Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 1111/2024-T
Data da decisão: 2025-01-24  IRC  
Valor do pedido: € 209.425,11
Tema: IRC. Derrama municipal. Rendimentos obtidos fora de Portugal.
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Decisão Arbitral

 

 

           Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Cristina Coisinha e Dr. José Coutinho Pires (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 20-12-2024, acordam no seguinte:

 

          

           1. Relatório

 

A..., S.A., sociedade comercial anónima com sede em ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, titular do Número Único de Identificação de Pessoa Coletiva e de matrícula na Conservatória de Registo Comercial (“NIPC”) ..., na qualidade de sociedade dominante do GRUPO B..., e

C..., S.A., sociedade comercial anónima com sede em ..., n.º ..., ...-... Porto, titular do NIPC..., na qualidade de sociedade dominada daquele Grupo (separada e respetivamente “1.ª Requerente” e “2.ª Requerente” ou, conjuntamente, “Requerentes”),

apresentaram pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista apreciação da ilegalidade e anulação parcial (na parte correspondente à derrama municipal no valor de€ 209.425,11) dos actos de autoliquidação plasmados nas declarações periódicas de rendimentos Modelo 22 de IRC (“declarações Modelo 22”) n.ºs ..., ... e ..., referentes ao exercício de 2021, das quais resultou o montante total a pagar de 489.428,08 EUR, e, bem assim, da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2024... .

As Requerentes pedem ainda juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 11-10-2024.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 02-12-2024, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 20-12-2024.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 21-01-2024, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. A 1.ª Requerente é uma sociedade comercial anónima que exerce, a título principal, a atividade de gestão de bolsas e outros mercados de valores mobiliários, a gestão de sistemas de liquidação de valores mobiliários e a prestação de outros serviços relacionados com a emissão e negociação de valores mobiliários;
  2. A 2.ª Requerente é uma sociedade comercial anónima que exerce, a título principal, a atividade de gestão de sistemas de liquidação de valores mobiliários e de sistemas centralizados de valores mobiliários;
  3. As Requerentes prosseguem a sua atividade comercial em território nacional, auferindo rendimentos de fonte portuguesa;
  4. As Requerentes auferem também rendimentos de fonte estrangeira;
  5. Em 2021, a 1.ª e 2.ª Requerentes eram, respetivamente, a sociedade dominante e dominada do GRUPO B..., o qual era tributado de acordo com o Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades previsto nos artigos 69.º e seguintes do CIRC;
  6. Em 01-06-2022, a 1.ª Requerente apresentou a declaração de rendimentos modelo 22 do Grupo B..., que  consta do documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, que teve o n.º..., tendo declarado, no campo 364 do quadro 10 daquela declaração, o montante de € 310.537,03, a título de derrama municipal;
  7. O montante de derrama municipal refletido na declaração Modelo 22 do GRUPO B... corresponde ao somatório dos montantes de derrama municipal apurados nos campos 364 das declarações Modelo 22 individuais das Requerentes:

– € 81.103,19 apurados no campo 364 da declaração modelo 22 individual da 1.ª Requerente, que tem o n.º ... (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

– € 229.433,84 apurados no campo 364 da declaração modelo 22 da 2.ª Requerente, que tem o n.º ... (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

  1. As Requerentes procederam à entrega das suas declarações anuais de informação simplificada (“declarações IES”) – às quais foram atribuídos os n.ºs ... e... –, tendo declarado, no quadro 4 do anexo H daquelas declarações, os rendimentos por si obtidos no estrangeiro (documentos n.ºs 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  2. No exercício de 2021, os rendimentos (provenientes da remuneração de prestações de serviços) auferidos pelas Requerentes no estrangeiro ascenderam ao montante total de 18.069.580,71, sendo € 9.514.785,73 auferidos pela 1.ª Requerente e € 8.554.794,98 auferidos pela 2.ª Requerente (páginas 59 e 69 dos documentos n.ºs 5 e 6 respectivamente);
  3. Em 06-01-2022, a 1.ª Requerente pagou a quantia autoliquidada de € 489.428,08 (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. Em 29-04-2024, as Requerentes apresentaram reclamação graciosa das autoliquidações, em que peticionaram a anulação (parcial) daqueles actos tributários, na parte referente à derrama municipal incidente sobre rendimentos lucro tributável) de fonte estrangeira, no valor de € 209.425,11, determinados nestes termos:


(documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

  1. Em 11-07-2024, foi proferido despacho de indeferimento da reclamação graciosa, nos termos que consta, do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

7. Com pertinência para a apreciação da reclamação em apreço, apuraram-se5 os seguintes factos:

 

7.1. A A... apurou, a título individual, no período de tributação de 2021:

 

• € 5.406.879,08, de lucro tributável;

• € 81.103,19, de derrama municipal.

 

7.2. A C... apurou, no período de tributação de 2021:

 

• € 15.295.589,37, de lucro tributável;

• € 229.433,84, de derrama municipal.

 

7.3. De acordo com a Declaração Modelo 22 do Grupo, submetida pela A..., na qualidade de sociedade dominante do Grupo, o valor da derrama municipal, em 2021, ascendeu a € 310.537,03.

(...)

9. Na Informação n.º 853/2022, elaborada pela Direção de Serviços do IRC e sancionada com despacho de concordância da Sra. Subdiretora Geral da Área dos Impostos sobre o Rendimento, datado de 4/11/2022,7 defendeu-se, quanto à aludida questão, o seguinte:

 

"A - Da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA)

1. Em conformidade com o informado pela UGC, relativamente ao thema decidendum pronunciou-se a jurisprudência do STA no Acórdão proferido no âmbito do Proc. n.° 03652/15.3BESNT, em que foi sufragado o seguinte entendimento:

 

i. Está em questão saber se, para efeitos de autoliquidação de derrama municipal, incidente, consensualmente, sobre "o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC)" (Cf. ar. 14.º n.º 1 da Lei n.º 2/2007 de 15 de janeiro (Lei da Finanças Locais, em vigor no ano de 2010).), há (ou não) lugar, no respetivo cálculo/apuramento, à destrinça entre rendimentos tributáveis com (e sem) origem em atividades exercidas nos municípios/freguesias

portuguesas.

ii. Em breve excursão legislativa (pelos tempos mais próximos), o artigo 18.º n.º 1 da Lei n.º 42/98 de 6 de agosto, que estabeleceu o regime financeiro dos municípios e das freguesias, na sequência de o art.º 16.º alínea (ai.) b) identificar como receita dos municípios "O produto da cobrança de derrama lançada nos termos do disposto no artigo 18.%;", permitia-lhes que, anualmente, pudessem lançar uma derrama, até ao limite máximo de 10% sobre a coleta do IRC, que proporcionalmente correspondesse ao rendimento gerado na sua área geográfica.

