SUMÁRIO:
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A Contribuição de Serviço Rodoviário (CSR) qualifica-se como um “imposto” e não como uma “contribuição”, pelo que os Tribunais Arbitrais são competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação deste tributo.
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As Requerentes não são sujeitos passivos da CSR mas apenas meras adquirentes/consumidoras de combustíveis rodoviários, que não suportaram o encargo daquele imposto por repercussão legal e que também não lograram demonstrar um interesse legalmente protegido, pelo que carecem de legitimidade activa para contestar a legalidade dos actos de liquidação daquele imposto.
DECISÃO ARBITRAL
Os Árbitros Carla Castelo Trindade, Maria Alexandra Mesquita e Raquel Franco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, decidem no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. A..., LDA., contribuinte fiscal n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... ..., Porto, B..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, C... SGPS, S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., ...-... Olival Basto, D..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., s/n.º, ...-... Lisboa, E..., S.A., contribuinte fiscal n.º ..., com sede no ... ..., ..., ...-... Lisboa, F..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., n.º ..., ...-... Faro, G..., UNIPESSOAL, LDA, contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., ...–..., ...-... Albufeira, H..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede na..., ..., ...-... Almada, I..., LDA., contribuinte fiscal n.º..., com sede em..., ...-... Portimão, J..., LDA., contribuinte fiscal n.º..., com sede em Rua..., n.º ..., ...- ... ..., Loures, K..., SGPS, S.A. contribuinte fiscal n.º..., com sede no..., n.º..., ... ...-..., Lisboa, L..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede na..., n.º...–..., ...- ... ..., M..., LDA., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., n.º..., ..., ..., ...-... Viseu, N..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., n.º ..., ...-... Seixal, O..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., n.º .., ...-... Faro, P..., LDA, contribuinte fiscal n.º..., com sede no..., ..., ...-..., Lisboa, Q..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em..., ...-... ..., R..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., n.º ... – ..., ...-..., Lisboa, S..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede em ..., ..., ..., s/n.º, ...-... Évora, T..., LDA., contribuinte fiscal n.º..., com sede em..., ..., ..., ...‑... Rio Tinto, U... LDA, contribuinte fiscal n.º..., com sede na Rua..., n.º ..., ...-... Porto, V..., LDA., contribuinte fiscal n.º ..., com sede em..., ..., ...-... Barcarena, W..., UNIPESSOAL, LDA., contribuinte fiscal n.º ..., com sede na..., n.º ..., ...-... Faro, com sede em..., ..., ...-... Barcarena e X..., S.A., contribuinte fiscal n.º..., com sede na Rua..., ..., ...-... Portimão (doravante designadas conjuntamente por “Requerentes”), apresentaram pedido de constituição de Tribunal Arbitral ao abrigo do disposto nos artigos 2.º e 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), com vista à apreciação da legalidade dos actos de liquidação respeitantes à Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), relativos ao período de Novembro de 2019 a Dezembro de 2022 e, bem assim, da decisão final de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa que sobre aqueles versou e que foi apresentado, em 30 de Novembro de 2023, junto da Alfândega do Jardim do Tabaco.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 28 de Junho de 2024 e automaticamente notificado à Requerida.
3. No pedido arbitral as Requerentes defenderam, em síntese, o seguinte:
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No período compreendido entre Novembro de 2019 e Dezembro de 2022, as Requerentes adquiriram, no âmbito da sua actividade comercial, 78.083.223,77 litros de gasóleo e 152.244,08 litros de gasolina à Y..., S.A. (“Y...” ou “fornecedora de combustível”), em virtude do qual suportaram, por força da repercussão, o encargo da CSR no valor de € 8.680.483,07;
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A Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, limita-se a consignar genericamente a receita decorrente da CSR à Infraestruturas de Portugal, S.A., sem estabelecer qualquer contrapartida indirecta ou presumivelmente aproveitada pelos sujeitos passivos nem tão-pouco evidencia qualquer objectivo extrafiscal de modelação de comportamentos desses mesmos sujeitos passivos, motivo pelo qual se conclui que a CSR não é uma contribuição financeira, mas antes um verdadeiro imposto, dado o seu carácter unilateral;
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Da interpretação conjugada do artigo 1.º, n.ºs 2 e 3, alínea a), da Directiva n.º 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008 (“Directiva IEC”) retira‑se, a contrario sensu, que os Estados Membros não poderão fazer incidir sobre os combustíveis fósseis outros impostos especiais de consumo para além do ISP, a menos que (i) tal se justifique por motivos específicos e (ii) sejam respeitadas as regras europeias aplicáveis em matéria de impostos especiais de consumo e de imposto sobre o valor acrescentado, sendo ambos os requisitos de verificação cumulativa;
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Decorre da jurisprudência do TJUE que os motivos específicos justificativos da imposição de outros encargos tributários sobre os produtos sujeitos a Impostos Especiais de Consumo não podem reconduzir-se a razões puramente orçamentais;
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No caso em presença, não pode senão concluir-se pela ausência de qualquer motivo específico que, na acepção do artigo 1.º, n.º 2, da Directiva IEC, justifique a imposição da CSR, uma vez que (i) não se identifica qualquer objectivo extrafiscal distinto do subjacente ao ISP e (ii) a receita decorrente da CSR pode ser indistintamente afecta à actividade da Infraestruturas de Portugal, S.A. relacionada com a rede rodoviária nacional e com a rede ferroviária nacional;
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Ao inexistir qualquer conexão entre a liquidação e cobrança da CSR e um qualquer objectivo juridicamente atendível, distinto do ISP e sem cariz meramente orçamental, resulta manifesta a ilegalidade da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, por preterição do disposto no artigo 1.º, n.º 2, da Directiva IEC;
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Neste preciso sentido decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), no despacho proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no âmbito do Caso Vapo Atlantic (Processo C-460/21);
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Prevalecendo o Direito europeu sobre o Direito interno conflituante dos Estados Membros, atento o princípio do primado ínsito no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), conclui-se pela ilegalidade de todas as liquidações de CSR efectuadas ao abrigo da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, que são por isso anuláveis ao abrigo do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”);
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Por impender sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) a obrigação de desaplicar normas internas conflituantes com o Direito da União Europeia, a omissão desse dever constitui uma situação de erro imputável aos serviços, redundando igualmente numa situação de injustiça grave e notória, para efeitos do artigo 78.º da Lei Geral Tributária (“LGT”);
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Classificando-se a CSR como um imposto, a sua conformidade à CRP e, mais concretamente, ao princípio fundamental da igualdade, ínsito no artigo 13.º da CRP, afere-se através da aplicação do princípio da capacidade contributiva, segundo o qual cada sujeito passivo deverá contribuir para o financiamento das funções gerais do Estado na medida da respectiva força económica;
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O princípio da igualdade fiscal, ínsito no artigo 13.º da CRP, impõe que os impostos sejam pagos por todos os contribuintes na medida da respectiva capacidade contributiva, uma vez que as utilidades financiadas com as receitas deles provenientes são igualmente aproveitáveis por todos;
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Neste contexto, caso se identifique um imposto que onera em exclusivo (ou mais intensamente) alguns cidadãos ou sectores de actividade, terá necessariamente de concluir-se pela respectiva inconstitucionalidade por violação daquele princípio;
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Ora, o universo de sujeitos que beneficia da actividade da Infraestruturas de Portugal, S.A. extravasa em muito o conjunto dos sujeitos passivos da CSR e, até, dos contribuintes onerados com a CSR por via da repercussão do seu encargo, sacrificando‑se patrimonialmente um conjunto de contribuintes com o intuito de custear uma realidade que beneficia a generalidade dos cidadãos;
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Não se identifica qualquer nexo entre a aquisição de combustíveis fósseis e uma utilização especialmente intensa das estradas incluídas na rede rodoviária nacional, sendo certo que (i) os adquirentes dessa matéria-prima poderão limitar-se a utilizar vias excluídas dessa rede, como por exemplo as estradas municipais e (ii) não está demonstrado que todos veículos com motores de combustão utilizem de forma mais intensa as vias integradas na rede rodoviária nacional, podendo suceder em alguns casos que a utilização por veículos eléctricos e a gás seja até mais intensa;
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Considerando que a Infraestruturas de Portugal, S.A. tem também a seu cargo o desenvolvimento da ferrovia, poderá suceder que as receitas da CSR sejam alocadas, pelo menos em parte, a essa tarefa, o que corresponderá à oneração dos adquirentes de combustíveis fósseis com um tributo que não só não os beneficia directamente, como inclusivamente beneficiará outros cidadãos – os utilizadores da ferrovia – que, ainda que tenham uma capacidade económica semelhante ou superior à sua, não serão onerados com o encargo porque não adquirem combustíveis fósseis;
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Em face do exposto, ao fazer incidir a CSR sobre um conjunto restrito de contribuintes, a Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto padece de inconstitucionalidade material, por preterição do princípio constitucional da igualdade, ínsito no artigo 13.º da CRP, na medida em que onera de forma injustificada um conjunto de contribuintes em face do seu sector de actividade económica, fazendo-os contribuir em maior medida para o financiamento de funções do Estado igualmente aproveitáveis por todos os cidadãos;
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Sendo inconstitucional o seu regime jurídico, são consequentemente ilegais todas as liquidações de CSR contestadas, o que implica a respectiva anulação nos termos do artigo 163.º do CPA;
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A final, peticionam as Requerentes a restituição dos montantes ilegalmente liquidados e subsequentemente repercutidos nas respectivas esferas jurídicas, no montante global de € 8.680.483,07, acrescido de juros indemnizatórios, a contar desde o dia 1 de Dezembro de 2024 (um ano e um dia após a apresentação do pedido de revisão oficiosa) até à emissão da respectiva nota de crédito, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), e 100.º da LGT.
4. As Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes foram notificadas dessa designação em 13 de Agosto de 2024, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 2 de Setembro de 2024, sendo que no dia imediatamente seguinte foi a Requerida notificada para apresentar a sua resposta.
6. Em 6 de Outubro de 2024, a Requerida apresentou a sua resposta e juntou aos autos o processo administrativo, defendendo-se por excepção e por impugnação.
7. Em 7 de Outubro de 2024, deu entrada nos autos um requerimento apresentado pelas Requerentes no CAAD em 4 de Outubro de 2024, acompanhado de um conjunto de comprovativos de pagamento de facturas referentes a aquisições de combustível.
8. Por despacho de 7 de Outubro de 2024, foi admitida a junção aos autos dos documentos apresentados pelas Requerentes e concedido prazo de vista à Requerida. Naquele despacho, foram ainda notificadas as Requerentes para exercerem o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
9. Naquele data, veio ainda a Requerida solicitar a substituição da resposta inserida na plataforma do CAAD no dia 6 de Outubro de 2024, por nova resposta e documentos, alegando ter chegado ao seu conhecimento matéria relevante à defesa da posição da AT e estar ainda no prazo de apresentação da Resposta concedido pelo Tribunal.
