Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 798/2024-T
Data da decisão: 2025-02-28  IRC  
Valor do pedido: € 122.088,88
Tema: Autoridade de caso julgado.
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Sumário:

I – Tendo sido apresentado pedido arbitral para declaração de ilegalidade de um ato de liquidação que foi anteriormente objeto de impugnação perante os tribunais estaduais, e em que foi proferida decisão transitada em julgado, e em que se não verifica, entre as ações, a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, há lugar a caso julgado na vertente de autoridade do caso julgado;

II - A autoridade do caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, não depende da verificação da tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., contribuinte fiscal nº ... e B..., contribuinte fiscal nº..., ambos com morada na ..., s/n, ..., ...-... ..., citados por reversão, na qualidade de responsáveis subsidiários, no âmbito do processo de execução n.º ... movido contra C..., S.A., contribuinte fiscal nº..., com sede em ..., freguesia e município da ..., vieram requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade das liquidações revertidas, com as consequências legais.

 

Por despacho arbitral de 3 de setembro de 2024 foi determinada a notificação da Autoridade Tributária para responder, e em 7 de outubro seguinte foi apresentada resposta em que vem suscitada a exceção de caso julgado, por se entender que os Requerentes pretendem impugnar a liquidação adicional de IRC de 2005 com o nº 2009..., quando sobre esse ato tributário existe já decisão judicial transitada em julgado, proferida por acórdão do TCA Norte, de 25 de novembro de 2021, no Processo nº 273/10.0BEAVR e tendo a mesma já sido parcialmente anulada.

 

Os Requerentes foram notificados, por despacho arbitral de 9 de outubro de 2024, para se pronunciarem sobre a matéria de exceção, e por requerimento do dia imediato, vieram dizer que não se verifica a exceção do caso julgado, porquanto o acórdão do TCA Norte, transitado em julgado, não se pronunciou sobre questões colocadas no presente processo e que não foram alegadas nem conhecidas anteriormente.

 

Entretanto, em 22 de outubro de 2024, foi emitido despacho do seguinte teor:

No pedido arbitral, os Requerentes não identificam o ato ou atos tributários que são objeto de impugnação, limitando-se a referir que “citados por reversão, na qualidade de responsáveis subsidiários, no âmbito do processo de execução nº ... e apensos movidos contra C..., S.A. […] vêm pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade das liquidações revertidas”. Tornando-se necessária a identificação do ato ou atos tributários impugnados, em consonância com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.º 2, alínea b), do RJAT, notifique-se os Requerentes, nos termos do disposto no artigo 87.º, n.º 2, do CPTA, subsidiariamente aplicável, para corrigir o articulado, suprindo a irregularidade, mediante a identificação da liquidação ou liquidações que são objeto do pedido arbitral. Prazo: dez dias.

Por requerimento de 23 de outubro de 2024, os Requerentes apresentaram nova petição corrigida, em que identificam como ato tributário impugnado a liquidação de IRC n.º 2009..., na parte que resulta do acréscimo à matéria tributável do valor de € 853.081.31 e respetivos juros.

Os Requerentes baseiam o pedido arbitral nos vícios de falta ou insuficiência da fundamentação, violação do princípio da verdade material, excesso de quantificação do valor liquidado, abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, incumprimento do artigo 58.º do CIRC por desconsideração do valor alcançado por acordo dos peritos, no âmbito do procedimento previsto no artigo 129.º do CIRC,

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, invocou a exceção do caso julgado e, caso assim se não entenda, considera que o pedido deve ser julgado improcedente com fundamento da autoridade do caso julgado. Em sede de impugnação, sustenta que o ato impugnado não enferma do alegado vício de falta de fundamentação, e que os Requerentes não demonstram concretamente porque entendem que a correção controvertida está ferida de excesso de quantificação, nem suscitam quanto a esta questão aspetos que não tenham já sido objeto de apreciação no acórdão de 25 de novembro de 2021 do TCA Norte. Quanto ao procedimento de prova do preço efetivo e da correção ao abrigo do regime de preços de transferência, considera que o TCA Norte já apreciou o apontado vício, decidindo que a existência de acordo quanto ao preço de venda do imóvel não preclude a aplicação do regime de preços de transferência, e que não foram invocados na petição inicial novos argumentos quanto a essa questão. Ainda em relação ao invocado abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, a Administração reitera o entendimento expresso pelo TCA Norte, no sentido de que, atento o distinto alcance entre o instituto da fixação da matéria coletável por acordo obtido quanto ao preço de venda do imóvel, ao abrigo do artigo 129º do CIRC, e o instituto dos preços de transferência, não pode dizer-se que a avaliação feita no âmbito de um deles, condicione ou crie fundadas expetativas ao destinatário em termos de se poder concluir no sentido de uma consolidação do valor atribuído ao imóvel em questão, não havendo, por isso, qualquer postergação da tutela da confiança ou do princípio da boa-fé. Por outro lado, a Autoridade Tributária impugna que não estejam reunidos os pressupostos para a aplicação dos preços de transferência e que não tivesse sido adoptado o comparável adequado à correção tributária ou que a inspeção tributária não tivesse cumprido o ónus probatório que lhe incumbia.