Este diploma foi, expressamente, revogado, pelo art.º 64.º n.º 1 da Lei n.º 212007 de 15 de janeiro - intitulada Lei das Finanças Locais (LFL), atualmente, também, se encontra, revogada, vigorando, desde 1 de janeiro de 2014, o Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais (RFALEI), estabelecido pela Lei n.º 7312013 de 3 de setembro, cujos art.ºs. 14.º al. c) e 18.º n. 01, no essencial, reproduzem, "ipsis verbis", os art.°s. 10.º al. b) e 14.º n.º 1 da LFL.).

Tendo a derrama passado a incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica.

iii. A partir do início de 2007, a derrama passou, assim, a ser calculada por aplicação de uma taxa ao lucro tributável, em vez da coleta, de IRC, perdendo, assim, a natureza de imposto extraordinário e deixando de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento.

Porém, a circunstância de a derrama sempre ter prefigurado um mero imposto adicional, assente sobre as regras de incidência e liquidação dos impostos da administração central, levou a que a sua disciplina legal se mantivesse relativamente ligeira.

Contudo, em conformidade com a atual redação, esta trata-se claramente de um imposto autónomo em relação ao IRC, pois todos os seus elementos estruturantes ora resultam da lei (sujeito ativo, margem de taxas) ou obedecem à intervenção da autarquia local (tributação ou não, taxas concretas), apenas comungando, para efeitos do seu cálculo e por simplicidade de gestão, de uma incidência objetiva comum.

iv. A dúvida reside, apenas, em saber se o lucro tributável, a operar como base de incidência da derrama, é o montante total obtido pelo sujeito passivo ou, perante a comprovação de que esse valor integra uma parte obtida fora do território português (no estrangeiro), deve ser apenas a parte do lucro tributável obtido em território nacional.

v. O legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor.

E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município" envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município", em que se situa a sede.

O legislador não desconhecia a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, especifica, da derrama municipal, à "proporção", à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

vi. Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, entendeu, também, o douto Tribunal, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais.

vii. Em situações de isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado.

Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro.

viii. Não é incorreto afirmar que na LFL nada se refere quanto à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC estabelece, relativamente a tais pessoas coletivas, a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do art.º 4. º, do CIRC.

Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária.

ix. Na verdade, considera evidente o STA (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida.

Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais.

x. Concluindo-se que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do território nacional

(e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela).

 

B- Entendimento da DSIRC

2. A figura jurídico-tributária da derrama municipal tem um passado longínquo no sistema fiscal português, pese embora as diversas alterações introduzidas ao longo do tempo.

Visa financiar os municípios pelos custos que estes têm de assumir face à presença, nos respetivos municípios, de sociedades comerciais (infraestruturas públicas, e manutenção destas, prestação de serviços públicos, etc.)

Com efeito, um dos seus elementos propulsionadores é o reforço do sistema de financiamento autárquico, assente na diminuição da dependência financeira dos municípios em relação às receitas provenientes do Estado e algumas entidades privadas.

A derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e, concretamente, os municípios, nos termos dos artigos 238.°, n.°4, e 254.° da CRP.

A autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.°, n.° 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir "receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências" (Casalta Nabais, "A autonomia financeira das autarquias locais", BFDUC, Vol. 82, 2006, p. 29).

 

3. Importa, assim, reconhecer três marcos na sua evolução, que, enquanto contributos do elemento histórico de interpretação das normas, permitem analisar a seu posicionamento em sede do IRC.

Desde logo, cumpre referir que a primeira Lei das Finanças Locais - Lei n.º 1/79, de 2 de janeiro - previa a possibilidade de os municípios poderem aplicar, a título de derrama, uma taxa até 10%, que incidia sobre a coleta da contribuição predial rústica e urbana, da contribuição industrial e do imposto de turismo, cobrados na área do respetivo município.

Tendo uma base de incidência bastante diferente da atual (circunscrita naturalmente pelo sistema fiscal à data em vigor), uma das características da derrama era o seu caráter de exceção, na medida em que a respetiva receita deveria ser aplicada em melhoramentos urgentes a realizar no município.

 

4. A primeira alteração da base de incidência da derrama municipal e a sua aproximação ao IRC ocorreu com o Decreto-Lei 4 70-B/88, de 19 de dezembro (que alterou algumas disposições da Lei n.º 1/87, de 6 de janeiro), o qual estipulava, no art.º 5.º, que a base de incidência da derrama passava a ser a coleta do IRC, relativa ao rendimento gerado na sua área geográfica.

Apesar das alterações, a derrama municipal manteve o seu caráter, que inclusive ficou reforçado com a definição de um requisito para o lançamento da derrama (só podia ser lançada para acorrer ao financiamento de investimentos ou no quadro de contratos de reequilíbrio financeiro).

 

5. Alteração de fundo relativamente à incidência ocorreu com a Lei n. ° 2/2007, de 15 de janeiro (nova Lei das Finanças Locais), em que a derrama municipal passou a incidir, até ao limite máximo de 1,5%, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, ou seja, deixou de ser um adicional ao IRC para passar a ser um adicionamento (Ver neste sentido Rui Duarte Morais, Passado, Presente e Futuro da Derrama, revista Fiscalidade, n° 38, pag. 109 e segs, e Sérgio Vasques, o Sistema de Tributação Local e a Derrama, Fiscalidade, pag. 121.).

 

6. Atualmente a derrama municipal encontra-se prevista na Lei n° 73/2013, de 3 de setembro (Regime Financeiro das Autarquias Locais e das Entidades Intermunicipais - RFALEI), o qual revogou a anterior Lei das Finanças Locais introduzida pela Lei n° 2/2007, de 15 de janeiro.

Este regime veio estabelecer a possibilidade de os municípios deliberarem lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o IRC, que corresponda à proporção do rendimento gerado na sua área geográfica por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e não residentes com estabelecimento estável nesse território (art.º 18.º n.º 1 do RFALEI).

 

7. A base de incidência da derrama coincide, assim, com a do IRC, no que respeita aos sujeitos passivos residentes que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola e aos não residentes que possuam estabelecimento estável situado em território português (n.º 1 do RFALEI e art.º 3.º,n.° 1, alíneas a) e c) do Código do IRC).

Esta coincidência entre bases de incidência apenas foi afastada quanto aos lucros sujeitos mas isentos de IRC, os quais ficaram expressamente excluídos da base de incidência da derrama.