10. Na sua resposta a Requerida alegou, em síntese, o seguinte:
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A AT está vinculada à jurisdição dos Tribunais arbitrais nos termos definidos no artigo 2.º do RJAT e no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, de onde decorre que foi intenção do legislador restringir a vinculação dos serviços e organismos ao CAAD no âmbito de pretensões que dizem respeito, especificamente, a impostos, aqui não se incluindo tributos de outra natureza, tais como as contribuições;
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Independentemente do nomen iuris ou da natureza jurídica, a verdade é que a CSR não é, por definição, um imposto, mas sim uma contribuição, pelo que as matérias a ela respeitantes encontram-se excluídas do âmbito material da arbitragem tributária;
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Ainda que se considerasse o tribunal arbitral competente para apreciar a ilegalidade dos actos de liquidação de ISP/CSR, nunca poderia este pronunciar-se sobre actos de repercussão da CSR, subsequentes e autónomos dos actos de liquidação de ISP/CSR, que não são actos de tributários e que, para mais, não correspondem a uma repercussão legal, mas a uma repercussão meramente económica ou de facto;
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Verifica-se assim a incompetência do Tribunal em razão da matéria, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos dos artigos 576.º, n.º 1 e n.º 2 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis por via do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa;
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Apenas os sujeitos passivos que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento dos respectivos ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago, nos termos dos artigos 15.º, 16.º e 24.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (“CIEC”);
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De acordo com o estatuído naquelas normas, os múltiplos adquirentes dos produtos não têm legitimidade para efeitos de solicitação da revisão do acto tributário e consequente pedido de reembolso do imposto;
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O que significa que as Requerentes não têm legitimidade para apresentar o pedido de revisão oficiosa nem, consequentemente, o presente pedido arbitral;
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Ainda que assim não se entenda, carecem as Requerentes de legitimidade por se encontrarem fora do âmbito de aplicação da alínea a), do n.º 4, do artigo 18.º da LGT, preceito que prevê que os repercutidos legais embora não sendo sujeitos passivos, têm legitimidade para reclamar, recorrer, impugnar e formular pedido arbitral;
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Tal preceito não tem aplicação no caso concreto, pois em causa não está uma situação de repercussão legal, mas quanto muito, uma situação de repercussão de natureza meramente económica ou de facto;
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Só os sujeitos passivos de imposto que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo ISP/CSR possuem legitimidade para solicitar o reembolso do valor pago;
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As Requerentes não possuem a qualidade de sujeitos passivos e, por outro lado, só os consumidores finais – repercutidos – que, embora não sejam os sujeitos passivos, suportem efectivamente o encargo, a título final, terão legitimidade para contestar as liquidações de CSR e obter o respectivo reembolso, desde que demonstrem ter um interesse legalmente protegido e comprovem o pagamento do encargo;
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Contrariamente ao pretendido pelas Requerentes, não existe no âmbito da CSR um acto tributário de repercussão legal, mas antes a possibilidade da repercussão económica ou de facto, total ou parcial, sendo que as facturas apresentadas não corporizam actos de repercussão de CSR, nem atestam que tal tributo foi suportado pelas Requerentes, enquanto consumidores finais;
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As Requerentes não conseguem demonstrar que o valor pago pelos combustíveis que adquiriram à sua fornecedora, tem incluído a totalidade ou sequer parte do valor da CSR pago pelo(s) sujeito(s) passivo(s) de ISP/CSR (não identificados, nem identificáveis), nem que suportaram, a final, o encargo de tal tributo, isto é, que não o repassaram no preço dos serviços prestados aos seus clientes, sendo estes os consumidores finais;
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Sendo ainda forçoso notar que das facturas juntas aos autos apenas constam valores referentes ao IVA, não contendo aquelas qualquer referência a montantes pagos a título de ISP ou CSR e, diga-se, não tinham de conter, sendo absolutamente omissas nesse aspecto;
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As Requerentes vêm ainda alegar que a Y... atestou em documento junto aos autos que repercutiu nas suas esferas o encargo tributário da CSR, o que consubstancia uma informação ao consumidor, sobre os produtos comercializados, em cumprimento do dever de informação estipulado na Lei n.º 5/2019, de 11 de Janeiro;
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Porém, tal inscrição corresponde a uma mera declaração genérica da Y... a informar o consumidor que no valor do ISP está incluída a CSR, contudo, não permite demonstrar que efectivamente houve repercussão e em que termos;
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Sem a possibilidade de identificar os actos de liquidação subjacentes às posteriores transacções, no limite, a Requerida poderia vir a ser sucessivamente condenada a pagar os mesmos montantes de CSR, mais do que uma vez, a todo e qualquer operador económico que tenha tido intervenção na cadeia de comercialização de combustíveis: desde o sujeito passivo de imposto, passando pelos grossistas, distribuidores, revendedores, etc., até ao consumidor final, tenham ou não aqueles suportado os valores em causa;
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Com efeito, a Y... está, ela própria, a solicitar o reembolso da CSR, enquanto sujeito passivo de ISP/CSR (identificando, em concreto, os actos de liquidação em causa) via administrativa e/ou judicial, relativamente ao mesmo tipo de produto e período temporal, pelo que salta à evidência, o risco assinalado da possível multiplicação de pedidos de reembolso da (mesma) quantia liquidada a título de CSR;
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Assim, inexistindo efectiva titularidade do direito a que se arrogam, carecem as Requerentes de legitimidade processual, o que consubstancia uma excepção dilatória nos termos do vertido nos artigos 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea e) e 578.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1 alínea e) do RJAT, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo, consequentemente, a Requerida ser absolvida da instância;
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Caso assim não se entenda, deve considerar-se que as Requerentes carecem de legitimidade substantiva, o que consubstancia uma excepção peremptória nos termos e para o efeito do disposto nos artigos 576.º n.º 1 e n.º 3 e 579.º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1 al. e) do RJAT, devendo a Requerida ser absolvida do pedido;
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O presente pedido arbitral não respeita os pressupostos legais de aceitação do requerimento/petição inicial, por violação da alínea b), do n.º 2, do artigo 10.º do RJAT, requisito essencial à aceitação do pedido;
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As Requerentes limitam-se a apresentar facturas de aquisição de combustíveis à sua fornecedora, considerando que estas consubstanciam actos de repercussão de ISP/CSR, facturas estas que, no entanto, não comprovam qualquer acto tributário;
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As Requerentes fazem alusão aos actos tributários, sem que, em momento algum, identifiquem quaisquer actos de liquidação de ISP/CSR praticados pela administração tributária e aduaneira, nem as DIC submetidas pelos sujeitos passivos de imposto, não identificados, nem identificáveis;
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A não identificação dos actos tributários objecto do pedido arbitral por parte das Requerentes compromete, irremediavelmente, a finalidade do referido pedido;
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Nesta medida, verifica-se a excepção de ineptidão da petição inicial, na medida em que o pedido arbitral não identifica qualquer acto tributário, violando o requisito da alínea b) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, o que determina a nulidade de todo o processo, e, obstando a que o tribunal conheça do mérito da causa, dá lugar à absolvição da instância, conforme artigos 186.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 278.º, n.º 1, alínea b), do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º do RJAT, devendo, consequentemente, determinar-se a nulidade de todo o processo e a absolvição da Requerida da instância;
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As Requerentes apresentam como causa de pedir a ilegalidade dos actos de liquidação de CSR, designadamente por via da alegada violação do direito da União Europeia pelo regime jurídico da CSR que, de resto, também consideram desconforme com as normas constitucionais, formulando um pedido de anulação de liquidações que não identificam, através da mera impugnação da alegada repercussão, sem sequer identificar o nexo entre esta e aquelas;
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Contudo não é possível inferir, da alegada ilegalidade das liquidações, a ilegalidade das alegadas repercussões, pelo que as Requerentes incorrem numa inultrapassável quebra do nexo causal necessário entre o pedido e a causa de pedir;
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Termos em que se verifica ainda a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, nos termos da alínea b) do artigo 577.º do CPC, levando à nulidade de todo o processo nos termos do n.º 1 do artigo 186.º do CPC;
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As Requerentes apresentaram a impugnação no tribunal arbitral em 27.06.2024 do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa recepcionado em 04.12.2023 na Alfândega do Jardim do Tabaco;
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Para a apreciação da tempestividade da apresentação do pedido arbitral não pode deixar de ser previamente apreciada a questão da tempestividade do pedido de revisão, o que, como supra se demonstrou (face à não identificação dos actos tributários em litígio) é impossível;
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Ainda assim, tomando por referência o alegado pelas Requerentes, no que concerne às aquisições no período compreendido entre Novembro de 2019 a Dezembro de 2022, em 04.12.2023, já se encontrava ultrapassado o prazo da reclamação graciosa de 120 (cento e vinte) dias a contar do termo do prazo do pagamento do ISP/ CSR, previsto no artigo 78.º, n.º 1, primeira parte da LGT;
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As Requerentes alegam a existência de erro imputável aos serviços de modo a fazer valer-se do prazo de quatro anos previsto no artigo 78.º, n.º 1, segunda parte da LGT, contudo, estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade e tendo efectuado as liquidações em estrita observância dos normativos legais em vigor à data dos factos, não existe qualquer erro imputável aos serviços que permita a utilização daquele prazo;
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Também não existe qualquer injustiça grave e notória que possibilite às Requerentes a utilização do prazo de três anos previsto no artigo 78.º, n.º 4 da LGT;
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Acresce que, no âmbito dos IEC, os pedidos de reembolso apresentados nas alfândegas devem ser apreciados à luz do disposto nos artigos 15.º a 20.º do CIEC, sendo pacífico que o regime específico aí previsto é o aplicável quando se suscite a questão da revisão do acto tributário e consequente reembolso com os fundamentos previstos nas mesmas normas, incluindo o do erro na liquidação;
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Por conseguinte, em 04.12.2023, já teria terminado o prazo de 3 (três) anos previsto no n.º 3 do artigo 15.º do CIEC para requerer o reembolso do alegado valor pago por alegada repercussão económica de CSR, pelo menos no que se refere a todas as aquisições efectuadas pelas Requerentes em datas anteriores a 04.12.2020;
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Verifica-se assim, ainda que parcialmente, a caducidade do (alegado) direito de acção por parte das Requerentes, o que consubstancia uma excepção peremptória, devendo, nessa medida, a Requerida ser absolvida do pedido ou, caso assim não se entenda, ser absolvida da instância por procedência de excepção dilatória nos termos do artigo 89.º n.º 1, 2 e 4 alínea k) do Código do Processo dos Tribunais Administrativos;
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Por impugnação, defendeu que as Requerentes não lograram fazer prova do que alegam, designadamente que suportaram integralmente o encargo do pagamento da CSR por repercussão da Y..., sendo este nos termos do artigo 74.º da LGT, um ónus probatório que sobre aquelas recaía;
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Sendo relevante frisar que não é admissível, a posteriori, que se confundam as regras do ónus da prova e respectivas consequências legais no que concerne aos factos a dar (ou não) como provados com quaisquer construções de raciocínio que eventualmente equacionem e se baseiem em “presunções” sem qualquer sustento fáctico ou legal, sob pena de subversão inconstitucional do sistema do ónus da prova e de princípios que merecem tutela constitucional, designadamente segurança jurídica, proporcionalidade, tutela jurisdicional efectiva e processo equitativo, preceituados nos artigos 2.º e 20.º da CRP, e do direito ao contraditório e à ampla defesa;
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Não se podendo, igualmente, presumir a existência de repercussão quando se está perante uma repercussão que não é legal, mas meramente económica ou de facto;
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Tudo isto sem contar que, mesmo na eventualidade de ser feita prova da repercussão, no período em causa, as Requerentes B..., S.A. e Q..., S.A., beneficiaram de reembolso em sede de ISP, onde se teria de incluir necessariamente a CSR, no âmbito do regime de reembolso parcial de imposto para o gasóleo profissional, ao abrigo do artigo 93.º-A do CIEC, não tendo, todavia, sido tido em conta o efectivo valor de ISP/CSR que já foi objecto de reembolso, no cálculo total do montante de CSR que as Requerentes alegam ter suportado e que implicaria um enriquecimento sem causa de € 801.134,02;
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Por outro lado, em momento algum o TJUE considera ilegal a CSR, pelo que não pode a AT deixar de considerar que, caso o Requerente não seja sujeito passivo, mas um alegado repercutido que não comprove que lhe foi repassado o valor da CSR, aquando da aquisição do produto combustível, bem como que não o repercutiu na esfera jurídica dos seus clientes – consumidores finais –, poderá igualmente ser-lhe recusado o reembolso, sob pena de enriquecimento sem causa do alegado repercutido;
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Inexistindo também e qualquer decisão judicial nacional transitada em julgado que declare expressamente a ilegalidade da CSR e não estando o ordenamento jurídico português em contradição ou antinomia com o Direito da União Europeia, conclui-se que a Requerida agiu em conformidade com a legislação nacional e europeia em vigor, uma vez que está sujeita ao Princípio da Legalidade previsto no artigo 266.º, n.º 2 da CRP e artigo 55.º da LGT, não podendo esta recusar-se a aplicar normas de direito interno, em vigor, com fundamento na inconstitucionalidade ou ilegalidade, já que isso equivaleria a uma interferência nos poderes judiciais, violando o princípio da separação de poderes plasmado no artigo 2.º da CRP;
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Tudo sem contar que, tal como entende o TJUE, um Estado-Membro pode recusar/opor‑se a um pedido de reembolso, apresentado pelo comprador repercutido, com o fundamento de não ter sido esse comprador que o pagou às autoridades fiscais, desde que, nos termos do direito interno, esse comprador possa exercer uma acção civil de repetição do indevido contra o sujeito passivo, tal como ocorre no direito nacional;
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Assim, sempre deverá ser julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral, por infundado e não provado.
