Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 966/2024-T
Data da decisão: 2025-02-28  IRC IVA  
Valor do pedido: € 55.644,11
Tema: Facturas falsas. Operações simuladas-IVA-Dedução e IRC-Dedutibilidade de gastos.
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SUMÁRIO

  1. Quando a AT desconsidera facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras dos ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária LGT, competindo-lhe fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, que existem indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade, passando então a incidir sobre o sujeito passivo do imposto o ónus probatório da veracidade da transacção.

 

  1. A AT não necessita demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo, exigindo-se, contudo, que alegue factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas, serem simuladas, ilidindo-se a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados que constam da sua contabilidade, consagrada no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A Árbitra Clotilde Celorico Palma, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar Tribunal Arbitral, constituído em 25-10-2024, decide o seguinte:

 

I. Relatório

 

1. A..., LDA, pessoa colectiva n.º ..., com sede em ..., ...-... ... (adiante designada por “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC) n.º 2023... e respectivos juros compensatórios e das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) n.ºs 2023..., 2023... e 2023... e respectivos juros compensatórios, todas relativas ao ano de 2020, bem como a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024... que deduziu dessas liquidações.

A Requerente solicita o reembolso do imposto que já pagou (e que está a pagar em prestações), acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “AT” ou “Administração Tributária”).

 

3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 23-8-2024.

 

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como Árbitra do Tribunal singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5. Em 7-10-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 25-10-2024.

 

7. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, alegando, em síntese, que foram coligidos pela inspecção tributária indícios objectivos, sólidos e consistentes, que traduzem uma probabilidade elevada de que as facturas emitidas pela “B...” não titulam operações reais, de forma a ver legitimada a sua actuação.

 

8. Em suma, a Requerente invoca que, “ 55. Com efeito, as conclusões formuladas pela AT no seu relatório, assentam em exclusivo, em conclusões obtidas em procedimento de inspecção tributaria realizados a entidades terceiras, não só à. B..., mas também a outras entidades com as quais o SP nem sequer se relaciona.

(…)

72. É pois evidente que o relatório de onde resultam as liquidações reclamadas enferma do vício apontado no acórdão supra citado, violando o disposto no art.º 19 n.º 3 do código do IVA e art.º 23º do código do IRC.

73. O aludido relatório limita-se a assumir a presunção obtida no âmbito de uma accão inspectiva realizada junto das sociedades B... e seus fornecedores, adoptando as conclusões ali obtidas e fazendo incidir a linha de raciocínio então seguida, para as aplicar ao SP.

74. O qual resultaria do facto do responsável pelo Relatório da Inspecção Tributária, que aqui se dá por integralmente reproduzido, haver considerado que as facturas emitidas pela  B..., relacionadas com a prestação de serviços ao SP, não titulam operações económicas efectivas (facturas falsas), logo não podem ser assumidas como um custo de produção e nem o seu IVA ser dedutível.

75. O que, como vimos, é totalmente falso, já que todas as transacções realizadas entre o SP e a B... correspondem a transacções efectivas, desconhecendo e não tendo que conhecer, a relação que a B... tem com os seus fornecedores ou entidades a quem subcontrata.

 

 

9. Tendo sido arroladas testemunhas, a saber C..., D... e E..., foi marcado o dia 17-2-20225 para proceder à respectiva inquirição.

 

10. Em 4-2-2025 a Requerente apresentou um Requerimento com o seguinte teor:”(:..)b) No mesmo contexto em que foi realizado o relatório de inspecção tributária quanto a este ano de 2020, foi realizado um outro, exactamente com os mesmos fundamentos, quanto ao ano de 2019;

c) Em ambos os casos tendo como fundamento transacções realizadas com a sociedade B... .

d) Os argumentos usados pelo Inspector Tributário quanto ao ano de 2019, são essencialmente os mesmos que os usados para o ano de 2020.

e) Existe, portanto, uma identidade absolutamente, seja de partes seja de objecto.

f) Ora, tal como para as liquidações relativas a 2020, foi realizado pedido de pronuncia arbitral quanto à impugnação das liquidações quanto ao ano de 2019.

g) O qual correu os seus termos no processo com o numero 968/2024-T;

h) Que teve já decisão proferida nos autos, na qual, foi determinada a anulação das liquidações, julgando-se procedente o pedido de pronuncia arbitral – cfr. Doc que se anexa.

