) a mesma encontra-se consagrada no nº 4 do artigo 78.º, dependendo a sua promoção do cumprimento de três requisitos cumulativos:
- ter sido solicitada até ao termo do 3.º ano seguinte ao do ato tributário;
- existência de situação de injustiça grave ou notória;
- ausência de comportamento por parte do contribuinte.
7. Dito isto, quanto ao cumprimento do prazo, desde já se pode afirmar que o mesmo foi observado, uma vez que apenas em 31/12/2025 é que aquele termina: termo do 3.º ano seguinte ao do ato tributário contestado (o qual data de 19/05/2022).
8. Cumprido o prazo, resta apurar se existe injustiça grave ou notória.
9. Para o efeito, importa analisar a questão em concreto, a qual se prende com a (des)consideração dos rendimentos de fonte estrangeira no apuramento da derrama municipal.
10. Na Informação nº 853/2022, elaborada pela Direção de Serviços do IRC e sancionada com despacho de concordância da Sra. Subdiretora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento, datado de 4/11/2022 2, defendeu-se, quanto à aludida questão, o seguinte:
"A - Da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA)
1. (...) [R]elativamente ao thema decidendum pronunciou-se a jurisprudência do STA no Acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 03652/15.3BESNT, em que foi sufragado o seguinte entendimento:
i. Está em questão saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal, incidente, consensualmente, sobre "o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC)" (Cf. art.º 14º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro (Lei da Finanças Locais, em vigor no ano de 2010).), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, á destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias
portuguesas.
II. Em breve excursão legislativa (pelos tempos mais próximos), o artigo 18º n.º 1 da Lei n.º 42/98de 6 de agosto, que estabeleceu o regime financeiro dos municípios e das freguesias, na sequência de o art.º 16º alínea (al.) b) identificar como receita dos municípios "O produto da cobrança de derrama lançada nos termos do disposto no artigo 18.º;", permitia-lhes que, anualmente, pudessem lançar uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do IRC, que proporcionalmente correspondesse ao rendimento gerado na sua área geográfica.
Este diploma foi, expressamente, revogado, pelo art.º 64º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro - intitulada Lei das Finanças Locais(LFL), atualmente, também, se encontra, revogada, vigorando, desde 1 de janeiro de 2014, o Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), estabelecido pela Lei n.º 73/2013 de 3 de setembro, cujos art.ºs. 14º al. c) e 18º n.º 1, no essencial, reproduzem, “ipsis verbis", os art.ºs. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 da LFL.).
Tendo a derrama passado a incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica.
III. A partir do início de 2007, a derrama passou, assim, a ser calculada por aplicação de uma taxa ao lucro tributável, em vez da coleta, de IRC, perdendo, assim, a natureza de imposto extraordinário e deixando de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento.
Porém, a circunstância de a derrama sempre ter prefigurado um mero imposto adicional, assente sobre as regras de incidência e liquidação dos impostos da administração central, levou a que a sua disciplina legal se mantivesse relativamente ligeira.
Contudo, em conformidade com a atual redação, esta trata-se claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito ativo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objetiva comum.
IV. A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante total obtido pelo sujeito passivo ou, perante a comprovação de que esse valor integra uma parte obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser apenas a parte do lucro tributável obtido em território nacional.
v. O legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor.
E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município”, em que se situa a sede.
O legislador não desconhecia a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do Pais e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à “proporção”, à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
VI. Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, entendeu, também, o douto Tribunal, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais.
VII. Em situações de isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado.
Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro.
VIII. Não é incorreto afirmar que na LFL nada se refere quanto à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC estabelece, relativamente a tais pessoas coletivas, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do art.º 4.º, do CIRC.
Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária.
IX. Na verdade, considera evidente o STA (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida.
Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais.
X. Concluindo-se que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).
B - Entendimento da DSIRC
2. A figura jurídico-tributária da derrama municipal tem um passado longínquo no sistema fiscal português, pese embora as diversas alterações introduzidas ao longo do tempo.
Visa financiar os municípios pelos custos que estes têm de assumir face â presença, nos respetivos municípios, de sociedades comerciais (infraestruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.)
Com efeito, um dos seus elementos propulsionadores é o reforço do sistema de financiamento autárquico, assente na diminuição da dependência financeira dos municípios em relação às receitas provenientes do Estado e algumas entidades privadas.
A derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e, concretamente, os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º4, e 254.ºda CRP.
A autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências" (Casalta Nabais, “A autonomia financeira das autarquias locais", BFDUC, vol. 82, 2006, p. 29).
3. Importa, assim, reconhecer três marcos na sua evolução, que, enquanto contributos do elemento histórico de interpretação das normas, permitem analisar a seu posicionamento em sede do IRC.
Desde logo, cumpre referir que a primeira Lei das Finanças Locais - Lei nº 1/79, de 2 de janeiro - previa a possibilidade de os municípios poderem aplicar, a título de derrama, uma taxa até 10%, que incidia sobre a coleta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo, cobrados na área do respetivo município.
Tendo uma base de incidência bastante diferente da atual (circunscrita naturalmente pelo sistema fiscal à data em vigor), uma das características da derrama era o seu caráter de exceção, na medida em que a respetiva receita deveria ser aplicada em melhoramentos urgentes a realizar no município.
4. A primeira alteração da base de incidência da derrama municipal e a sua aproximação ao IRC ocorreu com o Decreto-Lei 470-B/88, de 19 de dezembro (que alterou algumas disposições da Lei n.º 1/87, de 6 de janeiro), o qual estipulava, no art.º 5º, que a base de incidência da derrama passava a ser a coleta do IRC, relativa ao rendimento gerado na sua área geográfica.
Apesar das alterações, a derrama municipal manteve o seu caráter, que inclusive ficou reforçado com a definição de um requisito para o lançamento da derrama (só podia ser lançada para acorrer ao financiamento de investimentos ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro).
5. Alteração de fundo relativamente à incidência ocorreu com a Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro (nova Lei das Finanças Locais), em que a derrama municipal passou a incidir, até ao limite máximo de 1,5%, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, ou seja, deixou de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento (Ver neste sentido Rui Duarte Morais, Passado, Presente e Futuro da Derrama, revista Fiscalidade, nº 38, pag. 109 e segs., e Sérgio Vasques, o Sistema de Tributação Local e a Derrama, Fiscalidade, pag. 121.).
6. Atualmente a derrama municipal encontra-se prevista na Lei nº 73/2013, de 3 de setembro (Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais - RFALEI), o qual revogou a anterior Lei das Finanças Locais introduzida pela Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro.
Este regime veio estabelecer a possibilidade de os municípios deliberarem lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território (art.º 18.º n.º 1 do RFALEI).
7. A base de incidência da derrama coincide, assim, com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos residentes que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola e aos não residentes que possuam estabelecimento estável situado em território português (n.º 1 do RFALEI e art.º 3.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código do IRC).
Esta coincidência entre bases de incidência apenas foi afastada quanto aos lucros sujeitos, mas isentos de IRC, os quais ficaram expressamente excluídos da base de incidência da derrama.
8. Verifica-se, assim, que, para além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável sujeito à derrama, bem como quanto à respetiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias.
9. No que diz respeito à derrama municipal, a AT tem entendido que aquela se classifica como um imposto dependente.
Na realidade, não obstante constituir uma receita dos municípios (art.º 14º do RFALEI), a mesma tem em consideração o rendimento gerado na área geográfica de cada município, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, das entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda sobre o lucro tributável das entidades não residentes com estabelecimento estável em Portugal, pelo que a formação da Derrama possui a mesma origem que o IRC, apresentando, assim, a natureza de imposto dependente deste imposto principal.
Contudo, nesta relação de mera dependência, a derrama enquanto imposto cuja liquidação é paralela ao IRC, tem vida própria e pode ser liquidada e exigida mesmo que o imposto principal não atinja o estádio pleno.