11. Em 17 de Outubro de 2024, a Requerida exerceu o direito ao contraditório face aos documentos juntos pelas Requerentes em 4 de Outubro de 2024, remetendo para os argumentos já aprofundados em sede de resposta.
12. Por despacho de 18 de Outubro de 2024, foi admitido o requerimento da Requerida de substituição da Resposta, pelos motivos aí expendidos, tendo-se concedido às Requerentes um prazo de 10 (dez) dias para, querendo, exercerem o direito ao contraditório quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida na sua resposta.
13. Através de requerimento apresentado em 31 de Outubro de 2024, as Requerentes vieram exercer o direito ao contraditório, em síntese, da seguinte forma:
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Sem prejuízo do seu nomen juris, a CSR configura um verdadeiro imposto, de tal modo que o Tribunal Arbitral é materialmente competente em razão da matéria para dirimir o litígio em presença, motivo pelo qual não se verifica a excepção dilatória invocada pela Requerida;
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A Requerida em sede de inúmeros processos arbitrais tem defendido a ilegitimidade processual dos sujeitos passivos (i.e., das entidades que se dedicam à comercialização de produtos petrolíferos), na medida em que o encargo da CSR é, na verdade, suportado pelo consumidor final do combustível;
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Resulta, pois, clara a incongruência da posição perfilhada pela Requerida quando, nos processos judiciais em que são parte activa as entidades comercializadoras de produtos petrolíferos (os sujeitos passivos), sustenta que a legitimidade pertence aos consumidores finais (i.e., a quem suportou o encargo do tributo) e nos processos judiciais em que são Requerentes os consumidores finais, afirma que a legitimidade a final pertence aos sujeitos passivos do tributo;
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Esta posição é claramente reprovável, bulindo inexoravelmente com o princípio da boa‑fé (na vertente de tutela da confiança) previsto no artigo 266.º, n.º 2, da CRP;
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De acordo com a LGT, o Código de Processo e de Procedimento Tributário (“CPPT”) e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), têm legitimidade para intervir no processo tributário todos aqueles que demonstrem ter um interesse legalmente protegido cuja tutela dependa desse processo, ainda que não sejam legalmente responsáveis pelo cumprimento de quaisquer obrigações tributárias;
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O mesmo é dizer que a legitimidade no processo tributário não se confunde com a qualidade de sujeito passivo, sendo certo que, como os n.ºs 3 e 4 do artigo 18.º da LGT imediatamente indiciam, é atribuída legitimidade processual a entidades que não se qualificam como sujeitos passivos, designadamente em situações de repercussão do pagamento do tributo, como sucede na presente situação;
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O repercutido é, portanto, titular de um interesse legalmente protegido justificativo da atribuição de legitimidade processual para discussão da legalidade da dívida tributária, nos termos dos artigos 9.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT;
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Esta interpretação encontra, aliás, respaldo no despacho proferido pelo TJUE a 7 de Fevereiro de 2022 no âmbito do Caso Vapo Atlantic (Processo C-460/21), o qual, pese embora se refira à legitimidade activa do sujeito passivo da CSR e não do repercutido, fornece pistas interpretativas relevantes para a análise da questão sub judice;
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De facto, segundo o referido órgão jurisdicional, a legitimidade processual do sujeito passivo depende da ausência de repercussão do encargo do tributo, importando aferir se esse encargo foi efectivamente suportado pelo próprio sujeito passivo – caso em que terá legitimidade – ou por um terceiro – caso em que o sujeito passivo não terá legitimidade dado que a anulação das liquidações de CSR teria como consequência o seu enriquecimento sem causa (por via da devolução de um tributo que efectivamente não suportou);
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Por outras palavras, aquele que demonstrar ter efectivamente suportado o encargo do tributo terá legitimidade procedimental e/ou processual para contestar a legalidade das liquidações, quer detenha ou não a qualidade de sujeito passivo;
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Na situação em presença, o sujeito passivo da CSR é o fornecedor, in casu, a Y..., sem prejuízo, o encargo inerente ao pagamento desses valores foi transferido, a final, pelo respectivo sujeito passivo para a esfera das Requerentes;
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Ademais, com a entrada em vigor da Lei n.º 24-E/2022, 30 de Dezembro, o legislador introduziu no artigo 2.º do CIEC uma referência expressa à imposição legal de repercussão dos impostos especiais de consumo, tendo, no artigo 6.º da referida de Lei, sido atribuída natureza interpretativa a tal alteração legislativa;
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Tal corresponde ao reconhecimento pelo legislador tributário de que a repercussão sempre foi obrigatória (i.e., decorrente da lei) nos impostos especiais de consumo, nos quais se inseria (ainda que ilegalmente) a CSR, o que não poderá deixar de ser relevado para efeitos de aferição da legitimidade processual dos adquirentes de combustíveis fósseis;
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Neste contexto, sendo indiscutível a repercussão efectiva do encargo tributário na esfera das Requerentes, e tendo disso a AT perfeito conhecimento, necessariamente se conclui, nos termos dos supra referidos artigos 9.º, n.ºs 1 e 2, e 95.º, n.º 1, da LGT, e 9.º, n.º 1, do CPPT (ex vi n.º 4 do mesmo preceito legal), terem as Requerentes legitimidade para propor o presente pedido de pronúncia arbitral e, por conseguinte, para intervir no processo tributário;
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Não obstante, caso se considere necessário, requer-se, a coberto do princípio do inquisitório plasmado no artigo 99.º, n.º 1, da LGT, que seja oficiado o fornecedor das Requerentes (Y...) com vista a confirmar que efectivamente transferiu o encargo com a CSR, subjacente ao combustível transmitido às Requerentes, para a esfera destas;
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Ademais, importa referir que a Lei n.º 5/2019, de 11 de Janeiro, veio introduzir o regime de cumprimento do dever de informação do comercializador de energia ao consumidor;
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Pelo que, estando os comercializadores de combustíveis obrigados, nos termos dos artigos 13.º e 15.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2019, de 11 de Janeiro, a disponibilizar informação quanto aos montantes repercutidos nos consumidores, e sendo a página web dos comercializadores obrigatoriamente comunicada à Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (cfr. artigo 15.º, n.º 2, do mesmo diploma), requer-se a este Tribunal Arbitral que, caso entenda necessário, igualmente oficie tais entidades a disponibilizarem toda a informação relevante de que dispõem – e que não seja já possível consultar online –, a qual inequivocamente atestará ter o encargo tributário em referência sido repercutido na esfera das Requerentes (enquanto consumidoras finais);
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O TJUE decidiu que, nas situações em que o consumidor final suporta indevidamente um encargo financeiro, por força da repercussão de um tributo, contrária a uma directiva, efectuada pelo fornecedor, impõe‑se que tal consumidor final possa exigir directamente do Estado o reembolso desse tributo à luz do princípio da efectividade, se for impossível ou excessivamente difícil obter tal reembolso directamente junto do fornecedor (sujeito passivo do tributo);
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O Direito português não prevê a possibilidade do repercutido (consumidor final) obter junto do sujeito passivo a sua devolução, não sendo uma acção cível de repetição do indevido (a ser intentada contra o sujeito passivo) uma forma adequada ou efectiva de exercício do seu direito, atenta, designadamente, a ausência de efeito directo horizontal da Directiva IEC;
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Ademais, estando em causa uma repercussão que não assume carácter voluntário – i.e., que não resulta de acordo entre as partes –, a mesma sempre seria insusceptível de ser regida pelo Direito privado (e, por conseguinte, de ser dirimida no âmbito de uma acção arbitral proposta por um particular (consumidor final repercutido) contra outro (fornecedor-sujeito passivo);
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Neste contexto e perante o exposto, sempre serão inconstitucionais as normas extraídas dos artigos 18.º, n.º 4, e 9.º da Lei Geral Tributária e 9.º do CPPT, se interpretadas no sentido de não terem os repercutidos legitimidade processual para demandar directamente a AT com vista ao reembolso dos tributos por si efectivamente suportados, por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva e, bem assim, do princípio da efectividade, consagrados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP;
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De todo o modo, caso esse Douto Tribunal Arbitral tenha dúvidas quanto à aplicação da jurisprudência europeia acima mencionada, requer-se que diligencie pelo reenvio prejudicial, ao abrigo do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, notificando previamente as Requerentes para que se possam pronunciar sobre o teor da questão a submeter;
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Em consequência, não se verifica a excepção dilatória invocada pela Requerida de ilegitimidade processual das Requerentes;
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Importa ainda referir que está cabalmente demonstrado e devidamente provado que as Requerentes suportaram, enquanto consumidoras finais, no momento da aquisição do combustível, o respectivo montante da CSR, nomeadamente através das facturas que atestam tal aquisição;
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Nestes termos, carece de qualquer fundamento a invocação da alegada ilegitimidade substantiva das Requerentes, improcedendo esta excepção;
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As Requerentes juntaram aos autos a totalidade dos documentos que, enquanto entidades que suportaram o encargo final do tributo, tinham em seu poder, os quais inelutavelmente atestam ter o referido tributo sido liquidado e, concomitantemente, suportado pelas Requerentes, enquanto consumidoras finais, no momento da aquisição do combustível à Y...;
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Não assumindo as Requerentes a qualidade de sujeito passivo do tributo, não têm na sua posse quaisquer outros documentos, designadamente as respectivas declarações de introdução no consumo, não podendo, por isso, a sua apresentação ser-lhe exigida, não se afigurando, nessa medida, legítimo que possam ser prejudicadas por eventuais elementos de prova em poder de terceiros;
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Tais declarações estão em poder da Fazenda Pública, podendo esta identificá-las, solicitando, se necessário, a coadjuvação do sujeito passivo em causa nos autos, designadamente ao abrigo dos seus poderes inspectivos e, bem assim, dos princípios da prossecução do interesse público, do inquisitório e da colaboração;