 

Conclui pela improcedência do pedido.

2. Com a apresentação pelos Requerentes da nova petição corrigida, em que identificam como ato tributário impugnado a liquidação de IRC n.º 2009..., a que a Autoridade Tributária teve oportunidade de responder por requerimento de 31 de outubro, a instância ficou estabilizada.

 

A Autoridade Tributária, através do requerimento de 20 de fevereiro de 2025, veio juntar aos autos documentos que já se tinham sido juntos anteriormente, e a que os Requerentes puderam responder pelo requerimento de 2025.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 2 de setembro de 2024.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e foi suscitada a exceção do caso julgado.

Cabe apreciar e decidir.

 

II – Fundamentação

 

Matéria de facto

4. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a seguinte.

 

  1. A sociedade C..., S.A foi objeto de uma ação inspetiva, realizada pela Direção de Finanças de Aveiro, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI 2008..., emitida em 7 de maio de 2008, referente ao exercício de 2005, em que foram efetuadas correções tributárias, no montante total de € 2.017.676,87, incluindo o montante de € 853.081,31 relativo a correções quanto a preços de transferência (cfr. processo administrativo, anexo 3, págs. 9 e segs.).
  2. A correção tributária originou a liquidação n.º 2009..., de 22 de outubro de 2009, a nota de compensação e a liquidação de juros, que constituem os documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos com a petição inicial corrigida, e que aqui se dão como reproduzidos;
  3.  No âmbito do processo de execução fiscal n.º ..., instaurado contra a sociedade C..., S.A, para efeito da cobrança coerciva da dívida tributária, a Direção de Finanças de Aveiro produziu uma informação em vista à reversão do processo de execução fiscal contra os administradores da empresa, B..., A..., enquanto responsáveis subsidiários, que na parte relevante é do seguinte teor:

 

Informação

De acordo com os elementos carreados para os autos, conclui-se a fundada insuficiência do património da devedora originária C..., S.A., titular do número de identificação de pessoa coletiva (NIPC).... para satisfação da divida exequenda e acrescido, como resulta dos elementos constantes da Declaração Anual de Informação Empresarial Simplificada (IES) de 2021, porquanto, da consulta ao balanço, verifica-se que não possui ativos não correntes e no que concerne aos ativos correntes, o que releva é a verba de Caixa e depósitos bancários (campo A5125), que ascendia a 14.350,75 EUR, mas. efetuadas as tentativas de penhora das contas bancárias conhecidas, só foi possível concretizar a penhora da conta afeta à atividade, em 2023-03-15, no montante apenas de 9.124,42 EUR, estando em causa o IRC do exercício de 2015, na quantia exequenda de 122,088,88 EUR, e o valor total em dívida à data de 151.296,57 EUR

Dos referidos elementos, verifica-se que não são conhecidos outros bens penhoráveis da devedora originária.

[…]

Consultando os elementos cadastrais disponíveis, designadamente a Certidão Permanente da sociedade, foram administradores de direito da executada no período acima indicado.

Presidente B..., titular do número de identificação fiscal (NIF) ..., e marido, Vice-Presidente - marido, A..., titular do NIF ..., e o filho vogal – D... a, titular do NIF ... .

[…]

Deste modo, sou de opinião que se encontram reunidas as condições necessárias ê suficientes para que os presentes autos possam evoluir no sentido de se proceder à efetivação do instituto da reversão a que se refere o artigo 23.º da Lei Geral Tributária (cfr. processo administrativo, documento anexo 14).