Assim, como o apuramento da derrama acolhe alguns elementos do IRC, ao nível de incidência e determinação do lucro tributável, teremos de fazer apelo às normas daquele em todos os campos que definem a sua relação jurídica tributária.
Logo, quanto aos rendimentos sujeitos e na quantificação do lucro tributável, terão que se considerar as disposições contidas no Código do IRC, nomeadamente o disposto nos art.ºs 3.ºe 4.ºe 17.ºe seguintes.
10. Nos termos do disposto na alínea c) do art.º 14º do RFALEI, constituem receitas dos municípios o produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18.º.
Quer das diversas alíneas do art.º 14.º do RFALEI, quer do disposto no art.º 18º da mesma Lei, não consta qualquer exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional.
Sendo certo que o Código de IRC estabelece que a extensão da incidência da obrigação do imposto é a seguinte:
Relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território (n.º 1 do art.º 4º do Código do IRC).
Quanto aos rendimentos obtidos por não residentes com estabelecimento estável em território português, apenas estão sujeitos a IRC os rendimentos obtidos através desse estabelecimento estável, por aplicação do princípio da tributação na fonte vertido no n.º 2, do art.º 4º do Código do IRC.
E, nos termos do n.º 3 do art.º 4º do Código do IRC, consideram-se obtidos em território português os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável aí situado.
Em conformidade com o disposto n.º 5 do art.º 4º do Código do IRC, o território português compreende também as zonas onde, em conformidade com a legislação portuguesa e o direito internacional, a República Portuguesa tem direitos soberanos relativamente à prospeção, pesquisa e exploração dos recursos naturais do leito do mar, do seu subsolo e das águas sobrejacentes.
11. Nos termos do Código do IRC, o lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do art.º 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do
CIRC.
O resultado líquido do exercício, evidenciado na demonstração de resultados, é uma rubrica do capital próprio, apurada nos termos do SNC, segundo a NCRF 25, de acordo com a terminologia contabilística.
Trata-se de um resultado de natureza financeira que traduz a performance económico-financeira de uma determinada empresa ou entidade durante um determinado período de tempo, que corresponde normalmente a um ano.
Esse cálculo é a consequência de um processo multifaseado que se inicia com a identificação de todos os rendimentos (art.º 20º do CIRC) e gastos (art.º 23º CIRC) imputáveis à empresa no período em causa.
Ao valor assim extraído da contabilidade, são efetuados ajustamentos relativos a variações patrimoniais positivas e negativas não refletidos no resultado líquida e ainda outros ajustamentos previstos no CIRC, nos termos do n.º 1 do art.º 17º.
E, é o balanceamento entre rendimentos e gastos que permite apurar o resultado líquido, que, uma vez ajustado pelas variações patrimoniais e outros ajustamentos previstos no Código do IRC, nos possibilita aferir o lucro tributável (Quadro 07- Mod 22).
Acresce dizer que, relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, como atrás se referiu, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e dos obtidos fora desse território, em consonância com princípio da universalidade dos rendimentos, tal como previsto no art.º 4º, n.º 1
daquele diploma legal.
12. Já quanto ao estabelecido no RFALEI, prevê o n.º 1 do art.º 18º do RFALEI uma regra, de caráter geral, relativa à sujeição de derrama municipal na área da sede do sujeito passivo ou do estabelecimento estável.
Prevendo-se, no n.º 2 do mesmo preceito legal, uma regra especial, nos termos da qual, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a €50 000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
Ou seja, esta regra de repartição de derrama municipal por diversos municípios apenas ocorre nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e apurem uma matéria coletável superiora €50.000.
Podendo, assim, verificar-se que, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição de derrama pelos diferentes municípios em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais, aquela apenas é devida na área da sede do sujeito passivo.
13. Acresce que, nos termos do art.º 2.º da maioria das Convenções para a Evitara Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT) celebradas por Portugal, a sua aplicação abrange também os impostos cujos sujeitos ativos são as autarquias locais, o que é o caso da derrama municipal.
Ou seja, para efeitos das CDT, a derrama consubstancia um imposto sobre o rendimento.
14. Finalmente, importa fazer referência ao Acórdão n.9 603/2020, proferido no Recurso n.º 172/20, 2ª Seção, do Tribunal Constitucional, em que foi Relator o Conselheiro Pedro Machete.
Ainda que existam divergências entre a posição assumida neste Acórdão e a assumida pela AT na questão aliem apreço - o que devemos entender por "fração de IRC a que alude o art.º 91.º, n.º 1, alínea b) do CIRC - existe, à partida, uma linha orientadora comum na sua génese da solução encontrada, em abono da tese que temos vindo a defender.
O Acórdão pretende averiguar, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, se o entendimento segundo o qual na expressão "fração do IRC" se inclui, ao lado da coleta do IRC enquanto imposto principal, também as coletas da derrama estadual e da derrama municipal, infringe alguma regra ou principio constitucional.
Vejamos o que diz com relevância para o caso em apreço:
«A verdade, porém, é que, na ótica do critério normativo ora sindicado, nem a consideração da derrama municipal para efeitos de determinação do crédito de imposto ao abrigo do n.º 1, alínea b), do artigo 91.º do Código do IRC se encontra associada à existência de qualquer CDT, nem a existência de uma CDT deixa de constituir fator de diferenciação relativamente à tributação de sujeitos passivos que se encontrem nas mesmas circunstâncias, isto é, que percebam rendimentos no estrangeiro (cfr. o n.º 2 do mesmo preceito).
Quanto ao primeiro aspeto, o ponto decisivo é o de que, para efeitos da norma sindicada, a derrama municipal, quando lançada pelo município (cfr. o artigo 18.º do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro), é entendida como um adicionamento ao IRC, razão por que a sua coleta, tal como a da derrama estadual prevista no artigo 87º-A do Código do IRC, se soma necessariamente à coleta daquele imposto. Consequentemente, em termos de capacidade contributiva e de tributação em sede de IRC, a situação dos sujeitos passivos deste imposto é, à partida, constante, independentemente do local de origem do respetivo lucro tributável.
imposto por dupla tributação jurídica internacional, o imposto a pagar pelos sujeitos passivos de IRC cujos rendimentos têm a sua fonte localizada apenas em Portuga! e aqueles contribuintes de IRC que também percebem rendimentos com origem num país terceiro.
(...)
O pagamento deste tributo (leia-se derrama) deve ser ''eliminado" por dedução de créditos por dupla tributação internacional sempre que a coleta de IRC, stritcto sensu, não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no presente caso. Assim é que, na expressão "fração do IRC" constante da então al. b) do n.º 1 do art.º 41.º (hoje, art0 91.º) se deve incluir a coleta da derrama municipal. O mesmo é dizer que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta de tal imposto (entenda-se derrama) originado por rendimentos obtidos no estrangeiro.»
(...)
Ora, daqui se retira facilmente que se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta da derrama originada por rendimentos obtidos no estrangeiro é porque a derrama incide, não só sobre os rendimentos provenientes do território português, mas também sobre os com origem no estrangeiro.
15. Resulta, assim, do exposto que, quanto à incidência da derrama, o entendimento da AT diverge da visão plasmada no Acórdão do STA proferido no âmbito do Proc. n.º 03652/15.3BESNTde 2021/01/12, que sustenta que ao lucro tributável apurado deveriam ser expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro, porquanto tais rendimentos não possuem qualquer ligação ao município em causa naquele processo.
16. Salvo o devido respeito, tal decisão olvidou dois aspetos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam das mesmas normas sobre a incidência plasmadas no CIRC, as quais têm necessariamente de ser acatadas.
Por um lado, e como já foi referido, quanto às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o lucro tributável obedece ao princípio da universalidade, (art.º 4.º, n.º 1 do CIRC), isto é, releva no seu cômputo todo e qualquer rendimento recebido pelo sujeito passivo, independentemente da sua proveniência.