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Tudo ponderado, resulta claro que se a Requerida, com os seus poderes inspectivos de autoridade pública, afirma ser impossível, com todos os documentos que tem na sua posse, identificar perfeita e cabalmente os actos tributários em causa, com meridiana clareza se conclui que exigir às Requerentes, para efeitos de efectivação dos seus direitos, a apresentação de documentos de que não dispõem (nem têm a obrigação legal de dispor), buliria inexoravelmente não só com o princípio do acesso ao Direito, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da CRP, e com o direito das Requerentes a uma tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 268.º, n.º 4, da CRP, mas, também, com o direito à reposição da legalidade violada (e concomitante restituição do tributo por si indevidamente suportado enquanto consumidoras finais);
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Consequentemente, entendem as Requerentes não se verificar a excepção de ineptidão da petição inicial por falta de objecto;
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Também não se verifica nem a ininteligibilidade do pedido nem a contrariedade entre aquele e a causa de pedir;
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O pedido está devidamente identificado no pedido de pronúncia arbitral, correspondendo à declaração de ilegalidade e anulação dos actos tributários e decisório identificados no pedido de pronúncia arbitral, o mesmo sucedendo com a causa de pedir, a qual corresponde à desconformidade do tributo com a Directiva 2008/118/CE, do Conselho, de 16 de Dezembro de 2008;
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O pedido ou a causa de pedir só será ininteligível quando seja impossível ou extremamente complexo compreender qual o acto ou facto jurídico subjacente à pretensão do autor e que fundamenta o seu pedido, o que manifestamente não sucede no presente caso;
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Tudo ponderado, necessariamente se conclui que deverá improceder a excepção dilatória de ineptidão do pedido de pronúncia arbitral;
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O tributo em causa não é um imposto (mas sim uma contribuição financeira), motivo pelo qual não pode ser aplicado às Requerentes um regime (i.e., os artigos 15.º a 20.º do CIEC) que tão-somente se aplica (i) a impostos, isto é, a IEC, e (ii) aos sujeitos passivos que introduziram no consumo os produtos a eles sujeitos;
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O pedido de revisão oficiosa é um meio procedimental idóneo para reagir contra a ilegalidade de liquidações de CSR cujo encargo tenha sido totalmente suportado por terceiro sob as vestes de contribuinte de facto;
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Na acepção do artigo 78.º, n.ºs 1 e 4, da LGT, o requisito atinente à tempestividade deve ser aferido por referência à data da tomada de conhecimento da liquidação do tributo;
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Na situação sub judice, as Requerentes – enquanto contribuintes de facto – tomaram conhecimento dos actos de liquidação de CSR quando foram notificadas (i.e., quando recepcionaram) as facturas emitidas pela sua fornecedora;
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Em consequência, não tem lugar a alegada intempestividade, não se verificando a excepção de caducidade suscitada pela Requerida.
14. Em 21 de Novembro de 2024, as Requerentes apresentaram requerimento a solicitar a junção aos autos do acórdão do TCA Sul, de 24 de Outubro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º 128/23.9BCLSB.
15. Ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 16.º, alínea c), 19.º e 29.º, n.º 2, todos do RJAT, foi proferido despacho arbitral, em 3 de Janeiro de 2025, a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e a conceder às partes a faculdade de apresentarem alegações escritas, por prazo simultâneo de 15 dias, o que a Requerida e as Requerentes vieram a fazer, respectivamente, em 19 e 21 de Janeiro de 2025, reiterando os argumentos já anteriormente apresentados.
II. SANEAMENTO
16. O Tribunal Arbitral colectivo foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e estão regularmente representadas, verificando-se os pressupostos da coligação e da cumulação de pedidos, em conformidade com o disposto nos artigos 3.º, n.º 1, 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT e nos artigos 1.º e 3.º da Portaria de Vinculação.
17. Para efeitos de saneamento do processo cumpre apreciar as excepções de (i) incompetência do Tribunal Arbitral, (ii) ilegitimidade processual activa e substantiva (iii) ineptidão do pedido de pronúncia arbitral e (iv) caducidade do direito de acção, o que será feito por esta ordem logo após a fixação da matéria de facto provada e não provada.
II. MATÉRIA DE FACTO
§1 – Factos provados
18. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
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As Requerentes são sociedades comerciais que se dedicam ao transporte rodoviário de passageiros;
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No período compreendido entre Novembro de 2019 e Dezembro de 2022, as Requerentes adquiriram, no âmbito da sua actividade comercial, 78.083.223,77 litros de gasóleo e 152.244,08 litros de gasolina à Y...;
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A Y... emitiu uma informação, para efeitos do cumprimento do dever de informação dos comercializadores de energia ao consumidor previsto na Lei n.º 5/2019, de 11 de Janeiro, onde refere a propósito do custos dos combustíveis rodoviários comercializados em Portugal continental, que “O valor de ISP indicado inclui taxa de carbono e contribuição para o serviço rodoviário”;
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Em 30 de Novembro de 2023, as Requerentes apresentaram pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º, n.ºs 1 e 4, da LGT, onde peticionaram a anulação de liquidações de CSR e a restituição do tributo que alegaram ter indevidamente suportado por repercussão da Y..., no montante global de € 8.680.483,07, com fundamento em erro imputável aos serviços e em injustiça grave e notória;
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Até à presente data, não foi proferida decisão expressa de indeferimento do referido pedido de revisão oficiosa;
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Em 27 de Junho de 2024, as Requerentes apresentaram o pedido arbitral que deu origem aos presentes autos.
§2 – Factos não provados
19. Analisada a prova produzida nos presentes autos, com relevo para a decisão da causa, não se consideram provados os seguintes factos:
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A Y..., enquanto sujeito passivo da relação jurídico‐tributária, entregou ao Estado os valores apurados nos actos de liquidação conjunta de ISP e de CSR praticados pela AT com base nas DIC por aquela submetidas;
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A Y..., no período compreendido entre Novembro de 2019 e Dezembro de 2022, repercutiu nas facturas emitidas às Requerentes, a CSR correspondente a cada um dos consumos de gasóleo e gasolina, tendo estas últimas suportado o encargo daquele tributo, no valor global de € 8.680.483,07;
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As Requerentes são as consumidoras finais dos combustíveis rodoviários adquiridos à Y..., não tendo repercutido o encargo económico da CSR que alegaram ter suportado no preço dos bens e serviços prestados aos seus clientes.
§3 – Fundamentação da fixação da matéria de facto
20. O Tribunal Arbitral tem o dever de seleccionar os factos pertinentes para a decisão da causa, com base na sua relevância jurídica e tendo em consideração as várias soluções plausíveis das questões de Direito suscitadas pelas partes, bem como o dever de discriminar os factos provados e não provados. Porém, o Tribunal Arbitral não tem um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes, em conformidade com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e nos artigos 596.º, n.º 1 do CPC e 607.º, n.º 3, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
21. O Tribunal formou a sua íntima e prudente convicção quanto aos factos provados e não provados através do exame de todos os elementos probatórios carreados aos autos, que foram apreciados e avaliados com base no princípio da livre apreciação dos factos e nas regras da experiência, normalidade e racionalidade, em conformidade com os ditames fixados nos artigos 16.º, alínea e) do RJAT e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
22. Os factos assentes nas alíneas a) a e) foram invocados pelas Requerentes e não impugnados quanto ao respectivo teor e/ou veracidade pela Requerida, sendo conformes com a prova documental carreada aos autos, razão pela que se deram como provados. O facto assente na alínea f) encontra-se certificado pelo sistema de gestão processual do CAAD.
23. Relativamente ao facto dado como não provado no ponto 1), considerou este Tribunal Arbitral que a falta de junção aos autos das DIC globalizadas submetidas pela Y... enquanto fornecedora de combustível e pelos entrepostos de terceiros por esta contratados para o efeito; dos consequentes actos de liquidação emitidos pela AT e dos respectivos comprovativos de pagamento, que não foram também associados às facturas e listagens juntas aos autos, não permitem certificar a efectiva liquidação e pagamento da CSR pela introdução no consumo dos combustíveis posteriormente adquiridos pelas Requerentes.
24. Quanto ao facto dado como não provado no ponto 2), impõe-se desde logo registar que a prova da repercussão pressupõe inevitavelmente como ponto de partida a demonstração de que a CSR foi inicialmente liquidada e paga pelo sujeito passivo daquele tributo aquando da introdução no consumo dos produtos a ele sujeitos – o que, conforme se referiu, não foi feito pelas Requerentes.
25. Acresce que as Requerentes não cumpriram o critério a observar na prova da repercussão da CSR, tal qual fixado pelo TJUE no despacho Vapo Atlantic, proferido em 7 de Fevereiro de 2022, no processo n.º C‑460/21. Ao que aqui importa, referiu aquele Tribunal o seguinte:
“(…) ainda que, na legislação nacional, os impostos indiretos tenham sido concebidos de modo a serem repercutidos no consumidor final e que, habitualmente, no comércio, esses impostos indiretos sejam parcial ou totalmente repercutidos, não se pode afirmar de uma maneira geral que, em todos os casos, o imposto é efetivamente repercutido. A repercussão efetiva, parcial ou total, depende de vários fatores próprios de cada transação comercial e que a diferenciam de outras situações, noutros contextos. Consequentemente, a questão da repercussão ou da não repercussão em cada caso de um imposto indireto constitui uma questão de facto que é da competência do órgão jurisdicional nacional, cabendo a este último apreciar livremente os elementos de prova que lhe tenham sido submetidos (v., neste sentido, Acórdãos de 25 de fevereiro de 1988, Les Fils de Jules Bianco e Girard, 331/85, 376/85 e 378/85, EU:C:1988:97, n.º 17, e de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.º 96).
45 Não se pode no entanto admitir que, no caso dos impostos indiretos, exista uma presunção segundo a qual a repercussão teve lugar e que cabe ao contribuinte provar negativamente o contrário. Sucede o mesmo quando o contribuinte tenha sido obrigado, pela legislação nacional aplicável, a incorporar o imposto no preço de custo do produto em causa. Com efeito, essa obrigação legal não permite presumir que a totalidade do imposto tenha sido repercutida, mesmo no caso de a violação de essa obrigação conduzir a uma sanção (Acórdão de 14 de janeiro de 1997, Comateb e o., C-192/95 a C-218/95, EU:C:1997:12, n.ºs 25 e 26).