  1. Na sequência, o Chefe do Serviço de Finanças, em 27 de novembro de 2023, elaborou um projeto de decisão de reversão contra os referidos administradores da sociedade C..., S.A, determinando a sua notificação para o exercício do direto de audição (cfr. processo administrativo, anexo 14).
  2. Não tendo sido exercido o direito de audição, o Chefe do Serviço de Finanças, em 24 de abril de 2024, emitiu despacho de reversão do seguinte teor (cfr. processo administrativo, anexo 14, pág. 155):

 

Despacho de reversão

Vista a informação que antecede concordo.

Assim, reverto os presentes autos contra os administradores B..., titular do NIF..., e A... titular do NIF ..., melhor identificados no projeto de decisão de reversão junto aos autos, com os fundamentos ai expressos, que se dão aqui como integralmente reproduzidos.

Proceda-se à citação pessoal dos revertidos anexando fotocópia do presente despacho, certidões de dívida e fundamentos das liquidações, não se remetendo os fundamentos da reversão, constantes do projeto de decisão de reversão, dado que já foram remetidos aquando da notificação para audição prévia, não havendo novos fundamentos a invocar.

Os revertidos deverão ficar cientes que se efetuarem o pagamento integral da quantia exequenda, dentro do prazo de 30 dias a contar da citação, ficam dispensados do pagamento dos juros de mora calculados e custas processuais.

  1. Os Requerentes A... e  B...foram citados para o processo de execução, por reversão, por carta registada com aviso de receção, recebida em 8 de maio de 2024 (cfr. processo administrativo, anexo 14, págs. 166 e 173 e págs.156 e 164).
  2. O procedimento de reversão relativamente ao administrador D... foi declarado extinto por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Aveiro, de 24 de abril de 2024 (cfr. processo administrativo, anexo 14, pág. 153).
  3. A sociedade C..., S.A. deduziu impugnação judicial, perante o TAF de Aveiro, contra o ato de liquidação adicional de IRC n.º 2009..., referente ao exercício de 2005 e juros compensatórios, com o valor a pagar de € 478.712,53, que correu termos no Processo n.º 273/10.OBEAVR.
  4. Por decisão do TAF de Aveiro de 20 de janeiro de 2021, a impugnação judicial foi julgada totalmente procedente (cfr. documento junto ao requerimento da Autoridade Tributária de 31 de outubro de 2024).
  5. A Autoridade Tributária interpôs recurso da decisão judicial de primeira instância para o TCA Norte, que, por acórdão de 25 de novembro de 2021, julgou parcialmente procedente o recurso e revogou a decisão recorrida apenas na parte relativa à aplicação do regime dos preços de transferência no exercício de 2005 (cfr. processo administrativo, anexo 13).
  6. Em execução do julgado do acórdão do TCA Norte, que anulou parcialmente a liquidação adicional impugnada, pelo valor de € 356.623,65 (€ 304.416,50 de imposto e € 52.207,15 de juros compensatórios), a liquidação n.º 2009... foi substituída pela liquidação nº 2022..., permanecendo em dívida a importância de € 122.088,88, que corresponde à dívida tributária que foi objeto de reversão (documentos anexos ao requerimento da Autoridade Tributária apresentado em 18 de fevereiro de 2025).
  7. O pedido arbitral deu entrada em 25 de junho de 2024.

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados que revelem para a decisão da causa.

 

Motivação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária com a sua resposta e em factos não questionados pelas partes.

 

III - Saneamento

 

Caso julgado

 

5.  A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a exceção de caso julgado, por considerar que os Requerentes pretendem impugnar a liquidação adicional de IRC de 2005 com o n.º 2009..., quando sobre esse ato tributário existe já decisão judicial transitada em julgado, proferida por acórdão do TCA Norte, de 25 de novembro de 2021, no Processo nº 273/10.0BEAVR. Caso assim se não entenda, requer que o pedido seja julgado improcedente com fundamento da autoridade do caso julgado.

 

Os Requerentes contrapõem que não se verifica a exceção do caso julgado, porquanto o acórdão do TCA Norte, transitado em julgado, não se pronunciou sobre questões colocadas no presente processo e que não foram alegadas nem conhecidas anteriormente.

 

É esta a questão que cabe primeiramente apreciar.