Por outro, esse mesmo lucro integra componentes de várias naturezas e resulta de uma complexidade de operações/balanceamentos entre rendimentos e gastos relevados na contabilidade e os devidos ajustamentos positivos e/ou negativos, efetuados nos termos do Código do IRC.
17. Em face do exposto, parece-nos que o lançamento de derrama municipal, por regra, imperativa, deve incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também, sobre rendimentos provenientes de fonte estrangeira.
(...)
Desde logo, analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação.
Assim, não podemos inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
É que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. (art.º 9.º do CC).
18. Só assim não será nos casos em que os sujeitos passivos residentes com estabelecimentos estáveis fora do território nacional optem pelo regime de isenção previsto no art.º 54.º-A do Código do IRC.
Ou seja, caso o sujeito passivo português opte pela não concorrência para a determinação do seu lucro tributável dos lucros e dos prejuízos imputáveis a estabelecimento estável situado fora do território português, desde que se verifiquem os requisitos previstos no art.º 54.º-A do Código de IRC, o Estado da residência (Portugal) abster-se-á de tributar os lucros imputáveis ao estabelecimento estável e, consequentemente, o lançamento de derrama municipal não pode incidir sobre o lucro desse estabelecimento estável.
19. Em conclusão, é nosso entendimento, ressalvado o devido respeito por melhor opinião, que a derrama municipal incide sobre todos os rendimentos obtidos pelo contribuinte, incluindo os obtidos no estrangeiro, mantendo-se, assim, a posição até aqui seguida pela AT.
20. Quanto à recente posição do STA nesta matéria, que decidiu em sentido contrário, no Acórdão n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021, assumindo a desconsideração dos rendimentos provenientes de fonte estrangeira na base de incidência para cálculo da derrama municipal devida por sociedades residentes, acresce dizer que a decisão do STA produz efeitos apenas no caso ali apreciado e decidido, razão pela qual se mantém o entendimento da AT nesta matéria (art.º 68-A, n.º 4 da LGT)".
11. Com base na fundamentação acima transcrita, a qual merece a nossa adesão, passando, por isso, a fazer parte integrante desta nossa Informação, não se acolhem as alegações suscitadas pela requerente, no sentido de defender que na base de cálculo da derrama municipal são considerados apenas os rendimentos obtidos em território nacional.
12. O mesmo é dizer que não se conclui pela existência de situação de injustiça grave ou notória na autoliquidação controvertida, pelo que improcede a revisão a que alude o nº 4 do artigo 78.º da LGT.
13. Concluindo-se pela conformidade do apuramento da derrama municipal, não se afigura, por outro lado, de ponderar a promoção das demais modalidades de revisão previstas no artigo 78.º da LGT, concretamente nos nºs 1 (revisão com fundamento em erro imputável aos serviços) e 6 (revisão com fundamento em duplicação de coleta).
14. Por fim, de clarificar que, ainda que tivesse provimento a revisão, os juros peticionados não poderiam ser atribuídos, na medida em que não existe suporte legal para o seu reconhecimento em sede de revisão, salvo se esta se efetuasse mais de um ano após o pedido (cf. artigo 43.º nº 3 alínea c) da LGT).
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As declarações modelo 22 e IES relativas ao exercício de 2021 têm os teores que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido;
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A aplicação informática imposta pela Autoridade Tributária e Aduaneira para preenchimento da declaração modelo 22 de IRC impõe que no campo 1 do quadro 3, do Anexo A ("Derrama Municipal”), da declaração Modelo 22 de IRC, seja indicado o lucro tributável constante do campo 302, do quadro 9, da referida declaração;
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A Requerente pagou a quantia autoliquidada (página 81 do processo administrativo);
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Em 15-10-2024, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto
2.2.1. Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
2.2.2. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo.
2.2.3. Relativamente aos valores dos rendimentos obtidos no estrangeiro, a Requerente apresentou com o pedido de revisão oficiosa uma lista com o inventário dos títulos que detinha e rendimentos que lhes proporcionaram, cuja correspondência à realidade não foi questionada na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
Designadamente, no procedimento de revisão oficiosa não foram pedidos à Requerente os «documentos probatórios do lucro tributável apurado naquelas operações realizadas com origem no estrangeiro», a que Autoridade Tributária e Aduaneira alude nos artigos 150.º e 151.º da sua Resposta.
O facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira, na decisão do pedido de revisão oficiosa, não ter baseado a sua decisão em falta de prova dos elementos declarado, obsta a que a falta desses documentos possa relevar para improcedência da pretensão da Requerente.
Na verdade, o processo arbitral tributário é, assim, um meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), sendo, como este, um meio processual de mera apreciação da legalidade de actos, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].
No âmbito de um contencioso de mera legalidade, esta tem de ser apreciada com base no acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo arbitral, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos.
Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01-07-2020, processo n.º 309/14.6BEBRG), em que se entendeu que:
I – O tribunal, na apreciação da legalidade de uma decisão administrativa, não pode considerar que esta se alicerça noutros fundamentos que não aqueles que aí foram externados.
II – Assim, não pode julgar improcedente a impugnação judicial da decisão que indeferiu o pedido de revisão de um acto tributário alicerçando-se na não verificação de um requisito se a AT não usou esse fundamento para indeferir aquele pedido.
Por isso, não pode a Administração Tributária, após a prática do acto, nem o Tribunal no processo contencioso, justificá-lo por razões diferentes das que constem da sua fundamentação expressa.
Nos casos de pedido de revisão oficiosa de actos de autoliquidação, se a respectiva decisão mantém o acto impugnado, com fundamentação expressa, deverá entender-se que se opera revogação por substituição daquele acto, passando a subsistir na ordem jurídica um novo acto que, apesar de manter o conteúdo decisório, terá a nova fundamentação.
Assim, no caso em apreço, a invocada falta de prova dos valores declarados nas declarações modelo 22 e nas IES da Requerente não pode ter relevância para a decisão da causa.
De resto, mesmo quando a lei estabelece que o ónus da prova recai sobre o contribuinte, a Administração Tributária não está dispensada de «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT).
«O órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito» (artigo 72.º da LGT) e no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.
O funcionamento das regras do ónus da prova ocorre apenas quando, após a actividade necessária para a adequada fixação da matéria de facto, directamente a partir dos meios de prova e indirectamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida. Nestes casos, por força das regras do ónus da prova, devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova. ( [1] )
É apenas nestas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.
Assim, no procedimento tributário ( [2] ) as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a Autoridade Tributária e Aduaneira de tal tarefa, pois esta nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.
O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.
A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.
Neste caso, a Autoridade Tributária e Aduaneira não fez no âmbito do procedimento de revisão oficiosa qualquer diligência tendente a verificar a correspondência ou não à realidade dos valores declarados pela Requerente e os indicados nos documentos que juntou ao procedimento, pelo que não podem aplicar-se contra estas as regras do ónus da prova.
2.2.4. No que concerne ao facto referido na alínea H), considerou-se provado com base na afirmação da Requerente, feita no artigo 26.º do pedido de pronúncia arbitral e não questionada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, e no exame do formulário da declaração modelo 22 e respectivas instruções de preenchimento, em que não se prevê possibilidade de afastar os rendimentos provenientes do estrangeiro do âmbito de incidência da derrama municipal.
3. Excepções
A Autoridade Tributária e Aduaneira suscita as excepções que denomina de incompetência do Tribunal Arbitral para apreciar decisões de pedidos de revisão oficiosa, idoneidade do meio processual, inimpugnabilidade da autoliquidação e caducidade do direito de acção.