i) Tendo, na reunião a que alude o art.º 18 do RJAT sido produzida prova testemunhal, que será repetida nestes autos, cremos que a mesma pode ser aproveitada nos presentes autos, por razões de economia processual.

j) Sendo certo que, foi ouvida a testemunha F... que até ao momento não se encontra indicada mas que se irá requerer a sua audição, caso a prova não venha a ser aproveitada, o que desde já se requer. Pelo que, se requer seja dado provimento ao agora peticionado ao abrigo do disposto no artigo 421.º do CPC, aplicável ex vi pela alínea e) do art.º 29 do RJAT, seja deferido o aproveitamento, nos presentes autos, da gravação da prova testemunhal produzida no âmbito do processo n.º 968/2024T –T.

Mais se requer seja admitida a junção aos autos da decisão proferida naqueles autos e cuja matéria é, em tudo idêntica, às dos presentes.”

 

11. Em 4-2-2025, proferiu este Tribunal Despacho a deferir pedido de aproveitamento da gravação da prova testemunhal produzida no âmbito do Processo n.º 968/2024–T, formulado pela Requerente, admitindo a junção aos autos da decisão proferida naqueles autos, ficando assim sem efeito a diligência marcada para dia 17-2-2025.

 

12. Em 14-2-2025, proferiu este Tribunal despacho para se notificar a Requerida para, no prazo de 5

dias

, juntar aos autos o processo administrativo, dispensando-se a apresentação de alegações, ao abrigo do disposto no artigo 16.º do RJAT, e referindo-se que até 28 de Fevereiro de 2025 seria proferida a Decisão.

 

 

13. Em 18-2-2025, a Requerida veio juntar o processo administrativo.

 

14. Em 19-2-2025, proferiu este Tribunal Despacho a solicitar à Requerida a junção ao processo do Relatório de Inspecção Tributária que teve início com a ordem de serviço n.º OI2022..., subjacente às liquidações reclamadas, que propõe a realização de correcções técnicas  à matéria tributável em sede de IVA e IRC relativas ao ano de 2020.

 

15. Em 24-02-2025, proferiu este Tribunal o seguinte Despacho: Atendendo a que a Requerida não juntou ao Processo administrativo entregue em 17.2.25 o Relatório de Inspecção Tributária, tendo este Tribunal solicitado a sua junção em 19.2.25, rectifica-se o nosso Despacho de 14.2.25 no tocante o prazo de decisão, que será emitida até 17.3.25.”

 

16. Em 26-2-2025, a Requerida veio juntar o Relatório de Inspecção Tributária solicitado.

 

17. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

 

18. As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

19. O processo não enferma de nulidades.

 

II. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. Foi realizada uma inspecção à Requerente ao exercício de 2020 a coberto da ordem de serviço n.º OI2022...;

 

  1. Nessa inspecção foram efectuadas correcções em sede de IRC e IVA no montante total de 55.644,11€;

 

  1. Na referida inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (“RIT”) que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, nomeadamente, o seguinte:

 

 

 

B...

 

 

 

 

B...

B...

B...

B...

 

 

K...

B...

B...

H...

I...

B...

J...

B...

I...

J...

I...

J...

H...

I...

 

D...

H...

G...

B...

D...

A...

 

 

 

 

B...

A...

B...

 

 

B...

B...

B...

B...

B...

 

 

 

B...

B...

B...

B...

B...

 

 

B...

B...

B...

B...

 

 

 

B...

B...

 

 

 

B...

 

B...

B...

B...

B...

A...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A...

 

 

D...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

B...

B...

B...

A...

A...

B...

B...

A...

A...

 

 

 

A...

B...

 

L...

M...

 

 

 

A...

B...

B...

B...

J...

J...

J...

J...

J...

J...

J...

J...

J...

J...

J...

 

B...

B...

J...

A...

B...

A...

B...

B...

A...

B...

 

 

B...

B...

 

 

 

 

 

 

 

B...

A...

A...

B...

J...

B...