 

Notificados por despacho arbitral para corrigirem a petição inicial, identificando o ato ou atos tributários que são impugnados, os Requerentes apresentaram nova petição corrigida, em que identificam como ato tributário impugnado a liquidação de IRC n.º 2009 ..., na parte que resulta do acréscimo à matéria tributável do valor de € 853.081.31 e respetivos juros.

Como resulta da matéria de facto dada como assente o dito ato de liquidação foi objeto de impugnação perante os tribunais estaduais, vindo a ser anulado por decisão do TAF de Aveiro, de 20 de janeiro de 2021, no âmbito do Processo n.º 273/10.OBEAVR. Em recurso jurisdicional, o TCA do Norte, por acórdão de 25 de novembro de 2021, revogou essa decisão na parte relativa à aplicação do regime de preços de transferência no exercício de 2005, considerando a impugnação improcedente nessa parte.

 

Em execução do julgado, a liquidação n.º 2009... foi substituída pela liquidação corretiva n.º 2022... .

 

Não pode subsistir dúvida, nesta circunstância, que se verifica o caso julgado na vertente de autoridade do caso julgado. A garantia de imodificabilidade da decisão transitada em julgado opera não apenas através da exceção do caso julgado a que se refere o artigo 577.º, alínea i), do CPC, mas também através da prevalência da primeira decisão que transitou em julgado (artigos 619.º e 621.º do CPC). E mesmo que chegue a ser proferida nova decisão contraditória com aquela que transitou em julgado em primeiro lugar, esta é a que prevalece (artigo 625.º, n.º 1, do CPC).

 

Pela exceção de caso julgado visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, pág. 599; quanto ao âmbito subjetivo do caso julgado, Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, 2.ª edição, 1997, pág. 589).

 

Por outro lado, entende-se que a autoridade do caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, a que alude o artigo 581º do CPC, tendo como pressuposto, não a identidade entre relações jurídicas - que visa impedir que uma mesma relação jurídica seja submetida sucessivamente a apreciação jurisdicional -, mas uma relação de prejudicialidade que opera quando a  decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior (cfr. acórdãos do STJ de 23 de novembro de 2011, Processo n.º 644/08, de 6 de março de 2008, Processo n.º 08B402, e de 13 de dezembro de 2007, Processo n.º 07A3739, e, mais recentemente, o acórdão de 15 de dezembro de 2022, Processo n.º 2222/20 ).

 

Ou seja, a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artigo 581.º do CPC, mas pressupõe que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida, impedindo que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos (cfr. Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, págs. 43-44).

 

Uma vez que os Requerentes pretendem impugnar a mesma liquidação que já foi objeto de pronúncia pelos tribunais estaduais, o tribunal arbitral está impedido de voltar a pronunciar-se sobre o mesmo ato tributário, sendo indiferente que os Requerentes sejam os responsáveis subsidiários, e não o sujeito passivo, e que tenham invocado novos fundamentos de impugnação, uma vez que, no caso, não têm aplicação os requisitos da exceção do caso julgado a que se refere o artigo 581.º do CPC.

 

E, assim, para que se verifique a autoridade do caso julgado, não releva a identidade de sujeitos ou a identidade de causa pedir, e, por conseguinte, não é impeditivo da declaração de caso julgado que, no presente processo arbitral, tenham sido colocadas questões que não foram alegadas nem conhecidas anteriormente.

 

No caso vertente, a sociedade C..., S.A., de que são administradores os Requerentes no presente processo arbitral, deduziu impugnação judicial, perante o TAF de Aveiro, contra o ato de liquidação adicional de IRC n.º 2009..., referente ao exercício de 2005, que foi julgada totalmente procedente. A Autoridade Tributária interpôs recurso da decisão judicial de primeira instância para o TCA Norte, que, por acórdão de 25 de novembro de 2021, julgou parcialmente procedente o recurso e revogou a decisão recorrida apenas na parte relativa à aplicação do regime dos preços de transferência no exercício de 2005.

 

Em execução do julgado do acórdão do TCA Norte, a liquidação n.º 2009... foi substituída pela liquidação nº 2022.... .