46 O direito da União exclui assim que se aplique toda e qualquer presunção ou regra em matéria de prova destinada a fazer recair sobre o operador em causa o ónus de provar que os impostos indevidamente pagos não foram repercutidos noutras pessoas e que visem impedir a apresentação de elementos de prova destinados a contestar uma pretensa repercussão (Acórdão de 21 de setembro de 2000, Michaïlidis, C-441/98 e C-442/98, EU:C:2000:479, n.º 42).
(…)
48 Nestas condições, há que responder à segunda e terceira questões que o direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades nacionais possam fundamentar a sua recusa de reembolsar um imposto indireto contrário à Diretiva 2008/118 na presunção de que esse imposto foi repercutido sobre terceiros e, consequentemente, no enriquecimento sem causa do sujeito passivo.”. (destaque nosso)
26. Da aplicação da jurisprudência do TJUE ao presente caso resulta que a repercussão da CSR sobre terceiros não pode em caso algum ser presumida. O que é compreensível, se se tiver em consideração que a repercussão opera aqui como um fenómeno meramente económico, com uma configuração e amplitude variáveis. Como explica Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª edição, Almedina, 2019, p. 399:
“A repercussão (…) pod[e] operar por mais que uma forma sobre os preços. A forma mais comum é a da repercussão descendente, que se verifica quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem, fazendo com que o comprador o suporte: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes sobem o preço na mesma medida, fazendo com que os consumidores o suportem. A repercussão transversal verifica-se quando o vendedor soma o tributo ao preço de um bem diferente daquele que é onerado pelo tributo: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes diluem esse aumento através do agravamento do preço da generalidade das bebidas alcoólicas. Enfim, a repercussão ascendente verifica-se quando o vendedor subtrai o tributo ao preço de um bem de que é comprador, obrigando os fornecedores a suportar-lhe o peso económico: por exemplo, quando se dá um aumento do imposto sobre a cerveja e os comerciantes obrigam as empresas cervejeiras a baixar o preço nessa mesma medida.
A repercussão constitui um fenómeno que depende em larga medida das condições económicas que rodeiem uma transacção”.
27. Portanto, a ocorrência do fenómeno de repercussão descendente não pode simplesmente ser presumida, impondo-se uma análise do contexto e dos vários factores que conformam cada transacção comercial para daí extrair a conclusão de que o encargo da CSR foi total ou parcialmente “repassado” ao longo dos vários intervenientes do circuito económico até atingir o consumidor final – o que abrange, necessariamente, a repercussão na esfera das Requerentes. E assim é por muito que a repercussão seja expectável e/ou pretendida na lógica de funcionamento do tributo.
28. E assim continuaria a ser mesmo que a repercussão resultasse de imposição legal, tal qual clarificou o TJUE no processo n.º C‑460/21 acima citado. A este respeito, sublinha-se que ao contrário do defendido pelas Requerentes, não constava do regime jurídico da CSR previsto na Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto, na redacção vigente à data dos factos, uma qualquer norma que consagrasse a obrigação legal de repercussão deste tributo, à semelhança do que acontece por exemplo ao nível do IVA, pelo que esta, a existir, sempre teria mera natureza económica ou de facto.
29. E idêntica conclusão vale relativamente ao CIEC, que só por via da alteração efectuada ao artigo 2.º daquele código, concretizada pela Lei n.º 24‑E/2022, de 30 de Dezembro, é que passou a estabelecer a repercussão como pressuposto inerente aos impostos especiais de consumo. Sublinha-se, porém, que esta alteração, feita com uma “aparente” natureza interpretativa, consubstancia, em boa verdade, uma alteração inovatória não prevista nem já subsumível ao teor literal da lei pré-existente, ou seja, tem uma falsa natureza interpretativa, revelando-se assim materialmente retroactiva. Consequentemente, “[f]ica juridicamente vedada a inferência de que, sendo esta uma norma de aplicação retroactiva, o ISP, e com a ele a CSR, é, e foi, sempre repercutido nos consumidores.”, conforme referiu o Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 30 de Julho de 2024, no processo n.º 118/2024-T, para onde se remetem maiores desenvolvimentos sobre o tema.
30. Em suma, a repercussão carecia de ser demonstrada e esse exercício não foi realizado pelas Requerentes, que se limitaram a alegar que a repercussão resulta de imposição legal, bem como a juntar aos autos facturas e listagens, acompanhadas da declaração referida na alínea c) dos factos assentes, onde a Y... afirma de forma genérica, vaga e abstracta, que o valor do ISP referente aos produtos comercializados em Portugal continental integra a CSR.
31. Sucede que das facturas, listagens e da referida declaração da Y... não decorre, sem mais, a prova da repercussão, sendo este um facto que carecia de demonstração perante as concretas transacções realizadas entre a fornecedora de combustível e as Requerentes.
32. Ora, apenas com base nos referidos elementos não é possível fazer a correspondência entre as operações praticadas e as declarações de introdução no consumo dos combustíveis transaccionados; não é possível estabelecer a relação entre as transacções e as DIC com as correspondentes liquidações emitidas pela AT e, finalmente, não é possível demonstrar a incorporação do encargo da CSR nas facturas de venda de gasolina e gasóleo às Requerentes, nem tão pouco em que grau e/ou medida tal incorporação se processou. Na verdade, não ficou sequer provado que a Y... e os entrepostos de terceiros por esta contratados suportaram, eles próprios, o encargo da CSR que as Requerentes alegam ter sido repercutido nas suas esferas.
33. Por muito que as Requerentes procurem defender que a AT tinha (mais facilmente) conhecimento de todos estes factos, certo é que era sobre aquelas que recaía o ónus da prova nos termos do artigo 74.º da LGT, não sendo o respectivo incumprimento passível de ser sanado através da sua inversão e imputação à AT, nem tão pouco pela possível notificação da AT, Y..., ERSE ou de outros terceiros por este Tribunal. O que não viola, conforme invocam as Requerentes, os princípios do acesso ao Direito e da tutela jurisdicional efectiva, previstos nos artigos 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da CRP. Por um lado, porque aquelas mantêm plenamente a possibilidade de exercício judicial dos seus direitos, conforme melhor se verá infra. Por outro lado, porque a possibilidade de acederem aos Tribunais para tutela das respectivas pretensões jurídicas não permite por si só justificar a desoneração para as Requerentes da prova dos factos constitutivos dos direitos de que se arrogam.
34. Acresce ainda ao exposto que mesmo que tivesse ficado demonstrada a repercussão da CSR, não ficou ainda assim provado que esse encargo se cristalizou na esfera jurídica das Requerentes. Pelo contrário, impunha-se às Requerentes provar que, em última instância, foram as entidades oneradas com o tributo em causa, porquanto não incorporaram o respectivo custo no preço do serviços prestados aos seus clientes, que no circuito ou cadeia económico-comercial podem situar‑se como os verdadeiros consumidores finais. Foi por isso que não se deu como provado o facto constante do ponto 3) supra.
35. Por fim, regista-se que não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, que apesar de serem apresentadas como factos, consistem em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. MATÉRIA DE DIREITO
IV.1. Questões prévias – saneamento
§1 – Incompetência do Tribunal Arbitral
36. Quanto à apreciação da competência material deste Tribunal Arbitral para conhecer dos pedidos formulados pelas Requerentes, seguem-se aqui de perto as conclusões a que chegou, entre outros, o Tribunal Arbitral, no acórdão proferido em 29 de Fevereiro de 2024, no processo n.º 467/2023‑T.
37. Assim, impõe-se em primeiro lugar aferir se, em termos gerais, são arbitráveis as pretensões referentes à CSR, isto é, se a sindicância da legalidade deste tributo está ou não inserida no âmbito de competência material da arbitragem tributária.
38. Ao que aqui importa, a competência dos Tribunais Arbitrais é delimitada no RJAT nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais”. (negrito nosso)
39. Âmbito material este que é por sua vez circunscrito na Portaria de Vinculação, da seguinte forma:
“Artigo 2.º
Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”
40. Apesar de a concatenação das referidas normas jurídicas não apresentar uma resposta incontestável quanto à arbitrabilidade de actos de liquidação de contribuições, que parecem ter sido em parte excluídos do âmbito material da arbitragem tributária pela Portaria de Vinculação – o que tem reflexo na jurisprudência arbitral que não é uniforme nesta matéria –, certo é que resulta incontroversa a inclusão da apreciação da legalidade de actos de liquidação de impostos no âmbito de competência material dos Tribunais Arbitrais.
41. Revela-se, assim, necessário, qualificar a CSR enquanto “contribuição” ou “imposto”, para daí extrair as necessárias consequências quanto à competência material deste Tribunal Arbitral. Esta análise tem sido amplamente discutida e desenvolvida pela jurisprudência, que importa aqui considerar em cumprimento do desiderato de interpretação e aplicação uniforme do direito que emana do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
42. Nas decisões arbitrais proferidas, entre outros, nos processos n.ºs 31/2023-T, 508/2023-T e 520/2023-T, a CSR foi qualificada como uma contribuição, o que levou aqueles Tribunais Arbitrais a julgar procedente a excepção de incompetência material. No acórdão proferido em 16 de Novembro de 2023, no processo n.º 520/2023-T, referiu-se a este respeito o seguinte:
“(…) nem se pode aceitar, à face da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), que fosse atribuída à CSR a designação de «contribuição» se legislativamente se pretendesse que ela fosse considerada como um «imposto» e não como uma das «demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas» a que aludem o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP e o artigo 3.º, n.º 2, da LGT. A expressão do pensamento em termos adequados faz-se necessariamente através da expressão correcta e não uma outra que o dissimule.
Assim, em boa hermenêutica, é de concluir que o artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, quando se refere a «impostos», está a reportar-se apenas aos tributos a que legalmente é atribuída tal designação (como, por exemplo, o IVA, o IRC e o IRS) e àqueles que, embora tenham outra designação, a própria lei explicitamente considera «impostos» (como sucede com as «contribuições especiais que assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», que o n.º 3 do artigo 4.º da LGT identifica e expressamente considera «impostos»). E, paralelamente, aquele artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 não se estará a reportar a tributos que pela lei são denominados como «taxas» ou «contribuições financeiras a favor das entidades públicas», que não se enquadrem na definição das referidas «contribuições especiais», mesmo que, após análise aprofundada das suas características pelo tribunal previamente definido como competente, se possa concluir que devem ser considerados como impostos especiais, designadamente para efeitos de aplicação das exigências constitucionais relativas a impostos.
No caso da CSR, é manifesto que não se está perante uma «contribuição especial» enquadrável no conceito definido no n.º 3 do artigo 4.º da LGT, pois não assenta «na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valor dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação ou ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade», pelo que não há suporte literal mínimo para que seja considerada, na perspectiva legislativa, um dos «impostos» a que alude o artigo 2.º da Portaria n.º 112-/2011.”.