 

 

 

 

  1. Na sequência da inspecção foram emitidas, quanto ao ano de 2020, as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas n.º 2023... (IRC) e de Imposto sobre o Valor Acrescentado n.ºs 2023..., 2023... e 2023..., (IVA) no valor total de Eur: 55.644,11€, e consequentes juros e coimas;

 

  1. Em 20-2-2024, a Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações, que veio a ter o n.º ...2024...;

 

  1. A reclamação graciosa foi indeferida por despacho de 6-5-2024, proferido pelo Chefe de Divisão da Direcção de Finanças do Porto, ao abrigo de delegação de competências;

 

  1. Nos termos da decisão de indeferimento da reclamação graciosa conclui-se o seguinte:

“Quanto ao art.º 75.º da LGT alegado pela reclamante, efetivamente, de acordo com aquele articulado, presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita. É por esse motivo que, regra geral, as declarações submetidas são aceites e liquidadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira. No entanto, tal presunção não obsta à atuação da inspeção tributária nos termos do art.º 2.º do Regime Complementar do procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) e correção dos apuramentos efetuados pelos contribuintes. Quanto à jurisprudência invocada, a mesma apenas vincula a AT quanto aos casos concretos que nela foram apreciados, não vinculando para os restantes contribuintes. Analisando agora a atuação da Inspeção Tributária, de referir que, durante o procedimento inspetivo, foram pedidos elementos que justificassem as operações entre a reclamante e a sociedade B..., precisamente com o intuito da descoberta da verdade material, em cumprimento do princípio do contraditório previsto no art.º 8.º do RCPITA. Ou seja, foram realizadas as diligências necessárias para atingir esse objetivo. De referir ainda que, na elaboração do RIT, mais concretamente no decorrer de todo o ponto V.1, foi tido o cuidado de enunciar os factos e conclusões relevantes para o procedimento inspetivo da reclamante, incluindo a análise da documentação fornecida pela reclamante, sendo perfeitamente percetível os motivos que levaram a considerar que as operações tituladas pelas faturas emitidas pela B... para a reclamante não são efetivas operações económicas realizadas entre si. No que diz respeito às conclusões do RIT assentarem em conclusões de outros procedimentos inspetivos, nos termos do n.º 1 do art.º 77.º da LGT, a decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária, de onde se retira que as conclusões estão dentro da lei. Em termos do cumprimento do princípio da participação previsto nos arts.º 60.º do RCPITA e 60.º da LGT, não se concorda com a reclamante, uma vez que, conforme indicado no RIT, a reclamante foi notificada para exercer o direito de audição, tendo-o exercido. Finalmente, analisada a argumentação da reclamante sobre as faturas emitidas pela B..., verifica-se que não é apresentado qualquer elemento/esclarecimento que pudesse justificar a real existência de operações económicas, baseando a referida argumentação na atuação da inspeção tributária e na forma de elaboração do RIT. Desta forma, verifica-se que não são apresentados novos elementos que permitam contrariar a posição da Inspeção Tributária. Face do exposto, remete-se e concorda-se com as conclusões do RIT, sendo por isso de manter as correções efetuadas pela inspeção tributária em termos de IVA e IRC, concluindo-se pela manutenção das liquidações reclamadas, sendo de indeferir o pedido, devendo a reclamante ser notificada, nos termos e para os efeitos do art.º 60.º da LGT.”

 

  1. Em conformidade com os factos dados como provados no aludido Processo n.º 968/2024-T:

 

“H) A Requerente fabrica calçado tendo em 2019 cerca de 200 trabalhadores (depoimento da testemunha C...);

 

  1. A Requerente partilha as suas instalações com outra empresa trabalhadores (depoimento da testemunha C...);

 

  1. Em 2019 a Requerente produziu mais de um milhão de sapatos (depoimento da testemunha C...);

 

 

  1. A Requerente fazia o corte dos sapatos, costurava, montava, colava e fazia  acabamento, mas recorria subcontratados para realizarem algumas ou todas dessas actividades, fornecendo a matéria-prima (depoimentos das testemunhas C..., E... e F...);

 

  1. Em 2019, a Requerente dispunha de mais de 15 empresas subcontratadas (depoimentos das testemunhas E... e F...);

 

  1. A Requerente não dispunha de trabalhadores para realizar todas a sua produção (depoimentos das testemunhas C... e E...);

 

  1. Em 2019, cerca de 98% da produção da Requerente destinava-se a exportação (depoimentos das testemunhas C... e E...);

 

  1. A B... Unipessoal Lda (“B...”) era uma das subcontratadas da Requerente (depoimentos das testemunhas C..., E... e F...);

 