 

No processo arbitral, os mesmos administradores, agora na qualidade de responsáveis subsidiários, por efeito da reversão da dívida exequenda, impugnam a mesma liquidação n.º 2009..., que foi objecto de decisão transitada em julgado, pretendendo obter ganho de causa relativamente à questão que foi julgada improcedente por acórdão do TCA Norte, transitado em julgado. O objecto do segundo processo coincide parcialmente com o objecto do processo interposto pela sociedade perante os tribunais estaduais, uma vez que respeita à parte da liquidação originária que foi mantida na ordem jurídica pelo acórdão do TCA Norte.

 

Em tal circunstância, parece claro que se verifica a relação de prejudicialidade entre os dois processos, que justifica o efeito positivo da autoridade do caso julgado, e que a jurisprudência tem apontado como sendo uma exigência da segurança jurídica e da coerência e dignidade das decisões judiciais (cfr., entre muitos outros, o acórdão do STJ de 15 de dezembro de 2022, Processo n.º 2222/20).

 

Nestes termos, a autoridade de caso julgado resultante do acórdão do TCA do Norte, transitado em julgado, que anulou parcialmente a liquidação n.º 2009..., inviabiliza uma pronúncia de mérito, impossibilitando a continuação da lide, pelo que há lugar à extinção da instância por julgamento de forma, nos temos do artigo 277.º, alínea a), do CPC (cfr. acórdãos do STJ de 13 de dezembro de 2007, Processo n.º 07A3739 e de 6 de março de 2008, Processo n.º 08B402).

 

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar verificado o caso julgado, na modalidade de autoridade do caso julgado, com a consequente extinção da instância.

 

Valor da causa

 

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 122.088,88, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo dos Requerentes.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 28 de fevereiro de 2024

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha (relator)

 

O Árbitro vogal

 

José Joaquim Sampaio e Nora

(com declaração de voto quanto à decisão que anexo)

 

A Árbitro vogal

 

 

 

Susana Mercês de Carvalho

 

(Vencida, conforme declaração em anexo)

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Concordo com o acórdão proferido, mesmo na parte da decisão que julga verificada a excepção de caso julgado na modalidade de autoridade de caso julgado, mas não subscrevo a consequência daí tirada no acórdão, ou seja, a extinção da instância, pois que, no meu entender, deveria ser a absolvição da instância da requerida.

Com efeito, a excepção de caso julgado manifesta-se de duas maneiras, uma sob a forma negativa através da tríplice identidade (de partes, de causa de pedir e de pedido), que conduz só por si à impossibilidade de conhecimento do fundo da questão, e uma outra sob a forma positiva, a qual pela análise do conteúdo da decisão proferida anteriormente se conclui que a nova ação é a repetição da ação anterior já decidida e com trânsito em julgado, pelo que prescindindo até da tríplice identidade, em geral da identidade das partes, se conclui que pela impossibilidade de nova decisão, que seria inútil, pois que sempre prevaleceria a anterior decisão proferida sobre a mesma relação material, nos termos do artº. 625.º do actual Código de Processo Civil, que seguia a mesma linha de orientação do art.º 675.º do Cod. Proc. Civil de 1961, segundo a qual, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

Até 1995, o artigo 500º. do Cod. Proc. Civil considerava o caso julgado como exceção peremptória, pois que se acentuava o aspecto negativo da exceção, por força das razões formais referidas de identidade das partes, da causa de pedir e do pedido.

Com a reforma de 1995/96, o caso julgado, atenta a sua natureza processual, passou a ser considerado uma exceção dilatória, sendo hoje assim considerado pelo artº. 577º., al. i) do Código actual. Esta alteração teve por base a doutrina que já era defendida na vigência do código de 1961, que se fundava em que o seu principal efeito, de natureza preclusiva (a indiscutibilidade do acertamento das situações jurídicas das partes), se produz no campo do direito material, dele sendo mera consequência a proibição de repetir ou contradizer a decisão proferida, nas palavras de Lebres de Freitas.

Assim sendo, entendo que por aplicação dos artigos 376º., nº. 2 e 377º., al. i) do CPC actual, a consequência da verificação do caso julgado nos presentes autos, na modalidade de autoridade de caso julgado não pode ser a da extinção da instância, pois as causas de extinção da instância estão indicadas exaustivamente no artº. 277º. do Cod. Proc. Civil actual e 0 caso julgado ou a autoridade de caso julgado delas não consta, mas essa consequência é a de absolvição da instância em consonância com o disposto no artigo 376º., nº. 2 citado, já anteriormente afirmado no artº. 278º., nº. 1, al. e) do mesmo CPC actual, com o alcance e efeitos do artº. 279º. do mesmo diploma legal.