Os fundamentos das excepções são os seguintes, em suma:
– a vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD quanto a actos de autoliquidação limita-se aos que forem precedidos de reclamação graciosa, pelo que aqueles tribunais são incompetentes para apreciar a legitimidade de actos que não forem precedidos de reclamação;
– em sede de revisão oficiosa concluiu-se que a mesma havia sido apresentada intempestivamente, uma vez que não preenchia os requisitos cumulativos estipulados no nº 4 do artigo 78º da LGT, nomeadamente, a injustiça grave ou notória;
– este centro de arbitragem é materialmente incompetente para apreciar atos em matéria tributária que, sem apreciar a legalidade da autoliquidação, se limitem a indeferir o pedido da Requerente com fundamento em intempestividade, como vem a ser o caso dos presentes autos;
– o meio judicial adequado para contestar a decisão sub judice não é a presente arbitragem, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, disposição legal que legitima a impugnação de atos de liquidação e subsequentes indeferimentos sobre os meios de reação administrativa eventualmente acionados sobre eles, mas antes a ação administrativa, a que se referem os artigos 50.º e 58.º do CPTA;
– a ação administrativa é o meio contencioso adequado para contestar os atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade de atos de liquidação, de acordo com o disposto com a alínea p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT, o que é o caso da decisão de rejeição liminar proferida em sede de revisão oficiosa;
– a administração fiscal só teria o poder/dever de promover a sua revisão se a Requerente tivesse tomado a iniciativa nesse sentido no prazo da reclamação administrativa;
– ultrapassado o aludido prazo, a AT está desobrigada de promover a revisão oficiosa da autoliquidação a favor do contribuinte;
– o pedido de revisão oficiosa só poderia ser aceite à luz daquela norma legal se o erro não for imputável a comportamento negligente da Requerente;
– não é assim desculpável que venha agora lançar mão de meio procedimental, ensaiando uma inexistente “injustiça grave e notória” quando o erro é exclusivamente seu;
– não se entrevê qual a injustiça grave e notória alegada e não provada pela Requerente;
– é inimpugnável a autoliquidação em virtude de a mesma, findo o prazo da reclamação graciosa, se ter já consolidado na ordem jurídica, o que também determina a caducidade do direito de ação.
A Requerente respondeu às excepções, defendendo que elas devem ser julgadas improcedentes.
A questão da existência ou não de injustiça grave ou notória que deva ser fundamento de revisão da matéria tributável em que se baseou a autoliquidação é uma questão que tem a ver com o mérito da causa e não um obstáculo à sua apreciação, que poderia consubstanciar uma excepção.
Por isso, as excepções a considerar são a de da inidoneidade o meio processual, que tem como corolário a incompetência deste Tribunal Arbitral, a questão da inimpugnabilidade da autoliquidação, por o pedido de pronúncia arbitral não ter sido precedido de reclamação graciosa, e a questão da caducidade do direito de acção.
3.1. Questão da incompetência
A Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, exclui do âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira à arbitragem tributária as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do CPPT».
No entanto, está jurisprudencialmente assente que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.
Com efeito, é unânime a jurisprudência do Tribunal Central Administrativo sobre a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD para apreciar a legalidade de actos de autoliquidação na sequência da apresentação de pedidos de revisão oficiosa ( [3] ).
Como se diz no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15 (reproduzindo a decisão arbitral proferida no processo n.º 630/2014-T):
Conforme resulta do art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) a competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação da declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta [alínea a)] e a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais [alínea b)].
Por outro lado, a competência dos tribunais arbitrais depende dos termos da vinculação da Autoridade Tributária (AT) à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos do RJAT. Com efeito, o art. 4.º do RJAT estabelece que «a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos da presente lei depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, que estabelece, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos».
Nos termos da alínea a) do art. 2.º desta Portaria n.º 112-A/2011 ficam excluídas do âmbito da vinculação da Administração Tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».
Considerando aqueles preceitos legais a decisão arbitral concluiu pela viabilidade de apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa, julgando não verificada a excepção de incompetência suscitada. Concordamos na íntegra com todo o discurso fundamentador da decisão arbitral, cuja fundamentação aqui transcrevermos apenas em parte:
“A referência expressa ao precedente «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser interpretada como reportando-se aos casos em que tal recurso é obrigatório, através da reclamação graciosa, que é o meio administrativo indicado naqueles arts. 131.º a 133.º do CPPT, para que cujos termos se remete. Na verdade, desde logo, não se compreenderia que, não sendo necessária a impugnação administrativa prévia «quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária» (art. 131.º, n.º 3, do CPPT, aplicável aos casos de retenção na fonte, por força do disposto no n.º 6 do art. 132.º do mesmo Código), se fosse afastar a jurisdição arbitral por essa impugnação administrativa, que se entende ser desnecessária, não ter sido efectuada.
(...)
Assim, importa, antes de mais, esclarecer se a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão do acto tributário, previstos no art. 78.º da LGT, se inclui nas competências atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD pelo art. 2.º do RJAT.
Na verdade, neste art. 2.º não se faz qualquer referência expressa a estes actos, ao contrário do que sucede com a autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, que refere os «pedidos de revisão de actos tributários» e «os actos administrativos que comportem a apreciação da legalidade de actos de liquidação».
No entanto, a fórmula «declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta», utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não restringe, numa mera interpretação declarativa, o âmbito da jurisdição arbitral aos casos em que é impugnado directamente um acto de um daqueles tipos. Na verdade, a ilegalidade de actos de liquidação pode ser declarada jurisdicionalmente como corolário da ilegalidade de um acto de segundo grau, que confirme um acto de liquidação, incorporando a sua ilegalidade.
A inclusão nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD dos casos em que a declaração de ilegalidade dos actos aí indicados é efectuada através da declaração de ilegalidade de actos de segundo grau, que são o objecto imediato da pretensão impugnatória, resulta com segurança da referência que naquela norma é feita aos actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta, que expressamente se referem como incluídos entre as competências dos tribunais arbitrais. Com efeito, relativamente a estes actos é imposta, como regra, a reclamação graciosa necessária, nos arts. 131.º a 133.º do CPPT, pelo que, nestes casos, o objecto imediato do processo impugnatório é, em regra, o acto de segundo grau que aprecia a legalidade do acto de liquidação, acto aquele que, se o confirma, tem de ser anulado para se obter a declaração de ilegalidade do acto de liquidação. A referência que na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do RJAT se faz ao n.º 2 do art. 102.º do CPPT, em que se prevê a impugnação de actos de indeferimento de reclamações graciosas, desfaz quaisquer dúvidas de que se abrangem nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD os casos em que a declaração de ilegalidade dos actos referidos na alínea a) daquele art. 2.º do RJAT tem de ser obtida na sequência da declaração da ilegalidade de actos de segundo grau.
Aliás, foi precisamente neste sentido que o Governo, na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, interpretou estas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, ao afastar do âmbito dessas competências as «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», o que tem como alcance restringir a sua vinculação os casos em que esse recurso à via administrativa foi utilizado.
Obtida a conclusão de que a fórmula utilizada na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT não exclui os casos em que a declaração de ilegalidade resulta da ilegalidade de um acto de segundo grau, ela abrangerá também os casos em que o acto de segundo grau é o de indeferimento de pedido de revisão do acto tributário, pois não se vê qualquer razão para restringir, tanto mais que, nos casos em que o pedido de revisão é efectuado no prazo da reclamação graciosa, ele deve ser equiparado a uma reclamação graciosa. ( [4] )
A referência expressa ao artigo 131.º do CPPT que se faz no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não pode ter o alcance decisivo de afastar a possibilidade de apreciação de pedidos de ilegalidade de actos de indeferimento de pedidos de revisão oficiosa de actos de autoliquidação.
Na verdade, a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».
(…)
A interpretação extensiva, assim, é imposta pela coerência valorativa e axiológica do sistema jurídico, erigida pelo artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil em critério interpretativo primordial pela via da imposição da observância do princípio da unidade do sistema jurídico.
É manifesto que o alcance da exigência de reclamação graciosa prévia, necessária para abrir a via contenciosa de impugnação de actos de autoliquidação, prevista no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT, tem como única justificação o facto de relativamente a esse tipo de actos não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto, posição essa que até poderá vir a ser favorável ao contribuinte, evitando a necessidade de recurso à via contenciosa.