  1. Todas as facturas de compras eram verificadas pela testemunha C..., só depois sendo pagas pela contabilidade (depoimentos das testemunhas C... e E... e documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

  1. A Requerente dispunha de controladores, que acompanhavam  produção, na empresa e fora dela (depoimentos das testemunhas C... e F...);

 

  1. Em 2019, os contactos com os subcontratados eram presenciais (depoimento da testemunha C...);

 

  1. O transporte para a B... e destes para a Requerente era feito em veículos daquela ou da Requerente (depoimentos das testemunhas C... e F...);

 

  1. A B... dispunha de uma viatura do tipo furgão que transportava mais de 1000 pares de sapatos  (depoimento da testemunha F...);

 

  1. Na pandemia, em 2020, o cliente principal cancelou muitas encomendas, o que teve como consequência que houve subcontratados que pararam ou mudaram de actividade (depoimentos das testemunhas C... e E...);

 

  1. A B... dispunha de instalações onde realizava os trabalhos subcontratados (depoimentos das testemunhas C... e F...);

 

  1. A B... é uma empresa familiar (depoimento da testemunha e F...);

 

  1. A B..., além das instalações onde era a sua sede,  possuía um arrendamento de um pavilhão industrial, sito no ..., em..., ..., onde exercia a sua actividade (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

 

  1. Em inspecção anteriores, aos anos de 2017 e 2018, os serviços de inspecção tributária não colocaram qualquer obstáculo à relevância das facturas emitidas pela B..., relativas a actividades dos tipos das realizadas em 2019 (depoimentos das testemunhas C... e E... e documentos n.ºs 1, 2, 4 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

 

  1. Os pagamentos à B... eram efectuados por transferência bancária 2019 (depoimentos das testemunhas C... e E... e RIT);

 

  1. A Requerente encontra-se a fazer pagamento em prestações das quantias liquidadas (afirmação feita na página 13 do pedido de pronúncia arbitral, não questionada);

 

 

2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

2.1. Não se consideram provados os factos referidos no RIT relativos a inspecções tributárias não dirigidas à Requerente.

Tal como ocorreu no aludido Processo n.º 968/2024-T, não foi apresentado no presente processo nenhum elemento de prova eventualmente existente nesses outros processos inspectivos sobre os factos referidos nos respectivos relatórios.

Por outro lado, carecem de relevância probatória os juízos de facto formulados nos relatórios referentes a inspecções a essas outras entidades, dado que foram emitidos sem que a Requerente pudesse apresentar, em relação às provas que eventualmente existissem nesses processos inspectivos, a contraprova a que tem direito, nos termos do artigo 347.º do Código Civil, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

Acresce que os relatórios das demais inspecções apenas foram parcialmente reproduzidos no RIT da inspecção à Requerente e com omissão de elementos relevantes para que este Tribunal Arbitral possa apurar se correspondem ou não à realidade as conclusões inspectivas, desde logo, a identidade das empresas a que se estará a referir a Autoridade Tributária e Aduaneira.

Neste contexto, não se consideram provados os factos afirmados nos relatórios que não se reportam directamente a inspecções à Requerente.

 

2.2. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que constam do processo administrativo e também com base no aproveitamento dos depoimentos das testemunhas arroladas.

A testemunha C... é Director-geral da Requerente, desde 2011.

A testemunha E... é Contabilista Certificado de uma empresa que desde 2005 presta serviços de contabilidade à Requerente.

A testemunha F... é operário de armazém da Requerente desde 2011.

Tal como se concluiu no Processo n.º 968/2024-T, “As testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento dos factos que foram dados como provados com base nos seus depoimentos.

O Tribunal Arbitral formou a convicção de que houve efectiva prestação de serviços pela B... à Requerente.

Com efeito, essa prestação de serviços, que foi convincentemente explicada pelas testemunhas, é indiciariamente confirmada pelos factos de terem sido emitidas facturas pela B... à Requerente e efectuados pagamentos por transferência bancária por esta àquela e terem sido efectuados transportes pela B... para a Requerente.

Igualmente a afirmação feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira no RIT de que ademais, no que diz respeito ao pagamento das facturas em causa, na inspecção à contabilidade da B..., se constatou, que, após a sua entrada na conta bancária, são efectuados levantamentos em numerário, com destino não identificado, para além de não se basear em qualquer prova que conste do presente processo, não se afigura relevante para efeitos de apurar a realidade das operações efectuadas entre a Requerente e a B..., pois esse invocados levantamentos em dinheiro teriam sido feitos por outras empresas e não pela B..., localizando-se a jusante das relações entre estas empresas e não se demonstrou que a B... tivesse qualquer relação com tais levantamentos.