Por isso, entendo que a consequência de se ter julgado verificado o caso julgado na modalidade de autoridade de caso julgado, é a da absolvição da instância e como tal deveria ter sido decidido, embora tenha os mesmos efeitos práticos.

 

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2025

 

 

José Joaquim Monteiro Sampaio da Nora

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Ressalvado o muito respeito devido à tese que fez vencimento, dela me afasto pelos fundamentos que sucintamente enuncio.

É conhecida a distinção, doutrinária e jurisprudencialmente aceite – e que também consta do texto do acórdão –, entre a exceção do caso julgado e a autoridade do caso julgado.

A primeira desempenha uma função negativa, obstando a que as questões abrangidas pelo caso julgado possam voltar a ser suscitadas pelas mesmas partes numa segunda ação (proibição de repetição, a fim de evitar o risco do tribunal se repetir ou contradizer) e que pressupõe a tríplice identidade dos sujeitos, da causa de pedir e do pedido; a segunda desenvolve uma função positiva, implicando a vinculação do tribunal da segunda ação à decisão anterior, como seu pressuposto indiscutível, exigindo igualmente, segundo a jurisprudência largamente maioritária do STJ, a identidade de sujeitos. Deve, pois, no dizer do mesmo STJ, “acrescentar-se uma condição subjetiva para que haja uma tal força vinculativa do caso julgado fora do seu objeto processual: a autoridade do caso julgado apenas pode ser oposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como definido pelo artigo 581.º, n.º 2. Seria absolutamente inconstitucional, por contrário à proibição de indefesa, prevista no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição e no artigo 3.º do Código de Processo Civil, que uma decisão vinculasse quem foi terceiro à causa.” (do acórdão de 8/6/2021, proferido no processo 5765/17.8T8LRS.L1.S1, podendo citar-se ainda, sem preocupações de um recenseamento exaustivo, os arestos de 14/5/2019, processo 1049/18.2T8GMR-C.G1.S1; de 14/5/2019, processo n.º 1204/12.9TVLSB.L1.S3; de 8/10/2019, processo n.º 998/17.0T8VRL.G1.S1; de 27/12/2020, processo n.º 705/14.9TBABF.E1.S1; de 12/12/2023, processo 141/21.0YHLSB-A.L1.S1; de 11/1/2024, processo 1736/20.5T8VCD.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).

Quanto aos efeitos, e segundo a lição do Prof. Lebre de Freitas (Código do Processo Civil Anotado, Almedina, Vol. II, 3.ª edição, pág. 599), “Pela exceção [do caso julgado] visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito, enquanto que a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito.” (destaque nosso).

Assim sendo, a exceção [dilatória] do caso julgado impede o proferimento de uma nova decisão, implicando portanto a absolvição do réu da instância (art.ºs 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. i) e 580.º, todos do CPCiv.), ao passo que a autoridade, vinculando o tribunal da ação posterior ao decidido na primeira ação, impõe que a nova ação seja julgada de harmonia com o que foi prejudicialmente decidido na sentença transitada, determinando a prolação de uma decisão de mérito (cf. acórdãos do STJ de 29/10/2024, processo 2985/20.1T8L1.S1, resultando clara a distinção entre uma e outra figuras; acórdão de 15/12/2022 proferido no processo 2222/20.9T8FNC.L1.S1, ainda em www.dgsi.pt). Tal distinção quanto aos efeitos vem aliás reconhecida pela AT que, na sua contestação, conclui:

“Nos termos supra expostos, e nos demais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve a excepção do caso julgado ser julgada procedente com as devidas e legais consequências.

Caso assim não se entenda, deve o pedido ser julgado improcedente com os limites impostos pela autoridade do caso julgado. (...)”.

Resulta dos autos – e é reconhecido no acórdão – que no caso em apreço se verifica apenas parcial coincidência entre os fundamentos da primitiva impugnação, deduzida pela sociedade principal devedora, e os agora invocados pelos seus administradores na qualidade de responsáveis subsidiários por efeito da reversão da dívida exequenda, ainda que se verifique identidade dos pedidos formulados, não descaracterizada pela circunstância de estar em causa um montante inferior. Tal parcial coincidência objetiva, considerando a diversidade dos sujeitos, obsta, em meu entender, e reafirmando aqui o maior respeito pela tese que fez vencimento, à verificação da exceção dilatória do caso julgado, e também da autoridade que, conforme se deixou já referido, não prescinde igualmente da identidade dos sujeitos, ainda que atendendo à sua qualidade jurídica, e sem embargo da eficácia da sentença transitada poder ainda, em casos restritos, abranger terceiros.