43. Em sentido contrário pronunciaram-se, entre outros, os Tribunais Arbitrais nas decisões proferidas nos processos n.ºs 564/2020-T, 629/2021-T, 304/2022-T, 305/2020-T, 644/2022-T, 665/2022‑T, 702/2022-T, 24/2023-T, 113/2023-T, 294/2023-T e 410/2023-T, que qualificaram a CSR como imposto e, consequentemente, consideraram-na arbitrável. Por todos, cita‑se nesta sede o acórdão proferido em 24 de Outubro de 2023, no processo n.º 644/2022-T, que registou a este respeito o seguinte:
“Afigura-se a este tribunal que a CSR, não obstante um nomen iuris que pareceria integrá-la na categoria das “contribuições financeiras a favor de entidades públicas” (art. 165º, 1, i) da CRP), preenche todos os requisitos de conteúdo pecuniário, carácter coactivo, unilateralidade, definitividade, ausência de cariz sancionatório, tendo como credor o Estado ou outros entes públicos, e a afectação à realização de fins públicos – que definem um imposto.
Essa qualificação não se modifica pela circunstância de surgirem algumas correspectividades como a da obtenção de receitas para financiamento da utilização de vias públicas – pois as contribuições que assentam no especial desgaste de bens públicos são impostos, como estabelece o art. 4º, 3 da LGT.
Falta à CSR o carácter de comutatividade, bilateralidade ou sinalagmaticidade grupal ou colectiva que é necessária à contribuição financeira. O seu regime não determina, para o sujeito activo respectivo, qualquer dever de prestar específico, qualquer contraprestação exigível pelo contribuinte, o que significa que tem o carácter unilateral de um verdadeiro imposto (quando muito, alguma “paracomutatividade”, referente à compensação de prestações de que os sujeitos passivos são presumíveis causadores ou beneficiários – mas não a correspectividade bilateral estrita de uma taxa, sem uma contrapartida aproveitada ou provocada individualmente pelo sujeito passivo, como sucede numa taxa).
Basta percebermos que, enquanto a CSR é estabelecida a favor da Infraestruturas de Portugal (inicialmente, Estradas de Portugal), sendo esta a entidade titular da correspondente receita, os sujeitos passivos da contribuição são as empresas comercializadoras de combustíveis rodoviários, e, portanto, não são os destinatários da actividade da Infraestruturas de Portugal. Na sua concepção, a CSR incide sobre a gasolina e o gasóleo rodoviário sujeitos ao imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos e dele não isentos, e é devida pelos sujeitos passivos do ISP, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo.
Trata-se, assim, de um imposto de receita consignada (a consignação, desacompanhada de qualquer comutatividade, não subverte a sua natureza), e esta conclusão reforça-se com a posição veiculada pelo Tribunal de Contas na Conta Geral do Estado de 2008 (…)
Lembremos, por fim, que a CSR nasceu, com a Lei nº 55/2007, de 31 de Agosto, como um mero desdobramento do ISP, e, sobre este último, nem o nomen iuris permite dúvidas sobre a respectiva natureza.
Não há, nesse ponto, qualquer paralelo entre a CSR e a CESE (Contribuição Extraordinária Sobre o Sector Energético), relativamente à qual uma decisão arbitral (Proc. n.º 714/2020-T) entendeu procedente a excepção de incompetência ratione materiae. A CESE, criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, é tida como uma contribuição extraordinária cuja receita é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE), criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, tendo por base, portanto, uma contraprestação de natureza grupal, na medida em que constitui um preço público a pagar pelo conjunto de pessoas singulares ou colectivas que integram o sector energético nacional, o que configura uma bilateralidade genérica ou difusa – que pura e simplesmente não encontramos na CSR.”
44. Cabendo tomar posição, e evitando repetições desnecessárias e contrárias à economia processual que se exige, acompanha este Tribunal Arbitral a jurisprudência que qualifica a CSR como um imposto, já que este é um tributo que efectivamente não reúne as características de bilateralidade difusa e de responsabilidade de grupo inerente às contribuições. Por conseguinte, nem se revela necessário indagar se as contribuições se inserem ou não no âmbito material da arbitragem, uma vez que resulta incontroverso do RJAT e da Portaria de vinculação que tal âmbito abrange a apreciação da legalidade de questões referentes a impostos, onde se inclui a CSR.
45. Apesar de, em termos gerais, as matérias referentes à CSR serem arbitráveis, para se concluir pela competência material do Tribunal Arbitral é ainda necessário analisar e confrontar o concreto pedido formulado pelas Requerentes com a delimitação que resulta do RJAT e da Portaria de Vinculação.
46. No pedido de pronúncia arbitral as Requerentes concluíram da seguinte forma:
“Nestes termos, requer-se a V. E.xa a constituição desse Douto Tribunal Arbitral ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do RJAT, pedindo-se pronúncia arbitral sobre a ilegalidade dos atos tributários e decisório acima identificados. Ademais, requer‑se a esse Douto Tribunal Arbitral que julgue procedente, por provado, o presente pedido de pronúncia arbitral e, por conseguinte:
i) Determine a anulação dos referidos atos tributários e decisório, nos termos do artigo 163.º do CPA;
ii) Na medida da procedência do pedido anterior, condene a Entidade Requerida no reembolso às Requerentes da CSR indevidamente suportada, no montante global de 8.680.483,07 EUR, acrescido de juros indemnizatórios vencidos e vincendos, nos termos dos artigos 43.º, n.º 3, alínea c), e 100.º da LGT, e, bem assim, no pagamento das custas do processo arbitral, tudo com as demais consequências legais.”.
47. Na pronúncia arbitral as Requerentes identificam os seguintes actos tributários e decisório:
“i) Liquidações respeitantes a Contribuição de Serviço Rodoviário (“CSR”), referentes ao período de novembro de 2019 a dezembro de 2022, cujo encargo tributário foi repercutido na esfera jurídica das Requerentes na sequência da aquisição de 78.083.223,77 litros de gasóleo e 152.244,08 litros de gasolina à Y..., S.A., ascendendo a CSR a 8.680.483,07 EUR – cfr. cópia das faturas emitidas pela referida entidade juntas como documento n.º 1, e bem assim, a informação sobre os produtos comercializados pela Y..., S.A., na qual é feita menção expressa à inclusão da CSR no valor de ISP, junta como documento n.º 2.
ii) Decisão final de indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa presentado pelas Requerentes a 30 de novembro de 2023 junto da Alfândega do Jardim do Tabaco – cfr. cópia do pedido de revisão oficiosa, junta como documento n.º 3”.
48. Constata-se, portanto, que ao contrário do defendido pela AT, as Requerentes não solicitam directa e imediatamente a declaração de ilegalidade e anulação de actos de repercussão de CSR, mas sim de actos de liquidação daquele imposto. Ora, os Tribunais Arbitrais são materialmente competentes para apreciar a legalidade de actos de liquidação de impostos, conforme resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
49. Em face do exposto, julga-se improcedente a excepção invocada pela AT a este respeito.
§2 – Ilegitimidade
50. Na resposta que apresentou invocou também a Requerida a ilegitimidade processual activa e substantiva das Requerentes para solicitar o reembolso da CSR alegadamente suportada.
51. Quanto a este tema, pronunciaram-se já de forma extensa e cuidada os Tribunais Arbitrais, cuja jurisprudência cumpre aqui ter em consideração em respeito do já mencionado artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil.
52. Ao que importa, referiu-se o seguinte, entre outros, no acórdão arbitral proferido em 1 de Fevereiro de 2024, no âmbito do processo n.º 296/2023-T:
“III.7. A possibilidade de os tribunais arbitrais sindicarem actos de liquidação (inerentemente ligados a actos de repercussão) por solicitação dos repercutidos
Numa passagem do seu manual , Sérgio Vasques afirma que “Se o repercutido estará à margem da relação tributária, não estará por isso à margem do direito.”, referindo que a LGT lhe reconhece o direito “à reclamação, recurso, impugnação ou pronúncia arbitral”.
Qualquer que seja a posição a adoptar em tese geral – e, salvo disposição legal em contrário, não há razões para pôr em causa a possibilidade de os contribuintes de facto serem admitidos a invocarem perante os Tribunais, incluindo arbitrais, a ilegalidade dos impostos que efectivamente pagaram –, tem de se ter em conta o quadro legislativo, e este foi invocado pela AT na sua Resposta para pôr em causa a possibilidade de a repercutida poder vir pedir a revisão de liquidações que lhe eram alheias . Fê-lo (…) com base numa alegada restrição legal do círculo de sujeitos que podem solicitar o reembolso da CSR, fazendo a equiparação desses pedidos de reembolso a pedidos de revisão (…)
A questão é: pode ela [a Requerente] suscitar a revisão das liquidações de CSR em que não teve intervenção – e que, aliás, não consegue identificar – ainda que apenas na medida em que tais liquidações contendam com os pagamentos por ela feitos? Rectius: pode ela, supondo que todo o iter procedimental que desembocou no PPA cumpre os requisitos (o que ainda teria de se apurar) – pode a Requerente, perguntava-se, suscitar a revisão das liquidações conjuntas (e acumuladas) de ISP e CSR no segmento que invoca dizer-lhe respeito?
A questão está em saber se, portanto, no quadro processual que ficou descrito, pode este Tribunal declarar a ilegalidade das “liquidações de CSR praticadas pela Administração Tributária e Aduaneira com base nas DIC submetidas pela respetiva Fornecedora de Combustíveis”, ainda que delimitando o âmbito da ilegalidade de tais liquidações pela correspondência aos “atos de repercussão da CSR consubstanciados nas faturas referentes ao gasóleo rodoviário e à gasolina adquiridos pela Requerente no decurso do ano de 2021” – uma vez que, em tudo o que as exceda, não foi formulada qualquer pretensão arbitral.
(…) qualquer que seja, em tese geral, a possibilidade de o repercutido invocar a ilegalidade das liquidações que originam a repercussão, no âmbito dos impostos especiais de consumo há uma norma que o veda e que o legislador manteve incólume ao longo das 25 alterações que, em 24 anos, introduziu no CIEC: a do n.º 2 do artigo 15.º (epigrafado “Regras gerais do reembolso”), assim redigida: “Podem solicitar o reembolso os sujeitos passivos referidos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º que tenham procedido à introdução no consumo dos produtos em território nacional e provem o pagamento do respectivo imposto.”. Por sua vez, as disposições relevantes desse artigo 4.º (epigrafado “Incidência subjectiva”), para as quais tal norma remete, têm a seguinte redacção: “1 - São sujeitos passivos de impostos especiais de consumo: a) O depositário autorizado, o destinatário registado e o destinatário certificado;
(…)
2 - São também sujeitos passivos, sem prejuízo de outros especialmente determinados no presente Código:
a) A pessoa que declare os produtos ou por conta da qual estes sejam declarados, no momento e em caso de importação;”
Desde a redacção inicial destas normas, dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, também a única alteração substancial registada foi o aditamento (pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de Dezembro) do “destinatário certificado” entre os sujeitos passivos identificados à cabeça da norma sobre “Incidência subjectiva”. Quer dizer que nenhum legislador – nem mesmo o que entendeu atribuir natureza interpretativa à alusão à tipicidade da repercussão dos impostos especiais de consumo – considerou necessário, para o que ora importa, alargar o círculo dos “sujeitos passivos” para lá do “destinatário certificado”.