Mais, resulta do RIT que a Requerente teve um elevado volume de negócios de € 13.750.717,82, que serviu de base à determinação do seu lucro tributável, o que confirma indiciariamente, por um lado, que não se está perante uma empresa com uma actividade fictícia e, por outro lado, se justifica a subcontratação que foi referida pelas testemunhas, nomeadamente a que foi feita à B... .

 Neste contexto, é convicção deste Tribunal Arbitral que as operações registadas na contabilidade da Requerente relativamente a B... foram efectivamente realizadas, o que, aliás, é, nos termos do disposto no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, de presumir.

 

3. Matéria de direito

 

Quando a AT desconsidera facturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras dos ónus da prova do artigo 74.º da Lei Geral Tributária LGT, competindo-lhe fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, que existem indícios sérios de que as operações constantes das facturas não correspondem à realidade, passando então a incidir sobre o sujeito passivo do imposto o ónus probatório da veracidade da transacção.

Sendo certo que a AT não necessita demonstrar a falsidade das facturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo, exige-se, contudo, que alegue factos que traduzem uma probabilidade elevada de as operações referidas nas facturas, serem simuladas, ilidindo-se a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados que constam da sua contabilidade, consagrada no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

À semelhança do ocorrido no Processo n.º 968/2024-T, a Autoridade Tributária e Aduaneira desconsiderou gastos contabilizados pela Requerente como reportando-se a aquisição de serviços à B..., por entender, em suma, que nenhuns dos serviços a que se referem as facturas foram prestados.

Ora, tal como resulta da matéria de facto fixada, houve prestação de serviços pela  B...à Requerente, que foram pagos, pelo que, tal como no aludido Processo, impõe-se concluir que as correcções efectuadas em sede de IRC e IVA enfermam de vícios de erros sobre os pressupostos de facto.

Por outro lado, resulta também da prova produzida que os serviços referidos foram relevantes para a obtenção pela Requerente dos rendimentos sujeitos a IRC, o que conduz à conclusão que a sua não-aceitação como gastos viola o n.º 1 do artigo 23.º do CIRC.

Estes vícios justificam a anulação dessas correcções e das liquidações de IRC e IVA que nelas se basearam, nas partes correspondentes a essas correcções, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

     A decisão da reclamação graciosa que manteve as liquidações enferma do mesmo vício, pelo que igualmente se justifica a sua anulação.

 

3.1. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações de IRC e IVA que são objecto do presente processo, por vícios que impedem a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento das restantes questões suscitadas.

 

 

4. Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios

 

A Requerente afirmou que está a pagar em prestações a quantia liquidada e solicita o reembolso das quantias pagas, com juros indemnizatórios.

          Ora, em sequência da anulação das liquidações, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias que pagou.

Não havendo elementos que permitam saber quais as quantias pagas e quando ocorreram os pagamentos, o montante a reembolsar deverá ser determinado em execução da presente decisão arbitral.

          Por outro lado, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

No caso em apreço, conclui-se que há erros nas liquidações imputáveis aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que foi esta que as elaborou, por sua iniciativa.

Os juros indemnizatórios devem ser contados, relativamente a cada quantia paga, desde a data em que foi efectuado o respectivo pagamento, até integral reembolso do montante pago em excesso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

5. Decisão

 

De harmonia com o exposto decide este Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular a liquidação de IRC n.º 2023... e a respectiva liquidação de juros compensatórios;
  3. Anular as liquidações de IVA n.ºs 2023..., 2023... e 2023... e as liquidações dos respectivos juros compensatórios;
  4. Anular o despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2024...;
  5. Julgar procedente o pedido de reembolso de quantias pagas, e condenar a Administração Tributária a pagar à Requerente o que for liquidado em execução da presente decisão arbitral;
  6. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente juros indemnizatórios nos termos referidos no ponto 4 desta decisão arbitral.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 55.644,11 (cinquenta e cinco mil, seiscentos e quarenta e quatro euros e onze cêntimos) indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

 

De acordo com o disposto no artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros) nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2025,

 

A Árbitra

 

 

 

(Clotilde Celorico Palma)