 

8. Verifica-se, assim, que, para além de remeter expressamente para o IRC na definição da sua base de incidência e dos seus sujeitos passivos, o regime da derrama é omisso quanto a regras próprias de determinação do lucro tributável sujeito à derrama, bem como quanto à respetiva liquidação, pagamento, obrigações acessórias e garantias.

 

9. No que diz respeito à derrama municipal, a AT tem entendido que aquela se classifica como um imposto dependente.

Na realidade, não obstante constituir uma receita dos municípios (art.º 14.º do RFALEI), a mesma tem em consideração o rendimento gerado na área geográfica de cada município, incidindo sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, das entidades que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e ainda sobre o lucro tributável das entidades não residentes

com estabelecimento estável em Portugal, pelo que a formação da Derrama possui a mesma origem que o IRC, apresentando, assim, a natureza de imposto dependente deste imposto principal.

 

Contudo, nesta relação de mera dependência, a derrama enquanto imposto cuja liquidação é paralela ao IRC, tem vida própria e pode ser liquidada e exigida mesmo que o imposto principal não atinja o estádio pleno.

Assim, como o apuramento da derrama acolhe alguns elementos do IRC, ao nível de incidência e determinação do lucro tributável, teremos de fazer apelo às normas daquele em todos os campos que definem a sua relação jurídica tributária.

Logo, quanto aos rendimentos sujeitos e na quantificação do lucro tributável, terão que se considerar as disposições contidas no Código do IRC, nomeadamente o disposto nos art.ºs 3.º e 4.º e 17.º e seguintes.

 

10. Nos termos do disposto na alínea c) do art.º 14.º do RFALEI, constituem receitas dos municípios o produto da cobrança de derramas lançadas nos termos do artigo 18. º.

Quer das diversas alíneas do art.º 14.º do RFALEI, quer do disposto no art.º 18.º da mesma Lei, não consta qualquer exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional.

Sendo certo que o Código de IRC estabelece que a extensão da incidência da obrigação do imposto é a seguinte:

Relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o IRC incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território (n.° 1 do art.º 4° do Código do IRC).

Quanto aos rendimentos obtidos por não residentes com estabelecimento estável em território português, apenas estão sujeitos a IRC os rendimentos obtidos através desse estabelecimento estável, por aplicação do princípio da tributação na fonte vertido no n.° 2, do art. 4° do Código do IRC.

E, nos termos do n.º 3 do art.º 4° do Código do IRC, consideram-se obtidos em território português os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável ai situado.

Em conformidade com o disposto n.º 5 do art. 4° do Código do IRC, o território português compreende também as zonas onde, em conformidade com a legislação portuguesa e o direito internacional, a República Portuguesa tem direitos soberanos relativamente à prospeção, pesquisa e exploração dos recursos naturais do leito do mar, do seu subsolo e das águas sobrejacentes.

 

11. Nos termos do Código do IRC, o lucro tributável das pessoas coletivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do art.º 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do CIRC.

O resultado líquido do exercício, evidenciado na demonstração de resultados, é uma rúbrica do capital próprio, apurada nos termos do SNC, segundo a NCRF 25, de acordo com a terminologia contabilística.

Trata-se de um resultado de natureza financeira que traduz a performance económico-financeira de uma determinada empresa ou entidade durante um determinado período de tempo, que corresponde normalmente a um ano.

Esse cálculo é a consequência de um processo multifaseado que se inicia com a identificação de todos os rendimentos (art. 20.° do CIRC) e gastos (art.º 23. ° CIRC) imputáveis à empresa no período em causa.

Ao valor assim extraído da contabilidade, são efetuados ajustamentos relativos a variações patrimoniais positivas e negativas não refletidos no resultado liquido e ainda outros ajustamentos previstos no CIRC, nos termos do n.º 1 do art.º 17. º.

E, é o balanceamento entre rendimentos e gastos que permite apurar o resultado liquido, que, uma vez ajustado pelas variações patrimoniais e outros ajustamentos previstos no Código do IRC, nos possibilita aferir o lucro tributável (Quadro 07- Mod 22).

Acresce dizer que, relativamente às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, a tributação em sede de IRC abrange a totalidade dos rendimentos, como atrás se referiu, a qual resulta da soma dos obtidos em território português e dos obtidos fora desse território, em consonância com principio da universalidade dos rendimentos, tal como previsto no art.º 4. º, n.º 1 daquele diploma legal.

 

12. Já quanto ao estabelecido no RFALEI, prevê o n.º 1 do art.º 18.ºdo RFALEI uma regra, de caráter geral, relativa à sujeição de derrama municipal na área da sede do sujeito passivo ou do estabelecimento estável.

Prevendo-se, no n.º 2 do mesmo preceito legal, uma regra especial, nos termos da qual, sempre que os sujeitos passivos tenham estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e matéria coletável superior a € 50 000, o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município é determinado pela proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.

Ou seja, esta regra de repartição de derrama municipal por diversos municípios apenas ocorre nos casos em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais em mais de um município e apurem uma matéria coletável superior a € 50. 000.

Podendo, assim, verificar-se que, caso não se encontrem reunidos os pressupostos para a repartição de derrama pelos diferentes municípios em que os sujeitos passivos possuam estabelecimentos estáveis ou representações locais, aquela apenas é devida na área da sede do sujeito passivo.

 

13. Acresce que, nos termos do art.º 2.º da maioria das Convenções para a Evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT) celebradas por Portugal, a sua aplicação abrange também os impostos cujos sujeitos ativos são as autarquias locais, o que é o caso da derrama municipal. Ou seja, para efeitos das CDT, a derrama consubstancia um imposto sobre o rendimento.

 

14. Finalmente, importa fazer referência ao Acórdão n.º 603/2020, proferido no Recurso n.º 172/20, 2° Seção, do Tribunal Constitucional, em que foi Relator o Conselheiro Pedro Machete.

Ainda que existam divergências entre a posição assumida neste Acórdão e a assumida pela A T na questão ali em apreço - o que devemos entender por "fração de IRC" a que alude o art.º 91.º, n.°1, alínea b) do CIRC - existe, à partida, uma linha orientadora comum na sua génese da solução encontrada, em abono da tese que temos vindo a defender.

O Acórdão pretende averiguar, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, se o entendimento segundo o qual na expressão "fração do IRC" se inclui, ao lado da coleta do IRC enquanto imposto principal, também as coletas da derrama estadual e da derrama municipal, infringe alguma regra ou princípio constitucional.