Quer dizer que só os sujeitos passivos aí identificados – e só quando preencham requisitos adicionais – podem suscitar questões sobre, como se escreve no n.º 1 desse artigo 15.º, “o erro na liquidação”.”.
53. Ora, as Requerentes não são sujeitos passivos de CSR, situando-se no circuito económico-comercial como meras adquirentes ou consumidoras de combustíveis, pelo que fica liminarmente afastada a legitimidade para suscitarem a ilegalidade das liquidações daquele imposto, por força do regime especial previsto no artigo 15.º do CIEC.
54. Mas ainda que aquele regime não fosse aplicável, a verdade é que as Requerentes continuariam a não ter legitimidade processual activa para discutir em juízo a legalidade das liquidações de CSR.
55. Remete-se aqui, uma vez mais, para as conclusões já alcançadas pela jurisprudência, em concreto, pelo Tribunal Arbitral no acórdão proferido em 15 de Janeiro de 2024, no âmbito do processo n.º 375/2023-T, onde se referiu, ao que importa, o seguinte:
“III.3. Ilegitimidade das Requerentes
20. Não consta do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) a regulação do pressuposto processual da legitimidade, como possibilidade de intervenção num processo contencioso, cuja conformação jurídica tem, assim, de proceder do direito subsidiariamente aplicável, como previsto na closure rule do art. 29.º, n.º 1, do RJAT, em concreto e de acordo com a natureza dos casos omissos, das normas de natureza processual do Código de Processo e de Procedimento Tributário (“CPPT”), do CPTA e do CPC.
21. A regra geral do direito processual, que emana do art. 30.º do CPC, é a de que é parte legítima quem tem “interesse direto” em demandar[1], sendo considerados titulares do interesse relevante, para este efeito, na falta de indicação da lei em contrário, “os sujeitos da relação controvertida”. A mesma regra é reproduzida no processo administrativo, que confere legitimidade ativa a quem “alegue ser parte na relação material controvertida” (vd. art. 9.º, n.º 1, do CPTA).
22. A legitimidade no processo é, pois, recortada pelo conceito central de “relação material” que, no âmbito fiscal, há de ser uma relação regida pelo direito tributário, à qual subjaz um ato tributário[2], cujo sujeito passivo é delimitado no artigo 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (“LGT”), como “a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável.”
23. No domínio tributário, a legitimidade não pode deixar de ser enquadrada no âmbito das relações jurídicas tributárias que se estabelecem entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares ou coletivas e entidades equiparadas (vd. art. 1.º, n.º 2, da LGT).
24. O CPPT contém uma norma específica sobre a legitimidade no processo judicial tributário, atribuindo-a aos “contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido” (vd. art. 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT). No mesmo sentido, ainda que referindo-se somente à legitimidade no procedimento, a LGT determina no seu art. 65.º que “têm legitimidade no procedimento os sujeitos passivos da relação tributária e quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido.”
25. De notar que, em relação aos responsáveis (sujeitos passivos não originários, tal como os substitutos), o legislador teve a preocupação de justificar a razão pela qual lhes é concedida legitimidade processual. Quanto aos responsáveis solidários, deriva “da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal” (vd. art. 9.º, n.º 2, do CPPT). No tocante aos responsáveis subsidiários, está associada ao facto “de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários” (vd. art. 9.º, n.º 3, do CPPT). Em ambas as situações, apesar de não corresponderem à figura do sujeito passivo originário, constitui-se uma relação jurídico-tributária entre estas categorias de sujeitos passivos derivados e o credor tributário Estado, que encerra prestações – principais (de pagamento da obrigação tributária) e acessórias, o que sucede igualmente com o substituto.
26. Na situação em análise, as Requerentes invocam a qualidade de repercutidos legais para deduzirem a acção arbitral.
27. Importa começar por notar que a figura do repercutido não se enquadra na categoria de sujeito passivo, nos termos do citado art. 18.º, n.º 3, da LGT, pelo que, não sendo parte em contratos fiscais, a legitimidade, neste caso, só pode advir da comprovação de que é titular de um interesse legalmente protegido (vd. art. 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT).
28. Apesar de o repercutido não ser sujeito passivo, a alínea a) do n.º 4 do art. 18.º da LGT pressupõe que assiste o “direito de reclamação, recurso, impugnação ou de pedido de pronúncia arbitral nos termos das leis tributárias” a quem “suporte o encargo do imposto por repercussão legal”, estendendo a posição jurídica adjetiva ao repercutido (apesar de não o considerar sujeito passivo), na condição de estarmos perante um caso de “repercussão legal”. A lei implica desta forma que o repercutido legal é titular de um interesse legalmente protegido, condição exigida para que possa intervir em juízo (vd. art. 9.º, n.ºs 1 e 4, do CPPT).
29. Neste âmbito, assinala JORGE LOPES DE SOUSA: “nos casos de repercussão legal do imposto, apesar de aquele que suporta o encargo do imposto não ser sujeito passivo, é-lhe assegurado o direito de reclamação, recurso e impugnação [art. 18.º, n.º 4, da LGT]. São casos de repercussão legal os do IVA e dos impostos especiais de consumo, pois, em face do respectivo regime legal, a lei exige o pagamento dos tributos aos intervenientes no processo de comercialização dos bens ou serviços, visando fazer com que eles venham a ser pagos pelos consumidores finais, que são os titulares da capacidade contributiva que se pretende tributar.” – vd. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 115.
30. JORGE LOPES DE SOUSA assinala ainda que, em matéria tributária, “é de considerar ser titular de um interesse susceptível de justificar a intervenção no procedimento tributário quem possa ser directamente afectado pelo que nele possa vir a ser decidido, inclusivamente quando esteja em causa uma mera situação de vantagem derivada do ordenamento jurídico, o que será a interpretação que melhor se compagina com o direito constitucionalmente garantido de participação dos cidadãos nas decisões que lhes disserem respeito (art . 267.º, n.º 5, da CRP), como tal se tendo de considerar, necessariamente, todas as que tenham repercussão directa na sua esfera jurídica.” – vd. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, 2011, I volume, p. 120. Raciocínio que, atenta a identidade de razões, deve considerar-se aplicável ao processo judicial tributário.
31. Com posição similar, LIMA GUERREIRO, em anotação ao art. 18.º, n.º 4, da LGT, refere que o preceito “admite que, da repercussão do IVA, possa resultar a lesão de um interesse legitimamente protegido (é no mesmo sentido a anotação de Saldanha Sanches ao referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, in ‘Fisco’, número 28, pgs. 29 e sgs.). Essa lesão será suficiente para a fundamentação de impugnação judicial ou, se verificasse que este não era o meio apropriado dado o princípio constitucional da tutela plena e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, da acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. A fórmula utilizada declara expressamente, no entanto, a possibilidade de reclamação, impugnação ou recurso contra repercussão ilegalmente efectuada pelo sujeito passivo do IVA, imposto de selo ou de outros tributos sujeitos a mecanismo idêntico, pelo que se infere implicitamente não ser em geral a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse, mas a impugnação judicial o meio adequado para reacção contra a repercussão ilegal do imposto, por razões certamente resultantes da similitude da lesão causada por acto ilegal de liquidação e da lesão resultante de repercussão ilegal e do facto de, no nosso sistema processual tributário, a impugnação não visar necessariamente efeitos meramente demolitórios do acto tributário mas também a reparação de qualquer lesão sofrida pelo impugnante. [...]. O não ser sujeito passivo não quer dizer obrigatoriamente ilegitimidade para intervir no procedimento, em caso de lesão de direito ou interesse legalmente protegido de qualquer natureza.”
32. No entanto, afigura-se claro que a CSR não constitui um caso de repercussão legal. A Lei n.º 55/2007, de 31/8, que instituiu a CSR, não contempla qualquer mecanismo de repercussão legal, nem sequer, adiante-se, de repercussão meramente económica, isto, sem prejuízo de ser um dado que, em princípio, as empresas[3] repassam nos preços praticados os gastos em que incorrem, independentemente da sua natureza (e, portanto, incluindo os gastos tributários), por forma a concretizarem o objetivo lucrativo que preside à sua criação e manutenção (vd. artigos 22.º do Código das Sociedades Comerciais e 980.º do Código Civil).
33. Infere-se do articulado das Requerentes que estas legitimam a sua intervenção processual no facto singelo de lhes ter sido repercutida a CSR pelas empresas distribuidoras de combustíveis, caracterizando-se no artigo 31.º do ppa como um “consumidor” de combustíveis, sobre o qual “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo”.
34. Contudo, importa, antes de mais, salientar que a repercussão económica não é, por si só, atributo de legitimidade processual, pois o artigo 9.º do CPPT requer a demonstração de um interesse legalmente protegido, i.e., que mereça a tutela do direito substantivo. Além de que a Requerente não tem a qualidade de “consumidor” de combustíveis, no sentido de consumidor final sobre o qual recai ou deve recair o encargo do tributo, na lógica da repercussão económica que subjaz nomeadamente aos Impostos Especiais de Consumo (“IEC”). Na verdade, e começando por esta última parte, as Requerentes são sociedades que se dedicam ao transporte, nacional e internacional, de mercadorias. Desta forma, o combustível adquirido é um factor de produção no circuito económico (de uma cadeia de comercialização de bens), um gasto da actividade de prestação de serviços de transporte realizada pelas Requerentes, não configurando um consumo final. Nestes termos, se a CSR, conforme alegam as Requerentes, se destina a ser suportada pelo consumidor, à partida estas não fazem parte das entidades potencialmente lesadas, que são os consumidores e não os operadores económicos.
35. Acresce que, nos termos da Lei que prevê a CSR (Lei n.º 55/2007, de 31/8), não existe qualquer referência sobre quem deve recair o encargo do tributo do ponto de vista económico, pelo que é errónea a afirmação das Requerentes de que é sobre as mesmas que “recai, nos termos da lei, o encargo daquele tributo [da CSR]”. Basta atentar, para esta conclusão, no art. 5.º, n.º 1, da citada lei: “A contribuição de serviço rodoviário é devida pelos sujeitos passivos do imposto sobre os produtos petrolíferos e energéticos, sendo aplicável à sua liquidação, cobrança e pagamento o disposto no Código dos Impostos Especiais de Consumo, na lei geral tributária e no Código de Procedimento e Processo Tributário, com as devidas adaptações.”[4] Assim, o legislador limitou-se a identificar o sujeito passivo da CSR, nada acrescentando sobre a repercussão da mesma. Nem se identifica como prevendo tal repercussão a norma do art. 3.º, n.º 1, da mesma lei que diz que a CSR “constitui a contrapartida pela utilização da rede rodoviária nacional, tal como esta é verificada pelo consumo dos combustíveis”.
36. Importa também assinalar, com relevância para esta questão, que a remissão para o Código dos Impostos Especiais de Consumo (“CIEC”) efectuada pela Lei da CSR é expressamente circunscrita aos procedimentos de “liquidação, cobrança e pagamento”.