Na verdade, além de não se vislumbrar qualquer outra justificação para essa exigência, o facto de estar prevista idêntica reclamação graciosa necessária para impugnação contenciosa de actos de retenção na fonte e de pagamento por conta (nos artigos 132.º, n.º 3, e 133.º, n.º 2, do CPPT), que têm de comum com os actos de autoliquidação a circunstância de também não existir uma tomada de posição da Administração Tributária sobre a legalidade dos actos, confirma que é essa a razão de ser daquela reclamação graciosa necessária.
Uma outra confirmação inequívoca de que é essa a razão de ser da exigência de reclamação graciosa necessária encontra-se no n.º 3, do artigo 131.º do CPPT, ao estabelecer que «sem prejuízo do disposto nos números anteriores, quando o seu fundamento for exclusivamente matéria de direito e a autoliquidação tiver sido efectuada de acordo com orientações genéricas emitidas pela administração tributária, o prazo para a impugnação não depende de reclamação prévia, devendo a impugnação ser apresentada no prazo do n.º 1 do artigo 102.º». Na verdade, em situações deste tipo, houve uma pronúncia prévia genérica da Administração Tributária sobre a legalidade da situação jurídica criada com o acto de autoliquidação e é esse facto que explica que deixe de exigir-se a reclamação graciosa necessária.
Ora, nos casos em que é formulado um pedido de revisão oficiosa de acto de liquidação é proporcionada à Administração Tributária, com este pedido, uma oportunidade de se pronunciar sobre o mérito da pretensão do sujeito passivo antes de este recorrer à via jurisdicional, pelo que, em coerência com as soluções adoptadas nos n.ºs 1 e 3 do artigo 131.º do CPPT, não pode ser exigível que, cumulativamente com a possibilidade de apreciação administrativa no âmbito desse procedimento de revisão oficiosa, se exija uma nova apreciação administrativa através de reclamação graciosa. ( [5] )
Por outro lado, é inequívoco que o legislador não pretendeu impedir aos contribuintes a formulação de pedidos de revisão oficiosa nos casos de actos de autoliquidação, pois estes são expressamente referidos no n.º 2 do artigo 78.º da LGT.
Neste contexto, permitindo a lei expressamente que os contribuintes optem pela reclamação graciosa ou pela revisão oficiosa de actos de autoliquidação e sendo o pedido de revisão oficiosa formulado no prazo da reclamação graciosa perfeitamente equiparável a uma reclamação graciosa, como se referiu, não pode haver qualquer razão que possa explicar que não possa aceder à via arbitral um contribuinte que tenha optado pela revisão do acto tributário em vez da reclamação graciosa.
Por isso, é de concluir que os membros do Governo que emitiram a Portaria n.º 112-A/2011, ao fazerem referência ao artigo 131.º do CPPT relativamente a pedidos de declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, disseram imperfeitamente o que pretendiam, pois, pretendendo impor a apreciação administrativa prévia à impugnação contenciosa de actos de autoliquidação, acabaram por incluir referência ao artigo 131.º que não esgota as possibilidades de apreciação administrativa desses actos.
Aliás, é de notar que esta interpretação não se cingindo ao teor literal até se justifica especialmente no caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, por serem evidentes as suas imperfeições: uma, é associar a fórmula abrangente «recurso à via administrativa» (que referencia, além da reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a revisão do acto tributário) à «expressão nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», que tem potencial alcance restritivo à reclamação graciosa; outra é utilizar a fórmula «precedidos» de recurso à via administrativa, reportando-se às «pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos», que, obviamente, se coadunariam muito melhor com a feminina palavra «precedidas».
Por isso, para além da proibição geral de interpretações limitadas à letra da lei que consta do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, no específico caso da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 há uma especial razão para não se justificar grande entusiasmo por uma interpretação literal, que é o facto e a redacção daquela norma ser manifestamente defeituosa.
Para além disso, assegurando a revisão do acto tributário a possibilidade de apreciação da pretensão do contribuinte antes do acesso à via contenciosa que se pretende alcançar com a impugnação administrativa necessária, a solução mais acertada, porque é a mais coerente com o desígnio legislativo de «reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» manifestado no n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, é a admissibilidade da via arbitral para apreciar a legalidade de actos de liquidação previamente apreciada em procedimento de revisão.
E, por ser a solução mais acertada, tem de se presumir ter sido normativamente adoptada (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por outro lado, contendo aquela alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 uma fórmula imperfeita, mas que contém uma expressão abrangente «recurso à via administrativa», que potencialmente referencia também a revisão do acto tributário, encontra-se no texto o mínimo de correspondência verbal, embora imperfeitamente expresso, exigido por aquele n.º 3 do artigo 9.º para a viabilidade da adopção da interpretação que consagre a soluça mais acertada.
É de concluir, assim, que o artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011, devidamente interpretado com base nos critérios de interpretação da lei previstos no artigo 9.º do Código Civil e aplicáveis às normas tributárias substantivas e adjectivas, por força do disposto no artigo 11.º, n.º 1, da LGT, viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”
A Autoridade Tributária e Aduaneira questiona a constitucionalidade desta interpretação sobre o âmbito da vinculação da Autoridade Tributária e Aduaneira aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, mas essa constitucionalidade já foi objecto de apreciação do Tribunal Constitucional que decidiu «não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD». ( [6] )
Nestes termos, aderindo à referida jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul e do Tribunal Constitucional, considera-se que a autoliquidação é impugnável perante este Tribunal Arbitral e que este tem competência para apreciar a sua legalidade, na sequência de decisão de indeferimento de pedido de revisão oficiosa.
3.2. Questão da inidoneidade do meio processual
A questão da idoneidade do meio processual reconduz-se também a uma questão de competência, uma vez que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apenas têm competências para apreciação da legalidade de actos que podem ser objecto de processo de impugnação judicial.
O processo arbitral é meio idóneo para a legalidade de actos de autoliquidação, como decorre do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, sendo um meio alternativo ao processo de impugnação judicial (artigo 124.º, n.º 2, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que concedeu ao Governo autorização legislativa para aprovar o RJAT).
Como vem entendendo uniformemente a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo, apesar do teor das alíneas d) e p) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT,
– «a Impugnação Judicial é o meio próprio de reacção processual desde que no seu âmbito seja pedida a apreciação quer da legalidade da decisão administrativa quer da liquidação, independentemente de a decisão administrativa que constitui o objecto imediato da Impugnação Judicial versar sobre questão meramente formal (designadamente o acto administrativo de indeferimento ter por fundamento a ilegitimidade ou intempestividade da Reclamação Graciosa) quer o indeferimento se funde no mérito ou não acolhimento dos vícios de mérito imputados à liquidação» (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 18-11-2020, processo n.º 0608/13.4BEALM; de 13-10-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR; de 02-02-2022, processo n.º 0848/14.9BEAVR; de 13-09-2023, processo n.º 0294/12.9BEPRT 0326/18; de 06-03-2024, processo n.º 0946/18.0BELRA).
– «numa formulação genérica, o meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar; por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação», (acórdão d 02-02-2022, processo n.º 0848/14.9BEAVR).
À face desta jurisprudência, que está consolidada, desde que a pretensão formulada no processo jurisdicional tenha por objecto a legalidade de acto de liquidação ou autoliquidação, o processo de impugnação judicial é meio adequado para sua apreciação independentemente de a petição ter sido antecedida de um meio de impugnação administrativa em que não foi apreciada a legalidade do acto impugnado.
E, sendo o processo de impugnação judicial o meio adequado, também o será o processo arbitral, que é meio alternativo.
No caso em apreço, a pretensão formulada é de anulação da liquidação de IRC referente ao período de 2021, com fundamento em ilegalidade da autoliquidação por nela ter sido considerada matéria tributável diferente da que deveria ser para cálculo da derrama municipal.
Por isso, está-se perante uma pretensão que podia ser objecto de processo de impugnação judicial e, consequentemente, de processo arbitral.