 

Vejamos o que diz com relevância para o caso em apreço:

«A verdade, porém, é que, na ótica do critério normativo ora sindicado, nem a consideração da derrama municipal para efeitos de determinação do crédito de imposto ao abrigo do n. o 1, alínea b), do artigo 91.° do Código do IRC se encontra associada à existência de qualquer CDT, nem a existência de uma CDT deixa de constituir fator de diferenciação relativamente à tributação de sujeitos passivos que se encontrem nas mesmas circunstâncias, isto é, que percebam rendimentos no estrangeiro (cfr. o n.º 2 do mesmo preceito).

Quanto ao primeiro aspeto, o ponto decisivo é o de que, para efeitos da norma sindicada, a derrama municipal, quando lançada pelo município (cfr. o artigo 18.º do regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 7312013, de 3 de setembro}, é entendida como um adicionamento ao IRC, razão porque a sua coleta, tal como a da derrama estadual prevista no artigo 87.-A do Código do IRC, se soma necessariamente à coleta daquele imposto. Consequentemente, em termos de capacidade contributiva e de tributação em sede de IRC, a situação dos sujeitos passivos deste imposto é, à partida, constante, independentemente do local de origem do respetivo lucro tributável.

(...)

In casu, e conforme referido, o objetivo prosseguido pelo artigo 91.°n.°1, do Código do IRC é igualizar, segundo a lógica do principio da neutralidade na exportação, e por via da atribuição de um crédito de  imposto por dupla tributação jurídica internacional, o imposto a pagar pelos sujeitos passivos de IRC cujos rendimentos têm a sua fonte localizada apenas em Portugal e aqueles contribuintes de IRC que

também percebem rendimentos com origem num país terceiro.

(...)

O pagamento deste tributo (leia-se derrama) deve ser "eliminado" por dedução de créditos por dupla tributação internacional sempre que a coleta de IRC, stritcto sensu, não se mostre suficiente para os absorver na totalidade, como acontece no presente caso. Assim é que, na expressão "fração do IRC" constante da então ai. b) do n.º 1 do art.º 41.º (hoje, art.º  91. º) se deve incluir a coleta da derrama municipal. O mesmo é dizer que o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta de tal imposto (entenda-se derrama) originado por rendimentos obtidos no estrangeiro.»

(...)

Ora, daqui se retira facilmente que se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta da derrama originada por rendimentos obtidos no estrangeiro é porque a derrama incide, não só sobre os rendimentos provenientes do território português, mas também sobre os com origem no estrangeiro.

 

15. Resulta, assim, do exposto que, quanto à incidência da derrama, o entendimento da AT diverge da visão plasmada no Acórdão do STA proferido no âmbito do Proc. n.º03652115.3BESNT de 2021/01/12, que sustenta que ao lucro tributável apurado deveriam ser expurgados os rendimentos obtidos no estrangeiro, porquanto tais rendimentos não possuem qualquer ligação ao município em causa naquele processo.

 

16. Salvo o devido respeito, tal decisão olvidou dois aspetos fundamentais no que concerne ao cálculo do lucro tributável, porquanto quer o imposto principal quer a derrama comungam das mesmas normas sobre a incidência plasmadas no CIRC, as quais têm necessariamente de ser acatadas.

Por um lado, e como já foi referido, quanto às pessoas coletivas e outras entidades com sede ou direção efetiva em território português, o lucro tributável obedece ao principio da universalidade, (art.º 4. º, n.º 1 do CIRC), isto é, releva no seu cômputo todo e qualquer rendimento recebido pelo sujeito passivo, independentemente da sua proveniência.

Por outro, esse mesmo lucro integra componentes de várias naturezas e resulta de uma complexidade de operações/balanceamentos entre rendimentos e gastos relevados na contabilidade e os devidos ajustamentos positivos e/ou negativos, efetuados nos termos do Código do IRC.

 

17. Em face do exposto, parece-nos que o lançamento de derrama municipal, por regra, imperativa, deve incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, recaindo, assim, também, sobre rendimentos provenientes de fonte estrangeira Desde logo, analisada a legislação em vigor que disciplina a figura da derrama, verificamos a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação.

Assim, não podemos inferir um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

É que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. (art.º 9.º do CC).

 

18. Só assim não será nos casos em que os sujeitos passivos residentes com estabelecimentos estáveis fora do território nacional optem pelo regime de isenção previsto no art.º 54.º-A do Código do IRC.

Ou seja, caso o sujeito passivo português opte pela não concorrência para a determinação do seu lucro tributável dos lucros e dos prejuízos imputáveis a estabelecimento estável situado fora do território português, desde que se verifiquem os requisitos previstos no art.º 54.º-A do Código de IRC, o Estado da residência (Portugal) abster-se-á de tributar os lucros imputáveis ao estabelecimento estável e, consequentemente, o lançamento de derrama municipal não pode incidir sobre o lucro desse estabelecimento estável.

 

19. Em conclusão, é nosso entendimento, ressalvado o devido respeito por melhor opinião, que a derrama municipal incide sobre todos os rendimentos obtidos pelo contribuinte, incluindo os obtidos no estrangeiro, mantendo-se, assim, a posição até aqui seguida pela AT.

 

20. Quanto à recente posição do STA nesta matéria, que decidiu em sentido contrário, no Acórdão n.º 03652/15.3BESNT 0924/17, de 13 de janeiro de 2021, assumindo a desconsideração dos rendimentos provenientes de fonte estrangeira na base de incidência para cálculo da derrama municipal devida por sociedades residentes, acresce dizer que a decisão do STA produz efeitos apenas no caso ali apreciado e decidido, razão pela qual se mantém o entendimento da AT nesta matéria (art.º 68-A, n.º 4 da LGT)"

 

  1. A 2.ª Requerente apenas tem presença no município onde está localizada a sua sede, no município do Porto (afirmação feita no artigo 57.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionada);
  2. A taxa de derrama municipal aplicável no município do Porto era de 1,5% em 2021 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. O formulário-modelo da declaração Modelo 22 (e respetivas instruções de preenchimento introduzidas pelo Despacho n.º 10911/2021, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais, de 9 de novembro de 2021), não permitiram às Requerentes preencher e submeter as declarações Modelo 22 individuais e do GRUPO B... reflectindo o lucro tributável consoante a proveniência (nacional ou estrangeira) dos rendimentos obtidos e, assim, excluir os rendimentos de fonte estrangeira da base de incidência da derrama municipal;
  4. Em 10-10-2024, as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da matéria de facto

 

2.2.1. Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

2.2.2. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e os que consta do processo administrativo.

 

2.2.3.    Relativamente aos valores dos rendimentos obtidos no estrangeiro, as declarações juntas aos autos presumem-se verdadeiras, por força do preceituado no artigo 75.º, n.º 1, da LGT, já que não se verifica qualquer das situações previstas no n.º 2 do mesmo artigo.