Ensina o Prof. Lebre de Freitas[1] que sendo requisito essencial da exceção do caso julgado (art.º 581.º-1 CPC) a identidade das duas ações quanto aos sujeitos, “não exige que as pessoas jurídicas sejam parte numa e noutra ação, verificando-se também quando pessoas distintas revistam, num e noutro processo, idêntica qualidade jurídica (art.º 581.º-2 CPC), a qual se afere perante a posição de ambas na relação — ou outra situação — jurídica que constitui o elemento material das pretensões deduzidas (relação de representação; situações derivadas da transmissão do direito litigioso sem habilitação do adquirente e da transmissão do direito já reconhecido ou constituído por sentença)”.

Mas a extensão subjetiva da eficácia do caso julgado estende-se ainda a terceiros que, não tendo sido partes no processo[2], são abrangidos pela eficácia da sentença transitada, ou seja, segundo o mesmo autor, “Aos terceiros juridicamente indiferentes (o credor comum, ou outro titular de direito relativo, perante a sentença que declare que o seu devedor, ou outra contraparte, não é titular de certo direito absoluto, cuja titularidade é de quem com ele litigou); Aos terceiros juridicamente interessados que sejam: • titulares de situação jurídica cuja constituição ou extinção dependa do exercício da vontade negocial de uma ou de ambas as partes no processo (subcontraente, preferente, terceiro beneficiário do contrato); • titulares de situação jurídica concorrente com a de quem obtém vencimento (credor ou devedor solidário; credor de obrigação indivisível; contraente beneficiário da nulidade de cláusula contratual geral; comproprietário, co-herdeiro na fase da comunhão hereditária ou contitular de outro património comum); ou com ela em relação de subordinação genética, mas que não dependa, na sua vigência, da vontade negocial da parte (credor/fiador[3]; sociedade pessoal/sócio)” (destaque nosso).

O caso julgado – quer na sua vertente negativa, quer na sua vertente positiva – tem, pois, em princípio, eficácia relativa, o que encontra justificação nos princípios do dispositivo e do contraditório.

No caso em apreciação os ora impugnantes são responsáveis subsidiários – não revestem qualidade jurídica idêntica à da devedora principal, nem tão pouco integram as categorias de terceiros a quem pode ser estendida a eficácia da primeira decisão – com a consequência de não lhes poder ser oposto o decidido no acórdão proferido em 25 de Novembro de 2021 no processo 273/10.0BEAVR, na parte em que lhes foi desfavorável, por naqueles autos não terem tido intervenção, sob pena de violação do princípio de proibição da indefesa (cf., neste sentido, e versando sobre caso idêntico, o acórdão do STA de 6/3/2014, processo 01194/13, e acórdão do STJ de 27/2/2024, no processo T8BRG.G2.S1, acessíveis em www.dgsi.pt).

Deste modo, não procedendo a exceção do caso julgado, nem sendo invocável a autoridade do caso julgado, afigura-se-me que nada impedia, ressalvado melhor entendimento, o conhecimento do mérito do pedido de pronúncia arbitral deduzido.

 

 

(Susana Cristina Nascimento das Mercês de Carvalho)

 



[1] in “Extensão Subjetiva da Eficácia do Caso Julgado formado sobre a existência dum caminho público em ação entre o Município e o Proprietário do prédio por ele atravessado”, acessível em https://portal.oa.pt/media/132095/jose-lebre-de-freitas.pdf

[2] Excluindo as ações populares e os casos de sujeição à sentença de mérito dos terceiros a quem foi dada a possibilidade, por eles não utilizada, de intervirem no processo (chamado a intervir como parte principal ou acessória, este com as limitações do art.º 332.º CPC; substituído processual que haja sido citado para a ação; sócio que não impugne a deliberação social e a quem seja comunicada a impugnação por outro sócio).

[3] Veja-se a solução consagrada no art.º 635.º do CC.