Para além disso, é manifesto que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa comporta a apreciação da legalidade da autoliquidação, baseando o indeferimento na afirmação da sua legalidade, com o consequente afastamento de ela ter conduzido a uma situação de injustiça grave ou notória.
Assim, improcede a excepção de inidoneidade do meio processual.
3.3. Questão da inimpugnabilidade da autoliquidação
A autoliquidação é, manifestamente, um dos tipos de actos cuja legalidade pode ser apreciada em processo arbitral, pois está expressamente prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
Por outro lado, pelo que se referiu no ponto anterior, pretendendo a Requerente discutir no presente processo a legalidade da autoliquidação, esta é impugnável através de processo arbitral, o que está em sintonia coma jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo citada.
Por isso, improcede a excepção da inimpugnabilidade.
3.4. Questão da caducidade do direito de acção
3.4.1. Prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral na sequência do indeferimento do pedido de revisão
O prazo para impugnar actos dos tipos previstos no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, é de 90 dias a contar «dos factos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma», como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do mesmo diploma.
Um dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT é a «notificação dos restantes actos que possam ser objecto de impugnação autónoma nos termos deste Código», em que se inclui o indeferimento do pedido de revisão oficiosa, por força do disposto no artigo 95.º, alínea d), da LGT.
Aliás, a Autoridade Tributária e Aduaneira, na notificação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa referiu expressamente que a decisão era impugnável nos termos do artigo 102.º do CPPT (página 113 do processo administrativo).
Assim, o pedido de pronúncia arbitral podia ser apresentado no prazo de 90 dias a contar da notificação do indeferimento do pedido de revisão oficiosa.
A notificação do indeferimento do pedido de revisão oficiosa foi efectuada por ofício datado de 24-07-2024 e o pedido de constituição do tribunal arbitral foi apresentado em 15-10-2024, pelo que é manifesto que o pedido foi apresentado tempestivamente.
3.4.2. Questão da intempestividade do pedido de revisão oficiosa
A intempestividade do pedido de pronúncia arbitral não implica a caducidade do direito de acção, mas pode afectar a impugnabilidade do acto de indeferimento, por se ter formado caso decidido ou resolvido sobre a autoliquidação.
Dos vários fundamentos de revisão oficiosa previstos no artigo 78.º da LGT, a Requerente apenas defende a sua admissibilidade à face dos n.ºs 4 e 5, em que se prevê a possibilidade de revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória.
Nos termos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT, «o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte».
Como decorre do n.º 7 do mesmo artigo 78.º, a intervenção do dirigente máximo do serviço pode ser efectuada na sequência de pedido do contribuinte.
O acto de autoliquidação foi praticado em 19-05-2022, data da apresentação da declaração modelo 22 relativa ao exercício de 2021 ocorreu em 05-06-2024.
Como o pedido de revisão foi apresentado ao abrigo do n.º 4 daquele artigo 78.º, o mesmo podia ser apresentado até ao termo dos três anos posteriores ao do acto tributário, isto é, até 31-12-2025, termo do terceiro ano posterior ao da autoliquidação.
Por isso, não de formou caso decidido ou resolvido, pelo não caducou o direito de acção nem se formou caso decidido ou resolvido sobre o acto de autoliquidação impugnado.
Improcedem, assim, as excepções.
4. Matéria de direito
4.1. Posições das Partes
A Requerente apresentou à Autoridade Tributária e Aduaneira um pedido de revisão da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2021, «na medida em que enferma de erro de direito para o qual não contribuiu qualquer negligência da Requerente, mas do qual resulta injustiça grave ou notória, nos termos do artigo 78.° da LGT, com vista à reposição da legalidade do ato tributário em causa».
A Autoridade Tributária e Aduaneira indeferiu o pedido baseando-se, em suma, no entendimento de que «não se acolhem as alegações suscitadas pela requerente, no sentido de defender que na base de cálculo da derrama municipal são considerados apenas os rendimentos obtidos em território nacional» e que «o mesmo é dizer que não se conclui pela existência de situação de injustiça grave ou notória na autoliquidação controvertida, pelo que improcede a revisão a que alude o nº 4 do artigo 78.º da LGT».
Como já se referiu no ponto 2.2.3., nos casos em que uma decisão administrativa mantém uma autoliquidação em decisão fundamentada, a fundamentação relevante para aferir a legalidade é que a que nessa decisão foi utilizada, sendo irrelevante qualquer fundamentação a posteriori.
Nomeadamente, não baseando a Requerente o seu pedido de pronúncia arbitral em erro imputável aos serviços enquadrável no n.º 1 do artigo 78.º, não releva para o presente processo o que a Autoridade Tributária e Aduaneira diz na sua resposta sobre essa matéria e a inimputabilidade do erro aos serviços.
Assim, as questões que são objecto do presente processo são a de saber se os rendimentos de fonte estrangeira auferidos pela Requerente devem ser excluídos no cálculo da Derrama Municipal, no exercício de 2021 e, em caso afirmativo, se deveria ser efectuada a revisão ao abrigo dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT.
A Requerente defende, em suma, que:
– a derrama municipal a pagar resultará da aplicação de uma taxa (não superior a 1,5%), a fixar por cada município, à parte do lucro tributável que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua circunscrição geográfica (cfr. artigo 18.º, n.º 1, da LFL);
– o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município – o qual é formado exclusivamente por rendimentos de fonte portuguesa – é determinado através da proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional (cfr. artigo 18.º, n.º 2, da LFL);
– falta de conexão entre o território português (e consequentemente qualquer um dos seus municípios) e a produção dos rendimentos em causa, pelo que se verifica a ausência de base legal legitimadora de tributação desses mesmos rendimentos pelo poder local, através da incidência de derrama municipal sobre os mesmos;
– era impossível o preenchimento da declaração Modelo 22 nos termos supra expostos, o que necessariamente redunda na ilegalidade dos atos tributário e decisório sub judice, por violação do artigo 18.º, n.º 1, da LFL, porquanto da base de incidência da derrama municipal – i.e., da proporção do lucro tributável relativa aos rendimentos gerados na área geográfica dos municípios portugueses – não são expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro:
– ocorreu errónea quantificação da base tributável da derrama municipal, o que causou um valor de derrama municipal apurado em excesso;
– está-se perante injustiça grave, porquanto do ato tributário em causa resultou, em 2021, tributação indevida no montante total de 99.545,41 Euros, o que representa um agravamento muito significativo do encargo de imposto suportado pela Requerente,;
–está-se perante injustiça notória, pois está em causa uma situação de sujeição a tributação a título de derrama municipal, de rendimentos não abrangidos pela própria norma de incidência do tributo, concretamente o n.° 1 do artigo 18.° da Lei das Finanças Locais (doravante, “LFL"), aprovada pela Lei n.° 73/2013, de 3 de setembro, e republicada pela Lei n.° 51/2018, de 16 de agosto, ao que acresce ter a Requerente sido forçada a sujeitar tais rendimentos a derrama municipal, por inadmissibilidade, a nível do sistema informático de submissão da declaração Modelo 22, da individualização dos rendimentos provenientes do estrangeiro;
– a Requerente não agiu de modo negligente, já que o incorreto apuramento do montante de derrama municipal devido decorreu exclusivamente de imposição do próprio sistema informático da AT.
A Autoridade Tributária e Aduaneira, no que não constitui fundamentação a posteriori, defende a posição assumida na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, dizendo ainda, em suma, que:
– a revisão ao abrigo do n. 4 do artigo 78.º da LGT só pode efectuar-se quando o erro não for imputável comportamento negligente do contribuinte e, neste caso, a Requerente não diligenciou em obter uma interpretação mais segura e oficial, através da submissão de um pedido de informação vinculativa junto da Requerida e só detectou o erro passados dois anos sobre a data da submissão da autoliquidação;
– o entendimento defendido pela Requerente acarreta graves dissonâncias tais como, por um lado, considerando que o legislador integra no cálculo da "fracção do IRC" nos termos do artigo 91.º nº.1, al. b), do CIRC, para efeitos dedução à coleta, a derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro é porque os mesmo estão sujeitos a ela, e por outro, em caso de perdas resultantes de operações económicas realizadas no estrangeiro, teriam as mesmas de ser acrescidas ao lucro tributável sujeito e não isento de IRC apurado, para efeitos de determinação da derrama municipal;
– nos termos do disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque e não basta com uma simples operação aritmética de subtração nomeadamente e apenas do valor dos rendimentos obtidos no estrangeiro, sem dar relevância aos gastos.