              Por outro lado, a Autoridade Tributária e Aduaneira, na decisão da reclamação graciosa não baseou o indeferimento na falta de prova dos valores que constam das declarações modelo 22 e IES apresentadas pelo Requerente, nem fez qualquer referência à necessidade de junção de elementos probatórios referentes às operações realizadas com origem no estrangeiro, designadamente documento externos que refere na sua Resposta.

O facto de a Autoridade Tributária e Aduaneira na decisão da reclamação graciosa não ter baseado a sua decisão em falta de prova dos elementos declarado (cuja veracidade é de presumir, como se disse), obsta a que a falta desses documentos possa relevar para improcedência das pretensões das Requerentes.

           Na verdade, o processo arbitral tributário é, assim, um meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), sendo, como este, um meio processual de mera apreciação da legalidade de actos, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].

           No âmbito de um contencioso de mera legalidade, esta tem de ser apreciada com base no acto impugnado tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida, inclusivamente as aventadas no processo arbitral, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos.

           Neste sentido, pode ver-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 01-07-2020, processo n.º 309/14.6BEBRG), em que se entendeu que:

I – O tribunal, na apreciação da legalidade de uma decisão administrativa, não pode considerar que esta se alicerça noutros fundamentos que não aqueles que aí foram externados.

II – Assim, não pode julgar improcedente a impugnação judicial da decisão que indeferiu o pedido de revisão de um acto tributário alicerçando-se na não verificação de um requisito se a AT não usou esse fundamento para indeferir aquele pedido.

 

           Por isso, não pode a Administração Tributária, após a prática do acto, justificá-lo por razões diferentes das que constem da sua fundamentação expressa.

           Nos casos de autoliquidação, sujeitos a impugnação administrativa prévia necessária [artigos 131.º do CPPT e 2.º, alínea a), da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março], a fundamentação relevante para aferir a legalidade é a da respectiva decisão.

           Na verdade, quando dois actos têm por objecto definir a posição da Administração Tributária sobre a mesma situação jurídica, o segundo, quando não é confirmativo, é revogatório por substituição. ( [1] )

           Os actos que indeferem impugnações administrativas podem ser confirmativos, não alterando a ordem jurídica, quando «se limitem a reiterar, com os mesmos fundamentos, decisões contidas em atos administrativos anteriores» (artigo 53.º, n.º 1, do CPTA).

           Mas, nomeadamente nos casos de reclamação graciosa de actos de liquidação ou autoliquidação, se a respectiva decisão mantém o acto impugnado com diferente fundamentação, deverá entender-se que se opera revogação por substituição daquele acto (que será ratificação-sanação se a fundamentação inicial era ilegal) ( [2] ), passando a subsistir na ordem jurídica um novo acto que, apesar de manter o conteúdo decisório, terá a nova fundamentação.

Assim, no caso em apreço, a invocada falta de prova dos valores declarados nas declarações modelo 22  e nas IES das Requerentes não pode ter relevância para a decisão da causa, sendo de ter processualmente assente, com base na presunção prevista no artigo 75.º da LGT, que os valores declarados correspondem à realidade.

              A isto acresce que, mesmo quando a lei estabelece que o ónus da prova recai sobre o contribuinte, a Administração Tributária não está dispensada de «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT).

              O procedimento tributário deve culminar com uma decisão da administração tributária, que tem de assentar em pressupostos de facto. Porém, pode suceder que, após a produção de prova, a administração tributária fique com dúvidas sobre a situação factual que interessa conhecer para tomar a sua decisão. Para possibilitar à administração tributária decidir nos casos em que, após a produção de prova possível, ficar com uma dúvida insanável sobre qualquer ponto da matéria de facto, estabeleceram-se as regras do ónus da prova.

              O funcionamento destas regras, assim, ocorre apenas quando, após a actividade necessária para a adequada fixação da matéria de facto, directamente a partir dos meios de prova e indirectamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida.

Nestes casos, por força das regras do ónus da prova, devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova. ( [3] )

              É apenas nestas situações em que, após a produção das provas e a realização de diligências necessárias para apurar a factualidade relevante para a decisão, subsistem dúvidas sobre factos em que deve assentar a decisão que funcionam as regras do ónus da prova, valorando procedimentalmente as dúvidas contra aquele a quem é atribuído o ónus da prova.

Assim, no procedimento tributário ( [4] ), ao contrário do que entendeu a AT, as regras do ónus da prova não significam que seja sobre a parte à qual ele é atribuído que recai o dever de trazer ao processo os meios de prova dos factos relevantes para decisão, dispensando a parte contrária de tal tarefa, pois a Administração Tributária nunca está dispensada de, em cumprimento do princípio do inquisitório, antes de aplicar as regras do ónus da prova, «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido», por força do artigo 58.º da LGT.

O princípio do inquisitório, enunciado este artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do STA de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

Assim, «o órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito» (artigo 72.º da LGT) e no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos, podendo designadamente juntar actas e documentos, tomar declarações de qualquer natureza do contribuinte ou outras pessoas e promover a realização de perícias ou inspecções oculares» (artigo 50.º do CPPT), independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte.

A expressão «todas as diligências necessárias» não dá margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe a AT.

              Neste caso, a Autoridade Tributária e Aduaneira não fez no âmbito do procedimento de reclamação graciosa qualquer diligência tendente a verificar a correspondência ou não `realidade dos valores declarados pelas Requerentes nas declarações modelo 22 e IES, pelo que não podem aplicar-se contra estas as regras do ónus da prova.

 

2.2.4. No que concerne ao facto referido na alínea O) considerou-se provado com base na afirmação das Requerentes, feita no artigo 42.º do pedido de pronúncia arbitral e não questionada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, e do exame do formulário da declaração modelo 22 e respectivas instruções de preenchimento, em que não se prevê possibilidade de afastar os rendimentos provenientes do estrangeiro do âmbito de incidência da derrama municipal-.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Posições das Partes

 

A questão que é objecto do presente processo é a de saber se os rendimentos de fonte estrangeira auferidos pelas Requerentes devem ser excluídos no cálculo da Derrama Municipal, no exercício de 2021.