37. Em resultado do acima exposto, conclui-se, em síntese, o seguinte:
i. A referida Lei n.º 55/2007 define o sujeito passivo e devedor da CSR, mas não contém qualquer regra de repercussão legal, nem se pronuncia sobre a sua repercussão económica;
ii. As ora Requerentes não são consumidoras finais, o que significa que os gastos em que incorrem são presumivelmente, de acordo com as regras da experiência comum, repercutidos no elo subsequente do circuito económico até atingirem os consumidores finais, esses sim, onerados com o encargo económico do imposto e demais gastos incorridos na produção dos bens e serviços;
iii. Se a CSR foi economicamente repercutida pelos distribuidores de combustíveis às ora Requerentes, não há razões para crer que estas, no exercício de uma atividade económica que visa o lucro e dentro dessa racionalidade, não tenham também repassado de alguma forma o encargo da CSR, no todo ou em parte, para os seus clientes, os quais nem sequer são os consumidores finais (os próprios clientes).
38. Ora, não sendo as ora Requerentes os sujeitos passivos da CSR, nem repercutidos legais desta contribuição, não lhes assiste legitimidade processual, a menos que, como interessadas, aleguem e demonstrem factos que suportem a aplicação da norma residual atributiva de legitimidade, i.e., a menos que evidenciem a existência de um interesse direto e legalmente protegido na sua esfera, passível de justificar a faculdade de demandar a Requerida em juízo, ónus que sobre as mesmas impende.
39. Contudo, o único facto que as ora Requerentes alegam para este efeito é o de lhes ter sido repercutida a CSR. Qualificam esta repercussão, erradamente, como legal, embora não indiquem onde está prevista essa repercussão – que, a ser “legal”, sempre teria de constar de uma norma com essa natureza (a qual, porém, não existe). O paralelismo que as Requerentes estabelecem entre a CSR e o IVA não tem qualquer suporte jurídico, pois a repercussão neste último imposto tem previsão legal expressa no art. 37.º do Código do IVA, permitindo o seu controlo e prova, dado que o imposto e respetivo montante são mencionados na factura emitida pelo fornecedor de bens ou prestador de serviços.
40. Também não tem qualquer pertinência a equiparação que as ora Requerentes pretendem estabelecer entre a CSR e o Imposto do Selo que tanto pode incidir sobre o sujeito passivo originário (em relação ao qual se verifica a capacidade contributiva) como sobre outra entidade. Neste último caso, como sucede de forma paradigmática com as operações financeiras, a doutrina e jurisprudência têm qualificado o fenómeno como substituição tributária sem retenção (vd., a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 25 de março de 2015, processo n.º 01080/13). Conforme atrás referido, o substituto é uma espécie do género “sujeito passivo”, logo dispõe de legitimidade activa para demandar o Estado, além de que, à semelhança do IVA, a liquidação do imposto é perfeitamente controlável através da documentação emitida, pois, nos termos do art. 23.º, n.º 6, do Código do Imposto do Selo, “nos documentos e títulos sujeitos a imposto são mencionados o valor do imposto e a data da liquidação, com exceção dos contratos previstos na verba 2 da tabela geral [arrendamento e subarrendamento], cuja liquidação é efetuada nos termos do n.º 8.”
41. Acresce que, sem prejuízo de a CSR ter sido consagrada como “contrapartida” da utilização da rede rodoviária nacional, a Lei não indica ou sequer sugere sobre quem é que deve constituir encargo, contrariamente ao que as ora Requerentes afirmam (nas suas palavras, o apontado “consumidor de combustíveis”, que, todavia, na realidade, a Lei não aponta...).
42. Rigorosamente, as ora Requerentes são tão-só clientes comerciais dos sujeitos passivos que liquidaram a CSR. Não são os sujeitos passivos dos actos tributários – de liquidação de CSR – impugnados. Não integram, nem são parte da relação tributária, nem são repercutidos legais. E também não se descortina, nem disso foi feita prova, que tenham sido as Requerentes a suportar economicamente o imposto, para o que seria necessário demonstrar duas vertentes cumulativas:
i. Que a CSR foi repercutida às ora Requerentes, quais os montantes e em que períodos;
ii. Que, por sua vez, o preço dos serviços de transportes que prestam aos seus clientes não comportam a repercussão de CSR (ou a medida em que não a comportam, se se tratar de repercussão parcial), por forma a poderem sustentar que suportaram, de forma efectiva, o encargo do imposto e o respetivo quantum.
43. As ora Requerentes limitaram-se a juntar declarações genéricas dos seus fornecedores de combustíveis, as quais estão longe de conter os elementos concretos indispensáveis à comprovação do acima exposto. Não lograram, por isso, atestar que suportaram o tributo contra o qual reagem. E esta seria, segundo entendemos, a única forma de lhes poder ser reconhecida a legitimidade residual para a presente acção arbitral, tendo em conta que não são sujeitos passivos, nas diversas modalidades que o conceito acomoda, nem repercutidos legais da CSR.
44. Aliás, compreende-se que o legislador não tenha adoptado um conceito irrestrito de legitimidade activa, rodeando-se de algumas cautelas, atentas as dificuldades práticas que uma tal abertura suscitaria, quer na ligação entre o acto de liquidação do imposto, a determinação da sua efectiva repercussão (económica) e a determinação do seu quantum; quer ainda no potencial desdobramento/duplicação de devoluções de imposto indevidas: simultaneamente ao sujeito passivo e ao(s) múltiplos repercutido(s) económicos da cadeia de valor. Ou seja, o mesmo imposto poderia ser restituído a diversos intervenientes, de forma dificilmente controlável e mapeável, com manifesto prejuízo para o Estado, em colisão com os princípios da igualdade e da praticabilidade.
45. Por fim, não se diga que as ora Requerentes ficaram desprovidas de tutela, pois nada impede o ressarcimento, através de uma acção civil de repetição do indevido instaurada contra os seus fornecedores, se reunirem os devidos pressupostos, nos termos declarados pelo Acórdão do Tribunal de Justiça, de 20 de outubro de 2011, no processo C-94/10, Danfoss A/S (pontos 24 a 29). Nesta perspectiva, está acautelada a observância do princípio fundamental da tutela jurisdicional efetiva (vd. artigo 20.º da Constituição).
46. De assinalar, adicionalmente, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já entendeu, em relação a um caso de liquidação de Imposto Automóvel (correspondente ao actual Imposto sobre Veículos), que o adquirente não tem legitimidade para impugnar a respetiva liquidação precisamente por não se tratar de um caso de repercussão legal (vd. Acórdão de 1/10/2003, processo n.º 0956/03).”.
56. Ora, conforme já anteriormente referido, inexiste no regime jurídico da CSR uma imposição legal de repercussão do imposto, sendo apenas expectável em face da lógica subjacente a este tributo que o respectivo encargo seja repassado para os intervenientes que estão a jusante no circuito económico-comercial e que procedem à aquisição dos combustíveis. O que significa, por si só, que não estavam preenchidos os pressupostos atributivos de legitimidade previstos no artigo 18.º, n.ºs 3 e 4, alínea a), da LGT.
57. Para além disso, as Requerentes também não lograram provar que suportaram definitivamente nas respectivas esferas jurídicas o encargo da CSR, que nelas teria sido repercutido pela Y..., o que significa que também não lograram demonstrar um interesse legalmente protegido merecedor de tutela, por forma a invocar a norma residual atributiva de legitimidade prevista no artigo 9.º do CPPT.
58. Conclusões estas que, sublinha-se ainda, não violam os princípios constitucionais da igualdade e do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigos 13.º e 20.º da CRP), nem tão pouco o princípio da efectividade tal qual teorizado pelo TJUE. É que as Requerentes, apesar de não integrarem o âmbito da relação jurídico-tributária e de não terem legitimidade processual activa para contestar a legalidade dos actos de liquidação da CSR, mantêm de forma plena o direito de demandar directamente a Y..., no âmbito das relações jurídico-privadas estabelecidas, através de uma acção civil de repetição do indevido, exigindo nessa sede o reembolso do imposto que alegam ter suportado indevidamente por via da repercussão nas aquisições de combustível realizadas.
59. Pelo exposto, julga-se procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual activa das Requerentes, com a consequente absolvição da Requerida da instância nos termos do disposto nos artigos 9.º do CPPT, 65.º da LGT, 55.º, n.º 1, alínea a) e 89.º, n.ºs 2 e 4, alínea e) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
60. Em face do decidido, fica prejudicada, porque inútil, a apreciação das demais questões suscitadas no processo, não existindo necessidade de promover o reenvio prejudicial para o TJUE quanto a qualquer questão por não ter o Tribunal Arbitral dúvidas quanto ao sentido e alcance do direito da União Europeia aqui aplicável.
V. DECISÃO
61. Termos em que se decide:
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Julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para apreciar actos de liquidação de CSR;
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Julgar procedente a excepção dilatória de ilegitimidade processual activa das Requerentes e, em consequência, absolver a Requerida da instância;
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Condenar as Requerentes no pagamento das custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
62. Atendendo ao disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 8.680.483,07.
VII. CUSTAS
63. Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 108.018,00, a suportar pelas Requerentes, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 28 de Fevereiro de 2025
Os árbitros,
Carla Castelo Trindade
(Presidente e Relatora)
Maria Alexandra Mesquita
Raquel Franco
(Acompanho o sentido final da decisão, mas teria adotado fundamentos diferentes dos que foram adotados pelo Tribunal. Considero verificada a exceção de incompetência do Tribunal Arbitral, por entender que existem motivos para se considerar a CSR como contribuição financeira e não como imposto e, adicionalmente, por considerar que os tributos que se enquadram nesta última categoria se encontram excluídos do âmbito material da competência dos tribunais constituídos junto do CAAD. Por outro lado, quanto à questão da legitimidade, entendo que as entidades utilizadoras da rede rodoviária nacional, que suportam o encargo tributário da CSR por efeito da repercussão, têm legitimidade processual para impugnar judicialmente os atos de liquidação que incidam sobre combustíveis que tenham adquirido, como meio de reação contra a ilegalidade da repercussão e que, nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 1, do CPTA, subsidiariamente aplicável, e da correspondente disposição do artigo 30.º, n.º 3, do CPC, a legitimidade processual é aferida pela relação jurídica controvertida tal como é apresentada pelo autor. Deste modo, há que atender à relação jurídica tal como o autor a apresenta e configura, isto é, à pretensa relação jurídica, e não à relação jurídica material, tal como ela se constituiu na realidade, sendo por isso indiferente, segundo se entende, para a verificação da legitimidade, a questão de saber se o direito existe na titularidade de quem o invoca ou contra quem é feito valer, matéria que diz antes respeito à questão de fundo e que poderá, quando muito, determinar a improcedência da ação (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, págs. 45 e ss.). Recordando a norma contida no artigo 18.º, n.º 4, alínea a), da LGT, assim como a regra geral do artigo 9.º, n.º 1, do CPPT, segundo a qual “têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido”, entendo que, ainda que se considere que a situação do caso não corresponde a repercussão legal, mas a mera repercussão económica ou de facto, não pode deixar de considerar-se que a entidade que suporta o imposto no âmbito da cadeia de comercialização dispõe de legitimidade para impugnar o ato de liquidação com fundamento em ilegalidade.)