4.2. Questão da inclusão dos rendimentos de fonte estrangeira no cálculo da derrama municipal
O artigo 14.º da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, republicada pela Lei n.º 51/18, de 16 de Agosto), estabelece que constituem receitas dos municípios «o produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18.º».
No artigo 18.º da mesma Lei estabelece-se, além do mais, que
1. Os municípios podem deliberar lançar uma derrama, de duração anual e que vigora até nova deliberação, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território.
2 - Para efeitos de aplicação do disposto no número anterior, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a (euro) 50 000 o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
A questão de saber se os rendimentos de fonte estrangeira devem ser considerados para efeitos de determinação do lucro tributável relevante para liquidação de derrama municipal foi objecto de decisão pelo Supremo Tribunal Administrativo, num caso substancialmente idêntico ao destes autos, no acórdão de 13-01-2021, proferido no processo n.º 3652/15.3BESNT, em que refere, além do mais, o seguinte:
“... o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município" envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município", em que se situa a sede ...
Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecia a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à "proporção", à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.
Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os mais lógicos objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente ... certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas" e devem respeitar "os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material" (Artigo 5º da Lei Geral Tributária (LGT), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo...
Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de isoláveis parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a "massa salarial", ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).
Obviamente, não é incorreto afirmar ... que, na LFL, "nada se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas ..., a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do artº 4º, do CIRC”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável, (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, "relativamente ligeira"”.
Para além disso, como se refere na decisão arbitral proferida no processo n.º 211/2023-T:
A presente análise exige ainda o respetivo enquadramento constitucional, no quadro da autonomia financeira dos municípios (e das freguesias), enquanto vetor central da autonomia local (artigo 238.º CRP) estabelecendo-se que, “(…) As autarquias locais têm património e finanças próprios”, sendo que “(…) As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços», podendo «(…) dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.»
Desta forma, “o que legitima a atribuição de poderes tributários às autarquias locais é, fundamentalmente, o seu nível de estruturação política e administrativa, pois, tal como sucede com as regiões autónomas, elas têm como base uma representação directa dos cidadãos eleitores.” [7] Pelo que, “Só assim se pode entender que a Lei das Finanças Locais possa atribuir às Assembleias Municipais algum espaço de decisão, alguma autonomia no sentido próprio de auto-governo, em matéria tributária quanto à criação de taxas e no lançamento de derramas.” [8]
Neste contexto, «(…), as derramas constituem uma manifestação tradicional do poder tributário dos órgãos do Poder Local, cuja origem se descobre nas antigas fintas que os concelhos podiam lançar para ocorrer aos encargos que excedessem as suas rendas (Ordenações, Livro I, Tít. 66, § 40). Este poder tributário permaneceu, com algumas oscilações, nos vários Códigos Administrativos que se sucederam, entre nós, desde o Código de 1836 ao Código de 1936-1940 (cfr. o artigo 781.º deste último Código, quanto à faculdade de lançamento de derramas pelas freguesias) e chegou até aos diplomas sobre finanças locais aprovados já no domínio da Constituição de 1976 (…)» [9].
Sendo assim certo que «a derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP. E que, “(…) a autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (…)»[10], os poderes tributários locais são, por natureza, limitados, não podendo ser exercidos para além do âmbito de interesses locais da própria representação e legitimação democrático-representativa subjacente.
Assim, como se refere no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13-01-2021:
“Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)”.
Na linha desta jurisprudência, que também serviu de fundamento à decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 29/2024-T e a que se adere, é de concluir que a Requerente tem razão ao defender que sobre o lucro tributável que resulte de rendimentos obtidos fora do território português não deve incidir derrama municipal.
A derrama está directamente correlacionada com os rendimentos gerados na área geográfica de cada município, incidindo a tributação apenas sobre a proporção do rendimento realizado pelos sujeitos passivos na respectiva circunscrição municipal, pelo que não há fundamento para serem também considerados rendimentos obtidos fora dessa circunscrição, nomeadamente de fonte estrangeira, ainda que estes concorram para a formação do lucro tributável de IRC, uma vez que, em qualquer caso, não se trata de rendimentos gerados na área de nenhum município.
Aliás, como se diz no acórdão arbitral proferido no processo n.º 948/2023-T, tendo em consideração o critério de repartição de receita relativamente a sujeitos passivos com estabelecimento estável ou representação local em mais de um município, que resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 73/2013, e assenta no lucro tributável imputável à circunscrição de cada município, será de perguntar como seria possível efectuar a partilha entre municípios relativamente aos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo no estrangeiro, quando a norma é clara ao estabelecer um critério de imputação a cada município com base na proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.
Refira-se ainda que o que a Autoridade Tributária e Aduaneira refere sobre o artigo 91.º do CIRC e a inclusão da derrama no conceito de «fração de IRC» aí utilizado, não tem qualquer relação com o caso em apreço, pois não está em causa dedução de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional.
De qualquer modo, sempre se dirá, a título de obter dictum, que o que aí está em causa é a definição do âmbito do conceito de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, para efeitos de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, em que a jurisprudência citada pela Autoridade Tributária e Aduaneira tem considerado englobada a derrama municipal, adoptando um conceito lato de IRC, abrangendo a globalidade dos impostos sobre rendimento. Mas, desta inclusão da derrama no valor global do «imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas» a considerar para este efeito, nada tem a ver com a origem dos rendimentos, pois, independentemente dessa origem, esse valor global, em que se inclui o valor da derrama, pode ser utilizado, com limites, para efeitos de dedução de crédito por dupla tributação jurídica internacional, pelo menos quando for insuficiente a colecta de IRC, em sentido restrito, como consta das instruções de preenchimento da declaração modelo 22 aprovadas pelo Despacho n.º 314/2021, publicado no Diário da República, II Série, Parte C, de 11-01-2021, em se refere:
Campo 379 – Dupla tributação jurídica internacional – Países com CDT
• Quando o sujeito passivo tenha obtido rendimentos em país com o qual tenha sido celebrada Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que sejam tributados nos dois Estados, a dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional pode ser efetuada até à concorrência do somatório da coleta total (campo 378) e da derrama municipal (campo 364).
• Este campo só deve ser preenchido quando o crédito de imposto relativo à dupla tributação jurídica internacional não pôde ser integralmente deduzido no campo 353, por ser superior à coleta total (campo 378). O valor excedente, se respeitar a países com CDT, pode ser deduzido neste campo até à concorrência do valor da derrama municipal inscrito no campo 364.
Refira-se ainda que, como decidiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão citado, para cálculo da derrama municipal, há que «retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território», independentemente dos gastos suportados para os obter, que relevam para determinação do lucro tributável de IRC.
Consequentemente, é de concluir que a autoliquidação de derrama municipal relativa ao exercício de 2021 enferma de ilegalidade, por erro de interpretação do artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, da Lei das Finanças Locais.
4.3. Questão do dever de revisão da matéria tributável da derrama municipal, com fundamento em injustiça grave ou notória
Os n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT estabelecem o seguinte:
4. O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.
5. Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.
A revisão da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, prevista no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, que a Requerente pediu, é um afloramento do dever de revogação de actos ilegais, que emerge do princípio a legalidade da actuação da Administração Tributária (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT).