As Requerentes defendem, em suma, que:

– os rendimentos de fonte estrangeira por si auferidos – e que, por isso, também concorrem para a formação do lucro tributável do exercício – não devem ser sujeitos a derrama municipal;

– em face do formulário-modelo da declaração Modelo 22 (e respetivas instruções de preenchimento introduzidas pelo Despacho n.º 10911/2021, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais, de 9 de novembro de 2021), as Requerentes não conseguiram preencher e submeter as declarações Modelo 22 individuais e do GRUPO B... em conformidade, não tendo logrado nelas refletir o lucro tributável consoante a proveniência (nacional ou estrangeira) dos rendimentos obtidos e, assim, excluir os rendimentos de fonte estrangeira da base de incidência da derrama municipal;

– para o cálculo da derrama municipal deve, em primeiro lugar, ser determinado o lucro tributável gerado apenas em território nacional – em concreto, nas áreas geográficas dos municípios portugueses onde o sujeito passivo está presente –, através da subtração dos rendimentos obtidos no estrangeiro ao lucro tributável do exercício.

– subsequentemente, o lucro tributável gerado em território nacional (base de incidência do tributo) deverá ser sujeito às taxas de derrama municipal aplicáveis;

–  o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município – o qual, reitere-se, é formado exclusivamente por rendimentos de fonte portuguesa – é determinado através da proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional (cfr. artigo 18.º, n.º 2, da Lei das Finanças das Autarquias Locais);

– a posição unânime da jurisprudência coincide integralmente com o entendimento defendido pelas Requerentes: para efeitos de cálculo da derrama municipal, no apuramento da proporção do lucro tributável gerado nas áreas geográficas nos municípios portugueses, devem ser desconsiderados os rendimentos obtidos no estrangeiro pelos sujeitos passivos, porquanto tais rendimentos não apresentam um mínimo de conexão com a atividade comercial prosseguida em território nacional.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende a posição assumida na decisão da reclamação graciosa, dizendo ainda, em suma, que:

– têm razão as Requerentes quanto à lógica comutativa ou de contrapartida subjacente à figura da Derrama Municipal, que se torna mais evidente quando se prevê que o valor apurado por uma sociedade comercial deve ser ‘distribuído’ por tantos Municípios quanto aqueles em que a sociedade atua no território nacional, ou seja, em conformidade com a ‘fonte’ dos rendimentos, o que se impõe atentos os princípios do benefício e da justiça na repartição dos encargos. (n.º 2 do art.º 18º do RFALEI).

– a derrama municipal recai também sobre o lucro tributável (diferença entre os rendimentos e os gastos) apurado em operações económicas realizadas no estrangeiro;

– o entendimento defendido pelas Requerentes acarreta graves dissonâncias tais como, por um lado, considerando que o legislador integra no cálculo da "fracção do IRC" nos termos do artigo 91.º nº.1, al. b), do CIRC, para efeitos dedução à coleta, a derrama municipal originada por rendimentos obtidos no estrangeiro;

– verifica-se a inexistência de qualquer norma que disponha no sentido de que os rendimentos provenientes do exterior estão excluídos de tributação;

– a derrama é um imposto dependente do IRC;

– na determinação do lucro tributável de IRC não é feita distinção em relação a rendimentos obtidos no estrangeiro;

– no lucro tributável estão incluídos encargos subjacentes aos rendimentos obtidos no estrangeiro, o que conduz, no limite à dedução de gastos em montante superior ao devido e à não tributação de lucro tributável apurado relativamente aos rendimentos obtidos em território nacional, e consequentemente à violação das disposições legais vertidas na lei;

– se o crédito por dupla tributação internacional pode ser deduzido à fração da coleta da derrama originada por rendimentos obtidos no estrangeiro é porque na base de cálculo da derrama estão incluídos não só sobre os rendimentos (e gastos) provenientes do território português, mas também os com origem no estrangeiro.

 

3.2. Apreciação da questão

 

A questão que é objecto do presente processo foi já decidida pelo Supremo Tribunal Administrativo, num caso idêntico ao destes autos, no acórdão de 13-01-2021, proferido no processo n.º 3652/15.3BESNT, em que refere, além do mais, o seguinte:

“... o legislador, parece-nos, não ter querido ser inconsequente, anódino, na previsão, desde sempre, imutável, de que o percentual da derrama municipal incida sobre o lucro tributável correspondente à proporção do rendimento gerado na área geográfica do município coletor. E, na mesma linha, está a preocupação, constante, de, nos casos de necessidade de repartição de derrama entre vários municípios, ser obrigatório tributar "o lucro tributável imputável à circunscrição de cada município" envolvido e/ou, ainda, quando não haja diversos estabelecimentos estáveis ou representações locais, ter de considerar-se "o rendimento (que) é gerado no município", em que se situa a sede ...

Numa outra formulação, em função destes concretos e objetivos ditames legais, no pressuposto, ainda, de que o legislador não desconhecida a realidade de que muitos dos sujeitos passivos de IRC exercem atividades comerciais ou industriais em diversos pontos do País e do globo, o reporte e ligação da incidência, específica, da derrama municipal, à "proporção", à parte de um total, do rendimento gerado num determinado município, só pode significar isso mesmo; o cálculo, o apuramento da derrama, quando ocorrer e na medida do possível (permitida pela contabilidade), tem de implicar as operações aritméticas necessárias ao isolamento, relativamente a outros auferidos, do rendimento gerado no município beneficiário e, posterior, aplicação da percentagem (até ao máximo de 1,5%) pelos seus órgãos deliberada.

Além de esta se nos apresentar como a interpretação que melhor respeita a letra da lei, julgamos, também, ser a que melhor respeita os, mais lógicos, objetivos pretendidos alcançar com a imposição de derramas municipais. Na verdade, embora o legislador não o haja assumido explicitamente ... certos de que os tributos e em especial os impostos, visam, desde logo, "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas" e devem respeitar "os princípios da generalidade, da igualdade, da legalidade e da justiça material" (Artigo 5º da Lei Geral Tributária (LGT), presente, ainda, a condição de impostos autónomos (do IRC), só podemos assumir que as derramas municipais se têm, para legitimação, de ligar à atividade que o sujeito passivo desenvolve na área geográfica/território do município recetor, objetivando a respetiva autoliquidação, em primeira linha, contribuir para colmatar as necessidades financeiras deste, na medida, proporcional, da pegada deixada, por aquele, nas suas infraestruturas, serviços, imobilizado corpóreo...

Ademais e em situações, como a que nos ocupa, de, isoláveis, parcelas de rendimentos auferidos no estrangeiro, só esta forma de entender e operar, permite alcançar um resultado equitativo e materialmente justo; por um lado, assegura os desígnios tributários do município da sede do sujeito passivo, com a incidência sobre a parcela de lucro tributável gerado no seu território e por outro, liberta o obrigado tributário de pagar sobre rendimentos que, objetiva e comprovadamente, não foram auferidos pelo exercício de qualquer atividade (produtiva) dentro dos limites territoriais do concelho, onde se encontra sediado, com a inerente não utilização das respetivas infraestruturas... Igualmente, só desta forma se consegue algum tratamento igualitário entre as situações de tributação de rendimentos auferidos na área de mais do que um município nacional, através de estabelecimentos estáveis ou representações locais, em que a coleta não pertence, apenas, àquele em que se situa a sede (ou direção efetiva) e os casos de atividades exercidas, simultaneamente, em Portugal e no estrangeiro (Nas primeiras, tenha-se em conta que, no estabelecimento da proporção que determina o lucro tributável a imputar à circunscrição de cada município, se opera com a "massa salarial", ou seja, com um fator ligado à relação de trabalho, estabelecida entre o sujeito passivo e as pessoas que exercem a sua atividade sob as suas ordens e direção, o que constitui mais um indício da vontade do legislador de ligar e condicionar o pagamento de derrama municipal à atuação concreta, efetiva, com utilização da força de trabalho, geradora de rendimentos, no território municipal respetivo.).

Obviamente, não é incorreto afirmar ...  que, na LFL, "nada se refere à exclusão de tributação relativamente ao lucro tributável obtido fora do território nacional, sendo certo que o Código de IRC ao estabelecer, relativamente a tais pessoas colectivas ..., a regra de extensão da incidência da obrigação do imposto a tais rendimentos, nos termos do n.º 1, do artº 4º, do CIRC”. Porém, retirar, daí, a conclusão de que, em todas as situações, sem exceção, o lucro tributável, (com inclusão dos rendimentos obtidos fora do território português) é integralmente sujeito a derrama, afigura-se-nos exagerado e entender de forma cega, quanto às especificidades desta, concreta, figura tributária. Na verdade, consideramos evidente (em sintonia com a doutrina) que a disciplina legal da derrama municipal nasceu e permanece, há mais de 30 anos, pouco incisiva e desenvolvida, "relativamente ligeira"”.

 

Para além disso, como se refere na decisão arbitral proferida no processo n.º 211/2023-T:

A presente análise exige ainda o respetivo enquadramento constitucional, no quadro da autonomia financeira dos municípios (e das freguesias), enquanto vetor central da autonomia local (artigo 238.º CRP) estabelecendo-se que, “(…) As autarquias locais têm património e finanças próprios”, sendo que “(…) As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços», podendo «(…) dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.»

Desta forma, “o que legitima a atribuição de poderes tributários às autarquias locais é, fundamentalmente, o seu nível de estruturação política e administrativa, pois, tal como sucede com as regiões autónomas, elas têm como base uma representação directa dos cidadãos eleitores.[5] Pelo que, “Só assim se pode entender que a Lei das Finanças Locais possa atribuir às Assembleias Municipais algum espaço de decisão, alguma autonomia no sentido próprio de auto-governo, em matéria tributária quanto à criação de taxas e no lançamento de derramas.” [6]

Neste contexto, «(…), as derramas constituem uma manifestação tradicional do poder tributário dos órgãos do Poder Local, cuja origem se descobre nas antigas fintas que os concelhos podiam lançar para ocorrer aos encargos que excedessem as suas rendas (Ordenações, Livro I, Tít. 66, § 40). Este poder tributário permaneceu, com algumas oscilações, nos vários Códigos Administrativos que se sucederam, entre nós, desde o Código de 1836 ao Código de 1936-1940 (cfr. o artigo 781.º deste último Código, quanto à faculdade de lançamento de derramas pelas freguesias) e chegou até aos diplomas sobre finanças locais aprovados já no domínio da Constituição de 1976 (…)» [7].

 

Sendo assim certo que «a derrama assume-se atualmente como um imposto municipal, expressão, portanto, da autonomia financeira de que gozam as autarquias locais e concretamente os municípios, nos termos dos artigos 238.º, n.º 4, e 254.º da CRP. E que, “(…) a autonomia financeira das autarquias locais é uma faculdade concretizadora do princípio da autonomia local (cfr. artigo 6.º, n.º 1, da CRP), de acordo com a qual aquelas devem possuir “receitas suficientes para a realização das tarefas correspondentes à prossecução das suas atribuições e competências” (…)»[8], os poderes tributários locais são, por natureza, limitados, não podendo ser exercidos para além do âmbito de interesses locais da própria representação e legitimação democrático-representativa subjacente.

Assim, como se refere no citado acórdão do STA de 13-01-2021:

 “Ora, neste cenário, compete ao juiz aplicar, sempre, a lei de forma geral e abstrata, mas sem deixar de atentar, casuisticamente, em particularidades justificativas de, pela via jurisprudencial, se ir completando o puzzle, assumidamente, incompleto, da tributação, dos sujeitos passivos de IRC, em derramas municipais. Deste modo, assumimos que o lançamento de derrama devendo, por regra, imperativa, incidir sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC, tem de, quando possível a destrinça, comprovada, por não se tratarem de rendimentos gerados na área geográfica do município lançador, retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território (e, consequentemente, dos municípios portugueses, os beneficiários, exclusivos, daquela)”.

 

Na linha desta jurisprudência, a que se adere, é de concluir que as Requerentes têm razão ao defender que sobre o lucro tributável que resulte de rendimentos obtidos fora do território português não deve incidir derrama municipal.

A derrama está directamente correlacionada com os rendimentos gerados na área geográfica de cada município, incidindo a tributação apenas sobre a proporção do rendimento realizado pelos sujeitos passivos na respectiva circunscrição municipal, pelo que não há fundamento para serem também considerados  rendimentos obtidos fora dessa circunscrição, nomeadamente de fonte estrangeira, ainda que estes concorram para a formação do lucro tributável de IRC, uma vez que, em qualquer caso, não se trata de rendimentos gerados na área de nenhum município.

Aliás, como se diz no acórdão arbitral proferido no processo n.º 948/2023-T, tendo em consideração o critério de repartição de receita relativamente a sujeitos passivos com estabelecimento estável ou representação local em mais de um município, que resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 73/2013, e assenta no lucro tributável imputável à circunscrição de cada município, será de perguntar como seria possível efectuar a partilha entre municípios relativamente aos rendimentos obtidos pelo sujeito passivo no estrangeiro, quando a norma é clara ao estabelecer um critério de imputação a cada município com base na proporção entre os gastos com a massa salarial correspondente aos estabelecimentos que o sujeito passivo nele possua e a correspondente à totalidade dos seus estabelecimentos situados em território nacional.

Refira-se ainda que o que a Autoridade Tributária e Aduaneira refere sobre o artigo 91.º do CIRC e a inclusão da derrama no conceito de «fração de IRC» aí utilizado, não tem qualquer relação com o caso em apreço, pois não está em causa dedução de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional.