Trata-se de uma solução legal resultante da ponderação concomitante dos princípios da segurança jurídica (que justifica a inimpugnabilidade por decurso do prazo normal de impugnação) e da justiça, admitindo-se o sacrifício do primeiro em situações em que a sua aplicação se reconduz a uma injustiça grave, ostensiva e inequívoca, como definida no n.º 5 do artigo 78.º da LGT.
Mas, esta possibilidade de revisão da matéria tributável no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, admitida como excepção à regra da inimpugnabilidade de actos «consolidados». está prevista em termos mais restritos do que aqueles em que podem ser tempestivamente impugnados os actos de liquidação, pois, por um lado, só a injustiça grave ou notória é fundamento de revisão (e não qualquer ilegalidade), e , por outro lado, o prazo é os «três anos posteriores ao do acto tributário», em vez dos quatro previstos no n.º 1, mesmo que o erro seja imputável à Administração Tributária, e a revisão é afastada quando o erro for imputável a comportamento negligente do contribuinte.
Apesar de no n.º 4 do artigo 78.º da LGT se referir que «o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente» a «revisão da matéria tributável», trata-se de um poder-dever, estritamente vinculado, cujo cumprimento é sujeito a controle jurisdicional, como tem entendido o Supremo Tribunal Administrativo:
– «o facto de a lei determinar que “o dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente,” a revisão, não obsta à possibilidade de convolação da reclamação graciosa em pedido de revisão com fundamento em injustiça grave ou notória pois tal poder de autorização não é mera faculdade mas, antes, um verdadeiro poder-dever»; trata-se de «um poder estritamente vinculado»; ( [11] )
– «a previsão constante do dito art. 78.º n.º 4, como excepcional, é de entender como correspondendo a um poder-dever que implica a sua aplicação a todos os casos, verificados que sejam os referidos requisitos». ( [12] )
Por outro lado, como decorre do n.º 7 do artigo 78.º da LGT, esta revisão com fundamento em injustiça grave ou notória pode ser efectuada a pedido do contribuinte e, neste caso, pode ser efectuada após o prazo de três anos, pois o pedido do contribuinte interrompe o prazo inicial, contando-se um novo prazo a partir da apresentação do pedido. ( [13] )
Nestas situações em que o erro está na fixação da matéria tributável e não propriamente nos subsequentes actos de liquidação, a revisão não depende da existência de erro imputável aos serviços ou de ilegalidade desses actos, mas apenas que se esteja perante «injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte».
4.3.1. Exigência de que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte
Foi a Requerente quem declarou o montante de lucro tributável relevante para a determinação do valor da derrama municipal, mas a aplicação informática imposta pela Autoridade Tributária e Aduaneira para o preenchimento da declaração modelo 22 de IRC não permitia à Requerente indicar no campo 1 do quadro 3 do anexo A outro valor que não fosse o que constava do campo 302 do quadro 9 daquela declaração (mais o do campo 313 se houvesse rendimentos a serem tributados a taxa reduzida).
Neste contexto, o erro que consubstancia a inclusão dos rendimentos de fonte estrangeira no valor referido no campo 302 do Anexo A para efeitos de determinação do valor da derrama municipal, não pode deixar de considerar-se «não imputável a comportamento negligente do contribuinte», para efeitos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT, pois é manifesto que o erro é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que impôs a utilização da aplicação informática que não permitia declaração diferente.
De resto, na decisão do pedido de revisão oficiosa a Autoridade Tributária e Aduaneira não invoca comportamento negligente da Requerente como fundamento para indeferimento, pelo que a invocação que é feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sua resposta constitui fundamentação a posteriori, que é irrelevante para apreciação da legalidade da decisão, como se referiu.
4.3.2. Existência de uma situação de injustiça grave ou notória
No caso em apreço, a Requerente autoliquidou derrama municipal com inclusão de rendimentos de fonte estrangeira no valor elevado (€ 6.636-360.82), que tiveram como corolário um valor elevado de excesso de derrama municipal.
Mesmo considerando que possa haver gastos relacionados com a obtenção de rendimentos, que devam ser considerados na determinação do lucro tributável relevante para efeitos de derrama municipal, como pertinentemente defende a Autoridade Tributária e Aduaneira, perante a natureza dos rendimentos, provenientes de títulos, é de presumir, à face das regras da experiência, que esses gastos sejam de montante reduzido, pois é diminuta a actividade necessária para obtenção de rendimentos desse tipo.
Por isso, é de concluir que o valor da derrama municipal pago a mais, excederá mais do dobro da alçada dos tribunais centrais administrativos, o que justifica que se conclua que se está perante uma situação de «tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade», para efeitos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT.
Assim, é de concluir que a decisão do pedido de revisão oficiosa, ao ter indeferido a pretensão da Requerente, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, assente em errada interpretação do artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, da Lei das Finanças Locais e dos n.ºs 4 e 5 do artigo 78.º da LGT.
Este vício justifica a anulação da autoliquidação e da decisão de indeferimento do pedido de revisão que a manteve, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
5. Pedido de restituição de quantias pagas com juros indemnizatórios
A Requerente pagou a quantia autoliquidada e pede reembolso da quantia de € 99.545,41, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c) e artigo 100.º da LGT.
5.1. Pedido de restituição de quantia paga
Na sequência da anulação parcial da autoliquidação e da anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, a Requerente, que pagou a quantia autoliquidada, tem direito a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente, o que é consequência da anulação.
Sendo contestado pela Autoridade Tributária e Aduaneira o valor a reembolsar e sendo atribuída à Autoridade Tributária e Aduaneira a competência para concretizar a execução de julgados arbitrais (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT), esse valor deverá ser determinado em execução do presente acórdão.
5.2. Juros indemnizatórios
A Requerente pede juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT.
A alínea c) do n.º 3 artigo 43.º da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária».
O pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 05-06-2024 e foi decidido em 23-07-2024.
Assim, é manifesto que não decorreu mais de um ano entre a data do pedido e a da decisão, pelo que não se verifica o pressuposto exigido pela alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, invocada pela Requerente.
Por isso, improcede o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de juros indemnizatórios.
6. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
-
Julgar improcedentes as excepções invocadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2024... e anulação parcial da autoliquidação de IRC plasmada na declaração n.º..., referente ao período 2021, na parte relativa à determinação do valor da derrama municipal;
-
Julgar procedente o pedido de reembolso de quantia paga e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente o que for liquidado em execução da presente decisão arbitral;
-
Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 99.545,41, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 24-02-2025
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(João Taborda da Gama)
(André Festas da Silva)
( [1] ) Sobre este ponto pode ver-se ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 432.
( [2] ) E, eventualmente, com alcance diferente do que o ónus da prova possa assumir no processo civil, o que não interessa aqui esclarecer.
[3] Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 27-04-2017, processo n.º 8599/15; de 25-06-2019, processo n.º 44/18.6BCLSB; de 11-07-2019, processo 147/17.4BCLSB; de 13-12-2019, processo n.º 111/18.6BCLSB; de 11-03-2021, processo n.º 7608/14.5BCLSB; de 26-o05-2022, processo n.º 97/16.6BCLS; de 12-05-2022, processo n.º 96/17.6BCLSB
[4] Como se entendeu no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12-6-2006, proferido no processo n.º 402/06.
[5] Essencialmente neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 12-7-2006, proferido no processo n.º 402/06, e de 14-11-2007, processo n.º 565/07.
[6] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 244/18, de 11-05-2018, processo n.º 636/17.
[7] Saldanha Sanches, J.L., Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2002, p. 40.
[9] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, Processo n.º 405/88, de 16 e fevereiro de 1995.
[10] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013, Processo n.º 602/12, de 9 e abril de 2013.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07-10-2009, processo n.º 0476/09.
No mesmo sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 02-11-2011, processo n.º 329/11 e de 14-12-2011, processo n.º 366/11.
[12] Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17-02-2021, processo n.º 39/14.9BEPDL 0578/18.
[13] Como está ínsito no conceito de «interrupção», explicitado no artigo 326.º do Código Civil.