De qualquer modo, sempre se dirá, a título de obter dictum, que o que aí esta em causa é a definição do âmbito do conceito de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, para efeitos de crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, em que a jurisprudência citada pela Autoridade Tributária e Aduaneira tem considerado englobada a derrama municipal, adoptando um conceito lato de IRC, abrangendo a globalidade dos impostos sobre rendimento. Mas, desta inclusão da derrama no valor global do «imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas» a considerar para este efeito, nada tem a ver com a origem dos rendimentos, pois, independentemente dessa origem, esse valor global, em que se inclui o valor da derrama, pode ser utilizado, com limites, para efeitos de dedução de crédito por dupla tributação jurídica internacional, pelo menos quando for insuficiente a colecta de IRC, em sentido restrito, como consta das instruções de preenchimento da declaração modelo 22 aprovadas pelo Despacho n.º 314/2021, publicado no Diário da República, II Série, Parte C, de 11-01-2021, em se refere:

     Campo 379 – Dupla tributação jurídica internacional – Países com CDT

• Quando o sujeito passivo tenha obtido rendimentos em país com o qual tenha sido celebrada Convenção para evitar a dupla tributação (CDT) e que sejam tributados nos dois Estados, a dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional pode ser efetuada até à concorrência do somatório da coleta total (campo 378) e da derrama municipal (campo 364).

• Este campo só deve ser preenchido quando o crédito de imposto relativo à dupla tributação jurídica internacional não pôde ser integralmente deduzido no campo 353, por ser superior à coleta total (campo 378). O valor excedente, se respeitar a países com CDT, pode ser deduzido neste campo até à concorrência do valor da derrama municipal inscrito no campo 364.

 

       Refira-se ainda que, como decidiu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão citado, para cálculo da derrama municipal, há que «retirar, da competente base de incidência, aqueles que, num determinado exercício, forem obtidos fora do nosso território», independentemente dos gastos suportados para os obter, que relevam para determinação do lucro tributável de IRC.

Consequentemente, é de concluir que as autoliquidações de IRC e derramas relativas ao exercício de 2021 enfermam de ilegalidades que justificam a sua anulação nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

A decisão de indeferimento da reclamação graciosa enferma dos mesmos vícios.

 

4. Pedido de restituição de quantias pagas com juros indemnizatórios

 

As Requerentes pedem reembolso da quantia de € 209.425,11, acrescida de juros indemnizatórios.

 

4.1. Pedido de restituição de quantias pagas

 

Na sequência da anulação parcial da autoliquidação e da anulação da decisão da reclamação graciosa, a 1.ª Requerente, que pagou a quantia autoliquidada, tem direito a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente, o que é consequência da anulação.

              Sendo contestado pela Autoridade Tributária e Aduaneira o valor a reembolsar e sendo atribuída à Autoridade Tributária e Aduaneira a competência para concretizar a execução de julgados arbitrais (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT), esse valor deverá ser determinado em execução do presente acórdão.

 

4.2. Juros indemnizatórios

 

As Requerentes pedem juros indemnizatórios «desde a data do indeferimento expresso da reclamação graciosa até à emissão da respetiva nota de crédito».

O direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

Das várias situações em que são devidos juros indemnizatórios indicadas no artigo 43.º da LGT, haverá lugar aos mesmos se se entender que ocorreu erro imputável aos serviços.

Neste caso, as Requerentes pedem juros indemnizatórios «desde a data do indeferimento expresso da reclamação graciosa até à emissão da respetiva nota de crédito».

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido uniformemente, nos casos em que o imposto não foi liquidado pela Administração Tributária e houve reclamação graciosa, que os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que foi proferida a decisão de indeferimento ou da data da formação do indeferimento tácito, se for anterior.  ( [9] )

No caso em apreço, a reclamação graciosa foi apresentada em 29-04-2024 e o despacho de indeferimento foi proferido em 11-07-2024, antes do decurso do prazo de 4 meses em que se formaria indeferimento tácito, nos termos dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57.º da LGT.

Assim, aplicando esta jurisprudência, a 1.ª Requerente, que pagou a quantia autoliquidada, tem direito a juros indemnizatórios calculados com base na quantia a reembolsar, contados desde 12-07-2024, até à data em que vier a ser processada a nota de crédito, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

5. Decisão        

 

              De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular parcialmente as autoliquidações de IRC plasmadas nas declarações modelo 22 relativas ao exercício de  2021 com os n.ºs ..., ... e ..., nas partes em que nelas não foram desconsiderados os rendimentos provenientes de fonte estrangeira no cálculo da derrama municipal;
  3.  Julgar procedente o pedido de reembolso de quantias paga e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à 1.ª Requerente o que for liquidado eme execução da presente decisão arbitral;
  4. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto 4.2. desta decisão arbitral.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 209.425,11, indicado pelas Requerentes e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 24-01-2025

 

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(relator)

 

(Cristina Coisinha)

 

(José Coutinho Pires)



[1] Na terminologia do art. 79.º da LGT, como sucedia nos arts. 138.º e seguintes do CPA de 1991, a «anulação» administrativa tem a designação de «revogação».

O art. 165.º do CPA de 2015, precisou a terminologia distinguindo entre «revogação». que «é o acto administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade, e a «anulação administrativa», que «é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro acto, com fundamento em invalidade».

No entanto, no procedimento tributário e contencioso tributário não houve qualquer alteração.

[2] A «ratificação» (ou «ratificação-sanação») é o acto administrativo pelo qual o órgão competente decide sanar um acto inválido anteriormente praticado, suprindo a ilegalidade que o vicia (FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, 1989, Volume III, página 414, e Curso de Direito Administrativo, Volume II, página 475).

( [3] ) Sobre este ponto pode ver-se ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 1.ª edição, página 432.

( [4] ) E, eventualmente, com alcance diferente do que o ónus da prova possa assumir no processo civil, o que não interessa aqui esclarecer.

[5]    Saldanha Sanches, J.L., Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 2002, p. 40.

[6]    Ibidem.

[7]      Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 57/95, Processo n.º 405/88, de 16 e fevereiro de 1995.

[8]     Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 197/2013, Processo n.º 602/12, de 9 e abril de 2013.

[9] Neste sentido, relativamente  casos de retenção na fonte, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 13-07-2022, processo n.º 01693/09.9BELRS; de 11-01-2023, processo n.º 01844/09.3BELRS; do Pleno de 22-03-2023, processo n.º 079/22.4BALSB; de 22-11-2023, processo n.º 0125/23.4BALSB; de 29-11-2023, processo n.º 011/19.2BELRS.